2003

Diálogo na grande tradição

por Francisco de Oliveira

Resumo

Continuidade e ruptura, sucesso e fracasso, estigma e preconceito, a ideia que se faz do Brasil, em toda sua desigualdade, seria outra não fossem “Casa grande & senzala”, de Gilberto Freyre, “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda, e “Formação do Brasil contemporâneo”, de Caio Prado Júnior.

A rigor, tais obras, que datam das décadas de 1930 e 40, surgem em oposição a um tipo de interpretação, até então hegemônica, produzida por um grande número de intelectuais e pensadores, que passaram a ser chamados, depois da reviravolta moderna, de autoritários. Entre eles, estão Oliveira Vianna e Alberto Torres, que dominaram o cenário político-intelectual durante o final do século XIX e o início do século XX. Não que depois das décadas de 1930 ou 40, as questões postas por eles tenham desaparecido repentina e definitivamente. Antes, suas estigmatizações das peculiaridades do que se pode chamar de o “caráter nacional” reverberam diariamente, seja na forma de chavões – a exemplo de “o povo não sabe votar” –, seja na forma de anedotas racistas. Em programas políticos até, como se observou na “distensão lenta, gradual e segura” de Geisel.

Segundo tais autores, a origem da fraqueza e corrupção da sociedade brasileira estaria na mistura das três raças tristes, ou seja, a branca degredada, a negra escravizada e a indígena melancólica. Daí, o novo fenótipo, amorfo, preguiçoso e indisciplinado. Mais: o estabelecimento de clãs, fudados em latifúndios, movidos pelos atributos bárbaros do índio e do negro. Não há, pois, contexto para a instituição de uma sociedade no sentido forte do termo, motivo pelo qual o Brasil deveria subjugar-se a um Estado intervencionista, antifederalista e antiliberal; numa palavra: positivista.

“Casagrande & senzala” nega tudo isso. Mais: faz o elogio da miscigenação, que destinaria, ao Brasil, um futuro pródigo. Imagem perigosa, como tudo na bela narrativa literária de Freyre, que soa como a voz da preta velha que distrai o menino de engenho, ao falar de brincadeiras, batalhas eróticas, fantasias sexuais, lembranças da África etc. É mesmo em meio às riquezas antropológica e sociológica que Freyre contrabandeia a ideia de democracia racial ou lusotropicalismo, de modo a dourar um processo histórico que ele mesmo revela brutal.

Já o tom de “Raízes do Brasil” é sereno e clássico. Seu modelo é “A ética protestante e o espírito do Capitalismo”, de Max Weber. De fato, seu maior feito é aplicar ao caso brasileiro a história comparada da qual se extraem “tipos ideais”, de que se destaca o “homem cordial”, definido pelo o horror às normas, inclusive às do trabalho, que, por ser escravo, nada vale. Nada disso é genético, mas, na origem, ibérico, sobretudo português. Uma formação identitária que, no contexto colonial, é radicalizada de modo oportunista, dados a intimidade forçada entre o senhor e o escravo e a delegação do poder da Coroa aos proprietários privados, “raízes”, aliás, do patrimonialismo, da indiferenciação entre as efera pública e privada, da supressão daquela até.

O marxismo de Caio Prado é inesperado, sobretudo porque no Brasil da década de 1940 não havia qualquer tradição nesse sentido. Assim, é a partir de Capistrano de Abreu, Pandiá Calógeras, Taunay, Varnhagen, Rocha Pombo e Roberto Simonsen que Caio Prado empreende sua pesquisa tendo em vista a história da representação social, com base nas formas de produção.

Fato é que há um ponto comum entre os partidos teóricos assumidos pelos três autores clássicos. Neles, os dominados estão representados pelos dominantes, o que não deixa de ser teoricamente relevante, já que a ideologia faz essa subsunção. Sendo assim, os dominados permanecem “abstratos”, de modo que não são propriamente sujeitos da ação ou da história. Em Sérgio Buarque de Holanda, eles compõem os tipos ideais, mas é muito evidente que os traços fundamentais deles são os das classes dominantes. Será apenas com Antonio Candido, em Os parceiros do Rio Bonito, que os dominados aparecerão como sujeitos da história, apesar de que se trata, no caso, de uma regressão de formas anteriores.


OS DEMIURGOS DO BRASIL MODERNO

Antônio Cândido os chamou de “demiurgos do Brasil”, em palestra a que assisti no Cebrap já lá se vão alguns anos; no famoso prefácio a Raízes do Brasil, assim como na produção desse também demiurgo, mestre incomparável e exemplo de intelectual e batalhador socialista, sobre Caio Prado Júnior, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, ele formula essa “formação” do pensamento social brasileiro, em que continuidades e rupturas formam uma tradição.

