Crença, mística e saber oculto
Resumo
Quando Santo Agostinho trata da crença, naturalmente em prol de sua legitimidade religiosa, ele observa que ela está presente em vários aspectos da vida cotidiana. Quando se ouve do viajante o relato de terras e povos inacessíveis, a verdade está nas palavras e em seu poder de mover a imaginação. Trata-se de uma confiança que não se baseia em razões, pois ela mesma, enquanto sentimento imediato, basta para sustentar a narrativa. Como se o maravilhoso da épica tocasse o ouvinte sem passar pela memória dos fatos que lhe serve de pretexto. Isso significa que o valor próprio da crença, o sentido que ela traz, não é apreendido por associação com o que falta saber, mas sim com o que estará sempre além da exploração intelectual. Assim, é evidente que as razões da crença, às quais é possível chegar por via da consciência reflexiva, causariam não apenas o desaparecimento dela, mas também a revelariam em sua forma essencial: a de saber oculto.
Um racionalismo estrito recomenda pensar sobre a crença, isto é, procurar nela o saber que lá estaria virtualmente, atitude que se nutre da pressuposição unilateral do domínio hegemônico da razão. Ora, se esta demonstra fatos, passados, presentes e futuros, a crença cria expectativas que a realidade, mesmo em sua evolução temporal, nem sempre pode apoiar, motivo pelo qual Bergson observa que a inteligência, que atende necessidades práticas imediatas, é um instrumento voltado para a sobrevivência. Assim, é nas margens imprecisas do entendimento que estariam as possibilidades esquecidas de contato com a realidade, em si mesma mais ampla e profunda do que o recorte pragmático da racionalidade habitual. Quando o místico atravessa os limites da condição humana e faz contato com essa realidade, ele nada acrescenta ao seu saber, mas intui, aquém ou além de toda expressão, algo em que acredita, e que assim lhe aparece de modo incomparavelmente mais forte do que qualquer representação intelectual. Essa sensibilidade da alma, mencionada por Pascal, não é fugaz como um lampejo, mas densa como um meio em que nada pode ser visto ou tocado. Apesar disso, tudo nela se reveste de uma verdade que está além da certeza. O que há, enfim, de inexplicável na crença provém de que, mesmo sendo subjetiva, ela é maior do que tudo que é possível constituir.
As relações entre crença e mística e entre crença e religião não são as mesmas. Bergson alerta para o fato de que o místico supera a religião constituída porque a mística ultrapassa todas as formas de realidade e, por isso, tudo que se poderia saber acerca delas. Seria uma superação do humano que, paradoxalmente, deriva de um aprofundamento da humanidade, não apenas no sentido de compreendê-la completamente, mas principalmente no de constituí-la perfeitamente. A crença seria, desse modo, o mais poderoso impulso da ação, em todos os aspectos, porque se propõe a um trabalho divino: o de completar a construção da humanidade. É nesse sentido que a força da crença (a sua aparente fragilidade) deve enfrentar todas as resistências de um mundo constituído, porque a invenção do crente opõe-se à convenção em que vivem, acomodados, os demais, que preferem crer no que já sabem. Estes desconfiam do místico porque ele confia em algo que lhes parece estranho; e o místico desconfia de tudo e de todos, porque alimenta-se de uma confiança nova: a que visa ao que ainda não existe. Confiança e esperança são, pois, elementos da crença, mas desde que reinventadas para que possam alcançar o que está para além do real e do existente, não algo utopicamente idealizado, mas defendido por esses enviados do futuro, apóstolos do sonho e da imaginação. O demiurgo constrói o mundo com a Matéria e a Ideia; o místico pretenderia reconstruí-lo com a crença e o sonho. Muitas vezes a intensidade da visão se traduz na urgência de sua realização. Daí que a mística envolve o esforço, a luta persistente e, até mesmo, a violência.
É a partir do núcleo de crença presente na mística que o místico sonha com a realidade na raiz mais profunda de sua estrutura ética. Esta que deveria ser a ligação mais autêntica entre o homem e a transcendência.
Se a imaginação agisse, na sua imprevisibilidade e grandeza, o que poderia nascer disso?
