As fronteiras da ética: Maquiavel
por Newton Bignotto
Resumo
Maquiavel causou escândalo no começo da modernidade por romper o entrelaçamento antigo, na pólis grega, entre a ética e a política. Ainda hoje ele é visto como o “conselheiro dos tiranos” para quem os fins justificam os meios ou como um simples técnico da ação. Mas seu pensamento é bem mais sutil e problemático. A começar pela distinção que faz, em O Príncipe, entre o tirano, apenas movido pelo desejo de poder, e o homem político que teria um objetivo maior: o reconhecimento ou a glória, mesmo quando pratica a violência (mas feita de uma vez só, “porque ofende menos”) e a simulação (já que a condição da política é “desenrolar-se na aparência”, como disse Merleau-Ponty). Na verdade, o que Maquiavel ataca é a ideia cristã de uma vida sem mácula na política, porque nesta não há um lugar do qual se possa proclamar a verdade dos valores. Seu modelo é a república romana antiga preocupada com a liberdade, o bem público e o respeito às leis. O legislador funda instituições e quer que elas se mantenham depois de sua morte. Mas trata-se de um equilíbrio frágil e difícil, sempre ameaçado pelo retorno da tirania, limite extremo do político, e pela corrupção que conduz a ela (“para usurpar a autoridade num Estado livre e aí estabelecer a tirania, ele diz, é necessário que a corrupção já tenha feito fortes progressos”). Assim, Maquiavel não abandona inteiramente a dimensão ética no seu pensamento, mas a vê com realismo e sem otimismo, como que antevendo a degradação da política nos totalitarismos do século XX.
Para falar de ética hoje em dia, temos de ter consciência de que qualquer tentativa de construir uma ciência dos valores terá diante de si a árdua tarefa de desvendar a trama da ruptura da ética com a política, que caracteriza o processo de formação da modernidade. Perdido o entrelaçamento profundo entre as duas esferas da práxis, próprio da pólis grega, e diante da crítica radical que a modernidade operou nos conceitos fundamentais da ética clássica, não sobrou espaço para uma reconstrução dos laços que a uniam à política que não leve em conta as novas fronteiras da ação humana traçadas num mundo dominado pela crítica demolidora da razão e pela crise que a acompanha.[1]
Nosso estudo parte de um truísmo ao qual os historiadores das ideias recorrem com frequência: a ideia de que a origem do processo ao qual nos referimos está em Maquiavel.
Esta imagem do secretário florentino como fundador de uma nova visão da política, distante de toda consideração de ordem moral, se ampara numa longa tradição de interpretação. Da Inglaterra do século XVII a Leo Strauss não faltaram intérpretes que viram na obra de Maquiavel a expressão de uma política voltada exclusivamente para seus fins. Uma política demoníaca, dirá Strauss. Ora, a defesa do secretário fez-se em geral por intérpretes que opõem ao destruidor da ética o técnico da ação, ao demolidor de velhas certezas o fenomenólogo acurado que busca apenas descrever o mundo que vê.
Essas duas vertentes são solidárias na afirmação da paternidade da moderna reflexão política, mesmo se são apenas paradigmas que se repartem em variadíssimas interpretações. Nossa intenção não é, no entanto, a de discutir a natureza e a importância dessa ruptura, nem a de tentar uma solução para o enigma que parece habitar a obra de Maquiavel. Na longa história do maquiavelismo, muitas foram as soluções encontradas. A cada “leitura definitiva” se sucedeu um longo debate visando provar que se tratava na verdade de uma “falsificação”, que um capítulo capaz de sugerir novos rumos havia sido esquecido, que uma nova interpretação fazia-se necessária.
Sem esquecer que toda grande obra de pensamento é sempre capaz de sugerir uma nova leitura, não podemos deixar de lado o fato de que Maquiavel, ao contrário, por exemplo, de Montesquieu, nunca foi objeto de uma veneração tranquila, que termina por fazer de uma obra do passado uma passagem obrigatória para todos os que querem compreender o sentido de uma época. Se ele é o fundador da moderna visão da política, devemos dizer, com Croce, que essa nova época se funda num enigma.
Nossos propósitos são mais modestos do que tentar desvendar esse enigma. Aceitando que uma ruptura ocorre na Renascença italiana, tentaremos apreender a importância dessa fundação a partir de suas implicações para uma interrogação sobre as fronteiras da ética, sem esquecer que nossa reflexão não poderá deixar de lado que Maquiavel foi revolucionário em seu tempo por compreender a política de uma maneira inteiramente nova. Antes de começar a percorrer alguns momentos da obra maquiaveliana, é necessário esclarecer o sentido que damos para a ideia de “fronteiras da ética”.