A ideia que nos fazemos do Brasil, da formação de sua sociedade, do Estado, das rupturas e continuidades, dos nossos sucessos e fracassos enquanto sociedade e civilização, de nossos estigmas, preconceitos e trunfos, de nossas abissais desigualdades e da forma como tudo isso plasmou uma sociabilidade, desde a determinada pelas relações sociais estruturais até a de nosso convívio cotidiano, seria inteiramente diversa sem a contribuição renovadora e definitiva forjada nas três grandes obras da tríade, respectivamente Formação do Brasil contemporâneo, Casa-grande & senzala e Raízes do Brasil. O consenso a esse respeito é absoluto entre intelectuais, acadêmicos e formadores de opinião no Brasil, tendo transcendido as fronteiras da especialização para fazer parte dos modos de reconhecimento e identificação diuturnos. A mídia, em geral, serve-se frequentemente de imagens, analogias e metáforas sugeridas pelos Três Grandes quando se refere ao patriarcalismo, ao patrimonialismo, à mentalidade colonial, aos hábitos privados projetados na esfera pública, à dominação oligárquica, ao racismo, à arrogância, ao horror às normas, ao “jeitinho brasileiro”, ao clientelismo, presentes diariamente na vida privada e pública. E também, como sabem todos que estudaram esses grandes autores, as “virtudes” ou às vantagens, mais ciosamente menos alabadas — salvo em Gilberto Freyre, que é abertamente apologético: a tolerância, a inventividade, a plasticidade, a experiência da mistura, que podem ser trunfos num mundo tão marcado por segmentações, ódios étnicos e religiosos, nacionalismos sectários, arrogância imperial, frieza burocrática, implacabilidade ética. Richard Morse, o conhecido historiador norte-americano especializado na história brasileira e latino-americana, na pista das sugestões de Freyre, opõe as especificidades regionais e nacionais, inclusive o malfadado “jeitinho”, como vantagens civilizacionais frente ao burocratismo e à frieza da “ética protestante e do espirito do capitalismo”.

É evidente que há uma plêiade de autores anteriores, contemporâneos e posteriores à tríade cujas contribuições, mui justamente, devem ser consideradas em qualquer história das ideias no Brasil sobre o Brasil, o que confirma a teoria da “formação” que devemos a Antônio Cândido. De mais a mais, pode-se dizer que todos os autores posteriores à tríade, deles são, em alguma medida, discípulos, tendo desdobrado, acentuado e recortado de forma mais acabada algumas sugestões e pistas deixadas pelas três obras referidas. Certamente, todos concordarão, sem desdouro para autores importantes contemporâneos de Caio, Gilberto e Sérgio, que os Três Grandes merecem o lugar que têm no panteão dos pensadores do Brasil.

Seria falso, merecendo imediata advertência dos especialistas, homogeneizar e pasteurizar as três grandes obras, anulando suas notáveis diferenças. Prado Jr., Freyre e Holanda provêm de orientações teóricas muito diferentes, e, sob muitos aspectos, suas obras maestras conflitam radicalmente: basta lembrar a interpretação do papel e do caráter da religião católica no Brasil do ponto de vista de Gilberto Freyre, cujo contraste com a interpretação que dela faz Sérgio Buarque de Holanda não poderia ser mais radical. Portanto, menos do que homogeneizá-las, trata-se de assinalar, fazendo o diálogo, o campo unificado de reflexões sobre a sociedade brasileira que emerge de suas interpretações; isso já foi notado pelos comentadores mais notórios, mas mesmo assim convém reenfatizar essa característica, posto que gerações passadas foram informadas — ou talvez malformadas — exagerando no antagonismo entre os três grandes clássicos. Com o que, durante muito tempo, a pesquisa sobre a sociedade brasileira ficou prejudicada: convém também relembrar que, outra vez no capítulo da religião, o anátema de “ópio do povo” jogou ao limbo as manifestações do sincretismo afro-católico, com o que, na maior parte dos casos, talvez não propositalmente, reafirmava-se a linha de interpretação de inferioridade racial dos teóricos do autoritarismo, hegemônicos até os anos 40 da primeira metade do século XX.

Pensadores da década de 1930 – embora o livro de Caio só apareça em 1942 —, nossos autores fizeram, nas ciências do homem, o mesmo movimento “modernista” que se dava no campo das artes plásticas e na literatura, e se operava na política com a Revolução de 30. Freyre mesmo foi organizador do modernismo regionalista, com centro em Recife. Nas ciências sociais, o modernismo significava apropriar-se das novas orientações teórico-metodológicas e, antropofagicamente, comê-las na reinterpretação da sociedade: deslocava-se, assim, o eixo explicativo das instituições formais para a vida social, inaugurando as vertentes teóricas mais fecundas que irão ser desdobradas pelas gerações futuras.

A CHAVE CONSERVADORA

Prelúdio a uma ausência instigante

Onde ficou a interpretação liberal? Para quem estuda a história política brasileira da segunda metade do século XIX — mas também dos primeiros cinquenta anos, com sua ambiguidade entre o liberalismo e o autocratismo com a presença marcante de um partido liberal e das novas vozes liberais abolicionistas e republicanas na ativação da agenda de debates, parecerá muito estranho o completo desaparecimento de qualquer interpretação liberal vigorosa da formação da sociedade brasileira; em outros termos, quase nenhum “herói” brasileiro é liberal. Mesmo nos meios acadêmicos latu sensu, praticamente ninguém se declara liberal. A que se deve essa ausência?

Onde ficaram os dois Nabucos e um Tavares Bastos, o conselheiro líder de uma generosa legião de liberais e o filho com sua radical denúncia do escravismo como corruptor dos dominantes e deformador dos dominados — tematização que, de certa forma, é reapropriada por Gilberto Freyre, não por acaso fundador e inspirador, e latifundiário também, do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, e Sérgio Buarque de Holanda — e Bastos com sua pregação federalista? Joaquim Nabuco é cultuado, mas não é seguido: os neoliberais brasileiros contemporâneos não têm nenhum parentesco ideológico com ele, enquanto Bastos simplesmente se vê desmentido pelo desmanche da federação. Onde está o “programa para desbastar, por meio de uma educação viril e séria, a lenta estratificação de trezentos anos de cativeiro” (Joaquim Nabuco, O abolicionismo, citado por Evaldo Cabral de Melo no prefácio de Minha formação, Rio de Janeiro, Topbooks, 1999). O que restou das campanhas civilistas de Rui Barbosa?

