2009

Homo Civilis (ou Homo sapiens 2.0)

por Luiz Alberto Oliveira

Resumo

A Teoria da Evolução por seleção natural de Charles Darwin foi um dos mais poderosos propulsores do vasto processo de excentrização da Vida e do Homem sucedido nos últimos 150 anos ao vincular o desenvolvimento dos seres vivos a uma dupla contingência: por um lado, a deriva microscópica dos caracteres genéticos responsáveis pela hereditariedade; por outro, a ação, como causas livres, de grandes fatores ambientais que implementaram a seleção por adaptação e assim dirigiram a variação das espécies. Esse é o âmbito bio-ecológico no qual as origens de nossa própria espécie, Homo sapiens, podem ser adequadamente situadas. É possível argumentar, porém, que desde o surgimento da Civilização Técnica (associada a aparição concomitante da Cidade, da Escrita e da Matemática) há cerca de 12 mil anos foram criadas as possibilidades para uma artificialidade crescente e cada vez mais ampla dos domínios da atividade humana, a partir da qual teria ocorrido a conversão da ambiência técnica mais e mais generalizada em um contexto para essa própria atividade. A evolução darwiniana pura estaria sendo suplantada em ambas as dimensões fundamentais da contingência, quer em função da amplitude planetarizada dos empreendimentos econômicos, comparável às das grandes causas ambientais, quer devido à proliferação e difusão de extensões técnicas de movimento, sensibilidade e cognição que reconfiguram as potencialidades de comportamento dos seres humanos.

Através de processos em escala global como a urbanização e tecnologias profundamente revolucionárias como manipulação antrópica do design básico de células, órgãos e organismos, estaria em curso uma mutação sui generis: embora a morfologia orgânica do Homo sapiens seja a mesma há 120 mil anos, os humanos contemporâneos estariam experimentando uma autêntica deriva cognitiva, incomensurável aos padrões anteriores, rumo a uma versão 2.0 da espécie: o Homo civilis. Uma especiação não-orgânica, correspondente a uma evolução da Evolução, permitindo antever o aparecimento – ou antes – a produção de um novo estado de Vida. Torna-se assim indispensável debater os aspectos éticos, políticos e históricos dessa transição para uma condição neo-humana.


Um bom ponto de partida é mais uma vez (tal como em Mutações: novas configurações do mundo) o tremendo enunciado de Paul Valéry: “Pode-se dizer que tudo o que sabemos, isto é, tudo o que podemos, acabou por se opor a tudo o que somos.” Anteriormente, a poderosa síntese sobre o estado de nossa civilização contida nessa sentença nos conduziu à hipótese do esgotamento, na atualidade, do valor conceitual da noção de crise, e, por conseguinte à exploração das possibilidades de investigação abertas pela importação, do campo da biologia evolutiva contemporânea, da figura da mutação.

Com efeito, “crise” diz sempre respeito a uma fratura que surge em um fundamento. Tratou-se sempre de reformar o fundamento, restaurando-o, para assim fazer cessar a crise. Mas teríamos hoje alcançado uma tal variedade de crises, uma tal amplitude de fraturas, uma tal continuidade de fissuras, que tudo se daria como se a lacuna recobrisse e assimilasse o próprio fundamento. Não se teria mais um episódio, circunscrito e localizado, de falha, mas um espasmo incessante e generalizado, uma onipresença do estado de crise, correspondendo a um fundamento em contínua efervescência. Não há mais reforma viável ou restauração possível. O conceito de “mutação” viria exatamente substituir a fatigada figura de crise como um operador ideativo apto a dar conta do movimento de deriva, de ramificação, de pluralização, em suma, de fundação de um novo estado de ser, pelo qual nossa civilização estaria passando. O esforço em busca de um diagnóstico, mesmo que apenas preliminar, do deslocamento tectônico de imagens do mundo envolvido na passagem do par obsoleto Crise/Fundamento para a nova díade Mutação/Fundação foi o cerne de nosso primeiro ciclo.

Mas logo chegamos a um segundo estágio do problema: se encontramos, no núcleo mesmo da civilização, como seu agente primordial e indiscutível, o Homem – ou seja, se o Homem é o fundamento da ação histórica -, então a abertura de mundo implícita no processo contemporâneo de mutação implica uma ultrapassagem, uma superação disso que até aqui reconhecíamos como “humano”. Todo tipo de inquietação e perplexidade atual parece precipitar-se para uma mesma pergunta decisiva: O que é o Homem? Foi então necessário tomar, como diretriz temática de um segundo momento de reflexão sobre Mutações, a consideração daquilo que nos faz humanos, ou seja, a condição humana ela própria. Uma vinculação entre a sentença de Valéry e o clássico de Hannah Arendt, A condição humana, talvez seja conveniente para principiar essa investigação.

Nessa obra capital, Hannah Arendt procede ao estudo do que é específico e genérico da condição humana a partir do exame de três domínios fundamentais de nossas atividades. O primeiro, que realizamos enquanto entidades biológicas (e compartilhamos portanto com os outros seres vivos), diz respeito aos esforços contínuos requeridos para prover nosso sustento, isto é, a satisfação de nossas necessidades orgânicas básicas. Arendt denomina labor essas práticas indispensáveis à manutenção do metabolismo dos indivíduos vivos, requisitos para a continuidade da vida e para a possibilidade de reprodução biológica, e assim identifica essa primeira dimensão da atividade humana à de um animal laborans, o animal laborioso. Em segundo lugar, considera os efeitos da capacidade produtiva dos homens ao moldar e modificar os entes naturais à sua volta, ou seja, como o trabalho converte a Natureza em um habitat humano, pela geração de artefatos e a acumulação de modos de agir que constituem, em seu conjunto, a Cultura. Contínua e cumulativamente transformamos nosso entorno para humanizá-lo, para preenchê-lo de objetos aos quais infundimos um desenho ou forma de tal maneira que eles passem a portar uma certa finalidade, se tornem utensílios. Essas finalidades são legíveis para nós, lemos na forma dos artefatos que isso serve para cortar, aquilo para raspar, aquele outro para coser. As coisas trabalhadas, enriquecidas de cognição exportada, dialogam conosco; o mundo, assim artificializado, se humaniza. Arendt associa esse segundo domínio, o das ações técnicas e produtivas, à imagem de um Homo faber. O Homem Produtor.

Finalmente, o terceiro plano de condições, que Arendt chama de ação, concerne às inter-relações que ocorrem diretamente entre os homens, sem a mediação de matérias ou coisas, ou seja, as trocas simbólicas, afetivas, cognitivas, pelas quais somos especificamente humanos. Sua marca essencial é a pluralidade, quer dizer, o reconhecimento de que na Terra existem homens, e não Homem. Não somos uma humanidade, somos muitos homens. Essa constatação ao mesmo tempo forma uma condição básica da existência humana e tem por consequência a necessidade de nos associarmos, que é a vida política. Para Arendt, a vida política é condição essencial para a realização humana, no mesmo pé que a criatividade técnica e a manutenção orgânica, e a ela se refere apropriando-se de uma designação de Santo Agostinho para os afazeres públicos e seculares envolvidos no exercício da cidadania: Vita Activa. A liberdade, desse modo, é resultado da autorrevelação humana numa comunidade política em que vigora um espaço público, e é concebida como a participação política dos indivíduos, por meio de palavras e ações, que gera e requer a manutenção coletiva desse espaço.