Tornou-se célebre e emblemática a frase que abre a Metafísica de Aristóteles: “Todos os homens desejam, naturalmente, saber”. Bem menos conhecida é a afirmação que fez Agostinho, muitos séculos depois, num de seus Sermões: “Mas nem todos desejamos crer”. Numa abordagem naturalista das disposições humanas constataríamos, então, uma hierarquia: a prioridade ou a superioridade do saber sobre a crença. A trajetória racionalista recomendaria, neste sentido, que só devemos crer naquilo que somos capazes de compreender. Prudente seria aquele que procura atingir a compreensão antes de depositar sua crença. Não é difícil encontrar o motivo desta atitude: o ato de compreender é, ao mesmo tempo, o estabelecimento das razões que justificam nossa adesão, na crença, não contamos com esta mediação, e, por isso, ela seria gratuita e injustificada. Assim, o ato de crer só faria sentido como posterior à compreensão, já que esta me forneceria a segurança de crer em algo “razoável”. Por isso, todos desejam, naturalmente, saber, mas nem todos desejam, naturalmente, crer. Como se a vontade de saber estivesse intrinsecamente vinculada à natureza humana e a crença fosse algo artificial que se acrescentasse àquilo para o qual a nossa natureza estaria disposta.
A estas consequências da afirmação aristotélica poderíamos opor a multidão de crenças que a humanidade sempre cultivou e que serviram de critérios de orientação nos mais variados aspectos da vida, sem que se procurasse, para elas, o respaldo racional que as justificasse. Mas, para permanecermos ainda um pouco no contexto do pensamento de Agostinho, lembremos apenas um argumento mais simples. Não são poucas as ocasiões em que, na vida cotidiana, o único procedimento de que dispomos para apreender algo é a crença. Quando ouvimos relatos acerca de lugares distantes, nos quais jamais estivemos e aonde também provavelmente nunca iremos, a opção que se coloca não é entre crer e saber, mas entre crer e não crer, já que, no caso, a possibilidade de saber é, pelo menos no momento, inexistente. A questão da verdade, neste caso, depende inteiramente de nossa confiança no interlocutor. E se por acaso viermos a verificar por outros meios a veracidade do relato, isto não eliminará o fato de que, primeiramente, o aceitamos por via da crença. E se porventura nosso interlocutor tiver mentido e o seu relato for inteiramente devido à inventividade de sua imaginação, teríamos acreditado não na realidade, mas na ficção.
Disto se infere que dois motivos nos levam a crer naquilo que não podemos saber: o tipo de relação que mantemos com o interlocutor (nós o conhecemos, temos confiança no que ele diz, nunca mentiu) e a possibilidade de vir a conhecer diretamente aquilo que por agora é objeto de crença. A combinação destes dois motivos faz com que consideremos a crença um conhecimento indireto; devidamente explorado, posteriormente, se revelará em seu completo teor. Agostinho se vale desta relação para justificar a crença, remetendo-se ao texto do profeta Isaías, 7:9, “Se não crerdes, não compreendereis”. Em circunstâncias nas quais o saber direto não é possível, a crença prepara a compreensão. Não se trata, portanto, de uma oposição irredutível, mas de uma combinatória, ao privilegiar a crença como atitude inicial, apenas invertemos a hierarquia que mencionamos antes, fazendo com que a crença instaure o campo da compreensão, que virá depois.
Ao assumir tal atitude, aquele que aceita crer antes de compreender compreende a adequação deste percurso ao tipo de verdade que se trata de conhecer (no caso, verdades sobrenaturais ou de fé) e admite a coexistência, no mesmo sujeito, do crente e do conhecedor. Em outras palavras, aquele que aceita a necessidade de primeiramente crer não desiste da compreensão, mas admite uma continuidade e, mais do que isso, uma reciprocidade ao perceber que, tratando-se da palavra de Deus, a relação que deve ser estabelecida com este interlocutor singular exige que a compreensão da palavra passe pela crença. Assim, a tendência natural do ser humano para o saber é reinterpretada como vocação sobrenatural para o conhecimento através da crença.