Que ecos ecoam dos programas liberais de quase todas revoluções regionais das cinco primeiras décadas do século XIX, que a historiografia oficialista abastardou em “revoltas”? Mais remotamente, onde ficou a pregação de um Caneca?

Roberto Schwarz, em seus estudos sobre Machado de Assis, forneceu uma das chaves explicativas dessa ausência instigante, na sua conhecida fórmula das “idéas fora de lugar“, isto é, da incompatibilidade entre a base material da produção sustentada no escravismo e a superestrutura de ideias e representações políticas liberais. Mesmo que se concorde que essa talvez seja a explicação mais convincente, ela continua sendo insuficiente, desde que o escravismo também esteve na formação da sociedade norte-americana. Mais: praticamente todos os grandes próceres da jovem república do Norte eram na prática e na teoria decididos escravistas até Lincoln, ele mesmo defensor de uma solução de migração dos negros norte-americanos nada menos que para o Brasil: ah, como isso lembra a primeira etapa da Solução Final, advertiria Hannah Arendt em Eichman em Jerusalém.

Uma necessária complementação da tese de Schwarz, de resto já presente nos críticos contemporâneos mais acerbos da complacência liberal no próprio século XIX, acrescentaria que o catolicismo privatista, conservador e popular moldou, pelo avesso, uma antiética do trabalho na interpretação de Sérgio Buarque de Holanda, e o monopólio da educação pela Igreja como lugar da reprodução ideológica não o fez por menos: respirava-se um ambiente sufocado pelo ultramontanismo antiliberal por todos os poros; a resolução da “questão religiosa” com a completa separação entre o Estado e a Igreja, esperará pelos anos 70 no fim do século XIX, e será também já adiantado o século em que o primeiro — e por muito tempo o único — colégio estatal não-confessional é criado, com o justamente famoso Colégio D. Pedro II.

Importa não esquecer que o avassalador crescimento do plantio e exportação do café cria uma nova e poderosa classe social, que se converterá de dominante em dirigente no momento em que seus interesses passam a coincidir com o projeto autocrático do Império, mobilizado pela proeminência do Exército. Esse incesto fatal reanimará a força do escravismo como sustentação do sistema econômico e reprimirá pelas armas as dissidências e os ardores liberais ao longo e ao largo do território imperial. Talvez resida aí o principal ponto a esclarecer sobre o fracasso do liberalismo no Brasil.

O pensamento autoritário clássico: a prolongada hegemonia.

A rigor, as novas interpretações surgidas nos anos 1930 pelas mãos dos três demiurgos confrontam-se com a interpretação, até então hegemônica, produzida por um amplo leque de intelectuais e pensadores que passaram a ser chamados, depois da reviravolta moderna, justamente de autoritários clássicos. Oliveira Vianna e Alberto Torres provavelmente são os emblemas maiores desse amplo conjunto que dominou o debate político-intelectual praticamente durante meio século, entre o final do século XIX e a primeira metade do século XX; de maneira nenhuma isto significa que os anátemas lançados por esse amplo conjunto tenham desaparecido repentina e definitivamente: muito ao contrário, suas interpretações, suas estigmatizações das peculiariedades do que chamavam o “caráter nacional” reverberam diariamente. Tanto como no caso dos modernos, sua influência está longe de ter deixado o proscênio: repetidas vezes aparecem na forma de chavões, anedotas de fundo racista, julgamentos do caráter do povo, desde um “o povo não sabe votar” de Pelé até a estratégia de descompressão do general Geisel com a “distensão lenta, gradual e segura”, que era um programa político cujos fundamentos podem ser encontrados no pensamento autoritário clássico. Diga-se, desde logo, que os novos autoritários ou neo-autoritários nem de longe se igualam, em força interpretativa, aos seus maiores. Claramente lhes são inferiores.

Nessa interpretação, as raízes da fraqueza e corrupção da sociedade são explicadas racialmente: a característica mistura das “três raças tristes” — brancos degredados de Portugal, negros escravizados da África e índios “melancólicos” — forma um conjunto miscigenado incapacitado para a civilização. A antropologia física dominante no século XIX sustentará uma sociologia determinista dos comportamentos sociais imediatamente derivada dos atributos das raças, a qual, por sua vez, cede o passo à formulação de uma política conservadora, outra vez banhada nos atributos morais das raças “tristes”. Assim, a mistura dos biótipos originais formará um fenótipo novo, em que a contribuição do clima e do meio ambiente será decisiva para plasmar um conjunto amorfo, preguiçoso, indisciplinado, oscilando instavelmente entre o melancólico/eufórico. Sociologicamente, somente pode se esperar daí  a formação de clãs, fundados no latifúndio, que colocam a seu serviço justamente os atributos bárbaros sobretudo do índio e do negro; e o arremedo de sociedade se constituirá numa incoercível tendência centrífuga em todas as direções: numa permanente expansão operada pelas guerras clânicas, inviabilizando qualquer institucionalização. O remédio para uma sociedade que não é capaz de auto-instituir-se será um Estado forte, portador da capacidade organizatória: a política para os autoritários clássicos deverá ser decididamente intervencionista, antifederalista, antiindustrialista e antiliberal; numa palavra, positivista.