Esse tema foi-nos sugerido pela reflexão de autores como Hannah Arendt e Claude Lefort[2], que, analisando o fenômeno totalitário, foram levados a concluir que nenhum conceito do passado é capaz de dar conta da “radicalidade” dos acontecimentos que marcaram nosso século. Tomando, como ponto de partida, a constatação de sua radicalidade, devemos dizer, no entanto, que o totalitarismo assemelha-se a certas experiências do passado, por colocar a filosofia diante da exigência de compreender uma sociedade em que o discurso ético parece impotente para iluminar a significação da ação humana. A filosofia moderna enfrentou essa questão através do estudo do “mal radical”, concentrando-se na análise do indivíduo que age em contradição com a norma moral.[3] Tal hipótese não leva em conta que um corpo político também pode funcionar em contradição com essa norma. É claro que no totalitarismo, assim como nas tiranias, o terror, a violência, a destruição das organizações políticas têm um papel fundamental para o sucesso da dominação. A resistência que acompanha essas experiências demonstra, por outro lado, que nenhuma tirania é capaz de anular completamente o desejo de criação de outra forma política, de outra relação com as leis. Apesar disso, somos forçados a reconhecer que o totalitarismo, assim como as tiranias, é capaz de durar, é capaz de impor certo comportamento aos habitantes de um país que tem algo próprio do político. Nesse lugar, em que o horror ocupa o lugar da lei, dificilmente podemos falar de uma ética associada à política, dificilmente podemos, no entanto, deixar de pensá-lo como um produto da ação humana. Lá onde a ética encontra seus limites, continua a existir, ainda que numa forma degenerada, um regime político. Nesses extremos da sociabilidade, a relação da ética com a política mostra-se sob uma luz radicalmente nova, capaz, a nosso ver, de conduzir-nos a uma compreensão diferente do papel da moral nas comunidades humanas.
Para investigar o significado dessa “fronteira”, escolhemos analisar o pensamento de Maquiavel sobre a tirania, sem esquecer as diferenças essenciais que separam as experiências do passado das misérias de nosso tempo.
Maquiavel não foi um moralista, nem procurou redefinir valores como o fizeram Espinosa, Hobbes etc. Isso não impediu que algumas páginas do Príncipe provocassem escândalo justamente porque parecem atacar de uma maneira brutal crenças e valores que constituíam o núcleo da moral cristã. Ao afirmar, por exemplo, que “a um príncipe não é necessário possuir todas as qualidades, mas é necessário parecer tê-las”, ou que “as violências devem ser feitas todas ao mesmo tempo, a fim de que seu gosto, persistindo menos tempo, ofenda menos”, Maquiavel parece sugerir que a boa ação política não deve levar em conta valores que sejam incapazes de garantir seu sucesso, mas apenas o que conduz à meta desejada, que, no caso dos príncipes, é a manutenção do Estado. Tanto os que criticam Maquiavel por separar a política da ética[4] quanto os que se esforçam em mostrar que ele não fez mais do que descrever o funcionamento dos Estados reais[5] contentam-se em ver nele o criador da “razão de Estado”, e em pensar que o abandono dos parâmetros morais implica a volta a um estado de competição regulado unicamente pelo desejo de conquista. Não é o próprio Maquiavel que afirma, em concordância com esses intérpretes, que “os homens esquecem mais facilmente a morte do pai do que a perda do patrimônio” (Príncipe, XVII)?
Essas leituras, entretanto, não se preocupam com os aspectos éticos do pensamento maquiaveliano e ajudam-nos pouco em nossa busca do significado das fronteiras da ética. Vamos iniciar nosso caminho analisando dois capítulos paradigmáticos do Príncipe.
O capítulo VIII do Príncipe, seguindo o caminho que fora traçado no início da obra, pretende elucidar um caso-limite da conquista, a saber, aquele de um príncipe que recorre a meios extraordinários para chegar ao poder. É de se notar que essa via, que as traduções brasileiras consagraram como “a via criminosa”, possui a mesma característica dos principados civis, ou seja, não depende nem da virtù, nem da fortuna dos que a escolhem.
A exclusão tanto da virtù quanto da fortuna dos atos daqueles que por meios excepcionais conquistam o poder surpreende o leitor que no segundo parágrafo é confrontado com a afirmação de que Agátocles, um dos tiranos escolhidos como paradigma, agia em seus crimes com tanta virtù, que foi capaz, partindo de uma condição ínfima, de tomar o poder em Siracusa (“[…] nondimanco accompagno le sue scelleratezze con tanta virtù di animo e di corpo”). Maquiavel não utiliza o conceito de virtù sem intenção, pois julgou necessário explicar ao leitor, no final da descrição dos atos de Agátocles, por que fala de virtù, quando se tratava de analisar o caso dos que apenas por vias extraordinárias chegaram ao poder. Um bom número de intérpretes, mais preocupados em mostrar a ruptura operada por Maquiavel da ética com a política, prefere ater-se ao fato de que ele legitima uma via que não respeita os cânones éticos, afirmando a absoluta independência da política. Que nosso autor, no final do capítulo, após ter descrito as crueldades de Oliverotto da Fermo, dedique-se a discorrer sobre o bom e o mau uso das vias extraordinárias não faz mais do que confirmar, para esses autores, que existe um fosso entre a reflexão política e toda discussão sobre questões morais. O pensador rigoroso transforma-se em conselheiro dos tiranos.
Uma leitura menos preocupada com as interpretações tradicionais da obra maquiaveliana pode levar-nos a interpretar os “sinais” do texto de uma maneira diferente.
