Antigos, modernos e novos mundos da reflexão política
por Sérgio Cardoso
Resumo
O que confere unidade a um povo?
Instituições, leis, governos?
Ora, se assim fosse, o que haveria seria um argumento vicioso, já que, sem povo, não há instituições, de modo que é preciso retroceder a uma primeira convenção. Para os filósofos políticos modernos, ela consistiria numa espécie de associação de vontades estabelecida em contexto pré-social ou em “estado de natureza”, com fins de assegurar a vida, a propriedade e a liberdade. Eis, ainda segundo os modernos, a missão primeira das sociedades civis.
Os antigos pensavam de modo completamente diferente, já que, para eles, antes de qualquer interesse, vinha a busca pelo Bem Verdadeiro como princípio fundador. Ele que seria autossuficiente, subsistente, constante e amplamente partilhável.
Mas o que é, mais especificamente, esse bem?
Uma integração verdadeira – logo, não-acidental – de um conjunto de fatores, observada a harmonia comunal ou “cosmização”, isto é, a ordenação e integração das partes de um todo, assim como acontece na vida ética, em que impulsos, apetites e interesses são controlados com vistas à “eudemonia” ou “vida feliz”.
Daí que, de volta à política antiga, o princípio fundamental era a sociedade autárquica capaz de proporcionar a seus membros o “bem viver”, de modo a estimular a virtude e a boa deliberação das ações comuns.
Nada menos moderno. Não só porque, para seus pensadores, o homem não é naturalmente destinado à política como porque, na cidade moderna, não há vestígio de busca de condições de convivência entre seus membros integrada e harmoniosa.
Nesse sentido, a análise feita por Leo Strauss é radical, já que, para ele, a filosofia moderna estrutura-se exatamente sobre a exclusão do esquema clássico, irrealista. Isso porque, desprovido de inclinação moral, o homem é naturalmente interesseiro e egoísta. Daí, a origem das instituições judiciárias. O direito, aliás, e a moral – sempre convencionais – só existem, assim, no interior de uma ordem social estabelecida por meios não subordinados às suas próprias exigências e normas, já que encarregados de criá-las. O projeto é maquiavélico. A prática mais.
Hobbes, por exemplo. Segundo Strauss, ele teria procurado restabelecer a ideia de um direito natural, que nada mais deveria a princípios metafísicos, mas ao comportamento efetivo do homem. Ou, dominada a natureza, à independência do indivíduo, livre de seus desígnios. Eis, para Strauss, a origem da “crise de nosso tempo”: individualista, narcisista, voluntarista, desagregador, desprovido de ideal e valor; numa palavra, niilista.
Posto isso, o próprio Strauss propõe uma volta à filosofia política, mas não no sentido clássico; antes, a partir da ultrapassagem do universo das opiniões e convenções, rumo à integração compreensiva da totalidade. Ou seja: como a entendia Platão, uma visão sinótica que, em meio à multiplicidade da “doxa”, revelasse a verdade.
Os benefícios disso seriam nítidos. Vincular o direito natural à vida efetiva da cidade. E isso por meio de uma ciência política de cunho eminentemente prático, cujo princípio seria exatamente o “bem comum”. Constituir um instrumento claro e eficaz para a avaliação das situações concretas e para a resolução das controvérsias políticas.
As antinomias são, a essa altura, claras. Bem e Direito, Mal e egoísmo. Se a heurística torna-se, então, clara, a pretensão de, por meio dela, abarcar a totalidade do pensamento político implica certo grau de simplismo.
Já, para Montaigne, a questão é posta de outra forma. Nem inclinação política, nem mal ou egoísmo, o que há, para ele, são crenças históricas, mais ou menos acidentais. Elas que concorrem para “verdades” triviais ou evidências a que se apega o homem médio, na forma de opiniões fixadas, convicções ou disposições, mesmo que no sentido de um pretendido bem.
Hoje, enfim, o pensamento político, sobre os frágeis alicerces da Modernidade, parece incapaz de vencer o conservadorismo arraigado confinado entre antigos e modernos, “comunitaristas” e “liberais”, holistas e individualistas ou, como quer Strauss, jusnaturalistas e historicistas.
Para além daí, parece não haver terra firme possível, a não ser que se sigam os passos de um Maquiavel ou Montaigne rumo a novos horizontes.
Trajetos panorâmicos, como o que ensaio neste texto, tecem-se nas imprecisões, generalizações, lacunas e sub (e mal) entendidos. À Academia, com boas razões, frequentemente aborrecem. Aprendi, no entanto, com meu amigo Adauto Novaes a ver a utilidade destas empresas — nem sempre bem-sucedidas — como escadas, suporte e orientação, para a arte do pensamento. É a ele que dedico o trabalho desta conferência.
O que faz de uma multidão de homens um povo, de um grupo de indivíduos, famílias ou clãs uma cidade? O que os cimenta em uma unidade, dando-lhes um modo de existência comum, uma vida coletiva? A esta questão fundamental da filosofia política, poderíamos, talvez, responder que o que constitui um povo, conferindo-lhe identidade, são suas instituições, leis e governos. No entanto, tal resposta não parece satisfazer à intenção de radicalidade da indagação. Seria possível, com razão, objetar que, se um povo é capaz de se dar (assumir ou receber) instituições, leis e governo, é porque “antes” — ao menos logicamente — já se constitui como povo (seja em função de uma sociabilidade natural — identidade étnica, linguística, cultural ou moral — ou de uma convenção primeira encarregada de criar entre seus diversos elementos a unidade, o “eu comum” e a vida coletiva). Tal objeção, Rousseau — que descarta a hipótese da naturalidade das associações civis — a formula classicamente no capítulo 5 do primeiro livro do Contrato Social:
“Um povo, diz Grotius, pode dar-se a um rei. Segundo Grotius, portanto, um povo é povo antes de dar-se a um rei. Esse próprio dom é um ato civil, supõe uma deliberação pública. Antes, pois, de examinar um ato pelo qual um povo elege um rei, seria bom examinar o ato pelo qual um povo é povo.”
