1991

As imagens de TV têm tempo?

por Nelson Brissac Peixoto

Resumo

Em geral, entende-se a dificuldade em retratar um lugar em função dos véus que o recobrem. Com efeito, ao se filmar um país oriental defronta-se com o fato de que ele não se oferece de imediato ao olhar. É preciso sempre tentar vislumbrar o que se passa por trás de portas, muros, panos, sons e sinais indecifráveis, silêncios. Coisas que não são visíveis a olho nu. Todo o problema da fotografia foi, tradicionalmente, captar um mundo que não se deixa apreender.

A situação que se vive hoje é, paradoxalmente, oposta. A opacidade do mundo atual provém de sua permanente exposição. Ele se mostra em demasia, sem parar. Esta sobre-exposição é, no limite, pura obscenidade, pois o que resta é uma imagem em que não há nada a ver. Tudo é vitrine. Não há mais cena, tudo é primeiro plano, tudo é lançado ao espectador, tudo é evidente. O obsceno é justamente o aniquilamento da cena pelo excesso.

Não há, então, qualquer indício de ausência. A televisão transforma cada coisa em afirmação da presença do todo. É um universo sem resto, capaz de “cobrir” o mundo, “colada” aos acontecimentos. Uma imagem-vídeo é sempre um fragmento do universo, de um fluxo contínuo. Eis a onipresença da televisão: ela não poderia se refrear diante de algo tomado por impenetrável sem contradizer seu próprio princípio. Está na sua própria essência alimentar a inflação de imagens.

No reino da sobre-exposição, o fundamento é a publicidade. Nela, as imagens é que se dirigem ao telespectador, e não este que contempla o mundo. Na cultura tradicional, o homem criava as imagens. Era seu olhar que discernia e enquadrava, que dispunha cada coisa em seu lugar. Hoje, ao contrário, o mundo já nos chega pronto como imagem. Não há mais a possibilidade de contemplação.

Esse hiper-realismo implica, na verdade, uma perda do real. Na sua pulsão em apreender imediatamente tudo o que está acontecendo, a televisão acaba substituindo a realidade. Acaba produzindo o real. No limite, não há nada fora dela.

O sagrado refugia-se nos objetos e paisagens tão sem transcendência do mundo contemporâneo. Poderia a televisão, ruidoso universo do descartável, induzir o homem a emudecer e voltar os olhos para o infinito? Poderia ela ganhar poder evocador, carregando-se de história? Para isso, porém, é preciso saber ouvir o seu peculiar silêncio, sentir o ritmo particular da vida nas suas imagens.


As imagens de TV têm tempo? A questão pode ter diferentes enfoques: por um lado, será que elas teriam história, a possibilidade de evidenciar passado? Por outro, seriam capazes de durar mais, de não passar tão rapidamente sob os nossos olhos? Nada parece mais impertinente e anacrônico do que pedir a estas imagens inquietas e vertiginosas que fiquem.

Esta aspiração, no entanto, na sua extemporaneidade, remete diretamente aos problemas do nosso tempo. Qual é a natureza da imagem televisiva? Qual a materialidade e permanência desta que é tida como uma das formas mais efêmeras e rarefeitas da nossa realidade? Pensar a televisão nos ajuda a repensar o estatuto da imagem hoje.

Isto implica, em primeiro lugar, colocar a questão da opacidade do mundo contemporâneo, da crescente dificuldade em se distinguir as coisas num horizonte cada vez mais saturado. Está cada dia mais difícil ver. Quanto mais se fotografa, mais se criam simulacros e as coisas nos escapam. A obsessão em retratar redunda no seu contrário: não esclarece nada, não apreende nada, apenas redobra a obscuridade de um mundo já tomado por imagens. As coisas se banalizaram, as imagens tornaram-se clichês. Carentes de sentido, se equivalem, perdem toda magia. Qual o destino de nossas imagens, esses espectros descartáveis e sem significado?