Em primeiro lugar, devemos ficar atentos para o fato de que os atos dos tiranos ocupam o centro de reflexão maquiaveliana no capítulo que nos interessa. Essa centralidade torna-se, no entanto, mais significativa, quando lembramos que desde Platão a tirania tem fascinado os pensadores políticos exatamente por traçar as fronteiras entre a vida política e a barbárie. Platão surpreendeu seus leitores ao calar-se sobre a possibilidade de reconstruir uma vida política saudável, depois que uma tirania instalou-se na cidade. Maquiavel sugere, no capítulo VIII, que com atos criminosos fundamos necessariamente uma tirania. Mas, ao fazer a associação entre crime e tirania, associação quase óbvia para o pensamento político da época, complica-se, mais do que se resolve, a questão. Que um crime possa estar na origem de um regime político é por si só inquietante, mas falar desse crime como derivado de uma certa virtù é, no mínimo, provocativo. Se a intenção fosse, no entanto, simplesmente provocativa, Maquiavel não teria acrescentado, no mesmo capítulo, algo surpreendente: não podemos chamar virtù matar seus concidadãos, trair seus amigos, agir sem fé nem religião. Qual é o significado dessa virtù que carrega a interdição de seu significado? Nosso autor diz apenas que ela pode levar ao poder e não à glória. Maquiavel sugere, assim, uma distinção radical entre os objetivos do tirano e os dos homens políticos. O primeiro pode visar apenas ao poder. Sua virtù comporta um domínio acurado do uso da força, mas despreza uma dimensão que é própria da glória: o reconhecimento. O homem político, ao contrário, se dá conta de que seus atos não são totalmente exteriores ao mundo que habita, e que assim eles dependem do olhar do outro. A distinção operada por Maquiavel leva-nos a ver que dois tipos de virtù podem existir. A virtù do tirano, pura técnica do uso da força, não consegue desvencilhar-se do julgamento dos homens, e é obrigada a reproduzir-se pela violência. O homem político, por seu lado, descobre que sua virtù não pode deixar inteiramente de lado o uso da violência, mesmo se a busca da glória seja um objetivo maior do que a conquista do poder. Mas não é a distinção entre poder e glória que é central no capítulo. Enunciada de maneira geral, ela estava em perfeito acordo com a tradição humanista florentina. Interessante é que, referindo-se ao abuso da violência, Maquiavel não diz que os tiranos são meras deformações do jogo político. Se eles não podem jogá-lo até o fim, são capazes de galgar pelo menos uma de suas etapas: o poder. O exercício da crueldade não é, pois, inteiramente alheio à política; ele coloca a nu uma de suas dimensões.
A sequência do texto parece confirmar nossas conclusões, mas de uma maneira tão radical que quase nos esquecemos da distinção que Maquiavel enunciou. Ele diz: “[…] as violências devem ser feitas todas ao mesmo tempo, a fim de que seu gosto, persistindo menos tempo, ofenda menos. Os bons feitos devem ser praticados pouco a pouco, para que possamos saboreá-los melhor”.
Só podemos sentir-nos desorientados diante da sinuosidade do texto maquiaveliano, mas nos enganaríamos em não prestar atenção em alguns detalhes de seus argumentos. Com efeito, ao falar do bom uso da crueldade, Maquiavel faz uma ressalva: “Se do mal se é lícito se dizer bem”. De que lugar fala o autor dessa ressalva, se não do que atribui um valor às distinções próprias ao discurso ético? Por que a memória do uso da força é tão importante para a preservação do poder?
Essas simples observações são incapazes de nos indicar o lugar que a ética ocupa no pensamento maquiaveliano. Elas nos impedem, no entanto, de considerar a ruptura da ética com a política como um dos pilares inequívocos sobre o qual se ergue a filosofia política moderna. Continuemos, portanto, nosso caminho.
Maquiavel, a partir do capítulo XV do Príncipe, começa a análise das qualidades necessárias ao exercício do poder. Ele segue para isso a tradição dos speculum principis, que aconselhavam aos governantes o pleno respeito dos ditames da moral. Na ótica da maioria desses panfletos, o príncipe bom era também o bom político. Ora, se Maquiavel dedica-se a destruir um a um os lugares-comuns desses discursos moralizantes, a conclusão, no capítulo XVIII, de que não é necessário ao príncipe possuir todas as qualidades, mas parecer tê-las, não exclui a ideia de que essas qualidades são essenciais ao exercício do poder, mesmo quando apenas simuladas. Que o príncipe seja levado a simular virtudes não implica dizer que as virtudes sejam sempre o simulacro de uma natureza pervertida. Essa constatação baseia-se no fato de que no campo do político não existe um lugar do qual se possa proclamar a verdade dos valores, pelo menos daqueles típicos do cristianismo. Descobrimos, no entanto, que a política depende dos julgamentos morais, uma vez que os homens sempre avaliam seus governantes a partir de noções herdadas da tradição, embora não sejam capazes de discernir a verdade das palavras do príncipe. Nesse ponto do texto, a crítica maquiaveliana é menos contra Aristóteles, que pensava no homem prudente (phronimos) como a medida do comportamento ético-político, do que contra os moralistas cristãos, que acreditavam poder regular as ações políticas pelas leis de uma moral “abstrata”. Falar, pois, das representações não implica dizer que a ética não tem ligação com a política. Corresponde a mostrar que a ética, vivida como costume, é a janela através da qual percebemos as ações humanas (“os homens julgam mais pelos olhos do que pelas mãos, pois é dado a todos ver e a poucos perceber”), sem que isso explicite a verdade ou não das proposições que nos guiam e revele a essência dos atos julgados. Merleau-Ponty resumiu essa constatação dizendo: “É, pois, uma condição fundamental da política se desenrolar na aparência”.[6]
Até aqui estivemos falando da ética em geral, de julgamentos levados a cabo por homens que possuem uma dada representação do bem e do mal. A conclusão parcial à qual podemos chegar é que falar simplesmente em divórcio entre a ética e a política não espelha o pensamento de Maquiavel, ainda que para ele a ética pareça ser apenas o depósito de nossas representações.
