2010

A representação ténica do mundo e a inexperiência do pensamento

por Franklin Leopoldo e Silva

Resumo

Segundo Bergson, a natureza não fez o homem para pensar, mas para conhecer na medida em que as representações cognitivas estão vinculadas à ação, sobretudo à sobrevivência. Nesse sentido, a evolução dotou o homem de inteligência de forma análoga como dotou os animais de instinto. Assim, fica estabelecida a vocação eminentemente técnica do que se costuma chamar de compreensão. Ela que não se refere apenas a instrumentos materiais, mas também às construções éticas, sociológicas, religiosas e políticas. A inteligência é, pois, operante, ou seja, ela se projeta na realidade com o fim de nela organizar de forma prática os meios de agir para transformar a natureza, na qual é preciso subsistir. Isso significa que outra forma de pensar equivale, portanto, a pensar além ou aquém da inteligência, ou seja, a intuir, o que, no limite, dá-se de modo antirrepresentativo e contrário aos hábitos de linguagem. Eis o que se verifica com artistas e místicos: eles superam a imagem técnica da realidade.

Tradicionalmente, a noção de representação supõe a referência do que é representado, ou a própria coisa na origem da representação, qualquer que seja a dificuldade que se precise superar para atingi-la. Ora, as imagens que hoje povoam a cultura são cada vez menos atreladas a realidades originais, já que acabaram por adquirir uma autonomia que as desvincula de possíveis referências. Estas, quando presentes, tendem a ser outras imagens, formando uma complexa rede, que se caracteriza cada vez mais pela separação dos objetos reais. Vive-se então num mundo de imagens que, desprovidas de referências, sucedem-se e se entrecruzam. E elas estão em toda parte. E regulam todos os aspectos da vida. Tanto que o atual domínio da publicidade e do marketing não se limita ao consumo. Ele atinge também a política, a religião e a cultura em geral; a conduta humana até. A própria subjetividade, enfim. Ela que é produzida como imagem de acordo com as conveniências dos apelos e do controle social.

Como a ciência moderna é essencialmente ligada à tecnologia, a tecnociência, saber dominante na contemporaneidade, é menos o instrumento de fabricação de produtos do que de imagens. Nesse sentido, até mesmo as transformações referem-se mais às imagens produzidas do que às próprias coisas ou a realidades supostamente transformadas. O sistema administra-as e condiciona o modo como cada um administra sua própria imagem, principalmente a de sua subjetividade, em consonância com as imagens socialmente produzidas. Essa espécie de técnica social que se desdobra em técnicas de si remete à noção de dispositivo em Foucault e corresponde à noção de individualidade homogênea, que é a marca atual da sociedade de indivíduos – separados, mas não diferentes. É fácil notar que isso se traduz num achatamento da experiência, planificada e homogeneizada. A tecnificação do comportamento, que vai acontecendo de maneira cada vez mais espontânea, traduz, por sua vez, a ausência de uma experiência reflexiva e a progressiva impossibilidade de julgar, isto é, de produzir juízos sobre si mesmo, os outros e a realidade em que se vive.

Vige, pois, a não-experiência do pensamento, razão pela qual as ações são cada vez mais naturalizadas, irrefletidas e condicionadas. É por isso elas podem ser cada vez mais controladas, sem que os dispositivos de controle tenham que se explicitar na sua função repressiva. Como as imagens autorreferenciadas são limitadas, e como esses limites constituem também as possibilidades da experiência, esta é cada vez mais restrita e heterônoma. O que um dia já foi chamado de aventura humana se reduz agora a uma causalidade linear de submissão a um encadeamento de representações não pensadas.