Esta opacidade advém, portanto, não do ocultamento mas do excesso. Em geral, entende-se a dificuldade em retratar um lugar em função dos véus que o recobrem, da distância que nos separa de determinada cultura. Com efeito, ao se filmar um país oriental defrontamo-nos com o fato de que ele não se oferece de imediato ao nosso olhar. É preciso sempre tentar vislumbrar o que se passa por detrás de portas, muros, panos, sons e sinais indecifráveis, silêncios. Coisas que não são visíveis a olho nu. Todo o problema da fotografia foi, tradicionalmente, captar um mundo que não se deixa apreender.

A situação que se vive hoje em dia é, paradoxalmente, oposta. A opacidade do mundo atual provém de sua permanente exposição. Ele se mostra em demasia, sem parar. Esta sobreexposição é, no limite, pura obscenidade: uma imagem em que não há nada a ver[1]. Aqui tudo é vitrine. Não há mais cena, tudo é primeiro plano, tudo é lançado na nossa cara, tudo é evidente demais. O obsceno é justamente a eliminação da cena pelo excesso[2].

Aqui não há qualquer indício de ausência. A televisão transforma cada coisa em afirmação da presença do todo. É um universo sem resto, capaz de “cobrir” o mundo, “colada” aos acontecimentos. Uma imagem-vídeo é sempre um fragmento do universo, de um fluxo contínuo. Daí a onipresença da TV: ela não poderia se refrear diante de algo tomado por impenetrável sem contradizer seu próprio princípio. Está na sua própria essência alimentar a inflação de imagens[3].

No reino da sobreexposição, o fundamento é a publicidade. Aqui as imagens é que dirigem a nós, não os homens que contemplam o mundo. Na cultura tradicional, nós criamos as imagens. É o nosso olhar que discerne e enquadra, que dispõe cada coisa em seu lugar. Hoje em dia, ao contrário, o mundo já nos chega pronto como imagem. Não há mais a possibilidade de contemplação.

Este hiper-realismo implica, na verdade, uma perda de real. Na sua pulsão em apreender imediatamente tudo o que está acontecendo, a TV acaba substituindo a realidade. Acaba produzindo o real. No limite, não há nada fora dela. Fellini, em Ginger e Fred, retratou com maestria este universo reduzido a estúdios, tudo o mais caindo em ruínas. É o impasse do cinema: suas paisagens reduzem-se cada vez mais ao cenário e ao deserto. Bertolucci indica isso ao notar que “não é que a Itália atual não me interesse, é que ela parece não ter vontade de ser filmada”.

Para S. Daney, o cinema perde sua força porque não é mais caixa de ressonância dos acontecimentos do mundo, filtrados primeiro pela rede midiática. Entre uma televisão que se põe no lugar do mundo e um cinema que não consegue mais falar dele, abre-se um vazio. Que pode ser preenchido de dois modos: “A partir do cinema (exigimos um cinema que reflita a realidade) ou a partir da televisão (exigimos não uma TV que crie mas que transmita alguma coisa). Eu prefiro a segunda solução, porque ela me diz respeito como cidadão. Frente ao cinema, é ainda o sujeito que está em questão”[4].

A primeira dimensão afetada por estas novas relações: o espaço. As transformações mais radicais na nossa percepção — nas quais a TV tem papel fundamental — estão ligadas ao aumento da velocidade da vida contemporânea. Aceleramento dos deslocamentos cotidianos na cidade, rapidez com que o nosso olhar desfila sobre as coisas. Na origem deste fenômeno, a crescente informatização do mundo.

Tudo se reduz, cada vez mais, a signos. A começar pela arquitetura e todos os elementos da paisagem. A edificação comercial que antes se erguia à beira da estrada, cujas formas evoluíam dramaticamente no ar, feitas para serem vistas à distância, foi substituída por um grande luminoso, suspenso a dezenas de metros do chão. Um signo reconhecível por quem passa em grande velocidade. A própria construção, cada vez menor, agora fica oculta atrás do estacionamento. A arquitetura, convertida numa superfície, num elemento gráfico, deixou de ser espacial.

O cinema também perderia uma de suas funções básicas: criar espaço. Nos anos 50, a imagem cinematográfica procurava corresponder aos grandes espaços. O quadro continha a profundidade das paisagens e a monumentalidade das cidades. Tudo é uma questão de localização. Cowboys em desertos sem limites, milhares de figurantes em aventuras épicas, viajantes em estradas infinitas. O cinemascope seria a tentativa de dar conta, tecnicamente, desta necessidade de tudo incluir no quadro.

