1992

Ilusões perdidas

por José Miguel Wisnik

Resumo

A questão central do romance Ilusões perdidas, escrito por Balzac entre 1835 e 1843, é o destino da literatura diante do poder nascente do jornal diário e de massa. Através da história de um poeta da província que conhece a glória e a desgraça ao se tornar jornalista em Paris, Balzac, ele mesmo editor fracassado que acabou ganhando dinheiro como escritor na indústria literária, explora todas as ambivalências dessa questão, antevê os desdobramentos daquilo que Lukács chamará “a transformação do espírito em mercadoria”, percebe o “pacto” entre a imprensa, para ele mundo da mentira, e a verdade da literatura, e anuncia a “crise da representação” que esta última sofrerá no século XX. Numa das cenas principais do livro, discute-se o presente e o futuro do texto jornalístico, com seu caráter de ficção forjada por recorte e montagem de informações “verídicas”, seu campo sutil de manobras que rejeita toda ideia de permanência. Balzac vê o jornalismo como desilusão remitizante (que nega e repõe o mito, mas de forma indiferenciada, sem sua verdade arcaica), contrapondo-lhe a ilusão e a superioridade ética da arte, na medida em que a aceitação da ilusão permite superá-la. A questão que ele coloca não perdeu atualidade, não só por tocar na ética jornalística, mas porque a imprensa se tornou mais do que nunca (e não obstante possa ter hoje, eventualmente, consciência aguda de seu poder) um negócio, e um negócio no qual a cultura é avaliada como território das ilusões perdidas.


Balzac focalizou o jornal em estado nascente, na parte central de Ilusões perdidas, romance fascinante escrito entre 1835 e 1843. O romance é a narrativa dos esplendores e misérias de um poeta de província, Lucien de Rubempré, que faz carreira em Paris, obtendo sucesso fulgurante e meteórico quando entra para o jornalismo, e caindo em desgraça em boa parte pelos próprios poderes ambivalentes da imprensa. Além de fazer a anatomia financeira precisa da indústria editorial que naquele momento criava ao mesmo tempo o fenômeno da grande imprensa e da ficção para massas, com descrição exuberante e rigorosa dos vários tipos de livreiros, contratos, tráficos de influência, sistemas de benesses e modos de oscilação dos preços do prestígio pessoal, da folha de papel, dos gêneros literários e das posições políticas, o romance flagra uma série de situações típicas ou situações-limite da vida jornalística que, surpreendidas em seu impacto originário, mantêm uma extraordinária força analítica. Não me refiro às mazelas do tráfico de influência e da corrupção, de que Balzac se ocupa largamente, mas dos poderes que se abrem, graças a essa paraliteratura de mercado, aos novos “negociantes de frases” e “espadachins das ideias e das reputações”.

O cenário cosmopolita, com a trama dos movimentos da ribalta e dos bastidores da vida parisiense, vem para o primeiro plano do romance na segunda parte (“Um grande homem da província em Paris”), depois das primeiras iniciativas intelectuais de Lucien em Angoulême, onde frequenta os saraus provincianos de uma certa senhora De Bargeton, mulher casada com quem acaba por fugir para Paris (adotando o sobrenome nobre decaído da mãe, Rubempré, contra o plebeu do pai, Chardon). Ao lado dos arroubos líricos, aventureiros e oportunistas de Lucien em busca do reconhecimento parisiense, temos os esforços pacientes e generosos de sua irmã Ève e de seu cunhado David Séchard para ajudá-lo entre dificuldades de toda ordem. David Séchard tenta, paralelamente, de maneira desinteressada e empresarialmente ingênua, inventar um processo novo de fabricação de papel que torne o produto mais barato para atender às necessidades crescentes da indústria editorial e da imprensa florescente na década de 1820 (quando se passa a narrativa), e na década de 1830, ao final da qual foi escrita.[1]As vicissitudes do inventor, às voltas com as dificuldades técnicas e com as ciladas dos fabricantes que querem se apropriar de sua possível descoberta, são o assunto central da terceira parte (quando Lucien, malogrado depois dos sucessos momentâneos em Paris, se vê obrigado a voltar a Angoulême, na penúria). A história de Lucien de Rubempré prosseguirá, no contexto maior da Comédia Humana, em Esplendores e misérias das cortesãs, com complicações novas. A relação entre Lucien e David Séchard não deixa de remeter à infra e à superestrutura da indústria editorial, cujo nervosismo atravessa o romance, indo, pois, da observação da produção artesanal e industrial do papel à análise das condições de produção do discurso literário e jornalístico, com todas as etapas intermediárias de quebra. Na segunda parte de Ilusões perdidas está o nó das relações entre literatura e jornalismo, anunciado e envolvido pelo contraponto que o livro estabelece entre esses dois diferentes tipos de “poetas”: o jovem narcisista que, pelo triunfo e o fracasso mundanos, perde os seus ideais literários e morais, e o anônimo e impecável trabalhador-inventor que, moralmente avesso ao turbilhão da capital, e do capital, luta pelo melhoramento técnico dos meios impressos. (A província tende a ser, para o lado idealizante do antimodernismo de Balzac, o celeiro dos “bons”: David Séchard não é movido pelo desejo do lucro nem da glória, embora diretamente envolvido, pela natureza do seu trabalho, com os movimentos da industrialização e do capital.)