Uma das características mais marcantes da modernidade já se acha anunciada por Bacon, no aforisma 3 do Novum Organum, por via de duas afirmações que podem ser consideradas emblemáticas: 1) conhecimento e poder são sinônimos; 2) o que na filosofia contemplativa se designa por causa na ciência prática torna-se regra[1]. De acordo com essa concepção, pensar o mundo significa acumular poder sobre as coisas mediante o conhecimento das regras que governam o comportamento dos fenômenos. Antecipa-se aí o que será mais tarde entendido por objeto: algo que não está diante de nós para ser contemplado, mas sim para ser dominado pela astúcia de uma submissão que na verdade se revela como o desvendamento da conduta da natureza pelo inventário preciso de suas regularidades. Esse procedimento permite que o sujeito transfira para si a força e o poder que se manifestam no encadeamento do mundo natural e possa então exercê-los em prol da satisfação de suas necessidades.

Já vemos ai com suficiente clareza a posição que o homem ocupará na modernidade e que designamos como o lugar do sujeito que sabe criar para si uma situação de domínio da realidade. A substituição do ideal contemplativo pelo método que permite apreender regras preconiza uma nova racionalidade segundo a qual a atividade de pensar e de agir são consideradas inseparáveis. Com efeito, na medida em que conhecimento e poder se identificam, os resultados do saber já não são vistos como fins em si mesmos, mas principalmente como meios de interferir na realidade a partir de propósitos humanos. A forma do conhecimento passa a ser dada pelo perfil instrumental da racionalidade aplicada. Nesse sentido, Bacon já traça, no alvorecer da modernidade, a rota de um processo de civilização pautado pela conjunção entre ciência e técnica.

Os fundamentos metafisicas dessa nova visão de mundo foram estabelecidos por Descartes através da afirmação de que a primazia da subjetividade, por via de um conhecimento representacional metodicamente exercido, seria a única garantia da verdade, tanto em relação ao objeto quanto no que concerne ao sujeito. Com isso se constrói o paradigma geral de uma nova ontologia em que a presença de critérios metódicos assegura que a passagem do sujeito ao objeto seja a trajetória mais adequada para estabelecer a correspondência entre a realidade e o pensamento. Dessa maneira Descartes recoloca em termos mais gerais a perspectiva baconiana, e produz para ela uma justificativa lógica e metafisica ao elevar a união entre teoria e prática ao estatuto de autêntica sabedoria, sob a égide da unidade da razão. Mas nessa concepção moderna de sabedoria já é possível identificar a relevância do poder reivindicado pelo sujeito.

No entanto, apesar de o sistema assim estabelecido apresentar um alto grau de coerência interna e expressar na sua configuração a vocação para a totalidade, ainda se poderia perguntar pelos pressupostos dessa construção, notadamente no seu eixo constitutivo que sustenta a convergência entre os objetivos teóricos e os propósitos éticos. Ou seja, ainda seria possível levantar a questão acerca do perfil que foi determinado para a relação entre racionalidade e experiência humana. A pertinência do problema deriva de que a configuração sistemática do humanismo clássico supõe opções, hierarquias e atribuição de valor às faculdades humanas e ao modo de exercitá-las, tendo em vista atingir as metas implicadas na ambição a ser realizada pela modernidade. Nesse sentido, a pergunta fundamental é: por que, a partir de um determinado momento, a relação entre saber poder aparece como signo da integridade do sujeito e como critério necessário do cumprimento da vocação e do destino humanos?

A reciprocidade entre saber e poder foi abordada, no contexto contemporâneo, por Henri Bergson, exatamente com o intuito de compreender como e por que essa relação se manifesta na destinação técnica da racionalidade que opera no conhecimento e nos demais aspectos da organização da vida. Trata-se, é claro, de uma abordagem que supõe outra configuração epistêmica, notadamente outra relação entre filosofia e ciência, tal como o filósofo a apreende no período compreendido entre o final do século XIX e o início do século XX. O propósito de Bergson é retomar a questão do fundamento da relação entre saber e poder num contexto em que a hipótese explicativa inclua outros elementos além das pressuposições metafisicas que teriam orientado a elaboração cartesiana.