Em resumo, a dimensão do Labor mostra as necessidades congênitas do corpo, a do Trabalho indica a potência transformadora da criatividade técnica, a da Ação designa no Homem o que lhe é característico, e coletivamente sustentam as capacidades mais elevadas do humano, que Arendt designa por pensar. Ou seja, o labor dá conta das nossas necessidades, no trabalho mostramos nossa criatividade, na ação política, na vida coletiva, o homem mostra-se ele mesmo. Ora, Arendt escreveu A condição humana em meados do século XX, numa ocasião de entusiasmo e desespero simultâneos, em virtude da recente ocorrência de duas realizações técnicas de importância histórica indiscutível: o lançamento do Sputnik (um pequeno corpo terrestre levado ao sistema solar) e a detonação da bomba de hidrogênio (um pequeno sol trazido ao corpo da Terra). A imensa abertura de caminhos inaugurada pela conquista do espaço sideral, coincidindo e contrastando com o horizonte abismal implicado pela proliferação das armas termonucleares, conduziu Arendt a uma conclusão cortante: vigoraria em nossa era um divórcio crescente e acelerado entre conhecimento (especialmente o conhecimento de como fazer, ou know-how) pensamento. Instala-se na atualidade uma cesura, uma fissura, entre o conhecer e o pensar: é evidente a convergência de ponto de vista com Valéry. Podemos então avaliar a tese de que haveria, na particular associação entre saber e poder que assinala o estágio presente da civilização, uma virtual transmutação qualitativa do Humano, quer na escala do singular, quer na do coletivo. Em outras palavras, em virtude da preeminência da Tecnociência contemporânea; o complexo Labor/ Trabalho/Ação, condição para o Pensar, teria sido abalado. Nesse caso, se estaria configurando, em nossos dias, um quadro de evolução civilizacional correspondente a uma transição para uma nova condição humana ou, o que é o mesmo, para uma condição neo-Humana. Podemos, para estabelecer os marcos preliminares para a exploração dessa tese, lançar mão da figura que nos legou Giovanni Boccaccio, e que dá o título dessa contribuição.

Em sua Genealogia deorum gentilicum [Genealogia dos deuses dos gentios], Boccaccio compila e comenta uma série de elementos da tradição religiosa que hoje chamamos de mitologia greco-romana. Boa parte da obra é dedicada a justificar, com todas as precauções e cautelas, por que razões conviria que tais noções pagãs fossem apresentadas e estudadas no seio de uma sociedade eminentemente cristã como a da sua Itália do século XIV. O habilidoso argumento de que faz uso parte de três esboços ou figuras de Homo, sendo o termo latino empregado aqui tão-somente para designar o tipo de seres que os humanos são (e não o gênero ao qual pertencem as espécies biológicas “Homem”, como fazemos atualmente). Ele então nos diz que há em primeiro lugar o Homo naturalis, o homem “em estado de natureza”, ao qual ainda não foi conferida a dádiva da civilização e da cultura. Ou seja, alguém a quem ainda não se aplicam os princípios legais, as regras sociais, as formas da cultura, em suma, os meios e modos da vida civilizada. Podemos imaginar esse homem em estado de natureza como quase bruto ou, pelo menos, próximo da barbárie. Em seguida, Boccaccio oferece a imagem do Homo civilis, exatamente aquele que foi civilizado, deixou para trás o estado animalesco ou barbaresco primário, e assim vive e pratica um mundo jurídico, regulado, ordenado, o mundo que chamamos de civilização. Quem habita a Cidade (recordando que Civilis quer originalmente designar “cidadão”) e pratica suas normas não pertence mais às selvas, não mais é selvagem. Assim, a Genealogia nos descreve a passagem da condição do Animal laborans para a do Homo faber, nos termos de Hannah Arendt. Mas, para que essa passagem do bárbaro para o civilizado possa ocorrer, é necessária a intervenção de um terceiro tipo de humanidade, o Homo doctus, o Homem Douto ou Homem do Conhecimento, que pode propiciar e conduzir essa passagem da selvageria para a cultura. Naturalmente, Boccaccio trata de frisar que é na Igreja que se encontram os Homo doctus de sua época.

Mas na exposição da mitologia herdada da Antiguidade, o exemplo de Homo doctus apresentado é o de Prometeu, o titã que lega aos homens a dádiva do fogo. Nessa ocasião, os homens se encontravam em estado bestial, vivendo ao relento e comendo carne crua. Contrariando um édito de Zeus, o soberano do Olimpo, Prometeu furta uma fagulha do palácio divino e oferece a chama contrabandeada aos homens; assim munidos, eles dominam os animais, desenvolvem a metalurgia, a cerâmica e a agricultura, e estabelecem as bases do viver civilizado. Em função dessa afronta ao poder supremo, Prometeu foi acorrentado a um penhasco no cume do Cáucaso e condenado a ter, por toda a eternidade, seu fígado bicado por um abutre. Uma página inesquecível de Ésquilo nos mostra o titã acorrentado aos rochedos, esperando a manhã em que retornaria, como em todos os dias, o abutre sanguinolento, quando surge Hermes, o mensageiro dos deuses, e lhe acena com o perdão; basta que se incline perante o Rei do Olimpo, proclame seu poderio invencível e perpétuo, e será poupado do tormento interminável. E incrivelmente, embora sofrendo já mais uma vez os golpes da ave nefasta, Prometeu se recusa a submeter-se; em nome da autonomia de sua convicção, não cede um milímetro ao comando arbitrário de Zeus, mesmo perante a fatalidade de uma existência de suplícios sem-fim (um mito tardio fará de Hércules, filho de Zeus, o libertador do titã injustiçado). O dom do fogo mudou a relação entre os homens e a natureza; a liberdade, que Ésquilo exalta, a relação dos homens consigo mesmos. Prometeu é Douto tanto pela técnica que redime a selvageria bruta quanto pelo exemplo libertário que, norteando a Ação pública (Arendt), possibilitará a Polis.