Entretanto, o valor atribuído à crença religiosa não impede que ela seja o caso privilegiado que se coloca no contexto maior da função das crenças na articulação da existência humana. Ao analisar a percepção e a inteligência à luz da teoria da evolução, Bergson afirma que o nosso contato com o mundo, seja ele através dos sentidos ou do processamento intelectual que dá origem ao conceito, está originalmente estruturado em vista das necessidades práticas a que o ser vivo deve atender para estabelecer uma relação eficaz com o meio. Nem a percepção nem a inteligência estão prioritariamente destinadas ao conhecimento, a não ser na exata medida em que este serve aos requisitos de sobrevivência. A consciência visa ao mundo a partir de uma intenção pragmática: percebemos e pensamos sempre motivados pela ação mais eficaz, pois a sobrevivência depende da ação exercida sobre as coisas que nos rodeiam. Neste sentido, a diferença entre as estratégias adotadas pelo homem primitivo para dominar o meio e proteger-se das ameaças e as teorias científicas modernas, aparentemente afastadas do interesse prático imediato, é apenas de grau. O mesmo se pode dizer acerca da organização social, submetida às mesmas finalidades.
Isto significa que a representação, desde o nível do mundo percebido até a elaboração conceitual, realiza recortes que não estão de forma alguma comprometidos com o conhecimento da realidade em si, mas simplesmente com a estrutura da ação prática. A lógica da nossa visão do mundo, isto é, as categorias pelas quais captamos a realidade, formou-se e consolidou-se segundo o critério do interesse do ser vivo em sua sobrevivência, mesmo que, num estágio adiantado de civilização, este interesse não se expresse imediatamente. Ora, esta centralidade do interesse vital muda completamente a nossa maneira de considerar o conhecimento, que já não pode ser visto como especulativo ou desinteressado, enfim, destinado a uma “verdade” visada em si e por si. O grande erro das teorias do conhecimento tradicionais foi justamente considerar que a percepção e a inteligência podem ser aplicadas à realidade para obter uma visão absolutamente teórica, desvinculada da relatividade prática. O pressuposto do desinteresse produziu, assim, uma falsa perspectiva quanto à posição do sujeito e quanto ao alcance da representação.
A tese de que a nossa apreensão do mundo é ordenada pela estrutura da práxis tem várias consequências, mas a principal delas refere-se ao critério que devemos observar para julgar a adequação entre a mente e as coisas. Do ponto de vista da “intenção” da natureza, que é a inserção eficaz do ser vivo no seu meio, os resultados civilizatórios mostram o acerto do caminho que foi seguido pela evolução. A adequação dos animais à realidade se dá diretamente, por via do instinto; a adequação do ser humano à realidade se dá indiretamente, através da flexibilidade da inteligência, que não é um utensílio específico, mas a possibilidade de produzir qualquer instrumento, vencendo assim os desafios da sobrevivência não através da fixidez do instinto, mas da mobilidade do intelecto. Por isso o homem é o animal que progride, transforma a natureza e transforma-se a si mesmo.
Entretanto, como isto se dá dentro de um quadro de racionalidade naturalmente programado e historicamente consolidado, há limites que devem ser observados para que a indeterminação relativa da inteligência não contrarie as finalidades adaptativas. Em outras palavras, há certas características estruturais da representação que devem estar sempre presentes: a estabilidade do real e sua articulação, por exemplo, o que envolve desde a ordem espontânea de nossa vida comum até as categorias filosóficas e científicas que utilizamos para organizar o mundo representado. Todos os critérios usados para construir a imagem do mundo privilegiam a estabilidade e a articulação descontínua, o que permite a inserção eficaz, mas, por outro lado, ocultam aspectos da realidade que poderiam perturbar esta relação. Por isso Bergson assinala o nosso desinteresse pelo tempo, pelo movimento, pela transformação, enfim, pelo devir, que na tradição quase sempre foi visto menos como uma realidade e muito mais como um problema. Não se trata de questionar esta imagem do mundo postulando o que ela deveria ser; trata-se de compreender criticamente a estrutura da representação, vendo nela uma possibilidade realizada, e não a integridade absoluta da nossa relação com o mundo.