O principal acontecimento científico que se deu no período de formação de Bergson foi a Teoria da Evolução. O trabalho de Darwin, se não está na origem, reforçou profundamente o interesse do filósofo pelas questões atinentes à vida, seu princípio, seu desenvolvimento, sua história, enfim. A ontologia da Bergson é uma teoria da vida que tem como contrapartida científica a ideia de evolução e suas repercussões nos estudos de biologia. É nesse contexto que ele pensará as duas grandes funções que proporcionam ao ser humano o relacionamento com a realidade como meio em que vive: a percepção e a inteligência. Como produtos da evolução, cumprem a tarefa de promover a adaptação da existência humana ao entorno vital, assegurando a sobrevivência, que é o grande propósito da vida em todas as suas manifestações.

De acordo com essa direção tomada pelo trajeto da vida, a inteligência, voltada para a promoção das condições de sobrevivência dentro dos critérios de adaptação, é um órgão essencialmente destinado a produzir representações governadas pelo objetivo prático. A natureza não nos fez para pensar no sentido especulativo, mas para exercer o pensamento na exata medida em que isso é necessário para agir sobre as coisas e delas tirar proveito para a sobrevivência. A verdade teórica, desinteressada, não está entre os propósitos da vida em sua evolução. Assim sendo, toda a armação sistêmica do entendimento, que os filósofos entenderam como meio de atingir um conhecimento puro, está, de fato, a serviço da persistência das condições de vida, num sentido totalmente pragmático. As teorias do conhecimento transfiguraram esse instrumento e fizeram dele um intelecto contemplativo. Uma filosofia da evolução desmistifica essa crença, recolocando as capacidades intelectuais no plano em que a natureza as fez.

Esse plano é o de um conhecimento totalmente voltado para a ação. “Muito antes que tivesse havido uma filosofia e uma ciência, o papel da inteligência já era o de fabricar instrumentos e guiar a ação de nosso corpo sobre os corpos circundantes. A ciência levou esse trabalho da inteligência bem mais longe, mas não mudou a direção. Visa, antes de tudo, tornar-nos senhores da matéria” (Bergson, 2006, p. 36). A percepção recorta o real de acordo com nossos interesses vitais; a inteligência prolonga e aprimora essa seleção de aspectos segundo os mesmos interesses, passando dos órgãos, de que nos servimos como “utensílios naturais”, à fabricação de utensílios que podem ser considerados “órgãos artificiais”. Nesse jogo, o que está sempre em causa é a articulação da realidade de modo que possamos agir sobre ela, porque vivemos de acordo com o que fazemos para transformar a realidade em meio adequado à vida. A ciência progride segundo esses interesses, “o valor das teorias científicas sendo sempre medido pela solidez do poder que nos dão sobre a realidade” (Bergson, 2006, p. 37).

Note-se que a relação entre conhecimento e poder é visada no seu estatuto natural e, sendo assim, de certo modo se pode dizer que até esse ponto a análise de Bergson se move num plano “naturalista” em que a inteligência é considerada órgão natural de cujo desempenho decorre um poder, também natural, de adaptação e sobrevivência. É preciso que essa base naturalista fique clara para que possamos compreender todas as suas consequências.

O valor que certa vertente do pensamento atribui à ciência gerou, como se sabe, a versão de um saber “desinteressado”, movido unicamente pelo amor à verdade. Ora, sem esmiuçar os componentes ideológicos dessa concepção, Bergson pode descartá-la pela via de uma associação entre teoria do conhecimento e teoria da vida, ambas convergindo para a constatação, apoiada numa interpretação ampla do evolucionismo, da instrumentalidade da inteligência como sua destinação vital.