Essa primeira conclusão, longe de resolver nosso problema, dificulta nosso caminhar. Ao dizer que a política não pode separar-se da ética, uma vez que depende da representação que os homens fazem dos atos dos governantes, estamos assegurando um lugar para ela na vida pública, mas não esclarecemos inteiramente a natureza da relação existente entre as duas esferas de ação. Para os autores cristãos, como nos mostram os speculum principis, as conclusões de Maquiavel eram inaceitáveis, porque exigiam dos príncipes meros simulacros da virtude, enquanto, para eles, era de uma vida moral sem máculas que nascia a boa política. A crítica de Maquiavel, por seu lado, é insuficiente. Ela contém um violento ataque à tradição cristã, mas não esclarece, para os que querem compreender a política, se basta ater-se aos valores da tradição para compreender o papel que a ética tem no mundo político. Em resumo, é preciso saber se Maquiavel contenta-se com a crítica aos moralistas, ou se, ao atribuir outra função aos julgamentos morais, exige ao mesmo tempo outro sistema de valores, mais apto a fazer-nos entender a política.
Para responder a essa indagação um estudo da tirania parece-nos o mais adequado. A tirania ocupava no pensamento político antigo o lugar-limite da política. Além dela, ou voltávamos para as formas mais perfeitas de governo, ou o laço de união entre os homens dissolvia-se. Nesse caso, não mais podemos falar de política, nem de ética. É claro que a compreensão do caráter político da tirania era ajudada pela concepção circular do tempo, que permitia aos autores gregos vislumbrar uma saída para o que podia ser a morte da vida em sociedade. Essa possibilidade, no entanto, não os tornava menos atentos para os riscos de uma destruição total da pólis. Apenas autores como Políbio acreditavam no cumprimento mecânico do círculo da história. Aristóteles, por exemplo, afirmava que o que tornava terrível a experiência da tirania estava presente em outras formas políticas, sobretudo na democracia.[7]Percebendo que a degradação do político existia, em germe, em toda e qualquer sociedade, ele se preocupava menos em criticar os tiranos do que em perceber o que seu comportamento tinha de universal. Essa preocupação era acompanhada pela consciência de que, embora o tempo seja circular, não podemos esperar no mundo da ação o cumprimento regular do eterno retorno.
Os autores cristãos encararam com horror a tirania. Muitos não hesitaram em defender o direito dos povos a rebelarem-se contra os tiranos. Tal percepção radical baseava-se, no entanto, muito mais no fato de que os tiranos eram julgados pelos critérios da ética cristã do que por estarem eles preocupados com a corrupção do corpo político. Em alguma medida, e isso é verdade sobretudo para os moralistas cristãos, a política estava submetida à ética. A boa política era necessariamente a que se fazia em consonância com os valores morais mais elevados, embora se soubesse que a perfeição era impossível na cidade terrestre.
Maquiavel, que herdou muito do espírito dos humanistas, recusava essa relação direta entre os valores morais e a ação política. Ele fazia da volta à história romana uma necessidade para todos os que desejam construir uma grande república, sem preocupar-se com a natureza moral da ação de construção das formas políticas. Mas, diante da ação dos homens de seu tempo, constatava surpreso:
E, no entanto, para fundar uma república, manter os Estados, governar um reino, organizar um exército, conduzir uma guerra, dispensar a justiça, aumentar seu império, não encontramos nem príncipe, nem república, nem capitão, nem cidadão, que recorra aos exemplos da Antiguidade [Discorsi, Proêmio].
A miséria de seu tempo é menos a da imoralidade dos homens e mais a do esquecimento do verdadeiro modelo: Roma.