Ao se limitar o formato da imagem, reduzida a um suporte de signos, não importa mais construir espaço. É a informação transmitida que interessa. Neste novo dispositivo, a televisão é que influencia o cinema.

Inúmeros filmes novos incorporam em sua própria estrutura esta nova forma de constituição do espaço. Uma radical supressão da profundidade da imagem, o quadro se estreita, predominam planos fechados. A textura, em vez da espacialidade, é que passa a importar. A imagem tende a ganhar peso e materialidade. O cinema se aproxima da pintura.

Mas também se acerca da televisão. As narrativas elípticas, nas quais são suprimidas exatamente as sequências externas e as que envolvam ação e figurantes, e a mise-en-scène teatral, em que os lugares e paisagens parecem cenários, são recursos tipicamente televisivos. Uma estética em que a informação sobre o que está ocorrendo substitui a observação da ação, em que a palavra recupera seu papel e os detalhes tornam-se emblemáticos. Imagens saturadas e fragmentadas de um mundo que, no seu conjunto, como paisagem exterior, nunca é visto.

Produções recentes no cinema americano e inglês são indicativos desta tendência. Stranger than paradise, de J. Jarmusch (1984), inspira-se diretamente em antigos programas de sketchs de TV. Séries de episódios, de produção barata, feitas com uma câmera central fixa contra um mesmo cenário, com os protagonistas entrando e saindo de cena lateralmente. Jarmusch reproduz a mesma estrutura de gags, a indistinção dos interiores retratados em planos fixos e a supressão das paisagens, sempre mergulhadas na bruma ou na neve. O mesmo faria, depois, Sexo, mentiras e videoteipe, de S. Soderberg (1989), um road movie intimista que se passa inteiramente em interiores, evitando qualquer tomada exterior da cidade ou mesmo dos deslocamentos dos protagonistas — numa completa subversão do gênero.

Caravaggio, de D. Jarman (1986), é um filme essencialmente pictórico, no qual quase toda a imagem é uma natureza-morta, uma reconstituição de um dos quadros do pintor. Um universo sem espaço, pois cada plano tem suas extremidades dissolvidas no escuro, nunca se articulando topograficamente com o seguinte. E sem tempo, pois passado e presente dos protagonistas, a época do pintor e a atualidade, se confundem.

Mas é Henrique V, de K. Branagh (1989), outro filme inglês, que leva esta tendência mais longe. Um épico shakespeariano, história da invasão da França pelos ingleses, em que não se tem nenhuma panorâmica, em que as batalhas são mostradas por meio de patas de cavalos se entrelaçando na lama ou de um discurso do rei feito diretamente para a câmera, sem que vejamos sequer sua plateia de soldados. A sequência final, um travelling feito quase rente ao chão, sem que mais uma vez nada nos seja dado a ver da paisagem, com as personagens saindo do quadro sob a câmera, é emblemática desta nova estética. O cinema se fazendo televisão.

Mas as recentes transformações na nossa sensibilidade não dizem respeito apenas à percepção do espaço. Uma outra dimensão está hoje no centro de todos os debates teóricos, de todas as formas de criação artística: o tempo. O olhar contemporâneo não tem mais tempo — a própria condição da contemplação.

Isto fica evidente na diferença de comportamento que existe entre alguém que frequenta um museu e alguém que assiste à televisão. Num museu se impõe, obrigatoriamente, para ver um quadro, uma atitude contemplativa. O olhar tem de percorrer a superfície da pintura, é preciso manter uma distância preestabelecida do quadro: perto demais só se vêem retículas, longe demais perdem-se os detalhes. É por isso que as pessoas dentro de um museu procuram se posicionar a uma distância adequada. Um olhar que comporta perspectiva e profundidade, que encara o mundo como uma paisagem.