A concepção bergsoniana de inteligência como um modo de relação pragmática da consciência com a realidade possui o alcance de uma compreensão do vetor técnico da civilização. Como o conhecimento de inteligência foi, a partir de sua condição natural, consolidado historicamente como o modo universal de conhecimento, a consequência foi que a filosofia não apenas se valeu dele, mas também o justificou nessa suposta universalidade. Assim a metafisica, que em principio não se enquadra na intenção pragmática da inteligência, constituiu-se também pelo mesmo modelo, o que teria sido a causa das dificuldades e dos impasses que levaram Kant a destitui-la da condição de conhecimento teórico. Segundo Bergson, porém,a natureza pragmática do conhecimento intelectual, os procedimentos, possibilidades e limites que lhe são inerentes, tomam esse tipo de conhecimento inadequado também para a psicologia e as ciências humanas – se entendermos que o que haveria de específico no homem de alguma forma escapa aos requisitos de conceituação e de objetividade aplicados à realidade física. Entretanto, o mais importante no contexto que nos interessa é a explicação bergsoniana da racionalidade instrumental como forma de consolidar o poder sobre a realidade mediante as técnicas de controle que o conhecimento pode produzir. A representação da realidade através da inteligência produz uma imagem técnica do mundo, que se reflete na posição do sujeito. Tendo em vista a índole restritiva desse conhecimento, manifestada principalmente na função simbólica do arcabouço conceitual, isto é, no reducionismo que decorre da hegemonia da estrutura categorial imposta à realidade em vista de sua representação pragmática, compreende-se o triunfo histórico de uma ciência estreitamente associada à técnica e a importância desse fenômeno no curso da civilização.
A experiência humana, de modo geral, é constituída segundo parâmetros de uma abordagem objetivista de todos os aspectos da realidade, que tem como suporte um pensamento reduzido no seu alcance, restrito a um recorte muito parcial e afeto a uma dimensão superficial da realidade. A motivação pragmática que, antes de ser uma opção, é natureza, e natureza tornada cultura, fortalece a técnica do pensar, isto é, as mediações simbólicas que alienam o espírito, distanciando-o de si mesmo e da verdadeira realidade.

Ao indicar que a técnica não pode ser considerada mera aplicação da ciência, mas sim algo a ela ligado por vínculos essenciais, Heidegger se coloca também na posição de reconhecer que, ao menos na modernidade, a presença da tecnociência responde a uma necessidade profundamente inscrita na conformação de um mundo que o homem habita e explora por meio da identificação entre conhecimento e poder. Se a modernidade se caracteriza pela representação como “imagem do mundo”, é possível dizer que essa imagem vai sendo, ao longo da modernidade, tecnicamente estabelecida através da função de um sujeito de conhecimento, que é ao mesmo tempo um agente de transformações. Isso deriva da alteração do sentido do conhecimento, que já mencionamos, e que se manifesta na profunda modificação da noção de teoria.

Os gregos compreendiam o conhecimento teórico, naquilo que o diferenciava da simples opinião, como um olhar que a alma lança à verdade, intuída mediante um exercício de intelecção. Esse sentido de olhar presente na concepção grega de teoria será herdado pelos latinos e expresso na palavra contemplação. A vinculação entre saber e poder, que associa conhecimento e atividade, que faz do sujeito um agente, já coloca no interior da própria imagem representativa do mundo o sentido do agir e da conformação da realidade às intenções diretoras da ação.

Essa situação, isto é, a nova relação que se estabelece entre o homem e a natureza por meio da técnica, é assim comentada por Heisenberg: “Atualmente, vivemos num mundo de tal maneira transformado (pelo homem) que só encontramos por toda parte as estruturas de que é autor: emprego de instrumentos na vida cotidiana, preparação de alimentos pelas máquinas, transformação da paisagem pelo homem; de maneira que o homem somente encontra a si mesmo” (Heisenberg, 1962, p. 28). Não se pode dizer que o homem esteja diante da natureza como algo que se lhe opõe, pois a natureza transformada pela técnica somente se mostra através das interferências humanas. O encontro da natureza tornou-se o encontro do homem cuja presença ativa a natureza reflete por toda parte. A imagem técnica da natureza é a imagem do próprio homem. Toda a terra está transformada ou destinada a vir a sê-lo.