Isso, no entanto, nos conduz a uma posição mais radical: a consciência que habitualmente temos do mundo e de nós mesmos é parcial e desliza na superfície das coisas, isto é, na interface entre o sujeito representante e a realidade representada, como se a superfície do sujeito tocasse a superfície do mundo, produzindo, neste contato, o que tomamos por realidade, tanto a do sujeito quanto a das coisas. Ora, este diagnóstico indica que, de algum modo, supomos como real algo mais do que aquilo que está contido na representação habitual. Mas como podemos saber, como podemos pensar ou falar acerca do que estaria além da representação? Kant dizia que podemos representar intelectualmente (pensar) aquilo que não podemos representar sensivelmente (conhecer). Mas é visível que Kant fala de duas modalidades de representação, e no do limite de toda representação. Ora, para Bergson, pensar com radicalidade significa superar o quadro da representação, ou seja, de qualquer mediação que separe a realidade, tal como a representamos, do modo como ela se apresentaria diretamente. Como poderíamos nos aproximar desse limite, se não para transpô-lo, pelo menos para visualizá-lo?
O modo como representamos a realidade tem dois aspectos. Em primeiro lugar, as disposições estruturais da percepção e da inteligência tais como a evolução fez surgir em nós, em segundo lugar, os hábitos de pensamento a que estas disposições deram lugar, na medida em que a estrutura natural é reiterada historicamente, nas sucessivas sistematizações teórico-formais. É evidente que estes dois aspectos estão totalmente entrelaçados: quando os filósofos criam sistemas a partir das disposições naturais, sem considerar o interesse que fundamentalmente as originou e as mantém, é como se fizessem da necessidade virtude. De modo que as disposições naturais são reforçadas pela teoria, e esta convergência resulta no fortalecimento da estrutura, que assim aparece como única possibilidade. Neste sentido, não é surpreendente que um sistema tão formalmente elaborado como a subjetividade transcendental em Kant apenas prolongue e explicite logicamente a maneira natural de apreender a realidade.
É preciso, pois, concluir que o modo de perceber e de pensar possui razões lógicas no plano secundário em que procuramos compreendê-lo, como estrutura primária, é totalmente motivado pelos desígnios da evolução, que poderiam ser esquematicamente enunciados como a tendência do ser vivo para persistir em sua condição. Ora, disposições e hábitos não geram verdade absoluta. A força que os caracteriza provém de que, do ponto de vista natural, são plenamente justificados. A relatividade de categorias como causalidade e substância, sustentáculos da representação, não deriva de qualquer opção teórica e, por isso, não há como falar de um relativismo epistemológico, e sim de uma estrutura cognitiva relativa à práxis que essa estrutura deve orientar. Em Bergson, o teor biológico da perspectiva evolucionista é reinterpretado filosoficamente: não são as formas consolidadas que explicam o movimento da evolução; é este movimento que explica a formação das estruturas que nos definem como produtos desta história.
Mas, se a realidade está em movimento, nada está definido. Tudo participa deste movimento, isto é, desta duração. Tudo está em formação, nada está definitivamente formado. Por mais longa que seja a história dos nossos hábitos, isto é, da nossa maneira de pensar e de viver, aceitá-los como algo absoluto seria uma crença, difícil de evitar, mas nem por isso coincidente com a verdade. Por trás do valor que atribuímos ao nosso modo de pensar e de viver, por trás do poder que conferimos ao intelecto e ao conhecimento, está a recusa do devir, isto é, o temor que se traduz intelectualmente no caráter inaceitável da instabilidade. É esta dimensão vital, anterior à reflexão, que faz com que o sujeito se ponha numa posição de exterioridade em relação ao mundo e a si mesmo, e a reflexão se faça flexão, articulação simbólica de uma realidade que permanece não representada, irrepresentável.
Então voltamos a perguntar: se o conhecimento é representação, que nos esforçamos por tornar sistematicamente confiável porque cremos que só a representação é digna de confiança, de que vale falar do irrepresentável — e que significação podemos atribuir a esta palavra ou a esta possibilidade? Um princípio de resposta está em que talvez possamos suspeitar que, se nada está definido, nada está inteiramente representado.