Todos os primeiros capítulos dos Discorsi dedicam-se a mostrar que a República romana foi a encarnação dos mais elevados parâmetros políticos, que toda ação deve guiar-se pelas ações de seus grandes homens. Exemplaridade da cidade que se funda na exemplaridade da ação de seus cidadãos. O que faz de Roma, no entanto, o melhor regime possível? A resposta maquiaveliana se constrói ao longo de toda a sua obra, mas podemos resumi-la em uma só palavra: liberdade. É a liberdade, expressa nas instituições, nas ações, no espírito de conquista, que faz de Roma o modelo a ser imitado. Liberdade que explica os progressos enormes da cidade, pois, como diz Maquiavel:
[…] é o bem geral, e não o interesse particular, que constitui a potência de um Estado, e, sem dúvida, somente nas repúblicas vemos o bem público, somente aí nos determinamos a fazer o que é vantajoso para todos, e se, por acaso, com isso se faz a infelicidade de alguns particulares, tantos cidadãos são beneficiados, que eles estão certos de vencer esse pequeno número de indivíduos cujos interesses são feridos [Discorsi, II, 2].
Escolher Roma como exemplo, fazer de suas instituições o modelo a ser imitado, implica abandonar o universo cristão de valores e, assim, negar que a ação política possa ser julgada pela “moralidade” dos atores. Essa reviravolta maquiaveliana mais uma vez foi suficiente para que muitos intérpretes afirmassem o divórcio entre a ética e a política, e mesmo a absoluta autonomia da política. Seguindo I. Berlin,[8] parece-nos mais interessante pensar que Maquiavel não opõe duas esferas autônomas da ação — a política e a ética — mas que ele opõe duas maneiras de se conceber a ética: uma cristã, fundada na revelação e na consciência, e outra antiga, fundada no respeito ao bem público e às leis da pólis. Essa verdadeira revolução, que só foi possível porque o humanismo havia preparado o terreno para o culto dos valores cívicos, deparava-se com formidáveis obstáculos. Em primeiro lugar, é preciso ver que Maquiavel não diz que a escolha de Roma é uma escolha arbitrária, que a ética antiga é uma entre muitas possíveis. Ele sabia que mesmo esse relativismo ético seria recusado com todo o vigor pelos pensadores cristãos. Mas ele queria ir mais longe, afirmava que a ética cristã é incapaz de fundar uma sociedade livre e forte. Diz ele:
Nossa religião dá mais crédito às virtudes humildes e contemplativas do que às virtudes ativas. Nossa religião coloca a felicidade suprema na humildade, na abnegação, no desprezo das coisas humanas; a outra, ao contrário, considerava como bem soberano a grandeza de alma, a força corporal e todas as qualidades que tornam os homens temidos. Se a nossa exige alguma força de alma é para dispor-nos a sofrer, mais do que para que façamos alguma ação vigorosa [Discorsi, II, 2].
Em segundo lugar, Maquiavel sabia que o cristianismo triunfou sobre as ruínas de Roma. Mais do que com a corrupção moral, que interessava homens como Savonarola, e que conduziu à reforma da Igreja, ele se preocupava com o fato de que os cristãos não eram capazes de buscar a felicidade na Terra, de que suas ações eram sempre destituídas de força e vigor, de que eles eram sempre a presa fácil dos conquistadores violentos. Consciente da dificuldade da tarefa à qual se propunha, de fazer da Roma pagã o modelo para a Itália cristã, ele lança mão do exemplo do cristianismo primitivo, ou da história dos franciscanos (Discorsi, III, 1), para tentar uma conciliação entre as duas escalas de valores. Essas tímidas tentativas não fazem mais do que revelar a consciência que tinha de que seu projeto implicava na verdade a destruição do espírito cristão que se cristalizara na Itália.[9]
À luz dessas considerações podemos dizer que a delimitação das fronteiras da ética pela tirania torna-se mais clara quando abandonamos a ética cristã e passamos a pensá-la no universo moral dos antigos, e em parte dos renascentistas, no qual a verdadeira ética nascia do contato dos homens com as exigências da vida pública e se conservava pelos costumes do povo. Para Maquiavel, as fronteiras da ética cristã estavam assinaladas pelo fracasso dos italianos em preservar a força dos antigos romanos, pelo fracasso dos príncipes de seu tempo em resistir aos efeitos da fortuna, pelo fracasso dos profetas, como Savonarola, que se perderam na utopia de uma nova Jerusalém. Podemos objetar a Maquiavel que os povos que invadiram a Itália eram também cristãos, que as cidades suíças, exemplo que ele mesmo utiliza, eram cristãs. Mas, por mais corretas que sejam nossas críticas, devemos creditar a ele o fato de não ter substituído a escala de valores cristãos por um niilismo ético. Ele afirma, sem ambiguidade, a superioridade da antiga ética sobre a do seu tempo, mantendo a discussão no terreno próprio ao debate sobre os valores.
É, portanto, no universo de uma ética-política, ou de uma política que carrega em si um corpo de valores diferente daqueles de uma moral da consciência, que devemos buscar as fronteiras da ética.