Todavia, não seria talvez incorreto afirmar que, no presente período da civilização, o Fazedor e o Sabedor coincidiram; sob a égide da Tecnociência contemporânea, tornamo-nos nosso próprio Prometeu. Dito de outra maneira, nossa civilização alcançou um tal patamar de efetividade tecnocientífica e uma tal escala de atividade econômica que estamos deixando de possuir uma “essência” estável e bem determinada, quer enquanto espécie, quer enquanto sociedade. Com efeito, o atual predomínio do poder tecnocientífico faz a Cultura sobrepor-se à Natureza, em dois sentidos: dispomos agora da capacidade técnica de manipular todo tipo de objeto até mesmo lá no plano microscópico de sua composição elementar, seja ele um artefato ou um ser vivo, capacidade inédita que inclui, perturbadoramente, o poder de operarmos sobre nossa própria base orgânico-biológica; por outro lado, a rede crescente de relações produtivas que lançamos sobre o ambiente natural nos proporcionou tal sucesso evolutivo que a Humanidade hoje se tornou, paradoxalmente, um fator crucial para o futuro desse mesmo ambiente do qual ela emergiu. Esse predomínio sem precedentes da Cultura sobre a Natureza, de Civilis sobre Homo, anunciaria ou anteciparia uma passagem, uma descontinuidade civilizacional: estaríamos a caminho de vivenciar uma mutação, autoinduzida ou autoproduzida, rumo a um novo estágio da vida inteligente (e, portanto da Vida) sobre a Terra. Uma especiação cognitiva, não orgânica, correspondente ao deslocamento para uma condição neo-humana. Como os humanos, experimentaremos, em todas as dimensões de nosso ser, esse estado mutacional de fundação de novas condições, esse parto, a partir de nós próprios, de algo que já não seremos?
Procuremos esclarecer os termos do problema. Desde há 120 mil anos, quando surgimos como Homo .sapiens no noroeste da África, uma espécie do gênero Homo diferenciada com respeito ao Homo erectus e ao Homo neanderthalensis, que então nos eram contemporâneos, nosso – digamos assim – hardware biológico é essencialmente o mesmo. Não houve nenhuma mudança significativa no modo pelo qual nossos organismos se estruturam, ou seja, nossa constituição genética é praticamente idêntica à de nossos ancestrais mais remotos. Mas é possível identificar ao longo da história de nossa espécie, até os desenvolvimentos ultra-acelerados da civilização contemporânea, a ocorrência de ocasiões ricas em singularidades em que parecem ter sucedido avanços cognitivos muito rápidos, como se uma constelação de potências de transformação latentes encontrasse a oportunidade de se expressar; como se – digamos assim – novos softwares fossem experimentados.
Steven Mithen observa que, durante cerca de metade dos 120 mil anos em que existimos, o repertório de habilidades e técnicas que nossos ancestrais possuíam desde o surgimento da nossa espécie variou muito pouco. Distribuídos em pequenos grupos de caçadores-coletores, seus modos de agir típicos permaneceram basicamente inalterados durante todo esse período, como assinalado pela estabilidade do nível de desenvolvimento de seus artefatos e utensílios. Contudo, um dramático evento de mudança climática – possivelmente associado à maior explosão vulcânica dos últimos milhões de anos, na ilha de Toba, na atual Indonésia – sucedeu por volta de setenta mil anos atrás, tendo como consequência a drástica redução do número de nossos ancestrais. Todos os humanos de hoje somos descendentes dos poucos milhares – ou apenas mesmo centenas – de sobreviventes desse cataclismo (e por isso, por sermos tão próximos, tão parecidos geneticamente uns com os outros, não há raças humanas).

Nenhuma asserção definitiva pode ser oferecida acerca dos fatos e fatores envolvidos nesse evento de quase extinção, mas parece claro que de algum modo nesse momento se iniciou a exploração de uma potencialidade, ou seja, a intensificação do emprego de uma capacidade até então subutilizada, uma habilidade já presente, mas que não teria, em todo o período precedente, alcançado um certo limiar crítico de afetividade a partir do qual seu próprio operador, o próprio homem, se automodificasse. Essa capacidade seria a linguagem, ou, mais exatamente, o poder de simbolizar. É como se nossos ancestrais tivessem até então feito um uso circunscrito da linguagem, como um recurso acessório com respeito a outras práticas cognitivas já bem estabelecidas – como o registro de características dos seres naturais e de regularidades ambientais, o aprendizado da produção e o manejo de artefatos técnicos, a formação e implementação de laços sociais.

Contudo, a partir das pressões brutais impostas pelas mudanças climáticas, eles teriam sido impelidos ou forçados a fazer um uso exponencialmente crescente da linguagem, nomeando cada vez mais coisas, isto é, sobrepondo mais e mais coisas um envoltório de vocalizações significativas, palavras, palavras cada vez mais numerosas, até que um certo patamar quantitativo foi ultrapassado e as palavras se tornaram atratoras, elas próprias, de ainda mais palavras. Nessa ocasião decisiva, segundo Robert Logan, teríamos passado da designação das coisas percebidas ou recordadas, por meio da multiplicação dos nomes aderidos a elas – que podemos chamar de nomes – coisas, ou perceptos -, à proliferação de nomes de nomes, ou conceptos.

O uso de conceptos – palavras que representam ou assimilam blocos de palavras – permitirá que as imagens ou ideias que acumulamos sobre o mundo, as pessoas e nós mesmos se descolem de um plano estritamente presencial e venham a adquirir uma espécie de autonomia própria. Consideremos, por exemplo, o vasto feixe de imagens e sen­ sações subsumido pelo simples termo “água”. Nenhum de nós jamais viu, tocou ou de qualquer outra forma encontrou-se com “água”. Tudo o que todos nós vimos, tocamos ou de qualquer outra forma encontramos foi água de chuva, ou água do mar, ou do rio, ou do lago, ou da bica, ou da lágrima. Na verdade, o que de fato presenciamos é sempre essa gota dessa chuva, ou aquela onda daquela praia, as lágrimas de riso de Alice ontem, o suor escorrendo do rosto de Bob amanhã. Jamais “água”. No entanto, a partir dessa enorme variedade de experiências, cada uma com sua designação própria, nos tornamos capazes de cindir a unidade originária entre palavra e coisa, de quebrar o vínculo entre o presenciado e o denominado implícito no próprio ato de nomear, e passamos a manipular esse conceito, esse puro nome, que agora se expande e se imiscui em todas as presenças singulares de “água”, em tudo que é úmido, molhado, aquoso, aquático, liquefeito, desseden­ tante… Um primeiro plano de operação simbolizante, envolvendo um repertório cada vez mais vasto de perceptos obtidos pela simples nomeação disso que é visto ou é recordado, em virtude da função simultaneamente dissociadora e reagregadora dos conceptos, passa a ser suplementado e superado por um segundo plano, povoado por palavras que agora remetem a outras palavras.