A pintura reproduzia, tradicionalmente, na sua própria estrutura, este dispositivo. O mesmo vale para o cinema, agora tido como depositário das imagens ainda dotadas de significado. Como um veículo capaz de contar histórias e construir personagens com espessura. Capaz de exigir uma atenção privilegiada, obrigando o espectador a ir até ele, comprar ingresso e sentar-se numa sala escura, o olhar concentrado na tela.

A televisão, porém, a princípio contrapõe-se radicalmente à contemplação. Em primeiro lugar porque na TV a imagem nos passa por frações de segundo, sem exigir do espectador a distância que requer um quadro ou uma paisagem. Assistimos à TV com uma atenção dispersa, sem concentração, apenas deixando que aquele fluxo ininterrupto nos atravesse. A televisão é este contínuo de imagens, em que o telejornal se confunde com o anúncio de pasta de dentes, que é semelhante à novela, que se mistura com a transmissão de futebol. Os programas mal se distinguem uns dos outros. O espetáculo consiste na própria sequência, cada vez mais vertiginosa, de imagens.

A introdução do zapping — a prática de mudar de canal a qualquer pretexto, à menor queda de interesse do programa, graças ao controle-remoto — viria acentuar a desagregação do que restava da continuidade da programação. O espectador de televisão não assiste mais a programas inteiros, mas salta continuamente de um canal a outro, articulando, de modo desconcertante, imagens as mais desconexas. O programa deixa de se apresentar a ele como algo acabado, cujo desenvolvimento deva respeitar e acompanhar.

O “efeito zapping”[5] resulta desta absoluta impaciência do espectador em relação a qualquer vestígio de duração e continuidade. Uma ânsia de evasão, uma busca frenética da surpresa, que implicam verdadeira obsessão pelo corte, pela trituração de tudo o que é homogêneo. As imagens aparecem para ele como fragmentos ou trailers de histórias que nunca acontecerão por inteiro. Dissolução que acaba contaminando a própria produção dos programas, que deixam de ser narrativas conclusivas e passam a confundir gêneros e formatos. Nada se completa mais.

No limite, este nomadismo resulta inútil. A pressa, a falta de tempo, priva as imagens de toda particularidade e consistência. O movimento contínuo em direção a outros enunciados acaba na reiteração infinita do mesmo. Em todos os canais, obtêm-se sempre as mesmas imagens. Primeira questão suscitada por este frenesi do controle-remoto: ressaltaria uma certa homogeneidade estrutural básica das imagens e sons da televisão?[6].

Mas a falta de inteireza do fluxo imagético televisivo põe, antes de mais nada, nas nossas relações com a mídia, um problema verdadeiramente ético. A luta contra a insubstancialidade do mundo contemporâneo, a falta de consistência das coisas e personagens, não são apenas uma questão estética. Dizem respeito à necessidade de resgatar a integridade das imagens. Uma questão, enfim, não epistemológica mas ética. Integridade das imagens entendida não só como unicidade, mas também como a capacidade de serem verdadeiras. Imagens que nos digam a verdade. Imagens que — tarefa que Deleuze atribui ao cinema[7] — nos restituam, depois de todos estes processos midiáticos desagregadores, um pouco de real e de mundo.

A evolução da postura da crítica — de início refratária à TV, responsabilizando-a pela decadência do cinema — pode ser rastreada nos filmes de Wim Wenders. Alice nas cidades (1973) e O estado das coisas (1981) são libelos contra a TV, vinculada à banalização da paisagem contemporânea e à perda de significado das imagens. Seu último filme, no entanto, Cadernos sobre cidades e vestuário (1989), não apenas resgata o papel da TV na constituição do imaginário contemporâneo como assimila a própria textura de suas imagens — pelo recurso constante à imagem-vídeo — ao filme.

Mas foi em Chambre 666, um curta-metragem de 1982, que Wenders apresentou de modo particularmente engenhoso o conflito entre cinema e TV. Chamando vários cineastas presentes no Festival de Cannes para — sozinhos em seu quarto de hotel com a câmera e um aparelho de TV ligado — deporem sobre o futuro do cinema, ele desenhou um amplo espectro das diferentes atitudes possíveis com relação à TV. Um cineasta filipino, de início, passou a discursar sobre a vinculação entre o destino do cinema e a luta dos novos oprimidos, sem dar-se conta de que, atrás dele, a TV mostrava um filme japonês de monstros, ressaltando pateticamente a derrisão da pregação ideológica.