Os primeiros capítulos dos Discorsi sugerem que o mistério da tirania é parte do mistério da criação das formas políticas. Se levarmos às últimas consequências essa afirmação, devemos dizer que, para desvendar o enigma do tirano, temos de desvendar o enigma da fundação dos regimes políticos. Maquiavel, pelo hábil estratagema de misturar aos exemplos históricos o de legisladores míticos (Príncipe, VI), sugere que a fundação — marco zero do político — é o momento em que o sentido se encarna e cria as exigências às quais os homens, em suas ações cotidianas, dão o nome de política. Os humanistas haviam se contentado com uma teoria das origens na qual a essência inicial se propagava imutável pelo tempo. Maquiavel aceita a importância do momento inaugural, mas o macula com o veneno do tempo, de tal forma que a preservação do sentido é sempre uma vitória contra a onipresença da possibilidade de morte do corpo político. A tarefa de compreender a tirania é, assim, a de apreender, no fluxo infinito das ações, a diferença entre o grande fundador e os celerados. Essa diferença pode ser vista, no entanto, também sob outra luz. Para tanto, basta lembrar o que já dissemos anteriormente: o núcleo dos Discorsi é a questão da liberdade e a distinção fundamental, para nossos propósitos, é aquela entre uma república livre e uma tirania.
Para compreender as diferenças, Maquiavel sugere que comecemos pelas semelhanças. Dando pouca importância à circularidade das transformações dos regimes, ele fala em pé de igualdade da fundação das repúblicas e da fundação das tiranias, concentrando sua atenção em descobrir de que maneira a grande ação — a ação virtuosa — se distingue da ação do tirano. É preciso notar que não estamos falando de distinções constitucionais, nem esquecendo-nos de que nos capítulos iniciais dos Discorsi ele traça um perfil cuidadoso das instituições republicanas, delimitando com precisão o papel do povo na construção das defesas contra os abusos do poder. Há pelo menos um momento, entretanto, no qual a tirania se assemelha à república. Esse momento, como nos sugere o título do capítulo IX, é o da fundação.
Dessas semelhanças podemos passar imediatamente às diferenças, conscientes de termos tocado em um ponto essencial do pensamento maquiaveliano. A fundação não possui raízes no tempo. O que é próprio a esse momento é que ele interrompe o fluxo da história, para dar aos homens a ilusão e o medo de um novo começo. O bom legislador compreende isso e procura, como bom artesão, transmitir à obra a centelha que o iluminou. “O legislador”, diz Maquiavel, “será suficientemente sábio e virtuoso para não deixar como herança a autoridade que ele teve em mãos” (Discorsi, I, 9). Ele sabe que a natureza dos homens cedo ou tarde os conduzirá a usar para o mal o que o fundador usou por virtude. Mais do que uma lição sobre a natureza humana, o grande legislador ensina-nos algo sobre a natureza das instituições. Se elas só podem originar-se de uma decisão da vontade humana — Maquiavel desmente assim o postulado medieval da origem divina do poder —, é preciso que a particularidade seja rapidamente subsumida pela universalidade das leis: “Não é suficiente, pois, para a felicidade de uma república, ou monarquia, ter um príncipe que governe com sabedoria durante sua vida, é necessário que lhes dê leis capazes de mantê-la depois de sua morte” (Discorsi, I, 11). Apenas o legislador deve conhecer a origem humana das instituições. Aos homens, é preciso transmitir o medo que inspiram as obras divinas, é preciso confrontá-los com a imparcialidade do universal e com o braço punitivo da justiça. Frágil equilíbrio o da grande fundação, que exige a renúncia daquele que num momento confundiu-se com os deuses e a sabedoria ingênua dos que devem viver no cotidiano a continuação do sonho de um só!
O estudo da natureza da fundação permite-nos entender a natureza da tirania e enfrentar o problema das fronteiras da ética. Na lógica da fundação o tirano é o demiurgo narcísico que, esquecendo-se dos perigos que o rondam, entra no tempo ainda possuído pelo desejo de fazer de sua vontade a lei de todos os homens. Não é, assim, necessariamente da perversão da vontade do criador que nasce a tirania. Quantos imperadores romanos não foram conduzidos à crueldade por um desejo são de reformar o Estado (Domiciano)? O tirano, desconhecendo as leis de Cronos, perde-se no fascínio com a própria capacidade criadora e é obrigado a fazer da violência o instrumento de sua duração. Não é de se estranhar que Maquiavel oponha à tirania, último degrau do político, as religiões (Discorsi, I, 10). O que lhe interessa no fenômeno religioso não é, contudo, o conteúdo da fé, mas o fato de que as religiões realizam com perfeição a passagem da vontade particular para a universalidade da lei. Podemos pensar que Maquiavel vê nas religiões um mero produto dos homens, negando-lhes a verdade intrínseca dos dogmas. É preciso dizer, no entanto, que ele não se interessa por questões teológicas, que não se pronuncia a favor do paganismo contra o cristianismo, mas analisa a presença das religiões no mundo do ponto de vista da política, concebida como fruto da ação humana no tempo. Desse ponto de vista, o cristianismo é condenável, não enquanto religião — nenhum fundador pode se passar das religiões — mas enquanto uma ética que, descuidando-se dos valores cívicos, abre as portas para a tirania. Vale reafirmar que Maquiavel não está dizendo que o cristianismo prega a tirania (não podemos esquecer que para santo Tomás o regime ideal era a monarquia), e sim que, enfraquecendo a vontade dos homens, torna-os frágeis diante da voracidade do desejo de mando.