Assim, “é sempre preciso retroceder a uma primeira convenção”, afirma o filósofo no título do referido capítulo. E é a construção do modelo lógico deste pacto social originário que permitiria, então, compreender as condições da convivência social dos homens, bem como responder adequadamente às exigências de sua constituição política.
Para os pensadores modernos da política, o que faria, de direito, de um povo verdadeiramente um povo seria uma convenção, um acordo ou associação de vontades, um pacto constituído a partir de condições pré-sociais, empreendido por homens postos no seu “estado de natureza”, independentes e preocupados essencialmente consigo. As sociedades seriam, portanto, construções inteiramente artificiais, destinadas à realização das aspirações destes indivíduos associais, preocupados, em primeiro lugar, com a própria conservação, interessados em preservar sua vida, bens e liberdade, em garantir suas condições de existência e em obter os objetos de seus impulsos e vontades. Por isso, segundo pensam, a missão primeira das associações civis é salvaguardar tais interesses (assegurar a vida, propriedades e liberdade — tornados direitos pelas estipulações do pacto), o intento de lhes proporcionar a satisfação mais ampla e segura possível.
É inteiramente diverso, como bem sabemos, o caminho tomado pelos filósofos na antiguidade clássica. O que funda ou torna possível — para além da associação de clãs ou de famílias — as comunidades dos homens não pode ser, segundo pensam, uma conjunção convencional de vontades, inclinações ou interesses; pois esse gênero de vínculo seria sempre parcial e instável, incapaz de se universalizar e durar (dificuldade que os modernos solucionarão postulando a generalização da situação que levaria os homens ao pacto — o estado de guerra de todos contra todos —, e a redução radical dos interesses que os move àquele da conservação da vida, como condição de todos os outros). Os vínculos fundados nos interesses são parciais e efêmeros atam alianças passageiras e não constituem uma comunidade universal e estável. Assim, apenas a postulação e a busca comum de um Bem Verdadeiro, fundador de todos os outros, auto-suficiente e subsistente, constante e partilhável por todos (visto estar acima dos interesses e opiniões, sempre particulares), permitiriam pensar a constituição de uma verdadeira associação política. É, enfim, a inclinação para um Bem soberano, diverso dos bens que movem os apetites para o prazeroso ou agradável, que efetivamente ata os homens em sociedade, integra-os em uma verdadeira comunidade.
Mas como compreender esse Bem? Como ele é pensado pelos clássicos? Um Bem é sempre a realização de uma integração verdadeira (essencial e não acidental ou ocasional) de um conjunto de elementos; é o princípio da conjunção ou harmonização destes elementos em uma totalidade ou comunidade. Todo movimento de “cosmização”, de ordenação e integração de partes em um todo — pressupondo-se, evidentemente, que as coisas do mundo disponham-se naturalmente a esta unidade —, é governado pelo Bem, o princípio de unificação que se impõe, como “aspiração”, a todos os entes do Mundo. Daí a postulação socrático-platônica de um Bem-em-si, divino — summum bonum —, condição e garantia final de todo sentido e racionalidade, motor da atividade da natureza, princípio simultaneamente normativo e de realidade.
No campo da ética, aquele da orientação das disposições e movimentos voluntários dos homens, o Bem é o princípio da harmonização dos impulsos, apetites e interesses, e se impõe pela hierarquização dos fins que os determinam. Tomemos uma certa apetição, o impulso determinado por uma carência ou um desejo. Pode-se responder a ela buscando sua satisfação imediata. Mas é possível também procurar submetê-la aos interesses do agente ou dos agentes tomados como um todo, isto é, submetê-la a uma medida superior, mais abrangente, e que se imponha naturalmente como valor. Um apetite alimentar, por exemplo, pode desencadear um movimento imediato em direção ao objeto apetecido, como pode também subordinar-se ao imperativo mais amplo da saúde do sujeito, e este, por sua vez, aos interesses da vida considerada como um todo, corpo e espírito, até um fim último, a aspiração por uma vida completa e florescente, a que os gregos chamaram eudaimonia, uma vida bem-sucedida e “feliz”. A ética procura, pois, assegurar que a busca da satisfação dos diversos apetites não transforme o agente em um campo de conflitos entre impulsos ou desejos contraditórios que atentam contra a sua vida; procura conferir ao agente uma disposição estável (virtude) para submeter seus apetites ao principio superior de sua unificação (o Bem), ao intento de realização, a melhor possível, de seu interesse maior, o bem viver — a vida da atividade a mais integrada, desvencilhada e completa e de suas capacidades, mormente da faculdade intelectiva e contemplativa da alma que parece a estes filósofos definir especificamente os homens.