A literatura já ressaltou a tendência fortemente formalista dos autoritários clássicos, substituindo o real pela lei. Mas cabe ajuntar que os autoritários clássicos não eram “astronautas”, isto é, suas reflexões pautavam-se pela emergência de novas questões, inteiramente pertinentes: nelas se anuncia a inadequação do Estado brasileiro para enfrentar os problemas da nova complexidade capitalista. Um Estado anão regulando uma economia em notável expansão desde a segunda metade do século XIX, cuja mercadoria de exportação havia se alçado à condição de principal mercadoria do comércio mundial, o café. Um autor moderno como Celso Furtado retomará, em outra chave, com outros fundamentos teóricos e metodológicos, as questões e problemas que angustiaram os autoritários clássicos, com outra orientação: como conciliar planejamento e liberdade, o tema clássico de Mannheim: nada se parece mais com A organização nacional — o clássico de Alberto Torres que desenha, até o detalhe, a nova organização do Estado, introduzindo um Poder Coordenador — que os escritos de Furtado sobre planejamento, com a diferença decisiva do compromisso com a liberdade já anotada.

O pensamento autoritário é o resultado de um forte intercâmbio intelectual-ideológico entre o Exército positivista da geração de Benjamin Constant e a intelectualidade “fin de siècle”; o papel do Exército na formação ideológica não pode ser subestimado; em alguma medida, o Exército funcionou como centro formulador e irradiador do arremedo de teoria social sobre a nação. A teoria sobre a formação das ciências sociais no Brasil ainda não deu conta, cabalmente, dessa questão. Há uma certa confusão entre os pleitos que os “tenentes” apresentavam como justificativa de suas sucessivas revoltas e o ideário liberal, como no caso da petição pelo sufrágio universal; examinados mais de perto, os pleitos do Exército seguiam, invariavelmente, o programa autoritário: constituíam-se quase sempre em playdoyer para um Estado forte e centralizador. Com o que, como Oliveira Vianna e Alberto Torres, apontavam para as insuficiências da formação estatal no Brasil, não há que negar. Além disso, o pensamento autoritário e o positivismo do Exército foram politicamente eficazes: muitas das instituições estatais de regulação dos conflitos seguem o programa centralizador e antidemocrático, e não custa lembrar que Oliveira Vianna, por exemplo, foi um dos principais redatores das leis do trabalho sob Vargas, e Francisco Campos o redator da tristemente famosa Constituição varguista de 1937, a Polaca. Assim, não se trata, apenas, de história das ideias, mas das idéas em ação. Durante muito tempo, uma fração decadente da velha classe média brasileira ameaçava os filhos rebeldes com a punição de entrar para o Exército ou a Marinha, esta conhecida pelos castigos medievais que aplicava aos insubordinados. O mesmo se aplicava às camadas mais pobres: a ameaça de correção implicava entrar para a escola de aprendizes marinheiros. Assim, as Forças Armadas ganhavam, nessa interpretação popular, o caráter de disciplinadoras para um povo considerado bruto e incivilizado.

A FLORAÇÃO DOS ANOS 1930

Gilberto Freyre: mel de engenho e denúncia radical

Banhada de mel de engenho da cabeça aos pés, o que surpreende na obra seminal de Freyre, Casa-grande & senzala, é a radicalidade de sua investigação sobre o escravismo. Radicalidade inventiva e original. Ela é adocicada: poderíamos imediatamente advertir para o nada escondido caráter de classe da radicalidade, que seria, assim, tão-somente um truque metodológico. Mas há, de fato, um compromisso teórico — que não nega o caráter de classe — entre o doce e o limão: se não houvesse a descrição minuciosa dos hábitos e costumes e, para além, uma idealização que beira a falsificação das relações sexuais entre senhores e escravos, talvez o alcance e o significado dessas relações em termos de sociabilidade tivessem sido obscurecidos: porque o que fica em Gilberto Freyre é a ouriversaria da sociabilidade, feita de muita opressão e muito dengo.

Fortemente impressionista, não no sentido de imprecisão mas no sentido de vários pontos de fuga ou de multiperspectivas, a obra de Freyre orbita em torno da centralidade do patriarcalismo na formação da sociedade brasileira: a economia é patriarcal, no velho sentido romano. A colônia é um empreendimento privado, menos que da Coroa portuguesa: mostra-se, assim, desde o princípio, o deslocamento das atenções do Estado — que era o centro da interpretação autoritária — para a sociedade, princípio, aliás, que é de todos os modernos. A noção de patriarcalismo talvez seja equívoca como explicação da sociedade abrangente; agora, sim, é possível dizer que, do ponto de vista das relações cotidianas, provavelmente ela é um truque metodológico para integrar o escravo doméstico na casa-grande. Mas sem dúvida é uma chave mestra para a compreensão das formas em que a sociedade se representa, se vê, identifica-se.