Com a fabricação de implementas de pedra, há dois milhões de anos, e sobretudo com o domínio do fogo, há um milhão de anos, os ancestrais do Homo sapiens se tornaram animais técnicos; com o uso intensificado da linguagem, a partir desse “Big Bang linguístico” disparado há cerca de setenta mil anos, os membros de nossa espécie se tornaram animais simbolizadores. Desde então, só nos humanizamos completamente pela participação ativa em um contexto técnico e linguístico cada vez mais enriquecido a que chamamos Cultura. À medida que se intensificou o intercâmbio cognitivo mediado pela palavra, sucedeu uma potencialização mútua dos usos do símbolo e da técnica: há milhões de anos, quatro ou cinco golpes eram suficientes para produzir uma borda que cortasse ou uma superfície que raspasse numa lasca de pedra. Em contraste, uma ponta de flecha de obsidiana do Paleolítico Superior, de 12 mil anos atrás, requeria por volta de uma centena de gestos para fazer surgir seu delicado e eficiente formato de folha de salgueiro. A destreza indispensável para se levar a cabo uma sequência precisamente planejada e minuciosamente executada de cem gestos não pode ser adquirida por simples imitação direta. São necessárias fórmulas de memorização que sintetizem e coordenem as etapas pelas quais esse processo altamente sofisticado vai ser realizado. A linguagem fomenta a proliferação de artefatos; por sua vez, a crescente artificialização do habitat humano estimula a circulação linguística. Quanto mais coisas, mais nomes, quanto mais nomes, mais coisas.

Dessa maneira, em um fato sem precedente com respeito a qualquer outro organismo, passamos a continuadamente suplementar o ambiente natural que nos abriga e sustenta com diagramas surgidos na memória e na imaginação, ou seja, com ideias, que, pela ação técnica, são exportadas para o mundo, infundidas em matérias organizadas sob a forma de artefatos de todos os tipos. Essa capacidade da linguagem simbólica de mediar e amplificar a relação técnica com o mundo material também incidiria sobre outros domínios de habilidade cognitiva e produtiva de nossos antepassados, que muito depois seriam chamadas de Arte e Ciência. Esse duplo poder da simbolização, abrangendo tanto as sínteses artificiais entre cognição e materialidade quanto a atração centrípeta que os símbolos exercem deslinearrnente uns sobre os outros, foi o fator decisivo pelo qual se tornou possível que a civilização viesse a surgir.

Efetivamente, a civilização principia quando os afazeres humanos se descolam do plano imediato da subsistência e da necessidade e começam a ser estruturados globalmente, segundo um padrão de composição coletiva dos fluxos de matéria, atividade e conhecimento que circulam no território simultaneamente natural e artificial que doravante constituirá o habitat humano. Esse amálgama de novas configurações espaciais, novas cadências temporais e novos diagramas processuais se corporificará na mais decisiva invenção da história da humanidade: a Cidade. Manuel de Landa sugere concebermos a Cidade como um envoltório ou arcabouço exteriorizado pelo qual formatamos nosso entorno vital, ou seja, uma matéria lenta e durável que se estratificará sob a forma de um padrão urbano, um exoesqueleto mineralizado que erigimos a nossa volta para canalizar e coordenar os fluxos desse “organismo” ampliado de que participamos. Cômodos, casas, ruas, muros, canais, será no âmbito dessa constelação de condutos artificiais que nossas trocas produtivas e simbólicas passarão a se realizar. Fragmentando e individualizando os esforços de aquisição e elaboração de recursos antes dispersos homogeneamente no grupo de caçadores-coletores, a urbanização os realoca numa cadeia produtiva imensamente diversificada e irresistivelmente expansiva.
Observemos que o período de dez milênios decorrido até que o conjunto de capacidades que chamamos de civilização alcançasse a presente escala global corresponde a somente quatrocentas gerações humanas, isto é, transições do ciclo reprodutivo de mãe para filha. Muito pouco tempo! De um contingente de alguns milhões, nessa ocasião, saltamos para os seis bilhões de almas de hoje – um tipo de crescimento comparável, no âmbito dos organismos vivos, ao de tumores altamente invasivos. Certamente é muito significativo que nossa espécie, num prazo tão curto, tenha logrado multiplicar-se em tal medida. Jared Díarnond atribuí esse dinamismo à obtenção de um “pacote” energético automantenedor devido à domesticação de certo número de animais e de gramíneas: carneiros e ovelhas alimentam-se de cevada, centeio e trigo e fertilizam o solo para o plantio da safra seguinte. Esse pacote autônomo espraiou-se ao longo de uma faixa de clima temperado, paralela ao equador, ocupou progressivamente as várzeas do Nilo e dos grandes rios eurasianos – Eufrates, Danúbio, Indo, Ganges, Yang-Tsé -, e acabou assim abrangendo do Mediterrâneo ao Mar da China.
A alta taxa de “contágio” do complexo de dispositivos encarnado na Cidade, responsável pela eficiência de seu processo acelerado de expansão, parece ter sido suplementada por um câmbio de marcha nas formas de produção e distribuição de conhecimento. Depois de longas eras de intercâmbios locais e transferências geracionais – ou seja, artefatos, bens, narrativas são trocados entre vizinhos próximos e certa herança de ideias, procedimentos, costumes etc. é legada para a geração seguinte -, a partir do surgimento da Cidade, a comunicação de conhecimentos adquiriu um caráter que pode ser chamado de geográfico-plural. Práticas materiais e mentais cada vez mais poderosas se acumulam sem cessar: agropecuária, metalurgia, escrita, mate­ mática, astronomia. Se nos primeiros cinquenta mil anos ·de nossa história basicamente repetimos os mesmos gestos, nos últimos dez mil nos engajamos em uma espiral autoalimentada de inovações cada vez mais surpreendente e vertiginosa que veio a alcançar uma escala planetária. O surgimento desse regime de complexificação crescente pode ser concebido em termos de uma transformação essencialmente deslinear, um redobramento efetivo, operando sobre o contínuum dos sistemas naturais: uma primeira dimensão, orgânica, mamífera, primata, corresponde ao suporte biológico a partir do qual exercemos nosso poder de (auto)transformação: córtex complexo, laringe ressonante, língua ágil, polegar opositor, passo comprido. Mas sobre esse substrato orgânico se estabeleceu uma outra dimensão, simbólico-artificial, multiplicando e potencializando os recursos e meios desse hardware biológico, um campo de virtualidades cujas vicissitudes, variâncias, expansões e turbulências compõem a própria história do processo civilizante. Desde então deixamos de ser apenas entes nascidos biologicamente como um Homo sapiens e nos convertemos também em agentes de uma forma especial de cognoscência coletiva; nos tornamos, de fato, civilis.
Trataria assim de avaliarmos se estaria ocorrendo, no âmbito da cultura hipertecnificada, planetarizada e profundamente desigual que hoje praticamos, um estado de deriva ou deslizamento disso que é a condição humana mesma, ou seja, se labor, trabalho, ação, pensar, todos os elementos constitutivos do Homem da Civilização e:stariam submetidos a uma transição profunda e abrangente, sucedendo tanto na escala individual quanto na coletiva, de porte similar ao da emergência da Cidade; uma mutação culturalmente impelida que conformaria a emergência de condições neocivilizatórias, equivalentes ao surgimento de uma versão renovada ou reformatada da espécie: um Homo sapiens 2.0.
Para tentar subsidiar essa tese desafiadora, devemos inicialmente dar sentido à noção de uma mutação não orgânica, transladada do âmbito da biologia para o da análise civilizacional. A Teoria da Evolução por Seleção Natural de Charles Darwin foi um dos mais poderosos propulsores do vasto processo de excentrização da Vida e do Homem sucedido nos últimos 150 anos, ao vincular o desenvolvimento dos seres vivos a uma dupla contingência: por um lado, a deriva microscópica dos caracteres genéticos responsáveis pela hereditariedade; por outro, a ação, como causas livres, de grandes fatores ambientais que implementaram a seleção por adaptação e assim dirigiram a variação das espécies. Esse é o âmbito bioecológico no qual as origens de nossa própria espécie, Homo .sapiens, podem ser adequadamente situadas. Ora, se uma espécie adquire a capacidade de manipular as cadeias moleculares que constituem os genomas dos organismos, surge a possibilidade – ou tendência – de substituir-se a seleção natural como o operador da evolução biológica das espécies; uma neofinalidade tecnicamente administrada almeja deslocar a casualidade darwiniana. Ora, se o conjunto das atividades produtivas dessa espécie alcança uma escala planetária, a economia passa a ter por horizonte a ecologia, a produção torna-se contexto para a própria produção; o mercado tem como limite a continuidade dele mesmo. Duplo dobramento, de que decorre uma dupla indeterminação: a mi­ croinerência da técnica visando a assegurar a realização da finalidade, a macroabrangência do capital visando a assegurar a conversão do horizonte em ambiente. Em ambos os casos, por ambas as vias, passamos a suplementar a Seleção Natural darwiniana na função de desenhar as formas das espécies vivas. Apresentam-se assim as condições para um desenvolvimento rigorosamente imprevisível; impelidos pelo poder e pelo alcance do que sabemos, já não somos os mesmos; ultra­ civilizados, entramos em mutação.
É possível adotar o crescimento da conectividade, a multiplicação dos meios de se colocar pessoas em contato, como índice descritivo dos efeitos do desenvolvimento da Civilização. O que se afere é uma curva fortemente ascendente, indicando uma aceleração progressiva do poder de conectar, tanto geográfica ou espacialmente quanto geracional ou temporalmente, desde o surgimento da Cidade. A escrita, técnica de registro que a Cidade requer e fomenta, permite o traslado de registros