Essa presença técnica corrobora o modo científico de interagir próprio da ciência contemporânea, em que não se pode mais dissociar os fenômenos observados do observador e de suas técnicas de observação. “O objeto da pesquisa não é a natureza em si, mas a natureza enquanto captada pela interrogação humana” (Heisenberg, 1962, p. 29). E nesse caso também se pode dizer que o sujeito encontra, no objeto, a si mesmo, isto é, a realidade tal como as condições de investigação a tornam observável e cognoscível. Nessa situação, tanto se pode dizer que o ser humano realiza a ambição que movia a ciência na sua origem quanto se pode dizer também que ele encontra, aí, o limite de sua relação com a realidade e que transpor esse limite equivaleria a superar-se a si mesmo. Pois a realização do domínio humano sobre as coisas teria levado a uma indistinção entre o homem e a natureza. Essa constatação incide profundamente nas condições de existência, e Heisenberg conclui: “O homem está, doravante, só consigo mesmo” (Heisenberg, 1962, p. 27).

A exterioridade da técnica e a extensão do poder de domínio teria resultado no que talvez possa ser considerado o extremo limite do exercício do poder: a anulação do ser próprio daquilo sobre o que se exerce o poder. A extensão ilimitada do poder faz com que aquele que o exerce não possa mais encontrar o outro cuja subordinação ao poder se manifestaria em algum grau de resistência. A solidão inerente à tirania, de que os gregos falavam em termos políticos, se mostra como vocação e realização da civilização técnica. Não é por acaso que os totalitarismos contemporâneos procuraram realizar-se e justificar-se no plano da administração técnica da vida e da morte, subordinando os seres humanos aos efeitos da eficiência técnica de procedimentos que refletem o poder na sua totalidade. É essa lógica do poder implicada na técnica o que impede de considerá-la mero produto derivado da ciência, uma espécie de aplicação ocasional e acidental. Como a associação entre saber e poder se manifesta na efetividade da técnica, é preciso convir que o impulso do progresso faz parte da lógica do poder, portanto da fabricação da verdade (Foucault), e não se refere à sua simples descoberta. As perguntas que o homem dirige à natureza estão profundamente comprometidas com a projeção de si mesmo como agente dominador. Às palavras de Heisenberg fazem eco as de Heidegger, mas no sentido de infletir a observação do cientista:

Desse modo, amplia-se a ilusão de que tudo que vem ao encontro subsiste na medida em que é algo feito pelo homem. Esta ilusão torna madura uma última aparência enganadora. Segundo esta aparência, parece que o homem em todos os lugares encontra mais a si mesmo. Heisenberg apontou com toda razão para o fato de que, para o homem de hoje, a realidade deve se apresentar desse modo mesmo. Entretanto, o homem de hoje, justamente, não encontra mais a si mesmo, isto é, não encontra mais sua essência[2].

E o motivo é que, totalmente preso ao que faz, no sentido da exterioridade da técnica, perdeu a relação com ele mesmo, e nem sequer se vê como responsável pelo que é esplicitado a fazer. Em outras palavras, o homem se expôs de tal modo à causalidade técnica (causa eficiente) que já não pode mais compreender a sua proveniência, ou seja, já não pode relacionar a produtividade técnica àquilo que é essencialmente[3]. O homem estabeleceu uma relação calculada e calculável com a natureza, o que permitiu o domínio previsto no ideal baconiano, mas, nesta relação, a verdade do próprio homem se retraiu e permanece encoberta. Esse velamento é também o da verdade das coisas, na medida em que a relação calculada e calculável com a natureza impede seu aparecer no sentido de poiesis, a produção da natureza na força própria de seu vir a ser e não sua fenomenalidade segundo as formas da razão subjetiva.