Por oposição às “raças tristes” do pensamento autoritário, Gilberto faz o elogio da miscigenação. É uma aposta radicalmente inovadora: o país, a formação nacional, pode dar certo porque a formação social é rica; suas raças constitutivas são ricas em cultura. Esse elogio é, também, a matriz legitimadora do futuro luso-tropicalismo do autor, em sua fase decadente e aduladora do salazarismo. Freyre pôs o acento na capacidade de experimentação do português, na sua experiência de multirracialidade, que chamaríamos hoje de multiculturalismo, na ausência de instituições feudais que facilitariam a vida na colônia, no caráter plástico e assimilador da herança ibérica. Longe estamos do quase permanente muro de lamentações da crítica institucionalista autoritária. O elogio da cultura do negro — na verdade, das várias culturas negras que para aqui vieram — não podia ser melhor: suas contribuições ao que já é consensual, em termos da língua, dos costumes, da cozinha Freyre mesmo esmerou-se em escrever receitas afro-brasileiras —, do imaginário brasileiro, da afetividade e da sensualidade não apenas como detalhes, enfeites. Quanto ao índio — de novo, em sua multiplicidade —, Freyre ressalta igualmente a contribuição linguística, a da alimentação — o milho é hoje o principal cereal em escala mundial — a cosmologia, que, fusionando-se com a contribuição negra, veio a dar num sincretismo ainda mais complexo, o patrimônio festeiro, e, sem que isso tenha sido uma elaboração indígena, seu decisivo aporte à criação da identidade nacional: na raiz de O Guarani há uma reinvenção do Brasil que marcará definitivamente nosso modo de nos ver. De ambas as “raças”, a capacidade de adaptação, ensinando os europeus a viverem nos trópicos, elaborando seu arremedo de medicina e de farmácia; em suma, o que hoje chamamos a elaboração social da biodiversidade, a sociodiversidade.

A revolução desse conservador mostra-se toda no desvendamento da brutalidade, da violência como sociabilidade e sua forma particular na colônia: o estupro como fundamento da ordem. É por isso que o sociólogo de Apipucos é tão moderno: hoje, depois da difusão da obra de Freud e sobretudo de sua influência sobre as ciências sociais, a ninguém é dado duvidar desse princípio fundador, representado pela violência e o estupro; é verdade que o marxismo sempre considerou a história como história da luta de classes, e a violência a parteira da história, mas os aspectos subjetivos da constituição da sociabilidade não eram muito ressaltados na tradição marxista. À época do surgimento de Casa-grande & senzala, essa relação não tinha a centralidade que tem hoje. Família e economia patriarcal são, assim, as pontas da mesma tragédia: reconhece-se por que o conceito de patriarcalismo é importante em Freyre. Ele permite integrar o escravo — sobretudo o escravo doméstico, que é o centro das reflexões gilbertianas sobre as relações de intimidade entre senhores e escravos — na família, que não é, evidentemente, a família nuclear moderna: é uma economia. Violência física, sexual, posse, brincadeiras, traspassamento do outro: eis a sociabilidade como moeda de troca do cotidiano. Quem não se reconhece nesse velho retrato de família?

Freyre é um autor tremendamente perigoso, porque sedutor: através de uma narrativa de grande beleza literária, ele conquista o leitor com sua plasticidade vernacular, seu coloquialismo; não há rompantes na escrita de Gilberto. Ele é lido como as histórias contadas pela preta velha aos meninos de engenho: histórias que falam das brincadeiras, da mula-sem-cabeça, dos jogos eróticos, das fantasias sexuais, de São Paulo de Luanda, da nostalgia da África, dos príncipes e reis que eles foram. Em meio à riqueza antropológica e sociológica, Gilberto contrabandeia o que serão a democracia racial e o luso-tropicalismo, a tendência a dourar os brasões de um processo social que ele mesmo descreveu nos termos mais desnudados. Por isso, ao contrário de seu inspirador mais imediato, de quem era um admirador incondicional, Joaquim Nabuco — a própria caracterização de uma sociabilidade “doce” é de Nabuco —, Gilberto nunca esteve próximo do liberalismo; ele não tem nenhum programa liberal, salvo nos breves anos em que colaborou para a Constituição de 1946.

O “homem cordial” na “raiz” do Brasil: Sérgio Buarque de Holanda

A escrita serena e clássica, provavelmente influenciada por sua formação de historiador, sem sociologuês e sem barroquismos compõe junto com Gilberto uma dupla cujo domínio da língua será inigualável nas ciências sociais brasileiras é o meio para a denúncia radical da cordialidade, espécie de mito fundador do Brasil.

Raízes do Brasil também poderia chamar-se “Antiética do trabalho e o espírito colonial”; ele se constrói no espelho do grande livro de Max Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo. Sérgio procede da mesma forma: história comparada da qual se extraem “tipos ideais”. Sua primeira grande contribuição às ciências sociais brasileiras é, pois, trazer a novidade weberiana: Weber havia morrido em 1920, e Sérgio publica seu livro já em 1936, depois do contato com os princípios teóricos-metodológicos de Weber na Berlim do entre-guerras: Antônio Cândido tem um delicioso texto justamente chamado “Sérgio em Berlim” sobre esse período.

Tal como Gilberto, Sérgio pesquisa a formação brasileira a partir da herança ibérica, que em Portugal apresenta semelhanças e dessemelhanças fortes com a Espanha. Deste ponto de vista, eles retomam a perspectiva dos autoritários clássicos, em que o iberismo é fortemente presente; mas o fazem em registros radicalmente diferentes: Gilberto elogia o que em Oliveira Vianna é trauma, e Sérgio critica o que neste último é herança positiva, a ausência da concepção de indíviduo. Neste sentido, diverge também do sociólogo de Apipucos: a plasticidade do português, que é positiva em Gilberto, em Sérgio é marca registrada do horror às normas do “homem cordial”.