de conhecimento de um lugar a outro e de uma geração a outra, suple­ mentando a memória oral. Lembremos os exemplos de praticantes de enorme mestria da arte de recordar discursos que nos foram legados por ninguém menos que Platão. Nos Díálogos, sempre encontramos alguém que reproduz integralmente, para um interlocutor, um debate filosófico travado por terceiros: o jovem Teeteto conversou com Sócrates; eis os argumentos que compareceram nessa conversa. A testemunha que reporta o diálogo, aparentemente, é capaz de decorar e repetir com grande exatidão as longas e por vezes tortuosas discussões que teria presenciado uma única vez – ou, ainda pior, retransmite o que lhe foi narrado por um outro ouvinte! Sabemos que Platão deplorou a difusão da escrita justamente por temer enfraquecimento, inevitável e indesejável, dos notáveis poderes da memória oral. Contudo, na verdade, Platão, o aristocrata ateniense, só tornou-se Platão, o filósofo primeiro, devido à escrita, à extraordinária persistência e abrangência que a palavra escrita permite. A Alexandria em que Claudio Ptolomeu fundiu a cosmografia platônica, de índole geométrica, com a astronomia precisa e a aritmética eficaz dos babilônios, ao redigir no século II da Era Comum o Almagesto, foi a mais clara demonstração da preeminência que o pensamento condensado na forma de texto, doravante instituído como suporte preferencial da transmissão de conhecimento, adquiriu na cultura da Antiguidade.
Outro momento seminal da história da escrita foi, é claro, a Imprensa. Como a grande maioria das invenções, a imprensa – a impressão de caracteres sobre papel, por meio de tipos móveis – surgiu na China, no século IX. Todavia, como a escrita chinesa é ideogramáti­ ca, eram necessários tipos individuais para cada um dos ideogramas (cerca de quatro mil signos diferenciados estariam envolvidos na obra de um erudito), e assim não havia praticidade especial na composição de textos. Mas no século XVI, na Europa, Gutenberg reproduz a técnica chinesa combinando uma prensa de uvas (herdeira do antigo lagar, a prensa de extrair azeite) com um repertório de cerca de quarenta tipos móveis, permitindo a edição muito rápida de volumes de muitas páginas e diminuindo enormemente os custos e os prazos da produção e da distribuição de conhecimento e informação. Em poucas décadas, os autores já eram contados aos milhares, e as tiragens totais alcançavam a casa dos milhões. A facilidade de publicar e circular ideias, descobertas e comentários foi a base prática da Revolução Científica do século XVII e da Revolução Industrial que dela decorreu. Para John Brockman, a imprensa de Gutenberg foi a mais decisiva invenção dos últimos dois mil anos devido à quantidade de outras invenções que ela fomentou.
O incremento da conectividade que hoje experimentamos em escala planetária, em função da difusão de próteses de processamento e comunicação que cada vez mais enriquecem nosso ambiente cognitivo, seria uma indicação segura de que estaria em curso uma transição civilizacional, de porte porventura comparável ao surgimento da Escrita ou ao desenvolvimento da Imprensa, correlata ao estabelecimento de uma rede de trocas de informação simultaneamente instantânea e mundial. Se a linguagem oral serviu de suporte, nos últimos setenta mil anos, para que o gesto técnico e a imaginação simbólica se complementassem e mutuamente se estimulassem, levando ao aparecimento da Cidade e da Civilização; se no âmbito das culturas civilizadas a escrita potencializou as ciências, as matemáticas, as artes numa acumulação progressiva e de longa duração que veio por fim a desembocar, por ocasião do Renascimento, na ampla difusão da imprensa; se a incessante revolução tecnocientífica propiciada pela imprensa deu lugar ao mundo supertecnificado e hiperacelerado em que vivemos hoje; se, em suma, a integração global de todas as partes e indivíduos concretizada por uma miríade de fones, nets e webs é certamente um fator essencial na definição das virtualidades de que nosso presente está carregado, podemos nos interrogar se não estaríamos em vias de experimentar um outro salto para um novo patamar de cognoscência.
Há pouco mais de duas décadas, metade da humanidade jamais havia feito uma ligação telefônica. Repetindo: há menos de 25 anos, metade da população humana jamais tinha usado um telefone. Já em meados de2008 metade da humanidade, isto é, três bilhões de pes­ soas, tem telefones portáteis. A expectativa é de que em 2011 mais dois bilhões façam uso de celulares. Não parece absurdo imaginar que um novo índice de carência passe a ser empregado: o restante bilhão e meio de indivíduos despossuídos, os extremamente pobres não terão casa, saneamento, alimento, educação e… celular. É difícil ter clareza acerca do significado de uma transformação desse porte do poder de comunicar, englobando bilhões de pessoas, no prazo de uma geração.
Recordemos por um momento a Revolução Industrial dos séculos XVIII-XIXa disseminação da máquina a vapor mudou profundamente a produção econômica porque amplificou a potência física disponível para as tarefas do trabalho; acrescentou watts a nossos músculos. Novas fontes de energia foram aplicadas em transformações materiais em escala massiva, produzindo todo tipo de bens e alterando o próprio caráter da atividade produtiva. Mas o que aconteceria agora seria de outra ordem: uma amplificação da conectividade entre indivíduos e populações, medida não em watts, mas em bits. Se considerarmos que a sociabilidade humana é um fator crucial para a consolidação e disseminação de transformações cognitivas, a ampliação sem precedentes dessa capacidade conectiva que vivenciamos hoje sugere a aproximação de um cenário global de dinamização cultural cujos limiares e contornos mal podemos entrever.
Comparemos, por um instante, o desenvolvimento de um bebê humano com o de um chimpanzé. Não há dúvida de que o pequeno chimpanzé é bem mais esperto, bem mais cedo. Ele toma iniciativas e realiza atividades sofisticadas – buscar espontaneamente o seio da mãe, por exemplo – muito mais rápida e eficazmente que seu primo humano. Como as mães e pais dos sapíens juniores sabem por experiência, esses nascem providos de muito poucos padrões de comportamento inatos, e por um longo período são perfeitos patetas. Mas logo os bebês humanos ganham a dianteira, enquanto os chimpanzés estacionam, devido ao fato de que tais bebês são excepcionalmente bons na arte de imitar. Crianças veem alguém manipulando o mouse de um computa­ dor, começam a experimentar movimentá-lo, e em pouco estão agindo como se o dispositivo de interface tivesse nascido com eles – às vezes, até parece, para eles. Os adultos nos admiramos sem limite e dizemos uns aos outros que as crianças de hoje parecem mesmo diferentes – mas na verdade são as mesmas crianças de sempre, imersas agora em um ambiente enriquecido de meios inovadores para estimular o exercício da capacidade mimética. Fundamento do aprendizado, essa capacidade é, portanto, a condição para a implantação e difusão da cultura, e meio para que a sociabilidade, a habilidade de estabelecer relações interpessoais, prospere.
O que, então, a interconectividade ampliada pela multiplicação de celulares pode significar? Sobretudo, a abolição de toda separação geográfica e, por consequência, de todo intervalo temporal. Um processo inovador de aproveitamento de resíduos vegetais que deu certo em uma pequena aldeia da Índia é instantaneamente reproduzido na Guatemala, ou em qualquer outra parte. Desnecessário presenciar, testemunhar fisicamente; uma vez que, pela via da conexão, dois locais se hajam contatado, então é possível replicar, e a imitação é livre para se propagar. A hiperconectividade dá lugar, assim, a uma hipermimética, o que acelera brutalmente a variabilidade dos modos de produção, de expressão, de efetuação, de inovação, em suma, de todos os campos de atividade próprios da cultura. À medida que o suporte material de uma gama cada vez mais ampla de vias de contato, de síntese e de as­ sociação se torna disponível, tanto a inventividade individual quanto as iniciativas coletivas são potencializadas, irreversivelmente, nesse espaço conexional expandido.
Kevin Kelly assinala a amplitude e intensidade do processo atual de difusão de recursos telemáticos: ao surgir a internet, computadores foram postos em rede de modo que, por exemplo, um cliente pudesse enviar uma mensagem para uma companhia aérea e receber um retorno. Depois se tornou possível acessar o sítio da companhia e obter informações sobre a tabela de voos. Mais tarde passamos a abrir diretamente a página de cada voo no sítio da companhia; em seguida, os dados daquele voo – como a posição da poltrona e a vista que se tem de sua janela – puderam ser consultados. O passo seguinte, que já está sendo implantado, será o de conectarmos os eventos ou processos eles mesmos, ou seja, acessar o voo incluirá dados sobre todos os aspectos relacionados à opção desejada, do transporte ao aeroporto, passando pelas circunstâncias do trânsito no horário escolhido e as canrcterísticas aerodinâmicas da aeronave, até as ofertas de sobremesa do cardápio. Esse tipo de acesso pluridimensional a camadas sucessivas de dados terá como contrapartida a inclusão cada vez mais generalizada de processadores em uma variedade de artefatos, resultando no que podemos denominar de ambiente processual ou, como prefere Kelly, a internet das coisas. A proliferação de ciberdispositivos capazes de gerar, operar e transmitir fluxos de dados permitirá que os objetos não apenas se conectem conosco – produzindo ambientes imersivos, sensíveis e responsivos – como também entre si, configurando um sistema cognitivo exteriorizado, distribuído e cooperativo que, ao alcançar escala suficiente, acabaria por adquirir a invisibilidade do que é demasiado próximo ou familiar.
Essa disseminação generalizada de agentes cognitivos será acompanhada pela entrada em cena da Ziliônica, a ciência dos zilhões. Do que se trata? Simplesmente, da banalização de números estonteantes, anteriormente frequentes apenas em áreas como a Astrofísica ou a Proteômica, em virtude da multiplicação vertiginosa da quantidade de dados postos em circulação virtual. Na atualidade, a medida da amplitude dos fluxos globais de dados é estimada em termos de petabytes, ou seja, de quatrilhões de unidades elementares de informação, levando ao surgimento da chamada Computação Intensiva Escalável. Recordemos, para melhor ilustração, que um megabyte ou um milhão de bytes é um volume de informação suficiente para o registro de uma música dos Beatles; um petabyte, portanto, se refere a uma quantidade de dados equivalente a um bilhão de músicas dos Beatles. O buscador Google (cujo batismo remete, muito a propósito, ao Googol, unidade de medida equivalente a 10 ¹ºº) anunciou em 2008 ter efetuado a indexação de um trilhão de páginas da internet após cerca de seis mil dias, começando lentamente e depois acelerando para uma taxa de milhões de páginas anexadas diariamente. Recebendo trinta bilhões de consultas mensais, o buscador maneja da ordem de 2 petabytes a cada 24 horas. O LHC, o grande acelerador de partículas do Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (CERN), exigirá o processamento de cerca de 15 petabytes de resultados de experimentos por ano, por cerca de dez anos. Centros de computação ligados por fibras ópticas ao redor do mundo trabalharão para “mastigar” essa quantidade maciça de dados. Por toda parte proliferam fontes de informação gerando dados em quantidades assombrosas, e para lidar com esses zilhões de bytes são requeridos meios de processamento autônomos, isto é, não humanos.
Um ramo da Computação Intensiva, chamado de Analítica correlacional, vem exatamente responder ao gigantismo dos bancos de dados. Desenvolvem-se algoritmos automatizados de exploração das profundezas vastas dos oceanos de bytes, e esses algoritmos, compor­ tando-se como ciber-robôs autônomos, saem em busca de correlações de todos os tipos. Emerge assim um modo original de inteligibilidade, manifesto pela descoberta de padrões inesperados, e porventura significativos, que, no entanto, se realiza independentemente de nossa inteligência. Embora certamente constitua urna atividade inteligível, essa habilidade de reconhecer padrões ultrapassa de longe a cognição humana desarmada: imergir em um quatrilhão de unidades de infor­ mação e extrair daí um diagrama de vínculos ou associações potencialmente relevantes é um feito que somos incapazes de reproduzir. O interessante, porém, diz George Dyson, é perceber que essa forma ci­ bernética de produção de conhecimento escapa dos cânones clássicos do método científico: identificar o padrão de correlações na massa de dados já basta; não é necessário um modelo prévio.
De fato, o procedimento consagrado de implementação do método científico envolve a formulação de uma hipótese ou modelo, elaborada a partir de dados obtidos em observações prévias; as consequências dessa hipótese, convertidas em previsões, são submetidas ao crivo de uma nova observação, sendo assim validadas – ou não. Já nas novas abordagens da Ziliônica, hipóteses não são indispensáveis: dados são produzidos, quanto mais, melhor; algoritmos autônomos buscam e estabelecem correlações significativas, e tudo o que o investigador precisa fazer é interpretar e avaliar os resultados das associações en­ contradas – que ele mesmo seria incapaz de colecionar. Tais sínteses de padrões emergentes, extraídas de um território em que a inteligência humana, isoladamente, não é capaz de operar, configurariam uma forma peculiar (para alguns, francamente bizarra) de produção de conhecimento, um tipo de “ciência sem teoria” – ou, pelo menos, envolvendo hipóteses implícitas somente, modelos indiretos que se manifestam apenas pela efetividade dos resultados.