O mesmo se dá, enfim, no registro da vida comum, no domínio da política, cujo fim último é a realização de uma comunidade humana autárquica (auto-suficiente, sem dependências externas ou subordinação aos fins de um outro ou mesmo sem dependência de qualquer outro fim que aquele de sua própria existência bem-sucedida), capaz de proporcionar a seus membros as condições de um “bem-viver” comum, de um desempenho excelente da sua disposição para o logos (a função do sentido e da palavra) e para a vida livre em comunidade. A associação política bem constituída dispõe os homens para a virtude e para a boa deliberação de suas ações comuns.
A questão que, neste registro, domina a investigação dos clássicos é aquela da melhor forma de organização destas comunidades em vista de seus fins, aquela da melhor forma possível de sua constituição política. E esta indagação remete por sua vez, no fundamental, àquela da organização das magistraturas ou das funções que articulam a vida coletiva, o problema dos regimes de governo, já que a boa repartição e articulação dos poderes soberanos da cidade ao mesmo tempo espelham e tornam possível a boa ordenação da comunidade e sua disposição para seus verdadeiros fins. Assim, a doutrina clássica do direito natural coincide com a investigação sobre as “formas de governo” e refere-se, na sua perspectiva prática, à teoria do “melhor regime”, o mais apto a realizar, em cada caso, os fins da vida política.
Se retornarmos, agora, aos pensadores modernos, poderemos verificar, com clareza, a radicalidade de sua ruptura com a filosofia clássica. Eles não apenas recusam o postulado da destinação natural dos homens para a vida política — para o bom entendimento e o bem-viver em comum —, como se afastam também de todo o arcabouço que sustenta a reflexão dos antigos: a ideia de que a realização dos fins visados pelo homem — a eudaimonia ou felicidade — depende da construção de um caráter virtuoso; este, de uma boa educação; esta, das boas leis e da boa organização das magistraturas da cidade; e estas, enfim, de um bom legislador, impregnado pela formação moral e intelectual da filosofia. Em outras palavras: a cidade moderna não busca as condições de uma convivência dos homens o mais possível integrada e harmoniosa, nem a mais justa disposição possível de suas “partes”, realizada através da melhor constituição ou do regime politico mais adequado para cada caso. A indagação dos modernos refere-se apenas, como já sugerimos, ao problema da possibilidade e das condições da produção e conservação de uma ordem política artificial, capaz de livrar os homens do estado de guerra (de todos contra todos) a que os condenariam naturalmente suas paixões e inclinações egoístas, assegurando-lhes, assim, a conservação da vida e proporcionando-lhes o espaço possível de liberdade para buscar a satisfação de seus interesses ou dos impulsos da sua vontade. O pacto social originário, oferecido como resposta a esta questão, nada mais visa, portanto, que dar aos indivíduos — ao homem natural, associal — as garantias necessárias para gozar uma vida o mais possível independente, segura e confortável (independência, segurança e conforto que constituirão, como sabemos, os bens supremos do homem da modernidade).
Leo Strauss, o filósofo político a quem devemos uma das mais penetrantes compreensões de nosso tempo, oferece-nos uma análise abrangente e arguta desta grande ruptura realizada pelos pensadores modernos. Ele observa que é em nome do realismo que eles procuram retirar do âmbito da vida social e política qualquer tipo de motivação propriamente moral. “Todas as filosofias modernas”, diz, “confluem em um princípio fundamental, comum a todas elas. Um princípio que pode ser melhor expresso pela via negativa: a exclusão do esquema clássico como irrealista” (Strauss, 1970, p. 53). Os homens não são naturalmente seres de inclinação moral, são interesseiros e egoístas. Por isso, devem ser forçados pelas instituições a submeter-se à justiça. O direito e a moralidade — sempre convencionais — só existem, assim, no interior de uma ordem social estabelecida por meios não subordinados às suas próprias exigências e normas, já que encarregados de criá-las. E este seria, segundo ele, o arcabouço mesmo do realismo maquiaveliano, que constituiria o solo da nossa modernidade política. O “príncipe”, para fundar e manter seu Estado, deve estar livre para “ingressar na trilha do mal fazer”, pois sua ação não se determina por uma intenção moral, dobra-se à “necessidade” e às imposições da fortuna. Sua violência e astúcia — sua “moralidade extraordinária” — estariam, afinal, a serviço da existência do espaço artificial da moralidade ordinária e do direito que protege os homens do mal enraizado em sua natureza — pela terapia, a única eficaz, da estupefação e do medo (cf. Manent, 1987, p. SO).
O projeto de Hobbes, considera Strauss, teria sido o de proporcionar fundamentos sólidos a esta nova compreensão da ordem social. Sobre o novo continente político estabelecido por Maquiavel, ou na trilha do seu realismo, o filósofo seiscentista teria procurado restabelecer a ideia de um direito natural, a ser deduzido não mais de princípios metafísicos (o fim último das ações, um bem supremo das aspirações humanas), mas do comportamento efetivo dos homens (cf. Strauss, 1953, p. 195 e segs.). Para tanto, foi buscar em suas paixões e interesses pré-sociais (e especialmente na paixão mais imediata, mais urgente e poderosa de todas: o medo da morte violenta que os ameaça em seu estado de natureza) a lei natural capaz de fundar a vida política, considerando que o impulso natural na direção da própria conservação ameaçada é que conduziria os homens — movidos, então, por um egoísmo esclarecido (idem, p. 207) — ao pacto social, à obediência às leis e aos modos da convivência civilizada.