Ao comentar o modo pelo qual cumprimos a lei, no duplo sentido da ética e do direito, Bergson assinala que nossa conduta inclui dois aspectos que se complementam de forma curiosa. Primeiramente, a vida em sociedade supõe uma obrigação moral de respeitar as regras de sociabilidade que é, a bem dizer, inescapável. Mesmo aqueles que as violam percebem, ainda que confusamente, que, ao fazê-lo, excluem-se da sociedade e passam a viver uma situação que não se configura tanto por eles próprios negarem o convívio social normatizado, mas antes por ser a sociedade que os nega, suspendendo os laços que os atavam aos demais. Em segundo lugar, o caráter coercitivo da obrigação social não é, de maneira geral, percebido como algo que nos tolhe em nossas ações ou que nega a nossa liberdade, mas como o modo natural de orientar a vida. O poder da obrigação não está tanto na força com que age sobre nós, mas na forma como age: a introjeção que produz o hábito de obedecer, através do qual vivenciamos um acordo entre o que devemos fazer e o que queremos fazer. Para isso contribui muito o fato de que a obrigação social, em seu todo, é abstrata: concretas são as regras que a manifestam e que cumprimos sem grande esforço; esta dispersão oculta o peso da obrigação e sua força coercitiva.
Por mais notável que seja esta espécie de ardil da inteligência — ou da natureza —, temos de admitir que na origem da obrigação está a liberdade. Com efeito, é preciso ser livre para sentir-se obrigado, e, por mais efetiva que seja a pressão social, a liberdade permanece como fundo, quase apagado, de nossa conduta. Isso acontece porque no plano da moral social (que Bergson denomina “fechada”) a situação se caracteriza pela impessoalidade: minha inserção na sociedade será tanto mais eficaz quanto menos aparecer minha singularidade. Ora, a liberdade, pelo contrário, consiste na manifestação desta singularidade, a despeito das regras gerais; por isso esta liberdade tem que permanecer quase sempre oculta, para que não venha a conflitar com a condição impessoal da normatividade social.
Entretanto, em situações excepcionais, a singularidade se impõe sobre as regras e aparece, então, a relação entre as regras de moralidade e o valor de que estão investidas. Quando este valor, habitualmente cristalizado na formalidade das normas, é questionado, surge uma nova possibilidade de outra moral, porque este questionamento traz, ainda que implicitamente, a proposta de outro valor. A transformação que assim pode ocorrer decorre sempre de uma espontaneidade pessoal, justamente quando a singularidade se contrapõe à generalidade e à impessoalidade. E a efetividade da mudança, isto é, a passagem para uma nova moral, dependerá da repercussão de uma singularidade em outras. Por isso Bergson diz que a abertura moral é um apelo de uma liberdade a outras liberdades. Esta mudança é uma subversão, porque a tendência da sociedade é sempre persistir no interior de suas regras, mantendo o caráter inquestionável da obrigação.
O entendimento não quebraria o ritmo racional da vida porque sua função é justificar a conservação, assim, a promoção da mudança não provém do entendimento, mas da emoção; e a aceitação de outro valor também não passa pelo crivo do entendimento, mas depende diretamente da emoção. Com efeito, onde um sujeito singular encontraria o novo valor que o inspira se não fora dos hábitos que sustentam o status quo? E como esta inspiração poderia tocar outros sujeitos se não fosse apelando para a liberdade, isto é, para a suspensão dos hábitos consolidados? É desta forma que se dá o rompimento com o constituído e se revelam os atos ou o movimento constituinte de novos modos de vida. Esta abertura é sempre uma ampliação, porque requer extrapolar os limites que demarcavam a significação ética da existência. É preciso observar que os hábitos são tanto mais fortes e eficazes quanto mais se aproximam da conduta instintiva. Certamente, na origem, todos eles possuem razões pelas quais foram adotados, razões que nos revelariam por que tais hábitos e não outros, mas esta contingência tornou-se, com o passar do tempo, necessidade natural que independe de justificativas, como uma crença suficiente por si. Por isso é tão difícil romper com os hábitos, o que demonstra, por outro lado, a força da singularidade e o poder da subjetividade, isto é, da liberdade, quando empenhada na realização de um valor.