Para Dyson, com o uso dessa “Googol science”, uma verdadeira revolução estaria em vias de suceder em uma grande variedade de domínios em que estão disponíveis grandes quantidades de dados – como geologia, meteorologia, linguística, genética – em virtude da extrema relevância que o reconhecimento de padrões imprevistos pode alcançar. Vejamos um exemplo: o Projeto Genoma Humano de mapeamento dos 3,3 bilhões de pares de bases que compõem os cerca de trinta mil genes integrantes do “manual de instruções bioquímicas” para o desenvolvimento e funcionamento do organismo humano, ou genoma, presente no núcleo de nossas células, finalizado em 2006, custou em torno de 10 bilhões de dólares. Um dos grandes feitos da ciência no século XXI, sem dúvida alguma. Mas, poucos anos depois, já há empresas que oferecem escaneamentos bastante completos de genomas individuais por quantias em torno de 350 mil dólares, e, se o cliente se satisfizer com um resumo básico de seus caracteres genéticos, seu gasto será de …400 dólares. A tendência, naturalmente, é a de uma queda crescente dos custos, bem como de um detalhamento cada vez mais sofisticado dos mapas à disposição dos interessados. Não parece difícil imaginar que, em breve, as pessoas sejam convocadas para participar de uma iniciativa internacional de solidarização genética, na qual voluntariamente doariam seus perfis genômicos para um grande banco universal de dados genéticos, o Grande Banco do Genoma.