Nas duas personagens conjugam-se de certo modo índices biográficos do próprio Balzac, projetados em antítese (o escritor foi empresário editorial utopista e falido, ao mesmo tempo que jornalista e crítico do jornalismo). A oposição entre Rubempré (que se atira no mercado literário) e David Séchard (que se mantém longe dele) dá um estatuto emblemático e idealizado às contradições vividas por Balzac, conservador assumido, católico-monarquista que tentou também, como Lucien, honorabilizar seu nome com atributos de nobreza duvidosa, burguês antiburguês detestando os grandes industriais, ele mesmo um industrial fracassado envolvido em empreitadas improváveis e ganhando, afinal, como escritor, dinheiro na indústria literária.[2] Mas esses “biografemas” não dizem nada da força da obra, se tomados por transposição direta e redutora. É corrente na melhor tradição crítica que, do seu lugar social e ideológico peculiar, Balzac viu a sociedade burguesa por dentro e por fora, e por isso mesmo, no âmago.[3]

Num plano superficial (ou na superestrutura moral), teríamos quase um melodrama romântico: um jovem artista desencaminhado dilapida seus bens espirituais (o cabedal literário de iniciante) e seus bens materiais (a modesta poupança familiar) ao tentar ascender pelo talento e pelo oportunismo. (De roldão leva a amante, pura e corrompida, artista e prostituta, para a miséria e a morte.) Mas o ritmo interno dessa trajetória romanesca é desencadeado pelo choque das idealizações líricas do jovem e ambicioso autor de “Margaridas” e “O arqueiro de Carlos IX” com a industrialização e a comercialização da literatura, sinalizada em detalhe a cada passo da sua iniciação parisiense. Se “uma resma de papel em branco vale quinze francos”, argumenta um editor, enquanto que “impressa vale, segundo o êxito, cem sous ou cem escudos”, o texto literário passa a ser o termo ao mesmo tempo necessário, imponderável e irrelevante de uma especulação sobre o preço do papel. A universalização do dinheiro e do mercado, que consolidará a vida burguesa pondo fim à sua fase de idealização heroica, está no centro desse “poema tragicômico da capitalização do espírito”, como Lukács chamou Ilusões perdidas. Nele, tudo aquilo que será consabido ad nauseam pelo realismo posterior, já constitutivamente entranhado pelo “fastio das mercadorias mecanicamente produzidas”, tem uma extraordinária força inaugural: “a transformação do espírito em mercadoria verifica-se diante de nossos olhos, como um fato novo”, espantoso e “pleno de tensão dramática”.[4]

É nesse quadro que o jornalismo aparecerá para Rubempré como a saída salvadora de uma carreira literária empatada pelas dificuldades de ingresso no mercado. A lógica da vida jornalística, no romance, está articulada a um processo difuso de tráfico de influência e de produtos (onde a crítica literária e de espetáculos, o publicismo político e a crônica mundana associam-se a formas incipientes de merchandising, transações com livros e bilhetes de teatro, manobras com a claque). É como se, nessa fase de “acumulação primitiva” da indústria cultural, as áreas da imprensa, da publicidade e da produção de espetáculo, necessariamente articuladas mas hoje melhor “definidas”, participassem de um mesmo embrulho cuja confusão não deixa de ser significativa de sua interdependência estrita. Na cena parisiense descrita por Balzac, o ingresso no mundo jornalístico permite a um estreante hábil como Lucien o assalto ao renome súbito que o mundo literário vedava, exercendo o poder de elevar ou rebaixar o valor das imagens no mercado (sejam sentimentos, obras, ideias, reputações, a “água carminativa”, o “óleo cerebral” ou a “pasta das sultanas”).

Os poderes do jornalismo são objeto de uma anatomia virulenta: para Balzac a imprensa parece concentrar o mal do mundo consumado na mercantilização, dissipando o lastro do valor universal e pulverizando todo compromisso ético. É preciso entender essa vigorosa obsessão. Primeiramente, sabendo que ela não trabalha propriamente por um realismo literal, nem por um “realismo imaginativo”, como bem definiu Oscar Wilde distinguindo Balzac de Zola, mas por uma “realidade imaginada” que resulta, pela acuidade sintética ou pela força da transfiguração, em símbolo mais real do que o real.[5] O que está em questão nessa poderosa obra de arte é o destino problemático da própria literatura diante desta nova máquina de representar o mundo: o jornal diário e de massa. E como Balzac abrangeu, com a vontade de potência napoleônica da sua visão inaugural,[6] nada menos que todo o arco histórico do problema, pode-se dizer também que a sua questão é a do destino problemático da cultura diante da indústria da cultura.