Já a primeira coisa que faz o cineasta italiano Antonioni ao entrar no quarto é desligar o aparelho de TV e abrir a janela. O futuro do cinema, diz ele, está aqui, apontando para a praia e o mar sem fim que se descortina aos nossos olhos. As grandes paisagens, as travessias do espaço, que são a marca dos seus filmes. Por fim, entra Godard. Ao ver a TV ligada, ele simplesmente vira sua cadeira de costas para a câmera e passa a assistir a ela. “A TV não ameaça o cinema. Ela é pequenina, não dá medo em ninguém. No cinema, aquelas figuras enormes parecem querer engolir a gente. Mas com a TV se pode brincar, desligar, ligar na hora que se quiser.” Toda uma história de nossas relações com as imagens contemporâneas está contida neste pequeno filme.

Não por acaso Godard seria — junto com Coppola — o cineasta a levar mais longe a aproximação do cinema com o vídeo e a TV. E não apenas porque fez uma história do cinema para a TV. Ninguém melhor que ele percebeu o princípio básico da televisão e assimilou-o à linguagem cinematográfica: a emissão ao vivo. Desde seus primeiros filmes, como Acossado, quando a ação do protagonista é por várias vezes anunciada e comentada antecipadamente, percebe-se este efeito televisivo em operação. Estreita-se o intervalo entre o real e a informação sobre ele.

Soigne ta droite (1988), justamente sobre a questão do futuro do cinema, narra a realização de um filme que deve ser finalizado e projetado num só dia. O trajeto de um avião é o tempo das filmagens. Chegada, o filme está feito, ainda que nem tenha sido rodado. É que, no meio tempo, aconteceu de tudo: uma partida de tênis, uma peça de teatro, missa, clipes musicais, noticiário, filme histórico… Como na TV. Mais: evidenciando a composição e o sentido que percorre todos estes fragmentos[8]. Godard faz cinema “ao vivo”.

Nossas questões são: podem as imagens salvar as coisas de sua crescente miséria? Haveria ainda imagens essenciais, realmente únicas e insubstituíveis? Será que elas — em particular a imagem-vídeo — ainda têm a força de significar e nos mobilizar?

Poderia a televisão, comumente associada à avalanche de imagens que inunda nosso horizonte visual, ao clamor ensurdecedor com que coisas e sentimentos reivindicam sua presença, contribuir para sustar a fugacidade de tudo o que nos cerca? A TV, tida sempre por responsável pela cancerosa proliferação das imagens, pelo fluxo vertiginoso onde nada dura, onde tudo se desfaz, poderia servir para selecionar e conservar as coisas? Para isso, é preciso que as imagens televisivas tenham tempo, que a TV saiba esperar. Deixar as coisas crescerem, as situações se cristalizarem.

Uma durée que se acredita própria apenas à literatura e, às vezes, ao cinema. Em meio a tudo aquilo que proclama insistentemente sua existência — em particular pela publicidade — seriam estas imagens mais contemporâneas também capazes de fazer cada coisa esperar a sua vez? Poderiam servir para, em vez de descartar as coisas, preservá-las? Como diz Deleuze, se até hoje o vídeo tem sido utilizado, especialmente pelos americanos, “para andar mais rápido, como restituir ao vídeo a lentidão que escapa ao controle e conserva, como ensinar-lhe a ir mais lentamente?”[9].

O cinema foi capaz de efetivamente fazer aflorar essa dimensão essencial, a temporalidade. Mizoguchi, o cineasta japonês, inventou — em filmes como Crisântemos tardios (1939) — o “plano-sequência”. De qual cultura, com efeito, poderia provir olhar cinematográfico mais contemplativo? Este plano, também conhecido como one scene/one shot, consiste em fazer uma sequência inteira em uma só tomada, sem cortes. Não há montagem. Em vez de reconstituir, pela edição de diversos pontos de vista, sinteticamente, um acontecimento, a câmera — estática ou percorrendo a cena — apenas observa o seu desenrolar.