Suponhamos que uma fração importante da população mundial, digamos, um bilhão de indivíduos, de todas as partes, entregue seus perfis para o GBG. Algoritmos garimpadores atuarão sobre esse repertório colossal de genes transcritos para bits, extraindo correlações não hipotetizadas, mas estatisticamente sólidas, de imenso valor potencial para a medicina, facilitando, por exemplo, a prevenção de pandemias. Essa informação preciosa jazia oculta, insuspeita, no miolo opaco das massas de gente. Mas talvez o resultado mais impressionante desse esforço de desvelamento seja a elaboração de uma nova imagem da Humanidade, que não mais terá como suporte os mármores de Fídias ou os afrescos de Leonardo, mas o substrato molecular de DNA que, do fundo de nossas células, nos define e constitui como membros de uma mesma comunidade, de uma mesma forma de vida. Seremos, porventura, capazes de reconhecer nesse vasto panorama de genomas entrelaçados as marcas de uma história ampliada, que remonta aos dez mil anos da Cultura, mas representa também os 120 mil anos de existência da espécie, e os seis milhões do gênero Homo, os trinta milhões da ordem dos Primatas, os 170 milhões da classe dos Mamíferos, os quinhentos milhões do (sub)filo dos Vertebrados, os 3,5 bilhões da Vida terrestre. Nessa moldura molecular, poderemos nos contemplar de uma forma inteiramente inédita, num espelho que jamais havíamos imaginado.

Contemporâneo de Hannah Arendt, Teilhard de Chardin sugeriu uma repartição do campo da existência em domínios concatenados sucessivos, compondo algo como uma processão ontológica: à Hilosfera (o plano da matéria), segue-se a Biosfera (o reino da Vida), encimada pela Noosfera (a dimensão do espírito). Uma vez que o Homem, portador da alma, seria o realizador da consciência para a tradição cristã a que Chardin adere, a Noosfera coincidiria com a Antroposfera. Deixando para trás a concepção teleológica de Chardin, porém, Kelly nos propõe imaginar uma distribuição análoga de domínios existenciais, mas agora concebidos como autônomos, interativos e essencialmente não hierarquizados. Até agora, por exemplo, a Antroposfera, que se assenta sobre a Biosfera, que se apoia sobre a Hilosfera, foi concebida como o ninho particular a partir do qual a Tecnosfera, o domínio dos objetos técnicos, pôde surgir e desenvolver-se. Mas para Kelly a Tecnosfera possuiria caracteres próprios que não derivariam exclusivamente dos atributos da Antroposfera, nem se reduziriam a epifenômenos deles. Seriam três os princípios diretores das Tecnologias, as habitantes da Tecnosfera: querem se tornar menores; mais rápidas; e fazer o que fazemos. Viveríamos, ou melhor, conviveríamos, com os objetos técnicos, numa relação de mútua cooperação e estímulo, semelhante a uma simbiose, há muito surgida e cada vez mais íntima entre a Antroposfera e a Tecnosfera. O mesmo valeria para a Simbolosfera, quer dizer, o poder de engendrar artefatos e a habilidade de exprimir ideias não seriam capacidades congênitas e privadas dos Humanos. Cada vez mais nos daríamos conta de que outros tipos de entidade, pertinentes a outras dimensões ontológicas, seriam aptos a manifestar, em maior ou menor grau, esses poderes formadores, quer por meio de interações conosco, quer por eventuais iniciativas independentes. De um ponto de vista estritamente cosmológico, a Inteligência se redistribui e se autonomiza; os corpos dos artefatos e os símbolos das palavras progressivamente se descolam de nossos corpos e mentes, ou seja, o que estava reunido e coeso em nossa essência, em nossa substância humana, agora começa a navegar livremente pelos mares do movimento e da cognição afora. Fragmentados, distendidos, multiplicados, viajamos com esses estrangeiros tão próximos por rotas desconhecidas que essas interfaces, essas intercessões, esculpem em nós mesmos.