Em capítulos curtos e incisivos — o leitor pede sempre mais — Sérgio Buarque constrói os tipos ideais em torno da antinomia entre trabalho e aventura, entre sistematização e talento: o semeador e o ladrilhador. A colônia é aventura, apesar de que seja duro o trabalho que aqui se realiza. Mais: o trabalhador é escravo, assim o valor atribuído ao trabalho é nada, e por essa via o trabalho como mérito — a combinação da ética protestante com o espírito do capitalismo — é desqualificado. Essa desqualificação opera, por outro lado, a preferência pelas honrarias, o êxito atribuído ao talento: todos nós esperamos, um dia, pelo “estalo de Vieira”, que tanto pode ser a descoberta de nossa bela voz como o belo corpo ou a Megassena. E sabemos, conforme o ditado popular, que trabalhar não faz ninguém rico.

Nada disso é genético, um atavismo especialmente ibérico e especificamente português: é uma formação, que na colônia adquire conotações ainda mais oportunísticas, reforçando e atualizando a herança ibérica: trabalho escravo infamante, intimidade forçada entre senhores e escravos — inclusive pela ausência de mulheres brancas —, delegação de poder da Coroa aos proprietários privados, “raiz” do patrimonialismo, da indiferenciação entre público e privado, na verdade ausência do público, menos que indiferenciação. A Inquisição reforçará a antiética do trabalho: o judaísmo, antes que intolerância religiosa, ou melhor, na forma da intolerância religiosa, é, a rigor, luta de classes: a pesquisa do Santo Ofício para identificar os praticantes do judaísmo começa pelas profissões e ocupações do suspeito. Essa ausência do público é a outra face, coetânea, da não-individuação, o que pesará fortemente na formação da sociedade. Uma religião mole (Gilberto), sem rigor teológico, que não produziu uma ética social, mas apenas uma moral da intimidade. Que há de catolicismo na vida pública brasileira ou que há de público no catolicismo?

A summa dessas determinações é o “homem cordial”, que pensa com o coração e não com a cabeça, que se orienta pelas afetividades e não pela razão. Horror às distâncias, violência na intimidade, atração e repulsão: o mais próximo, aquele a que se tem o maior afeto, é também o mais sujeito à violência da intimidade. Quem não reconhece, outra vez, esse velho retrato de família?

Como contraponto à ética protestante e ao espírito do capitalismo, poderia parecer que Sérgio apenas constrói, com outro instrumental teórico e metodológico, com outra concepção de pesquisa, a mesma perspectiva ibérica dos autoritários clássicos, e sua produção se inscreveria num certo idealismo que pensa o mundo anglo-saxão como modelo; o que se afastasse dele seria anacrônico. Sérgio certamente tem parentesco com os autoritários no sentido de abeberar-se das heranças, derivações e atualizações do iberismo na formação da sociedade brasileira, mas o faz com outro sentido: o faz para pôr em relevo o que era anacrônico não do ponto de vista das instituições — cujo estudo ninguém mais que ele valorizou —, mas no sentido da interrogação histórico-sociológica sobre a formação da sociabilidade do favor, das honrarias, da desqualificação do trabalho e da construção do “homem cordial”. É o processo metodológico da crítica para construir o sujeito moderno, capaz de escolhas e autonomia, ausente no iberismo. Talvez, de nossos grandes demiurgos, tenha sido o que mais se aproximou de um programa autenticamente liberal e democrático, tendo, já no fim da vida, doado sua enorme influência intelectual e respeitabilidade política para à formação e consolidação do Partido dos Trabalhadores. Sua medição dos graus de afastamento — como é típico em Weber — do tipo ideal do “homem cordial” em relação ao tipo racional se justifica, como em Joaquim Nabuco, pelo fato de os europeus fazerem aqui uma clonagem imperfeita do capitalismo, com todas as desvantagens: no novo mundo do dinheiro, da cobiça e do lucro, não dispor das instituições e da sociabilidade da mercadoria é uma desvantagem, que dá lugar ao arbítrio em todas as suas formas. Este é o cerne da crítica de Buarque de Holanda, assim como havia sido a idealização de Joaquim Nabuco. Sérgio, até pelo partido metodológico que assume, faz sociologia comparada, e, portanto, seu espelho é certamente o mundo anglo-saxão liberal.

“Um raio num dia de céu azul”: a originalidade marxista de Caio Prado Jr.

Bernardo Ricupero analisou em sua dissertação de mestrado o inesperado marxismo de Caio Prado Júnior, inesperado porque essa obra fundadora da vertente talvez mais rica da moderna historiografia brasileira ocorreu numa cultura sem qualquer acumulação anterior digna de nota na teoria marxista. O Partido Comunista é de 1922, mas não havia produzido, nesse campo, nada além de literatura panfletária, importante para a história das lutas políticas mas de gritante insuficiência teórica. Tampouco os movimentos sociais anteriores haviam acumulado uma elaboração mais consistente da história nacional, da história da luta de classes, apesar da riqueza das intervenções da nova classe, em formações anarco-sindicalistas, anarquistas, socialistas e posteriormente comunistas. É nesse preciso sentido que a obra de Caio Prado Júnior é um “raio num dia de céu azul”.

Não o é no sentido do aproveitamento da rica bibliografia histórica brasileira precedente, com figuras do porte de Capistrano de Abreu, Pandiá Calógeras, Taunay, Varnhagen, e mesmo Rocha Pombo e seu contemporâneo Roberto Simonsen, além, evidentemente, da escola histórica portuguesa. Caio realiza um brilhante aproveitamento dessa herança, redefinindo-a em mais de um sentido, e talvez no sentido principal que norteia a pesquisa histórica no marxismo, isto é, a de buscar nas formas da produção material a história da representação da sociedade. Isto certamente não estava ausente da pesquisa histórica anterior, mas a ênfase na centralidade da relação entre produção material e representação da história é peculiar ao marxismo.