Não é o cinema que cria o evento, mas este é que ocorre à nossa vista. Faz-se presença. O plano-sequência é mais longo, dura mais. Dá tempo para o acontecer. O cinema respeita o ritmo e a disposição das coisas. É o que faz com que suas imagens sejam reais. Imagens únicas, essenciais. Este distanciamento, a não-interferência no fluxo da realidade filmada, é para este cinema condição para se chegar à essência do real. A nouvelle vague, com o princípio da montage interdit, se inspiraria diretamente em Mizoguchi. Mas poucos são os momentos, no cinema contemporâneo, em que podemos sentir o escoar do tempo. No geral, ele é arrastado pela vertiginosa intensidade da ação e da violência.

Dentre os cineastas recentes, Jarmusch — não por acaso muito influenciado pelos japoneses e pelo cinema europeu — é o que mais claramente colocaria a questão. Stranger than paradise é um filme fundado na busca do tempo real.[10] Num universo tomado pelo imaginário criado pela indústria cultural, onde realidade e ficção não se distinguem, um cinema que procura se colar ao real. Trata-se, para ele, de “filmar o jeito de as pessoas serem atualmente, dia a dia”. A questão da relação entre imagem e realidade é aqui recolocada em termos inteiramente outros.

Trabalhar apenas com planos-sequências implica o exercício de uma durée. Fazendo cada cena ser contida num só plano, Jarmusch filma no presente. O decorrer de cada uma delas se confunde com o fluir do tempo. O presente de um filme advém da sensação de que as coisas, sob os nossos olhos, no presente da visão, estão ocorrendo na medida de sua própria imprevisibilidade. Como se escapassem da vontade do diretor. A recusa a manipular a cena pela decupagem ou pela montagem converte o filme num espaço vivo, onde tudo vai efetivamente acontecendo.

Mais: ao fazer filmes em plano-sequência, Jarmusch está optando por fazer ficção em tempo real, técnica narrativa raramente empregada no cinema. A história — voluntariamente minimal, fragmentária, lacônica — é então remetida a um grande “extracampo”, os hiatos de uma narrativa contínua, preenchidos por intervalos negros, como os dos filmes antigos, em que a tela fica completamente escura. Na impossibilidade de articular diretamente cada sequência à precedente, pressuposto de um filme em que as coisas devem ocorrer “como na vida”, ele evidencia este extracampo temporal. Cada intervalo em fade-out (fusão em negro) significa tempo que está transcorrendo. Mais uma vez, o efeito do presente. Jarmusch filma o tempo, a passagem do tempo.

Mas é Tarkovski que, no cinema, nos faria sentir o tempo. Para o autor de Stalker (1979) e O sacrifício (1986), dentre outros filmes, o tempo é a própria condição de existência da imagem. O cinema, antes de mais nada, é a possibilidade de — pela primeira vez — apreender um fenômeno na sua duração. Mas não é só isso: a imagem, para ele, torna-se verdadeiramente cinematográfica quando não apenas vive no tempo, mas quando o tempo também está vivo em seu interior, em cada um de seus fotogramas.

O artista, neste cinema existencial, é aquele que vive em busca de imagens verdadeiras. Na tentativa de apreender a singularidade dos acontecimentos e a absoluta individualidade de seus protagonistas. Os símbolos carregam os eventos e coisas de significados que lhes são alheios. As imagens, ao contrário, são capazes de expressar um fato específico, único. Porque o tomam no decorrer do tempo. É este caráter único E singular — como a própria vida — que torna a imagem verdadeira, essencial.

O ritmo então, diz Tarkovski, é o fato determinante da imagem cinematográfica. Mas este fluir do tempo se dá não na montagem mas no interior do quadro. As tomadas já são impregnadas de tempo. Uma tendência interior do material filmado, a sua natureza e unidade essenciais, acaba determinando — se soubermos reconhecer este seu significado e princípio vital — o ritmo das imagens.