A teoria hobbesiana do direito natural (cujo apoio na abstração lógica de um estado de natureza pré-social faz, segundo Strauss, a intenção de realismo dos modernos deslizar no mais extremo idealismo) daria, portanto, ao pensamento político moderno seus traços mais marcantes. Em primeiro lugar, ela supõe (e, então, acaba por produzi-la segundo os moldes da teoria) a condição natural dos homens como a de indivíduos-mônadas, fechados sobre si mesmos e determinados fundamentalmente por seus interesses e inclinações egoístas. Depois, atribui à própria vida social a missão de realizar estes fins buscados pelos homens em seu estado de natureza, afastando, deste modo, do horizonte social e político todo exercício de uma verdadeira razão prática (a operação de juízos e deliberações guiados por fins postos acima dos interesses dos indivíduos), e estabelecendo como únicos critérios das decisões que dizem respeito ao comum o consentimento e a “vontade”. Com Hobbes, abrir-se-ia, portanto, o reino do moderno “hedonismo político” (no qual, como no “hedonismo apolítico” de Epicuro, “o Bem é fundamentalmente idêntico ao agradável” — Cf. idem, p. 203). Suprime-se a distância entre os interesses e o Bem ou o direito, entre o fato e a norma, o real e o ideal; tudo se reduz à estratégia dos interesses e às aspirações de indivíduos prisioneiros de suas inclinações, a busca do prazer e de uma vida confortável. Agora, o Estado não terá mais como finalidade proporcionar aos cidadãos as condições para o exercício da virtude, torná-los bons e aptos para a felicidade, mas apenas remover os obstáculos que, no estado de natureza, impedem seu acesso aos bens que desejam e a coisas deleitáveis (cf. idem, p.353, nota 29).
Os pilares centrais do “projeto moderno” estão, pensa Strauss, fincados neste terreno do “hedonismo político”. Ele visa, de um lado, ao conhecimento e à dominação da natureza (em função de uma prosperidade e um conforto crescentes), e, de outro, à ampliação contínua da independência dos indivíduos (o gozo de sua “liberdade”). E nosso autor identifica já aí, nestes traços fundamentais do projeto moderno, as raízes da “crise do nosso tempo”: o fato de que nos “tornamos incertos sobre seus desígnios” (Strauss, 1964, p.3). Pois, tanto mais se avança na direção deste projeto, tanto mais as modernas aspirações liberais se realizam, mais se exacerbam os traços inquietantes da moderna cultura do individualismo — o narcisismo, o voluntarismo, o pendor para a solidão e, com a perda do horizonte dos ideais e valores, o niilismo.
“Desde que se compreende que os princípios de nossas ações não têm outro fundamento que nossas preferências cegas, não cremos mais realmente neles. Não podemos mais agir com o coração tranquilo; não podemos mais viver como seres responsáveis. Para viver, temos que reduzir ao silêncio — e é fácil fazê-lo — a voz da razão que nos diz que nossos princípios são tão bons, ou tão ruins, quanto quaisquer outros. Tanto mais exercemos nossa razão, mais encorajamos o niilismo.” (Strauss, 1953, p. 18)
É preciso reconhecer que a crítica de Strauss aos fundamentos da ideologia liberal moderna e também seu diagnóstico da “crise do nosso tempo” (Strauss, 1964, p. 1) alcançam uma abrangência e contundência raras — ainda que possamos pensar que o sentido da nossa modernidade política não se esgote nesta filosofia do “individualismo possessivo”, como já foi adequadamente chamada (cf. Macpherson, 1962). Mas é verdade também que, mesmo persuadidos pelo diagnóstico, tendemos a questionar a terapia por ele recomendada, a suspeitar do caminho que propõe para a superação da crise e a reorientação do pensamento político. Pois, segundo Strauss, a direção a ser tomada é aquela do reatamento, em alguma medida, com a perspectiva e a inspiração do direito natural clássico, o termo que se opõe ao “hedonismo político” dos modernos na “alternativa essencial” (Strauss, 1953, p. 50) que ele pretende constitutiva do pensamento político: a filosofia jusnaturalista dos clássicos e o convencionalismo. A primeira, no seu entender, representa a filosofia política tout court, enquanto o segundo (aí incluídas, genericamente, as filosofias dos séculos XVI e XVII) assinala a figura da sua negação, representa a desintegração da própria ideia de uma filosofia política. Por isso, a tarefa que ele toma para si é reexaminar a oposição entre antigos e modernos, palmilhá-la e sondá-la, no sentido de reabrir o caminho de um necessário “retorno à filosofia política” (Strauss, 1964, p. 11) — mesmo sabendo que “uma simples continuação da filosofia política clássica não é mais possível” (idem, p.2).