Este novo valor, por não estar entre aqueles sustentados pelos hábitos, é naturalmente recusado pelo entendimento. Ele não dispõe, para se impor, nem da força do hábito, posto que é novo, nem do aval do entendimento, conservador por natureza. Assim, quando ele se impõe, quando logra repercutir, mostra a força até então oculta e dissimulada da emoção, porque será unicamente como afeto que poderá repercutir a princípio. Não se trata de uma representação acabada, mas da intuição de algo que ainda não se definiu, porque sua realidade se afirmará na prática. É na experiência deste valor e no seu alcance para a ressignificação da vida que se aprenderá o que ele é e a verdade que ele pode levar a descobrir. Isso quer dizer que a razão não está na origem do valor nem da vida moral. Esta pode ser racionalizada a posteriori, e mantida como tal, mas tem a ver muito mais com o que a razão dissimula do que com o que a razão manifesta. O saber manifesto não transforma, ele permite um progresso que é inseparável de uma continuidade. A radicalidade contida na verdadeira transformação implica um movimento mais profundo.
Portanto, não seria pertinente a pergunta: o que sabe aquele que deseja transformar-se e transformar os outros? Deveríamos perguntar: o que ele sente? Que tipo de certeza é esta que enfrenta razões e resiste a elas?
Se a inteligência e todo o modo de vida que ela condiciona e mantém provêm de um princípio que não era somente inteligência, mas também a força do instinto, se neste princípio as duas tendências estiveram juntas para depois tomarem rumos distintos que produziram as diferentes maneiras de o ser vivo persistir na vida, então é razoável supor que, em cada uma das tendências que se desenvolveram separadamente, a outra está de algum modo presente, virtual ou oculta, superada, mas não anulada inteiramente. Por isso Bergson diz que algo de instintivo rodeia a inteligência, como aquilo que, permanecendo nas margens, não aparece no centro da vida consciente, mas que se manifesta ocasionalmente, em experiências irrefletidas e avessas à clareza que é a vocação da inteligência. Já vimos como isso ocorre na emoção moral; outra manifestação, talvez mais intensa, é a experiência mística. Normalmente associamos mística e religião, e há razões para que esta relação seja estabelecida até certo ponto. Como todas as manifestações que ocorrem na história da humanidade, a religião possui raízes firmadas na “intenção da natureza”, que é a preservação da espécie. Neste sentido puramente natural, a religião se explica pela necessidade de contrapor à reflexão da inteligência um tipo de representação que garanta a coesão grupal, algo que, segundo Bergson, estaria comprometido se dependesse apenas da inteligência. Esta contribui para individualizar o ser vivo e para fazer com que ele se oriente pelo máximo de vantagens que pode obter para si. Com efeito, os homens se agrupam e colaboram entre si por necessidade de sobrevivência individual, e não por solidariedade espontânea. A formiga e a abelha vivem em função do grupo porque, nestes animais, a consciência da individualidade está adormecida. O ser humano, caracterizado pela consciência de si como indivíduo, não vive primeiramente para o grupo. Assim, Bergson afirma que a inteligência “aconselha” o egoísmo e, mesmo num estado adiantado de civilização como o nosso, o senso de realidade dos utilitaristas os levou a conceber uma moral em que o indivíduo veja na convivência com os outros a melhor maneira de atender às suas próprias conveniências.
Isso significa que a inteligência deduz da individualidade a preocupação prioritária, ou mesmo exclusiva, de cada um consigo mesmo. Para evitar a desagregação a que levaria este raciocínio, que na sua forma é coerente, a natureza nos proveu da capacidade de fabulação, que é a representação imaginária produzida pelo que ainda resta do instinto gregário. Assim são estabelecidas defesas contra o que seria o “poder dissolvente da inteligência”, isto é, a individualização levada às últimas consequências. Nisto consiste, do ponto de vista natural, a função dos deuses, dos interditos, das ordenações e do tabu. O fenômeno de sacralização virá posteriormente e decorre desta necessidade natural. Conclui-se daí que a religião é um efeito da fabulação: as representações imaginárias tornam-se objetos de crença comum que regulam a conduta dos indivíduos em relação ao grupo. Desta maneira a natureza preserva o interesse da coletividade diante do interesse do indivíduo.