Assim, não é a extensão das tomadas mas a pressão do tempo que passa através delas que deve modular a montagem. Tempo que se torna perceptível, em cada sequência, quando sentimos algo de significativo para além do que está sendo mostrado, indícios de algo que não se esgota no quadro, que leva a imagem a apontar para o infinito. Ao diretor cabe captar esse fluxo temporal, registrado no fotograma. Permitir que o tempo escoe com independência e dignidade, pois só assim as coisas encontrarão nele o seu lugar. Fazer cinema é “esculpir o tempo”[11].

Mas o sublime — o efeito de grandeza para além de toda representação, a satisfação de apreciar o infinito — pode transparecer no simples gesto. É o que sugere A. Masson[12]. O gesto que rompe com os movimentos utilitários, que se suspende no espaço (pintura) e no tempo (cinema), que possui um élan e uma amplitude sem medida. A manifestação mais corporal possível do indefinido.

Este gesto intensivo constitui a evidência do inapreensível: em vez de significar, ele encarna uma emoção. Ozu e Mizoguchi, mas também Bresson, Mann e Griffith, são os mestres cinematográficos destas composições gestuais. A televisão, porém, para Masson, não daria chance aos gestos: ela é pequena demais. Como, de fato, a grandeza, esta sugestão de infinitude, poderia emergir de imagens reduzidas?

Seria possível produzir imagens televisivas dotadas da mesma duração, portanto de permanência? Imagens tão carregadas de tempo quanto os planos-sequências cinematográficos? Não se trata de, simplesmente, transpor esta linguagem para o vídeo. Poderia este suporte encontrar imagens equivalentes? Como mídia, no seu conjunto, é ainda difícil dizer. Só podemos evocar programas — feitos em vídeo para transmissão — específicos. Portanto, situações limítrofes, ainda entre o cinema e a TV. Mas onde a magia da técnica antiga parece subsistir no novo produto.

Dekalog, a série — inspirada nos dez mandamentos judaico-cristãos — feita para a TV pelo polonês Krzysztof Kieslowski, em 1988, é o primeiro exemplo. A versão cinematográfica de um dos episódios, Não amarás, tem sido exibida aqui. Histórias curtas, narradas de forma simples e direta, ambientadas num mesmo conjunto habitacional de Varsóvia: formato e linguagem propriamente televisivos. Mas, ao mesmo tempo, tudo escapa aos padrões.

Primeiro, pela temática: todas as histórias tratam de dilemas morais, de indivíduos tomados pela necessidade de valores e a dificuldade de sustentá-los num mundo em que as diferenças entre o bem e o mal, verdade e mentira, tendem a se diluir. Quando a TV é dominada por histórias onde nada tem significado — a ação se justificando por si mesma — e por personagens desprovidas de qualquer drama interior, Kieslowski nos apresenta indivíduos confrontados com a crença, a integridade, a intimidade e a verdadeira entrega amorosa. Não se poderiam imaginar questões mais distantes do horizonte televisivo contemporâneo. E, no entanto, o resultado são situações comoventes, carregadas de suspense e dramaticidade. Quando tudo é cada vez mais encenado e artificial, temos um mundo inequivocamente humano e vital. A TV pode ser veículo de histórias morais.

Por outro lado, a série elege o palco mais adequado para estas singelas parábolas: o cotidiano, pequenos apartamentos, lugares anônimos, pessoas comuns. Um universo menor, povoado por gestos sutis, tensões pouco explicitadas e dramas pessoais que, no entanto, transcendem seus limites para atingir o essencial. As questões básicas da existência humana, da vida e da morte. Para isso o diretor empreendeu uma verdadeira depuração estilística: “Com a idade”, disse, “aprendi a simplicidade”. Todo supérfluo é descartado, tudo é reduzido ao fundamental.

Estas imagens evitam a banalidade do atual: cada instante é a cristalização de toda uma existência. Uma mulher chora ao descobrir que estava sendo verdadeiramente amada por alguém que parecia espioná-la; um médico mente para fazer a paciente ter um filho que não é de seu marido, um homem estende a mão para a pia de água benta e, ao notar que a água congelou, leva ao rosto o gelo bento… Consistência e sentido são devolvidos a estes gestos tão simples. Este momentos são verdadeiros estados de graça.