A religião dos romanos foi, assim, superior ao cristianismo não por enunciar uma verdade mais elaborada sobre o sagrado, mas por defender valores que tornavam insuportável a experiência da tirania. Sua ética cívica não impedia a corrupção do corpo político, mas dava fortes elementos para os que se dispunham a lutar contra o poder de um só. O cristianismo também condenava a tirania, mas fazia-o sob a cobertura da condenação maior de nossa natureza pecadora, de tal forma que o tirano era visto apenas como uma forma particular do mal que se criou com o pecado original.
Essas considerações conduzem-nos, mais uma vez, no capítulo XI, a estudar a questão da ética em consonância com aquela das representações. No Príncipe, Maquiavel destaca a importância das representações morais, sem se preocupar em discernir suas origens; nos Discorsi é na sequência de suas reflexões sobre as religiões que ele volta a ela. Ele fala, assim, dos fundadores das religiões como dos que ocupam o primeiro lugar entre os grandes homens; “aqueles que fundaram os Estados ocupam apenas o segundo lugar depois deles”. No extremo oposto dessa escala, os tiranos se erguem como os que recebem o vitupério universal, como todos os homens que destroem as religiões, que derrubam os Estados, os inimigos do talento, da coragem, das letras e das artes úteis e honradas pela espécie humana; como todas as ações que caracterizam a impiedade, a violência, a ignorância, a preguiça, a baixeza e a nulidade [Discorsi, I, 10].
Esse retrato confirma o que já havia sido sugerido no Príncipe: o tirano ocupa o último lugar na escala dos valores políticos, porque ocupa o último lugar na escala dos valores éticos. Ele é o objeto da ira popular, porque despreza o julgamento dos homens e perde-se na contemplação de seus próprios atos.
A hierarquia proposta por Maquiavel pode, no entanto, ter sugerido um equívoco, que nossas palavras ajudaram talvez a consolidar: o de que a política está submetida à ética. Maquiavel ardilosamente deixa escapar essa interpretação para seduzir o leitor que ficaria chocado com os capítulos seguintes, em que ele fala abertamente do uso que os romanos faziam da religião. Mas trata-se de uma artimanha do texto. Na ótica maquiaveliana, como na dos antigos, ética e política são faces de uma mesma realidade que não podem ser separadas, ainda que fosse nosso desejo resgatar a ciência dos valores das brumas da contingência e do acaso nas quais a política está imersa.
Voltemos ao tirano. Agindo contrariamente a tudo o que os homens louvam e desejam, ele parece desprezar a força das representações e refugiar-se na espiral dos próprios desejos. Se essa é uma parte da verdade da tirania, certamente não revela toda a sua essência. Se a tirania fosse apenas uma forma de loucura, os homens olhariam com compaixão para o tirano, mas não obedeceriam às suas ordens. É preciso que o tirano tenha seguidores, que seja capaz de transformar o que é pura transgressão em uma experiência política. O espanto de La Boétie diante da tirania não era causado pelo fato de que a violência é capaz de atemorizar, e sim de que ela pode transvestir-se nas formas de uma comunidade política. Pouco adianta pensar que os homens tremem diante da morte, que a experiência da tirania assemelha-se à dialética do senhor e do escravo, em que a preservação da vida torna-se mais importante do que a liberdade. Na esfera pública a submissão é sempre temporária, a violência sempre sem refúgio. A guarda pretoriana pode evitar os efeitos do ódio do povo contra o tirano, mas não faz do jogo de interesses entre o déspota e seus carrascos um refúgio seguro para o que comanda. Maquiavel mostra que ninguém está mais sujeito às conspirações do que os que pretendem governar segundo seus próprios delírios (Discorsi, III, 6). Para durar, é preciso que o tirano faça de seu governo um governo político. Sua arrogância não é tanto a de dispensar a representação que os homens fazem de suas ações, mas a de acreditar que sua força é tamanha, que poderá criar sua própria escala de valores e fazer da crueldade a demonstração de sua coragem.
Maquiavel recorre ao exemplo dos piores tiranos da Itália para mostrar que, nas situações extremas, os homens servem-se dos valores mais correntes de seu tempo para orientar e compreender suas ações. Os tiranos enganam-se pensando deter os segredos da produção simbólica. João Paulo Baglioni, que havia massacrado a própria família, tremeu diante da figura santificada do papa, a ponto de se deixar levar prisioneiro por um homem cuja temeridade levara a invadir a Perugia praticamente desarmado. A conclusão de Maquiavel estabelece a distinção que procurávamos entre o grande fundador e o tirano. “Concluímos que os homens não sabem ser perfeitamente bons, nem criminosos com grandeza, e quando um crime apresenta algum caráter de dignidade eles não sabem cometê-lo” (Discorsi, I, 27).
Aprendemos que apenas os grandes fundadores são capazes do gesto que cria não somente um novo governo, mas uma nova representação do poder. Apenas eles são capazes de atingir a imaginação dos homens a ponto de fazê-los tremer diante da sacralidade das novas instituições. Compreendemos agora por que Maquiavel opôs aos tiranos os fundadores das religiões. Somente esses são capazes de criar a coincidência da ética com a política e, assim, realizar a maior obra da qual é capaz a vontade humana.