Como dizíamos há pouco, são muitas as objeções a este chamado de retorno à filosofia política dos clássicos. O próprio Leo Strauss, no prefácio de seu marcante Direito natural e história, aponta o obstáculo liminar que parece opor-se a este projeto:
“Estamos todos às voltas com a mesma dificuldade. O direito natural, na sua forma clássica, está ligado a uma perspectiva teleológica do universo: todos os seres naturais têm um fim natural que determina as operações que para eles são boas; e, no caso do homem, a razão permite discernir as operações que são justas, por natureza, em vista do seu fim natural.” (Strauss, 1953, p. 20)
De fato. Tais postulados da razão clássica (seu finalismo universal e a reivindicação de um summum bonum como medida de todos os bens e fundamento de toda ordem) não estariam definitivamente desacreditados depois de seu estilhaçamento na atmosfera intelectual da modernidade? Como recompor, pois, as condições deste direito natural, desde que se impôs, com o desenvolvimento das ciências da natureza modernas, uma concepção mecânica do universo, desde que ruiu a fé em seus alicerces divinos, a crença em sua ordenação racional — enquanto Cosmo — para a unidade? Não é possível ignorar estas transformações; e mesmo os pensadores mais sensíveis às dificuldades de uma concepção “naturalista” do universo político (alicerçada na mecânica das paixões e dos interesses) tentaram quase sempre alguma composição com ela, postulando, por exemplo, um dualismo fundamental — “tipicamente moderno”, diz ele — que opõe as ciências da natureza, não-teleológicas, e as ciências do homem, teleológicas (Cf. idem, p. 21). É verdade que Strauss procura esquivar-se do debate teórico sobre esta questão. O que lhe importa, no seu combate por uma verdadeira filosofia política, na sua oposição intransigente ao convencionalismo e ao historicismo (“o ponto final da crise do direito natural e da filosofia política modernos” — idem, p. 49), é sobretudo retomar e renovar a convicção dos antigos de que há uma verdade fundamental acessível aos homens (Cf. idem, p. 43) e de que o problema essencial da vida política — o dos princípios da justiça e do direito — é “susceptível de ter uma solução definitiva” (idem p. SO), não obstante a variação infinita das situações históricas.
Mas como pensar essa “solução” para a questão do fundamento do direito? Como restabelecer, no terreno da cultura da modernidade, tal sustentação para a ordem política? Strauss não é o único a colocar tais questões, e ele sabe que a história do pensamento moderno lhes reserva, ao menos, duas grandes linhas de resposta. Há, de um lado, os que procuram conservar, pura e simplesmente, a ideia de um Bem-em-Si, perfeito e subsistente, dotado de todos os atributos que lhe foram conferidos pela metafísica clássica, apenas restringindo seu âmbito de operação ao domínio das coisas morais e espirituais como “os modernos discípulos de Santo Tomás” (idem p. 21). Há, de outro lado, os que, num intento radical de depuração dos traços imaginários e metafísicos deste Bem regulador, o convertem em um postulado prático, em um operador meramente formal da racionalidade das ações (incapaz, no entanto, de proporcionar-lhes normas objetivas). Entendem, enfim, mantê-lo como um ideal da razão prática, como regulador — vazio — das aspirações humanas de moralidade, concórdia e felicidade. Ora, Strauss certamente pretende, por seu lado, propor uma solução diversa, capaz de contornar as dificuldades das duas anteriormente delineadas. Parece empenhado, simultaneamente, em despojar a postulação do Bem supremo de suas implicações religiosas e metafísicas e em devolver-lhe o caráter substantivo e objetivo, perdido na vertente do idealismo. Assim, recusando ao mesmo tempo o ponto de partida metafísico e a perspectiva formalista, busca estabelecer seu finalismo numa direção que poderíamos designar como político-prática: o fim último, segundo pensa, coincide com o horizonte absoluto que se impõe naturalmente ao espírito humano desde que este se acerca das indagações totalizadoras da filosofia e põe a questão da justiça; revela-se na exigência evidente de transcender os interesses particulares na direção de um “bem comum”. Pois, “o que chamamos de justiça se não o bem comum? (idem, p. 117), pergunta ele. E o que seria o bem comum se não o que — para além das vantagens que podem ser obtidas pelas partes — é favorável, aqui e a esta hora (hic et nunc)? “As leis são justas” — diz ele — “na medida em que se confundem com o bem comum” (idem), um bem que não pode ser visto como uma estipulação meramente convencional, pois “as convenções não podem tornar vantajoso para a cidade o que se revela para ela, na realidade, como fatal, e vice-versa” (idem). O critério do bem comum se revelaria, portanto, apto a sustentar preceptivas objetivas e, ainda, facilmente determináveis.
Podemos, assim, observar que o projeto de Strauss de retorno à filosofia política procura não tanto as doutrinas clássicas, mas sobretudo o seu ponto de partida e seus estabelecimentos fundamentais — o propósito, que as inspira, de ultrapassar o universo das opiniões e convenções na direção de sua integração compreensiva num horizonte de totalidade (o horizonte do “comum”, que se assinalaria naturalmente no terreno das disputas entre as pretensões das partes e que demarcaria o domínio próprio da filosofia). Como bem compreende o Sócrates de Platão, a controvérsia das opiniões e convenções já pressupõe esse horizonte de totalidade e sugere, assim, a empresa de uma visão sinótica na qual se revelaria a verdade (Cf. Strauss, 1953, p. 139-140). Do mesmo modo, a tese convencionalista de que o direito se realiza sempre por figurações particulares — ganhando sentidos diversos segundo os interesses em causa — já veicularia também, na pressuposição de um horizonte do “Direito”, a representação de um interesse comum (o koinon synpheron). Nesse bem comum é que o filósofo identificaria, então, o princípio da justiça, o princípio que fornece ao mundo histórico das convenções uma medida absoluta de avaliação e arbitragem (apropriada a cada comunidade), um princípio objetivo e operativo de distinção entre o bem e o mal, o legítimo e o ilegítimo, o conveniente e o inconveniente, o adequado e o inadequado.