America, série apresentada em 1989 — com direção de João Moreira Salles —, procurou apresentar como estas questões aparecem na cultura mais contemporânea. Tentando fazê-las transparecer na própria linguagem do programa. Buscamos a cada momento a adequação entre espaço e tempo. Nos primeiros programas, nos quais o movimento é lento, predominam os grandes espaços, dotados de extensão e profundidade. As coisas se sucedem mais devagar, têm tempo para encontrarem seu lugar. À medida que se acelera o movimento, o espaço vai se condensando, reduzido à unidimensionalidade de uma tela. As coisas, então, se precipitam vertiginosamente.

Esta rarefação de um mundo cada vez mais cinético é que leva poetas e artistas a voltarem seus olhos para tudo o que é material e permanente. As últimas imagens do programa reencontram a gravidade e a duração das primeiras. Mas um longo trajeto foi percorrido: elas não são mais dadas, mas apenas evocadas. Escavadas neste horizonte saturado de clichês, aludem ao que não pode ser imediatamente visto, a tudo o que realmente existe, à presença.

O especial sobre Chico Buarque, O país da delicadeza perdida (1990), de Walter Salles Jr., é outro exemplo, na produção brasileira mais recente, de uma busca neste sentido. O lirismo do cantor é um pretexto para evocar um estado de espírito: a cordialidade. Um sentimento, além do mais em desaparição — poderia haver algo menos visual, menos televisivo? —, que as imagens devem deixar transparecer. Não falar de nossos sentimentos e emoções, mas mostrar intensidades latentes naquilo que é visto. O programa, efetivamente, dá tempo para que a própria paisagem carioca exale este sentimento. As imagens possuem o vagar do mar, do entardecer, do passo das pessoas. Não são apenas lentas, têm o ritmo de um mundo cordial. Emanam toda a delicadeza — para sempre perdida, daí também sua melancolia — de uma cidade que inspirou o chorinho e a bossa nova, o Rio.

O destino das imagens não está mais sendo jogado no experimentalismo de vanguarda nem no engajamento ideológico, discursos completamente integrados no sistema de produção de clichês. O futuro das imagens está na procura do sublime. O sagrado, refugiado nos objetos e paisagens tão sem transcendência do mundo contemporâneo. Poderia a televisão, ruidoso universo do descartável, nos emudecer e voltar nossos olhos para o infinito? Poderia ganhar poder evocador, carregando-se de história? Para isso, porém, é preciso saber ouvir o seu peculiar silêncio, sentir o ritmo particular da vida nas suas imagens.

NOTAS

  1. Jean Baudrillard, L’autre par lui-même (Paris, Galilée, 1987). Em visita a São Paulo, Baudrillard notou os imensos outdoors publicitários, cobrindo laterais inteiras de prédios, com anúncios de lingerie. Evidentemente fetichistas, pois mostram apenas partes do corpo dos modelos. Tal cena, segundo ele, seria impossível em Paris. Nunca vira cidade tão sem pudor, a se expor dessa maneira.
  2. Otília Arantes, “Arquitetura simulada”, in O olhar (São Paulo, Companhia das Letras, 1988).
  3. Y. Ishaghpour, Cinéma contemporain (Paris, Ed. de la Difference, 1986).
  4. S. Daney, “Zappeur et cinéphile”, in Cahiers du cinéma, nº 406, 1989.
  5. A. Machado, “O efeito zapping”, in Folha de S. Paulo, 7/1/1989.
  6. Idem, ibidem.
  7. G. Deleuze, Cinema 2: A imagem-tempo (São Paulo, Brasiliense, 1990).
  8. J.-P. Fargier, “Le cinéma plus l’électricité”, in Cahiers du cinéma, n? 406, 1989.
  9. G. Deleuze, Optimisme, pessimisme et voyage, prefácio de S. Daney, “Cine- Journal” (ed. Cahiers du Cinéma, 1986).
  10. P. Elhem, Stranger than paradise (Paris, Yellow Now, 1988).
  11. A. Tarkovski, Esculpir o tempo (São Paulo, Martins Fontes, 1990).
  12. A. Masson, “Le geste, en peinture et sur l’écran”, in Peinture et cinéma (Paris, Quimper, 1986).

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