O estudo da história colonial recebe um tournant decisivo com Caio: é o caráter geral da colônia o seu ponto forte. Nenhum parentesco com as definições do descobrimento como acaso, e da colônia como improviso. Seu caráter geral é definido pela contemporaneidade com o surgimento do capitalismo mercantil na Europa, portanto não nascemos atrasados. A colônia será de exploração — um conceito de Paul Leroy-Beaulieu, historiador do século XIX, presente, aliás, tanto na bibliografia de Caio Prado Jr. quanto na de Gilberto Freyre, outro elemento de unidade entre eles —, e não de pilhagem, como a ênfase no aproveitamento do pau-brasil sugeria; e essa característica fazia a novidade, era a novidade, inclusive em termos da experiência mundial. Por oposição, os EUA configuram, junto com o Canadá, Austrália e Nova Zelândia — e, durante um curto período, as Antilhas —, as típicas “colônias de povoamento”, que são, de início, um rotundo fracasso comercial. Celso Furtado e Fernando Novaes desdobrarão essa rica pista de Caio Prado Jr., explorando as consequências dos dois “modelos” de colonização para a estrutura de propriedade, estrutura social e estrutura política em cada um dos tipos de colônia.

Onde residia, pois, a especificidade da colônia? Na adoção do trabalho escravo, num antipodismo do que se passava no Velho Mundo: enquanto este expulsava o trabalho servil, aqui sua clonagem falsificava-se com a implantação do trabalho escravo. A colônia é mais complexa ainda, conforme a renovadora interpretação de Luiz Felipe de Alencastro (La Traité Négrière, tese de doutoramento), na mesma filière teórica de Caio Prado Jr. e Fernando Novaes, e atualizando-se no diálogo com uma rica pesquisa histórica sobre o tráfico negreiro: a colônia é parte de um quadrilátero formado pela Metrópole portuguesa/Praça de Amsterdã/Brasil Colônia e África Colônia, combinando-se o poder político, o financiamento, o local de produção e o local de reprodução. Um complexo, pois, mercantilista/ financeiro/produtivo/comercial. Contemporaneidade e defasagem, eis a fórmula de Prado Jr. Celso Furtado que aproveitará depois essa especificidade para, já noutro patamar histórico, cunhar o conceito do subdesenvolvimento. De fato, seu pressuposto mais geral, o da contemporaneidade-de-fasagem, já estava plenamente desenvolvido em Caio, o que não desqualifica o trabalho posterior de Furtado.

Estamos, pois, inscritos na história mundial, outra característica marcante na produção de Caio Prado Jr., esta seguramente derivada do marxismo, que pensa, sempre, uma história mundial, desde O manifesto do Partido Comunista, de Marx e Engels, devedores, por sua vez de Hegel e Kant. Essa inserção se sobrepõe às intrigas e mazelas da pequena vida paroquial, afastando-se, pois, de certa tradição historiográfica voyeurista menor.

O empreendimento colonial ultrapassa as capacidades da Coroa e de Portugal em todos os sentidos, ademais de que aquelas estavam todas concentradas na exploração da joia da Coroa, a Índia. A solução encontrada para manter a novel colônia sob controle foi a delegação de poder aos proprietários privados, operação que se poderia chamar hoje de brilhante demonstração de engenharia político-administrativa, mas que se revelaria de fundas consequências para o futuro. A Coroa detinha os poderes de concessão da terra, sem dúvida o meio de produção mais importante, de controle da força de trabalho, indígena no princípio e logo africana, de captação — mas não de cobrança — dos impostos e finalmente do “exclusivo colonial”, isto é, do monopólio das trocas comerciais entre a colônia e outros países.

Esta engenhosa fórmula, cujos fundamentos principais — com exceção da delegação de poder — aliás eram comuns a qualquer colonização moderna sob o impulso do mercantilismo, é a fonte primeva dos poderes locais no Brasil. Trata-se da soberania do privado, do particular mais rigorosamente, na ausência do público. Será uma espécie de privado sem Estado. A superposição ou a fusão dos poderes econômicos, sociais e políticos nas mesmas personae, é a origem do peculiar traço indistintivo entre público e privado no Brasil; está na fundação do futuro coronelismo e das oligarquias; é um dos fundamentos da sociabilidade do favor e da “cordialidade”, da ausência do metro individual. Privado sem Estado, trabalho escravo e monopólio da terra, eis a fórmula do futuro: patrimonialismo, ausência do indivíduo, desqualificação do trabalho e dificuldade radical da existência da cidadania. Em uma palavra, subdesenvolvimento não como elo da cadeia do desenvolvimento, mas como especificidade capitalista na sua periferia criada, o conceito que será mais explorado e desenvolvido pela Cepal e Celso Furtado.

Essa antecipação cria uma marca distintiva fundamental, que ao longo da história brasileira não fez senão atualizar-se. Dizendo de forma teórica, o que aqui se fundou era uma espécie de sociedade de produção de mercadorias sem mercadoria, para parafrasear, invertendo-o, o título do famoso livro de Piero Sraffa. Produção de mercadorias por meio de mercadorias. De fato, a principal produção da colônia destina-se à venda, sendo exportada: trata-se, pois, de produção de mercadorias; mas a força de trabalho é escrava, isto é, não é uma mercadoria no sentido de Marx. Aqui, trata-se de assimilar de Marx o que talvez seja essencial para completar o conceito de subdesenvolvimento, posto que é isto que é responsável pela não-existência do mercado interno, pela irrecorrível tendência a financiar-se externamente, pela exportação de um vultoso excedente não apenas pela mercadoria exportada mas pelo sistema de financiamento externo, do ponto de vista estritamente econômico: este se funda largamente numa acumulação primitiva que funde capital — financiamento externo — e coerção extra-econômica. As consequências sociais de uma estrutura fortemente polarizada entre senhores e escravos são bem conhecidas da literatura,  e  suas consequências civis e políticas carecem de ser exageradas.