Ainda dentro da visão puramente naturalista, a religião provê outra utilidade: ela é uma “reação defensiva contra a representação racional da inevitabilidade da morte”. O enunciado que se tornou lugar-comum, o homem é o único animal que sabe que vai morrer, decorre da inteligência, do saber de si produzido pela experiência interpretada pela inteligência. Este saber contraria o interesse natural da persistência da vida, e a religião se encarrega então de contornar esta inevitabilidade por via de representações imaginárias que nos fazem aceitar a condição mortal. O homem sabe que é mortal, mas se ele crer na imortalidade (nas suas várias versões religiosas), a morte não será causa de perturbação e pode até contribuir para a positividade da vida. Nisto consiste a função dos mitos: eles são inventados pelos homens, mas a partir de uma necessidade que provém da “intenção da natureza”. A fabulação produz certo desvio da racionalidade, cujo exemplo mais eloquente é a religião, que permite o equilíbrio, necessário à vida, entre o que constatamos pelo saber e o que cremos por via da imaginação. Por isso Bergson diz que a fabulação é “ideomotora”: suscita ideias que levam a ações; a religião faz agir, originalmente no interesse da vida.
Já vimos que a inteligência é o que caracteriza a condição humana no ponto em que se encontra o movimento de evolução: no tempo cósmico, uma passagem; mas, no que nos concerne, uma finalidade e, portanto, uma condição definitiva. Por isso se diz que o homem seria a razão de ser do movimento evolutivo. O que mostra que isso não é correto é a continuidade do movimento, que não se percebe mais como regra, mas como exceção. Em outras palavras, entendemos que a humanidade é o estágio final da evolução porque não percebemos, do ponto de vista da espécie, sinais de superação. Mas estes sinais podem ser observados em indivíduos, que desta forma se destacam da espécie, como se neles o movimento continuasse. E a possibilidade de que isto aconteça está no despertar daquilo que, na maioria de nós, está adormecido, oculto, mas latente: uma espécie de memória do princípio em que a inteligência convivia com outras possibilidades. O vasto inconsciente da espécie remonta a este princípio e, em alguns indivíduos, atua como força paralela e superior à inteligência, à estabilidade pragmática que é a tradução reducionista do movimento da realidade, a que Bergson se refere na imagem do elã vital.
Nestes indivíduos, a fabulação prescrita pela natureza é ultrapassada pelo que se denomina, aproximada e imperfeitamente, de intuição. Apesar de experimentarmos, por vezes, uma comunicação direta com os outros e com as coisas, uma espécie de empatia que foge às mediações da inteligência, o exemplo mais elevado de intuição é, por certo, a experiência mística. Nela, a comunicação seria um contato íntimo, quase uma coincidência, com a totalidade em seu sentido dinâmico, isto é, com o movimento criador da realidade. Por isso a intuição é visão e ação, inseparavelmente, já que o místico vê o movimento enquanto coincide com ele. A ideia de que a mística seria pura contemplação deriva da concepção estática do absoluto e da divindade, habitual na tradição filosófica. Plotino, que no entender de Bergson seria a realização máxima do pensamento grego, pode ser visto como a experiência mística expressa dentro dos limites do intelectualismo grego. A oposição entre contemplação e ação estabelecida pelo filósofo alexandrino se deve, segundo Bergson, ao contexto cultural, que teria impedido a expansão da atitude mística para além da theoria.
Observe-se que a relação de contemplação, por mais elevado que seja o objeto, é ainda externa. Quando se passa ao contato que é uma coincidência, e quando se entende que o absoluto é movimento e que a divindade é criação, o olhar contemplativo se transmuta em ação ou experiência interna do movimento criador, totalidade dinâmica em perpétuo vir a ser. Coincidência significa, neste caso, estar dentro de si e dentro do princípio divino ao mesmo tempo. Esta relação absolutamente intrínseca não pode ser expressa em conceitos ou em quaisquer palavras. Por isso a mística, na sua plena realização, é mais do que visões e palavras; é ação a que o místico não se pode furtar, apesar das dificuldades, porque se trata da experiência de coincidir com a produção do ser. A transformação que assim ocorre consiste em que o místico se vê penetrado por algo maior do que ele e mais intenso, como, diz Bergson, o fogo que penetra o ferro e o torna em brasa. É nesta transformação que se dá o movimento de ir para além da espécie, da evolução, ou o salto para além do humano. Como se, ainda nas palavras do filósofo, o místico que assim se transforma fosse já outra espécie de um único indivíduo.