Essa distinção rebaixa a experiência do tirano a um grau inferior da política, retira-o da companhia honrosa de Rômulo e Licurgo, para relegá-lo à solidão do poder que se exerce no refúgio da pura força. Poderíamos alegrar-nos pensando que esse rebaixamento preserva o lugar mais elevado da ética, operando uma separação radical entre a esfera do bem e a esfera do mal. Nessa ótica, o mal seria a pura ausência de essência, como para santo Agostinho, ou uma essência absolutamente distinta, mas teria suas fronteiras claramente demarcadas da “verdadeira existência humana”.
Maquiavel não participa desse otimismo. Ao estudar a história das repúblicas mais potentes, ele constata que sua força se exaure com o tempo, que seus costumes perdem a capacidade de espelhar o espírito das leis, “pois como os bons costumes, para se manter, têm necessidade das leis; as leis, por sua vez, têm necessidade, para serem observadas, dos bons costumes” (Discorsi, I, 18). Em uma palavra, ele constata que a constituição corrompe‑se. Perdemos hoje o sabor desse conceito. Falamos da corrupção da burocracia, dos políticos, mas não sabemos mais o que quer dizer um povo corrompido. Para Maquiavel, assim como para os antigos, a corrupção marcava os limites do político. De um corpo político corrompido não se pode esperar mais nada, suas leis são incapazes de tolher a violência privada, o Estado deixa de representar os interesses públicos, os cidadãos visam apenas ao próprio bem, sem se preocupar com os destinos da cidade. Está aberto o caminho para a tirania. Maquiavel conclui: “É necessário, para usurpar a autoridade num Estado livre, e aí estabelecer a tirania, que a corrupção já tenha feito fortes progressos” (Discorsi, III, 8).
O inquietante da tirania não é, portanto, que ela demarque um novo território, mas que exista nas fronteiras do mesmo mundo que viu surgir as repúblicas mais virtuosas. O tirano não extingue a sociabilidade natural dos homens, não constrói o lugar do não político, ele mostra, ao contrário, que na forma mais degradada de governo continua a existir um grão daquilo que chamamos política. Contrariamente ao que poderia sugerir a lógica contratualista, o universo terrível do tirano não dissolve inteiramente os laços sociais. No reino da pura força continuam a existir regras e caminhos que mantêm os homens unidos, ainda que agora eles sejam guiados pelo medo da morte.
O que Maquiavel descobre, portanto, não é a independência da ética e da política. A história romana prova o contrário. O que ele mostra é que nas fronteiras do político, lá onde a ética e a religião fracassam, continua a existir uma forma de governo que conserva elementos fundamentais de todas as outras. Tanto quanto Platão, ele é cético quanto à possibilidade de recuperar‑se um povo que se corrompeu totalmente (Discorsi, I, 18), mas não deixa de ver, partindo do exemplo das cidades italianas de seu tempo, que lá onde os valores não contam mais, continua a existir uma sociedade política. Maquiavel aponta os limites da ética cristã mostrando que ela é incapaz de guiar os homens na construção de uma república virtuosa. A tirania aponta para os limites da ética antiga, deveríamos dizer de toda ética, que é incapaz de evitar a corrupção e assim a ruptura com a política.
Para concluir gostaríamos de lembrar as reflexões de Hannah Arendt sobre o caso Eichmann. O que a espantou nas declarações do carrasco não foi tanto a radicalidade de sua maldade, mas sua banalidade. Maquiavel nos leva a pensar que o que é terrível na tirania é que ela não cria um novo território para a existência humana, onde o homem comum de uma república não mais reconhece os traços de sua cidade, mas que ela exista como uma prolongação da vida política normal, em que a grande maioria dos homens continua a conviver e a agir normalmente, demonstrando pelo silêncio, pelo medo ou pelo cinismo a incapacidade da ética em evitar a irrupção da barbárie.
A tirania aponta para as fronteiras da ética, mas nos confronta com a impossibilidade de olharmos com um olhar estrangeiro para seus horrores. Seus limites não são os de um corpo estranho, que se desfigurou inteiramente com a ação do tempo mas o horizonte de todas as formas políticas, de todas as ações humanas, de toda vontade criadora.
Notas
[1] Ver R. Koselleck, Critique and crisis, Cambridge, mit Press, 1988.
[2] Ver sobretudo C. Lefort, A invenção democrática, São Paulo, Brasiliense, 1983.
[3] I. Kant, “La religion dans les limites de la simple raison”, em Oeuvres philosophiques, Paris, Gallimard, 1986, t. III.
[4] Como exemplo temos Croce e Luigi Russo.
[5] Este é o caso de E. Cassirer.
[6] M. Merleau-Ponty, “Note sur Machiavel”, em Signes, Paris, Gallimard, 1960.
[7] Aristóteles, La politique, Paris, J. Vrin, 1980.
[8] I. Berlin, “The originality of Machiavelli”, em Studies on Machiavelli, Florença, Sansoni, 1972.
[9] Idem, p. 204.