O NOVO CAMPO UNIFICADO

A nova produção representada na obra dos três autores se oporá, decisiva e decididamente, à tradição conservadora, em termos teóricos e no terreno da pesquisa, sendo mais informada no campo das ciências sociais, distinguindo-se do pensamento autoritário clássico pela operação de depuração teórica, que se afasta de “leis” morais, e pouco normativa: Caio Prado Jr., atento à tradição das “leis” da história do marxismo, não tem receitas imediatas; aposta tudo na revolução, cuja oportunidade as contradições fabricarão. Gilberto, nas obras clássicas, é quase nada normativo, embora nostalgicamente voltado para o passado. Apenas em sua fase de já festejado sociólogo em todo o mundo, utiliza sua chave de interpretação da miscigenação para tentar passar uma “teoria” luso-tropicalista. Sérgio Buarque é o único que tem um claro programa que, à época da aparição de seu clássico livro, poderia ser classificado sem desdouro como um grande projeto liberal, revitalizando, valorizando a cidadania como fundamento da democracia. Antônio Cândido, no capítulo “A Visão Política de Sérgio Buarque de Holanda” do livro por ele organizado, aponta para o programa político de Sérgio no último capítulo de Raízes, interpretando-o como um projeto político democrático-popular.

O terreno de pesquisa situa-se em compreender a história social do país, em sentido amplo, incluindo, evidentemente, as dimensões econômicas: a pergunta que formulam diz respeito à sociedade e à sociabilidade fundada no complexo contemporâneo-defasado; suas pesquisas não gravitam em torno do Estado, particularmente em Gilberto Freyre. Como já se ressaltou, sem desfazer as diferenças teórico-metodológicas entre os três, que desembocam, necessariamente, em interpretações diversas, é possível observar a unificação de um campo de reflexões sobre a formação da sociedade que emana do diálogo entre as três grandes contribuições. Isto certamente não teria sido possível sem a origem teórica diversa de cada um deles.

O “homem cordial” de Sérgio Buarque de Holanda pode ser entendido no quadro da família patriarcal de Gilberto Freyre, do amolengamento gilbertiano, e vice-versa. A economia patriarcal de Gilberto e, até certo ponto, o patrimonialismo de Sérgio Buarque de Holanda podem ter como seu traço estrutural mais fundo a economia privada com delegação de poder da Coroa de Caio Prado júnior. A antiética do trabalho assinalada por Sérgio Buarque é a aristocracia de Gilberto Freyre; em ambos, o que forma esse conceito é o horror e o desprezo pelo trabalho manual, que justamente Caio Prado Júnior assinalará como traço distintivo da defasagem escrava, a “contemporaneidade do não-coetâneo” de Ignácio Rangel. Ser proprietário não era uma profissão, mas uma condição. A violência privada é, em todos os autores, a redução do público ao privado, ou antes, a inexistência do público. Um atrofiamento, um não-desenvolvimento do espaço público, um confinamento ao espaço íntimo, que nem sequer é privado, no sentido weberiano-habermasiano. Uma gravura de Cícero Dias, pintor modernista pernambucano da geração de Gilberto, que ilustra as últimas edições de Casa-grande & senzala, mostra a capela privada como dependência interna da casa-grande, enquanto a igrejinha para uso nas festividades é erguida no próprio terreiro da propriedade, do engenho. A religião, portanto, era do registro da intimidade. A base geral era o escravismo e suas formas assemelhadas, denunciado com vigor por todos os autores, o escravismo que produz a posse e o devassamento do corpo, a não-alteridade; que produz o não-outro, larga e longa base de sociabilidade que continuará a reger as relações no Brasil no século XXI.

Certamente a virada metodológica e teórica empreendida pelos Três Grandes será decisiva para as ciências sociais brasileiras, mas, com o cuidado de não incorrer numa leitura descontextualizada das três grandes obras, é possível dizer que o deslocamento do eixo do Estado para a sociedade ainda não é completo, e requererá a produção de seus pósteros e discípulos. O partido metodológico e teórico assumido por cada um deles tem algo a ver com o inacabamento do tema da sociedade: os dominados, em geral, estão representados pelos dominantes, o que não deixa de ser teoricamente relevante: a ideologia faz essa subsunção. Mas, mesmo assim, os dominados permanecem “abstratos”, até certo ponto, nas obras maiores: eles não são propriamente sujeitos da ação, sujeitos da história, a não ser como pressuposto, em Caio Prado, por exemplo. Em Sérgio, eles compõem os tipos ideais, mas é muito evidente que os traços fundamentais dos tipos-ideais são os das classes dominantes. Será apenas com Antônio Cândido, em Os parceiros do Rio Bonito, que os dominados aparecerão como sujeitos da história, apesar de que se trata, no caso, de uma regressão de formas anteriores. De qualquer forma, parafraseando a frase pré-fabricada de Neil Armstrong ao pisar na lua, trata-se de um pequeno desvio no passo de gigante que a ciência social brasileira lograva com os três grandes autores e suas obras seminais.

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