Este retorno ao caminho primitivo da filosofia clássica parece a Strauss trazer à reflexão política nítidos benefícios. Permitiria não só depurar a teleologia de muitos de seus investimentos mais teóricos e desdobramentos metafísicos, mas sobretudo resgatar o vínculo direto (sem mediação de enunciados teológicos ou éticos) da afirmação do direito natural com a vida efetiva da cidade, com o interesse essencialmente prático da ciência política (Cf. Strauss, 1970, p. 118 e segs.); pois o critério do “bem comum” — o que é melhor para todos, para o conjunto desta cidade — mostrar-se-ia um instrumento claro e eficaz para a avaliação das situações concretas e para a resolução das controvérsias políticas. No entanto, não se pode deixar de observar que esta volta aos fundamentos da política clássica, não obstante restabelecer sua intenção eminentemente prática, vem também evidenciar seus pressupostos “teóricos” básicos, e sobretudo sua crença primeira de que as oposições podem harmonizar-se como articulações de um todo, de que o acordo das opiniões e a concórdia dos interesses são, no plano do “direito” — e na medida em que os homens se mostram sensíveis ao apelo do “comum” —, possíveis. Ora, como se pode logo perceber, este postulado, reiterado por Strauss e recusado pelos modernos, apenas capitaliza a pretensão espontânea (não refletida, embutida nas próprias “opiniões” e responsável por sua rivalidade), de um “absoluto”, a crença que se mantém quando em função de seu embate. Estas opiniões se vêem reduzidas pelo filósofo a uma pluralidade de “pontos de vista” parciais, a apreensões particulares de um todo pressuposto que seria passível de ser restaurado pela reflexão integradora da filosofia. É preciso dizer, no entanto, que, se esta crença na totalidade constitui o fundamento da política clássica, não deixa de ser exorbitante pretender erigi-la em horizonte de toda verdadeira filosofia — ou ainda identificar na lógica que ela instaura balizas absolutas para o pensamento político. Talvez seja verdade que “uma sociedade que se acostumou a compreender-se em termos de um desígnio [purpose] universal, não pode perder a fé neste desígnio sem se tornar inteiramente desorientada [bewildered]” (Strauss, 1964, p. 3); mas isto não é suficiente para estabelecer a legitimidade deste desígnio, ou ainda para entender que, na sua falta, torna-se impossível nesta sociedade qualquer forma de sadia convivência política (Cf. idem).
Desejamos insistir em que o esteio central das teses de Strauss está em sua convicção de que o pensamento político move-se necessariamente no interior daquela alternativa fundamental assinalada pela afirmação e a negação — simétricas — de um princípio natural e objetivo do direito. É esta certeza que o leva a encenar a história do pensamento político como uma gigantomaquia em que se opõem os partidários do Bem e do Direito (seja qual for sua concepção sobre o estatuto deste Direito) àqueles do Mal e dos egoísmos (as diversas formulações do convencionalismo), os que fazem da força, da astúcia e do medo “os princípios geradores da ordem artificial das cidades” (Manent, 1987, p. 48). Ora, não obstante a simplicidade e mesmo a considerável eficácia heurística deste quadro para apreender as linhas mais fortes da tradição política do Ocidente, se considerarmos que ele deriva diretamente dos pressupostos fundamentais da própria filosofia clássica, não podemos deixar de suspeitar desta sua pretensão de abarcar todos os caminhos possíveis do pensamento político, como não podemos deixar de suspeitar mesmo de sua capacidade para compreender sua história efetiva, quando nos dispomos, por exemplo, a retomar os caminhos abertos no limiar da modernidade, antes de firmar-se a hegemonia do contratualismo absolutista. A grande abertura revelada pela reflexão política no breve entreato da passagem das concepções clássicas às modernas quase desaparece sob a camisa-de-força do esquema straussiano, privando-nos de referências essenciais para o enfrentamento da “crise do nosso tempo” e para a renovação de nossas concepções políticas.
Tomemos Maquiavel. Strauss o apresenta como o “Cristóvão Colombo que descobriu o continente sobre o qual Hobbes pôde edificar sua doutrina” (Strausss 1953, p. 192), como o introdutor, como já vimos, da “concepção antiidealista do universo ou, ao menos, das origens da humanidade ou da sociedade civil” (idem, p. 193). Vimos também que a base desta sua “revolta realista” contra os clássicos seria sua antropologia naturalista e pessimista, sua convicção sobre a natureza passional e egoísta dos homens. Sabemos, porém, que esta leitura da obra de Maquiavel suscita fundadas reservas. A obra não se acomoda, certamente, aos pressupostos do comentador, à sua teoria relativa à oscilação fundamental do pensamento político entre a afirmação da sociabilidade enraizada no ideal do bem comum e da justiça, e aquela lastreada pelas paixões e interesses egoístas. Poderemos verificar, ao nos desvencilharmos desta teoria, que a afirmação maquiaveliana relativa à maldade dos homens não se enuncia, como pretende Strauss, em um registro antropológico, ou mesmo metafísico, mas já no registro sociopolítico. A insaciabilidade de bens e poder — observa argutamente um grande leitor de Maquiavel, Claude Lefort não é atribuir por ele aos homens na sua generalidade; ele a assinala no comportamento da classe dominante. “Em toda cidade” — diz — “encontram-se dois humores diversos (…), o povo deseja não ser comandado e oprimido pelos grandes, os grandes desejam comandar e oprimir o povo” (O príncipe, cap. 9; Cf. também Comentários L. I, 5). Os grandes são movidos pelo desejo de bens, o povo pelo desejo de liberdade e de segurança, para levar sua vida. Assim, se for possível atribuir a Maquiavel a tese do egoísmo generalizado dos homens, será preciso ressalvar que a natureza deste “egoísmo”, num caso e noutro, é bastante diversa: os grandes — o popolo grasso — desejam comandar e oprimir, movidos por suas paixões possessivas e despóticas; os pequenos — o popolo minuto — desejam tão-somente não ser comandados e oprimidos; querem viver seguros, ser deixados em paz. A oposição grandes/pequenos/ricos/pobres, poucos/e/muitos, no nível de suas manifestações políticas distingue, portanto, o desejo de bens e de poder do desejo de liberdade, que desenha agora — ao ser atribuída ao povo, aos “muitos” — uma figura inédita do universal politico. Pois a recusa (pelos “muitos”) da dominação e opressão da particularidade (dos “poucos”) projeta um coletivo determinado pela aspiração a uma totalidade, articulada de ou pelo direito. A revolução maquiaveliana está em identificar o universal político na pulsão do desejo popular, na atuação do desejo de liberdade — jamais realizado de uma vez por todas (não há finnis ultimus), jamais alcançado como um bem efetivamente comum (não há aqui summum bonum), jamais encarnado num ideal de Justiça ou de Concórdia. Os domínios do Comum, da Lei e do Direito instituem-se, portanto, aí, para usar uma expressão de Lefort, como “simbólicos”.