A maneira pela qual Heidegger entende a afirmação de Heisenberg é que, se por um lado é certo “que o homem está por toda parte porque se projetou de tal forma no mundo que a interferência técnica acabou por reconstituir a realidade”, por outro lado, “pode-se dizer também que essa mesma atividade fez com que perdesse a si mesmo e às coisas na originalidade de seu ser”. Assim, em toda parte o homem encontra o que fez e o mundo que construiu; mas em parte alguma se encontra a si mesmo nem encontra a natureza no sentido do outro com que poderia partilhar sua existência. O homem encontra por toda parte a si mesmo apenas no sentido de que o real é representado segundo suas exigências.

A riqueza da terra desabriga-se agora como reserva de carvão, o solo como espaço de depósitos minerais. […] O campo é agora uma indústria de alimentação motorizada. O ar é posto para o fornecimento de nitrogênio, o solo, para o fornecimento de minérios, o minério, para o fornecimento de urânio, este, para a produção de energia atômica […]. A central hidroelétrica está posta no Reno. […] A central hidroelétrica não está construída no Reno como a antiga ponte de madeira que há séculos une uma margem à outra. Pelo contrário, é o rio que está construído na central elétrica.[4]

É dessa forma que o homem vê a si mesmo na natureza: porque vê na floresta a reserva de carvão e madeira; no solo, a reserva de minerais; no rio, a reserva de energia etc. Assim, ele não se vê, mas enxerga a consumação de seu poder que a razão técnica antecipa na visão da natureza como matéria-prima de realizações humanas. Ora, se é esta a relação dominante que o homem mantém com a natureza e consigo mesmo, em que sentido se pode dizer que tal relação consiste em pensar a si mesmo e à natureza? O que Heidegger deseja indicar é que a representação técnica da natureza, ao se constituir de imagens daquilo que será feito, em beneficio do domínio da natureza, deixa necessariamente escapar a realidade original e, assim, faz desaparecer também o sujeito que poderia pensá-la numa relação que precedesse a representação utilitária. A representação técnica faz com que a natureza não se apresente a não ser como matéria da elaboração técnica; e que o homem só esteja presente como sujeito dessa apropriação.

Podemos, a partir daí, extrair algumas consequências. A posição de sujeito, naquilo que implica termos de efeito dominador, resulta na perda de duas dimensões de realidade: em primeiro lugar, o finalismo da técnica ao estruturar a representação da realidade natural transforma essa realidade numa imagem da natureza dominada aquilo que tecnicamente se pode fazer da natureza; em segundo lugar, como esse modo de representar oculta a realidade em si mesma, fazendo-a aparecer apenas como matéria-prima do fazer humano, perde-se também a dimensão desse mesmo fazer, isto é, a visão do que seria a técnica em sua própria essência. Nem a natureza é pensada em si mesma, nem a técnica é percebida na essência de seu processo. Em outras palavras: a realidade natural aparece tão somente como aquilo que há de ser transformado ou o resultado potencial dessa transformação. Em terceiro lugar, o sujeito aparece apenas como aquele que coordena tal transformação por meio do conhecimento antecipado desse resultado, que é o elemento diretor de todo o processo. Assim, tanto a natureza quanto o homem que dela se apropria situam-se na técnica, isto é, no plano do real dominado e transformado. A natureza e a ciência se subordinam à representação antecipada do resultado técnico.

Ora, se essa representação significa a imagem, elaborada pelo sujeito, do mundo enquanto campo de expansão do seu poder, cabe perguntar se em tudo isso não se poderia ver uma alteração significativa da experiência, que consistiria na subordinação do saber ao poder, na medida em que a representação técnica da realidade e da relação que mantemos com ela seria, nessas condições, inteiramente governada pela perspectiva do controle, tanto do sujeito quanto do objeto, em vista dos objetivos inscritos na finalidade da tecnicizaçao. A questão que se coloca é então: até que ponto essa alteração – esse regime de representação – afeta a experiência a ponto de excluir dela o próprio pensamento? Em outras palavras, essa espécie de vontade de poder tecnicamente exercido por meio do conhecimento dirigido para tal fim não anula a dimensão em que a experiência humana se definiria como pensamento?