Em resumo, as atividades que encarnam a condição humana para Hannah Arendt – o Labor, suprindo o metabolismo; o Trabalho, exprimindo a criatividade; a Ação, integrando a pluralidade – se encontrariam hoje à deriva, sendo o sintoma mais evidente desse deslizamento, precisamente, a cisão entre Conhecimento e Pensamento. Se, efetivamente, aceitamos o esboço do movimento de passagem para uma condição neo-humana que propusemos aqui, a característica mais nítida que ressalta dessa tentativa de diagnóstico é a de que não se vislumbra um eixo ou diretriz unificadora que componha uma coluna dorsal para o complexo de transformações que presenciamos nas primeiras décadas do novo milênio. Em vez disso, o que verificamos é a desagregação da hierarquia de modos de organização, inclusive dos estratos políticos, que conformavam a “Civilização”. A multiplicidade de forças que impõem simultaneamente uma integração cada vez mais abrangente e uma diferenciação cada vez mais minuciosa sugere a ausência de um núcleo estruturador central a partir do qual se irradiariam as linhas de consolidação do futuro ser, como na ontogénese biológica.

Não se trataria, portanto, na atualidade, da gestação de um embrião único de uma Neo-Humanidade, mas de um mosaico de fragmentos desestruturados, restos despedaçados que se recombinam imprevistamente, configurando um panorama próximo ao do antigo Sphairos de Empédocles de Agrigento: num cosmos composto pelos quatro elementos tradicionais – Ar, Fogo, Terra, Água -, dois princípios dinâmicos presidem a geração e a dissolução perpétuas de formas, o Amor que une, o Ódio que divide. Cíclica, e perpetuamente, os princípios sobrepujam um ao outro, de modo que o universo exibe, alternadamente, estados de máxima homogeneidade, quando o Amor triunfa, sucedidos por estados de máxima heterogeneidade, quando a primazia é de Ódio, intermediados por períodos de engendramento e de desmembramento. Há quem tenha encontrado nessa cosmogonia cíclica, governada por um antagonismo dinâmico, um antecedente remoto da primeira imagem do inconsciente para Freud. Mas interessa notar que nos processos sucessivos de formação, simétricos aos de decomposição, os seres surgem fragmentados, pés separados de pernas, orelhas privadas de cabeças, e a individuação consiste essencialmente no ajuste ou na associação desses pedaços disparatados. A pletora de inovações de longo alcance que hoje abraça todas as dimensões da civilização sugere uma exploração tateante, irregular, indeterminada, das vias de composição dessas partes, simplesmente porque estão ali.

A perturbadora figura de uma totalidade paradoxalmente dispersa, um mundo esquartejado que ainda virá a se unir, nos é esclarecida, ou agravada, por uma ficção de Jorge Luís Borges.

Em As ruinas circulares, um mago chega a um templo incendiado e abandonado de um deus a que não se cultua mais. Ali se instala, junto à antiga imagem da divindade, que recorda um potro ou um tigre, e se dedica, com determinação invencível, a realizar uma tarefa assombrosa, se não impossível: sonhar um homem, sonhá-lo com minuciosa integridade, e então introduzi-lo na realidade. Primeiramente sonha com um anfiteatro circular, reminiscente do templo incendiado, repleto de estudantes, a quem todas as noites ministra aulas de anatomia, de cosmografia, de magia. Em certas perplexidades adivinha uma inteligência crescente; compreende em seguida que só dos alunos que de alguma maneira o contestam pode ter alguma esperança, uma vez que preexistem um pouco mais. Uma tarde abole de vez o colégio, e escolhe um só discípulo, o mais promissor; ao fim de algumas lições individuais, seu progresso maravilha o mestre. Então sucede a catástrofe: o mago acorda, não sabe se no crepúsculo da manhã ou da noite, e se dá conta de que não havia sonhado. Os intoleráveis tormentos da lucidez e da insônia se abatem sobre ele. Em desespero, reconhece que havia delirado: a tarefa que se propunha, modelar a matéria vertiginosa dos sonhos, é a mais árdua que pode se impor um varão. Jurou esquecer a enorme alucinação inicial e dedicou um mês a recompor suas forças. Quando o disco da Lua estava perfeito, purificou-se, pronunciou sílabas sagradas e dormiu. Quase de imediato, sonhou com um coração que pulsava.

Com minucioso amor sonhou esse coração pulsante, até tocá-lo por dentro e por fora, até examiná-lo por completo. Deliberadamente não sonhou por uma noite, depois retomou o coração, invocou o nome de um planeta e empreendeu a visão de outro órgão. Em um ano tinha passado do esqueleto às pálpebras; o pelo inumerável foi a tarefa mais difícil. Sonhou assim um homem inteiro, um moço adormecido, que não falava nem abria os olhos. Esgotados os nomes potentes que conhecia, arrojou-se aos pés da efígie que semelhava um potro ou um tigre e suplicou por socorro. Sonhou então com a estátua, trêmula, viva, que era potro e tigre e também touro, rosa, tempestade. O múltiplo deus lhe revelou que nesse templo circular tinha sido venerado sob o nome de Fogo, e que magicamente infundiria ânimo no fantasma sonhado, desde que este fosse depois enviado para restaurar os antigos ritos de adoração em outro templo despedaçado, rio abaixo. Feliz, o mago passa a instruir sua criação, seu filho, nos mistérios arcanos do Universo e do culto do fogo. A cada noite, verifica que sua criatura está cada vez mais acostumada à realidade, e que enfim está pronta para nascer. Ordena-lhe que coloque uma bandeira no alto de um cume distante, e no dia seguinte ela lá flamejava. Envia então sua criação para o templo ao Norte, antes lhe infundindo o esquecimento total de sua origem prodigiosa.

O propósito de sua vida fora atingido; os sons e as formas do mundo lhe apareciam com palidez, sua paz era embaçada de fastio. Um dia, dois viandantes lhe falam de um homem mágico no Norte, capaz de pisar no fogo e não se queimar, recorda que de todos os seres do orbe somente ele mesmo e o fogo sabiam ser seu filho um fantasma, e teme que este acabe por se dar conta de sua condição de mero simulacro. Seu temor se extingue bruscamente: depois de uma longa seca, uma remota nuvem ornamenta uma colina distante, depois o céu ao Sul adquire a cor da gengiva dos leopardos, e então, mais uma vez, o acontecido de muitos séculos se repete, o templo do deus do fogo é destruído pelo fogo. Quando o incêndio concêntrico o envolve, o velho mago pensa em se atirar nas águas para escapar, mas compreende que a morte vinha coroar sua velhice e absolvê-lo de seus trabalhos. Caminhou contra as línguas de fogo, e estas não morderam sua carne, antes o acariciaram e inundaram sem calor e sem combustão. Com alívio, com humilhação, com terror, compreendeu que ele também era só uma aparência, que outro o estava sonhando.

A condição humana, diz Shakespeare, é sermos feitos da matéria dos sonhos. Sonhamos com o Neo-Humano; o Neo-Humano nos sonha.

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