Assim comprendído, Maquiavel afasta-se da perspectiva do direito natural clássico e de seus postulados essencialistas, mantendo-se exclusivamente no registro da lógica que governa a instituição e manutenção da ordem social, da lógica que se manifesta na própria experiência da vida política. Pois, seja a ordem social ou o poder político a mantê-la, só se sustentam pela referência ao Direito projetado pelo desejo negativo do povo como anteparo contra a ambição dos grandes, contra a opressão da particularidade. Longe, pois, de inaugurar a ficção de um social pensado a partir dos interesses de indivíduos-mônadas, associais, determinados unicamente por suas inclinações egoístas, longe de se enredar na trilha naturalista do contratualismo liberal e do hedonismo político, Maquiavel atribui, ao contrário, à oposição à ganância econômica particularista e particularizante — representada pelo desejo dos “poucos” — a virtude de projetar um domínio de universalidade, de figurar um espaço comum, propriamente político. A instituição da sociedade é pensada, enfim, a partir desta lógica da cisão e oposição, originárias e irreconciliáveis, entre um princípio de natureza econômica e um princípio de caráter propriamentente político, o desejo do povo, dos “muitos”, o desejo de um “Direito” posto como condição da representação do espaço social e de sua constituição política. Maquiavel esboçaria, assim, poderíamos dizer, uma versão político-social, em vez de jurídico-individualista, para o liberalismo.
Mas neste século extraordinário da história do pensamento político — visto, entretanto, quase sempre como um momento indeciso, de trânsito para as rupturas da modernidade —, Maquiavel não é o único a inovar de modo radical a compreensão dos fundamentos da vida social, orientando-a em uma direção inteiramente diversa daquela que se tornou hegemônica a partir do século seguinte. Também Montaigne, seguramente, afasta-se do jusnaturalismo (clássico e moderno) e abre um caminho novo, ao explorar e radicalizar, no seu caso, as proposições ético-políticas do legado do antigo ceticismo. Também para ele, o fundamento da socialidade não é a ordenação dos homens — naturalmente sociáveis — para o Bem, e não é um pacto originário firmado entre indivíduos pré-sociais; são simplesmente os costumes — os usos, opiniões e sentimentos comuns a um certo grupo de indivíduos. E o princípio motor da produção desta ordem social não é, assim, o conjunto de disposições virtuosas dos homens para promover a realização da justiça, como não é também um poder destacado da sociedade a força legisladora de um soberano instituído pela vontade coletiva, que representa, tão-somente, a dimensão espontaneamente normativa dos próprios costumes, enquanto moldam disposições afetivas, modos intelectuais e valores, enquanto produzem expectativas de comportamento, códigos de conduta, normas legais e reivindicações de direito (um direito consuetudinário — nem natural, nem positivo — e, portanto, anti-religioso e antiabsolutista). São, pois, os costumes que, segundo ele, educam os homens e dirigem suas práticas, que constituem o estofo de suas relações sociais e governam sua convivência política.
Montaigne, evidentemente, não cede às explicações inocentemente naturalistas da constituição e poder destes costumes. Não atribui sua origem e sua força diretiva e normativa a fatores naturais, como a raça, o temperamento psicofisiológico (vinculado quase sempre a determinações geográficas e climáticas) de um povo, o “natural” ou a índole de uma nação e tantos lugares-comuns da tradição, fortemente reaquecidos em seu tempo (ainda que, certamente, lhes reconheça papéis significativos). Recusa-se também a definir sua natureza e explicar sua autoridade pela referência a um direito natural, opondo-se, portanto, à concepção escolástica do costume como inclinatio naturalis e “segunda natureza”, como explicitação do direito natural no tempo. Os costumes, segundo pensa, são destituídos de qualquer necessidade; determinam-se por motivos acidentais históricos, são fortemente marcados pelo acaso e os tempos. Mas, sendo “convenções”, não resultam de decisões coletivas, pactos ou consensos racionais — tácitos ou expressos; impõem-se como hábitos em função da crença (que sempre os acompanha) em sua “naturalidade” ou “bondade”. Assim, quanto à sua natureza, os costumes são crenças — no sentido quase trivial das “verdades” ou evidências do homem comum são opiniões fixadas, tornadas convicções e disposições para agir no sentido de um pretendido bem, justo e necessário ou ainda adequado e conveniente. Quanto ao seu estatuto propriamente social, eles assinalam regiões de consenso ou domínios de confiança — enquanto constituídos por crenças comuns —, que envolvem também uma dimensão jurídica, por implicarem promessas mútuas e compromissos, configurados em padrões de conduta, códigos sociais ou prescrições legais. Os costumes são, enfim, na expressão concisa e feliz de Montaigne, créances communes et légitimes (Ensaios III, 2), crenças fixadas em mores, leis e assentamentos jurídicos, legitimadas pelo efeito de naturalidade e universalidade que lhes conferem a adesão e observância comuns.