De Aristóteles a Marx, sempre se supôs que a diferença entre o trabalho humano, governado pelo intelecto, e a atividade dos animais, guiada pelo instinto, seria a anterioridade do pensamento em relação à fabricação. O caráter singular da práxis estaria em que, ao interferir na realidade, o homem a reconstrói em seu pensamento antes de fazê-lo com suas mãos. Este seria o caráter específico da técnica considerada como atividade humana, que impõe a distância intransponível entre a mais perfeita das abelhas e o mais inábil dos artesãos. “O resultado do trabalho preexiste idealmente na imaginação do trabalhador. Ele não apenas opera uma mudança de forma na matéria bruta, mas realiza ao mesmo tempo um objetivo que lhe é próprio e do qual ele tem consciência, e que determina seu modo de ação”[5]. Essa continuidade entre pensamento e intervenção técnica na natureza, característica própria do trabalho, que indica a singularidade da ação, significa principalmente que o sujeito opera sobre a realidade natural a partir de objetivos previamente presentes na consciência que ele tem do mundo – o que mostra a relação, pelo menos de direito, que a ação mantém com a liberdade. Assim, além da materialidade da ação e de seu caráter operante, o que é preciso notar nessa atividade é o seu perfil ético: o sujeito é livre para agir, decide acerca de seu fazer na sua consciência e aquilo que faz se integra na consciência de si e do mundo por via de uma representação da realidade que é ao mesmo tempo a realização da possibilidade de transformá-la a partir de seus projetos.

Entretanto, quando prevalece a representação técnica, sobrevém um certo obscurecimento da consciência de si e do real, dada a impossibilidade de distinguir a decisão da ação, isto é, o instrumento daquele que o utiliza. É a esse fenômeno que se chama propriamente razão instrumental: a impossibilidade de distinguir entre a razão e o instrumento por ela fabricado, de tal modo que a própria razão se torna um instrumento: na linguagem de Bergson, um utensílio que serve para fabricar outros, o instrumento do instrumento.

O que se perde nesse processo é o percurso da consciência à coisa, ou da liberdade à ação. Pode-se dizer, portanto, que a história da realização da vocação dominadora da ciência e da técnica produziu um compromisso da subjetividade com a técnica no qual essa relação foi de tal modo obscurecida que se acabou por perder o elemento originário: a decisão livre de dominação tecnológica do mundo. É nesse sentido que a expressão “tecnociência” (indiscernibilidade entre ciência e técnica; portanto, entre conhecimento e poder) define a racionalidade que se manifesta na modernidade tardia. Quando Heidegger diz que o homem não é capaz de se encontrar no mundo que ele mesmo transformou tão radicalmente, deve-se entender por isso que a presença da técnica oculta a presença do homem. Este não pode pensar-se no âmbito do domínio que ele mesmo instituiu, e também não pode pensar em ter­ mos de unidade e totalidade, o mundo representado como imagem técnica.