Percebe-se que tudo isso tem muito pouco a ver com a religião instituída ou “fechada”, como Bergson denomina o fenômeno da cristalização histórica das religiões. Estas não apenas perdem, mas se tornam avessas ao arrebatamento místico, porque tais atitudes desestabilizam os aspectos materiais e o sistema de dogmas em que o ímpeto inicial foi acomodado. Neste sentido se podem entender as dificuldades que um São Francisco de Assis enfrentou diante da organização eclesiástica, mas também a força que o animava a renovar um cristianismo debilitado. Esta força ele a encontra na intuição que se exprime mais no fazer do que no discurso, como se o místico, em contato com o princípio criador, fosse também impelido a criar novos valores e novos seres humanos. O que ele sabe e o que ele quer já não são mais justificados pela inteligência ou pelo senso moral, mas pelo mundo em recriação, pelo movimento da realidade. Por isso o misticismo não provém da luz da razão, mas de uma experiência iluminada pela presença de algo absoluto, que vem de Deus ou que é o próprio Deus, não no sentido de uma entidade absoluta cristalizada em si mesma, mas do movimento infinito.
Já a fabulação religiosa dependia da emoção e da imaginação para inventar crenças que fossem diversas das explicações intelectuais, ou até mesmo opostas; a experiência mística, ao se dar como intuição, mobiliza elementos imemoriais que ainda não se dividiram em sensibilidade e entendimento. Não se trata, portanto, de uma crença conscientemente oposta ao intelecto, como um saber ainda não refletido. Com efeito, como assinalou Sartre, se sei que creio, então já não creio. A tradição intelectualista não distingue consciência de conhecimento: foi o que levou Descartes a identificar, no cogito, a consciência de si com o conhecimento de si. Há uma dimensão da consciência que é pré-reflexiva, em que aquilo de que se é consciente não aparece como objeto, em que a intencionalidade não se traduz objetivamente, mas apenas num vivido. A ausência de razões para a crença significa que ela é esta modalidade singular de consciência, uma conduta específica e irredutível, porque nos conduz num modo em que nos conduzimos e somos conduzidos. Esta aparente oposição se torna convergência que aponta para outra oposição a ser desfeita, e esta muito característica da crença: a identidade logicamente inexplicável entre esperança e certeza. Por isso Agostinho evoca Isaías: se não crerdes, não compreendereis, como se o saber estivesse oculto na crença ou como se na esperança se desvelasse a certeza.
Mas é preciso que não nos deixemos iludir pelas palavras. A crença não é um saber incompleto que se completaria na ciência daquilo que se crê. Se há algum saber oculto na crença, deve ser de outra natureza, posto que inteligência e emoção diferenciam-se por natureza. Se a crença é, como diria Bergson, uma representação imaginária que condensa uma emoção, isto é, um contato emotivo (pathos) com aquilo que se crê, não se pode dizer que a crença tenha objeto, como o conhecimento, mas que se trata de uma abertura justamente para aquilo que jamais poderá tornar-se objeto. Por isso a crença é uma consciência mais próxima, um contato, ainda que com algo que esteja infinitamente distante, uma distância que nenhuma razão poderá transpor e que não será diminuída por qualquer justificativa. Assim, o que ela manifesta não é um saber que ela conteria virtualmente, isto é, uma representação sensível ou intelectual, mas algo que se apresenta como uma força penetrante: seria irreconhecível se a manifestação se desse a partir do sujeito, posto que incomensurável com a subjetividade individual; mas se faz reconhecível como força que se manifesta a partir de si mesma. Por isso o místico sente que está em algo e não diante de alguma coisa; que sua individualidade natural foi rompida, que sua identidade lhe foi arrebatada, que ele se situa num movimento absoluto ao qual a noção de totalidade pode apenas aludir.
Não surpreende, pois, que tal experiência não possa ser inteiramente relatada: um excesso que desestabiliza e perturba além de tudo que se poderia conceber. O místico, sendo ainda humano, necessita do esquecimento, assim como, para o equilíbrio da vida em vigília, se necessita sonhar e esquecer o sonho.