É esta compreensão dos fundamentos e da lógica do social que desenha o perfil da moralidade política montaigniana: a afirmação da incondicionalidade da boa-fé (sinceridade nas promessas) e da fidelidade (lealdade aos compromissos, a toda palavra dada) como condições da produção e conservação da confiança, que constitui a forma das relações e define o campo político. Montaigne reafirma, enfim, a centralidade da fides — já enaltecida como a virtude política por excelência pela cultura romana —, porém, não para devolver a vida social às suas antigas referências religiosas ou metafísicas, mas justamente para recusá-las — pois a fides se impõe aqui como a virtude política fundamental no movimento mesmo em que se recusa qualquer alicerce natural para os vínculos sociais; em vista, portanto, do caráter puramente humano, convencional ou “cultural” — como hoje diríamos — destes vínculos. A fides é o fundamento dos contratos, pactos e convenções, e os vínculos sociais pensam-se agora à maneira destes acordos civis. Mas observa-se que tais vínculos são rigorosamente sociais, pois não associam interesses comuns de indivíduos (mesmo referidos à preservação de sua vida), mas associam convicções comuns sobre o direito (créances communes et légitimes), atando, portanto, compromissos relativos a crenças e práticas que, em função do costume (e seu poder normalizador e “naturalizador”), aparecem como necessárias e legítimas. Afasta-se, pois, a crença dos clássicos em um direito natural, preservando-se a crença no Direito, mantendo-se um horizonte de normas e valores — efetivamente sociais e postulados como universais —, que nos abre para uma compreensão do social inteiramente diversa daquela do “hedonismo político”. O social se estabelece no terreno de uma moralidade muito particular, uma moralidade social e histórica (consignada nos costumes), que oferece aos homens as condições de sua convivência e instituições políticas. Uma versão histórico-social — “realista” —, em vez de jurídico-naturalista — “idealista” —, para o antigo jusnaturalismo.
Novos Mundos, estes, conquistados para o pensamento político no século XVI com uma audácia comparável à dos grandes navegadores do tempo. O próprio Maquiavel propõe esta aproximação na abertura de seus Discorsi:
“Ainda que tenha sido sempre tão perigoso encontrar modos e ordens [políticos] novos quanto procurar águas e terras incógnitas, (…) deliberei entrar por uma via que, não tendo sido ainda trilhada por ninguém, me trará contrariedades e dificuldade.” (Comentários, I, proêmio)
É verdade, como sabemos bem, que estes mundos permaneceram, depois, em grande medida ignorados. Hoje ainda, o pensamento político — reconhecendo embora os sinais de fadiga dos alicerces da modernidade — parece incapaz de vencer o conservadorismo arraigado que o confina nos limites da alternativa clássica: entre antigos e modernos, “comunitaristas” e “liberais”, holista e individualista, ou, como quer Strauss, jusnaturalista e historicistas, direito natural e história. Para além daí, parece não haver terra firme possível. Ora, pensadores como Maquiavel e Montaigne não só fazem vacilar esta convicção como já nos põem outras terras à vista.
“Novo Mundo é lícito chamar [estes países] que entre os antepassados nossos de nenhum deles se teve conhecimento, e a todos aqueles que isso ouvirem será novíssima coisa, visto que isto a opinião de nossos antepassados excede, uma vez que a maior parte diz que além da linha equinocial para o meio dia não há continente, só o mar, ao qual Atlântico chamaram; e se algum entre elas ali continente afirmou e aquela a ser terra habitável, por muitas razões negaram. Mas esta sua opinião ser falsa e à verdade de todos os modos contrária, esta minha última navegação atestou, visto que naquelas regiões meridionais o continente descobri, habitado de mais frequentes povos e animais do que nossa Europa, Ásia ou África” (Amerigo Vespucci, Mundus Novus, apud Martins, L. R., s/d p. 35).
OBRAS CITADAS
MACPHERSON, C. B., 1970, La teoria politica del individualismo posesivo, Ed.
Fontanella, Barcelona.
MANENT, P., 1987, Histoire intelectuel du liberalisme, Calmann-Lévy, Paris.
MARTINS, L. R., s/d, Novo Mundo: uma ideia da Renascença, Fund. Memorial da América
Latina, São Paulo.
MAQUIAVEL, O príncipe.
MAQUIAVEL, Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio.
MONTAIGNE, Ensaios.
ROUSSEAU, O contrato social.
STRAUSS, L, 1953, Droit naturel et histoire, Plon, Paris.
STRAUSS, L, 1970, Que es filosofia política?, Guadarrama, Madri.
STRAUSS, C. 1964, The city and man, Univ. Chicago Press, Chicago.