No limite, isso significa que não é mais possível identificar o referente (a realidade) da imagem do mundo tecnicamente produzida. Vivemos num mundo em que os objetos (e também as instituições, os afetos, as condutas, as práticas) se oferecem como imagens que não podem ser remetidas aos seus referenciais, porque a imagem ganhou uma autonomia que implicou o desaparecimento daquilo de que ela seria a imagem. O resultado desse processo de anulação da realidade é a imagem em si, um paradoxo que revela na sua própria vigência a escuridão em que mergulhou a distância que em princípio deveria existir entre representação e representado. A imagem tecnicamente produzida não necessita de referência, como se a técnica da reprodução tivesse anulado o original e a própria relação tivesse deixado de fazer sentido. Não preservamos as relações que outrora constituíam a imagem na sua vinculação à “própria coisa”. Não vemos a imagem como o reflexo da realidade; não a vemos tampouco como deformando ou mascarando a realidade; não a vemos como remetendo à ausência de realidade; em suma, não a vemos mais sob o regime da relação: ela remete apenas a si mesma. Esta similaridade intransitiva põe em xeque todo o esquema de representação que orientou a modernidade. Se desapareceu o critério de relação imagem-coisa que Descartes chamava valor de verdade, o que nos resta para avaliar tudo aquilo que é posto para nosso desejo e apropriação?[6]

Mas não nos ensina a tradição moderna, justamente desde Descartes, que pensar criticamente é sempre remeter a imagem representada à sua causa, aquilo de que ela é imagem? Se a partir da imagem não se vê nem se suspeita da realidade, é porque a imagem oculta sua própria natureza: a indistinção anula a realidade e o imaginado. É ao objeto que se apresenta no interior dessa impossibilidade de discernimento que Baudrillard chama simulacro, isto é, fantasma na sua própria origem, artificio sem arte, efeito sem causa eficiente, aquilo que no próprio ato de aparição oculta a semelhança. A questão principal talvez seja esta: o simulacro não oculta a coisa que simu­ la, mas sim a própria relação de semelhança; aquilo que, no caso da imagem, seria o fator de legitimação da representação. Uma vez o simulacro tornado, assim, forma da representação, a produção técnica da imagem seria, então, ao mesmo tempo, a produção da impossibilidade de legitimação, e não é dificil perceber o alcance dessa constatação na esfera das práticas, notadamente da política. E se ainda supomos que o pensamento, no seu exercício crítico, deveria ser esse percurso de legitimação que retorna da imagem à coisa, no sentido cognitivo, e do que é ao que deveria ser, no sentido ético, o que se perdeu foi a possibilidade de pensar desse modo, de realizar, por meio da dúvida, da crítica, da genealogia, o que, em vários momentos da história do pensamento se chamou, ingenuamente ou não, de experiência da verdade.

Referências bibliográficas

BACON R Novum Organum, I, 3. Great Books. Encyclopedia Britannica. Chicago: University of Chicago, 1952.

BAUDRILLARD,j. Simulacros simulação. Trad. Maria João da Costa Pereira. Lisboa: Relógio D’Água, 1993.

BERGSON, H. O pensamento o movente. Trad. Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

HEISENBERG, W. La nature dans la physique contemporaine. Trad. U. Karvelis e A. Leroy.Paris: Gallimard/Idées, 1962.

HEIDEGGER, M. A questão da técnica. Trad. e apresentação de Marco Aurélio Werle. Cadernos de Tradução 2, São Paulo, Departamento de Filosofia da FFLCH da USP, 197.

MARX K. O capital, L. I. Trad. Régis Barbosa e Flávio Kothe. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

Notas

  1. “Knowledge and human power are synonymous, since the ignorance of the cause frustrates the effect; for nature is only subdued by submission, and that which in contemplative philosophy corresponds with the cause in practical science becomes the rule” (Bacon, 1952, p. 107). 
  2. Heidegger, 1997, p. 9. 
  3. Heidegger não considera que “essência” deva ser entendida como atributo principal ou gênero abrangente, tal como nas concepções clássicas. por exemplo, substância como o referente gené­ rico de aspectos do real. Essência é, para ele. a própria duração da coisa na continuidade de seu existir. A permanência, que se atribui à essência, seria, nesse caso, a própria continuidade de algo no ato continuado de sua existência (cf. Heidegger, 1997, pp. 83 ss). 
  4. Heidegger, 1997, pp. 57-59. 
  5. Marx, 1983, pp. 149-150. 
  6. Baudrillard,1991, p.13. 

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