Ao lado disso, a sua percepção das modalidades dos poderes jornalísticos, mais do que anedótica, é a percepção de poderes discursivos: o poder de intimidação graças à derrisão, por exemplo (baixar programaticamente o nível da imagem das pessoas destruindo toda idealização, como o próprio romance realista iria fazer, e Balzac antes que todos, mas extraindo no caso do jornalismo dividendos pessoais dessa operação, dirigida contra pessoas reais). Ou então: tomar como verdade “tudo que é provável”, isto é, converter o real na estatística dos verossímeis possíveis, manobrando o grande poder que o jornal tem de fazer e desfazer contextos (poder que faz do jornal um gênero ficcional não confessado). Balzac relaciona amostras hilariantes de “método” em que o crítico cultural afirma o verso e depois o reverso da mesma opinião, com desenvoltura sofística e puro “maquiavelismo das circunstâncias”, que lhe permitem extrair uma suposta e permanente superioridade sobre os objetos culturais de que trata (como se ele estivesse, como disse Adorno, no último andar de um edifício ao qual não pertencesse).

O que atualiza ainda o romance é o fato de que seus jornalistas manifestam uma escancarada consciência, cínica, de todos esses processos de uso e abuso de poder, como se lessem nas vísceras da incipiente e florescente imprensa de então os futuros poderes ilimitados dessa que, aliada à publicidade, “fará e desfará monarquias” com a mesma facilidade com que faz e desfaz contextos. Mais do que personagens típicas de algum romance de costumes, e exatamente porque mais reais do que o real, no sentido wildiano, soam às vezes como metajornalistas pós-modernos, pela consciência exposta, em alguns momentos, de um processo que mal começava e no qual convergem arte, simulacro, poder e dinheiro. Tudo isso faz de Ilusões perdidas um extraordinário romance “de imagens” e de ideias.[7]

A sociedade burguesa, que exige, pela sua existência, um macrorromance das dimensões da Comédia Humana, onde se encena o seu grande teatro, parece inviabilizar, ao mesmo tempo, ou a médio prazo, a sua mise-en-scène totalizante: a imprensa é o grande sintoma viral desse fato, no romance de Balzac, pululando versões que pulverizam a aspiração à verdade em verossímeis sem lastro. A expansão da indústria editorial cria o campo litigioso em que se confrontam, no mesmo veículo, através da representação literária e da representação jornalística, duas formas de ficção que disputam a mimese da vida moderna. Balzac chamou para si, no corpo da própria obra, tomando-o de certo modo como uma afronta pessoal em grande estilo, ou em grandes proporções, o destino desse drama histórico-literário que ele percebeu talvez melhor do que ninguém.

A dedicatória de Ilusões perdidas, a Victor Hugo, é claramente indicadora de como o romance está situado num embate histórico onde se joga implicitamente o futuro da literatura. Mais do que uma dedicatória, Balzac faz ao outro escritor um pedido de aliança contra essa potência nova, a imprensa, que passa pela primeira vez a ser assunto de literatura, como os marqueses, os financistas, os médicos e os procuradores o foram em Molière. A inclusão é litigiosa, porque a imprensa vem a ser assunto da literatura depois que a literatura já é assunto da imprensa. “Por que a Comédia Humana, que castigat ridendo mores, haveria de excetuar uma potência, quando a imprensa parisiense não excetua nenhuma?” Há uma reversibilidade conflitiva na disputa do romance com o jornal pela primazia da representação num campo recentemente revirado pelo crescimento da indústria editorial e jornalística: por que não incluir os jornalistas na Comédia Humana, se os jornalistas escrevem e fazem diariamente a sua Comédia Humana? Por que poupar a imprensa se a imprensa é essa máquina de representar, máquina ficcional que não poupa nada nem ninguém? Assim, Balzac busca apoio literário para essa obra que, de algum modo, avança num terreno tabu, constituindo-se por isso mesmo num “ato de coragem tanto como (n)uma história plena de verdade”.[8]

Se Mallarmé sonharia mais tarde com um mundo que desembocasse no Livro metafísico da pura e perfeita poesia da combinatória total, Balzac vislumbrou com horror o horizonte de um mundo todo feito para desembocar no jornal. Esse paralelo simétrico, que pode parecer estranho dadas as gritantes diferenças entre os dois autores, ganha mais nitidez se pensarmos que Mallarmé, que também foi jornalista, fez do espaçamento dos sinais gráficos na página e das modulações tipográficas (índices da materialidade sígnica da imprensa) elementos de uma revolução da linguagem poética, projetada radicalmente para fora da “moeda corrente” da linguagem cotidiana e utilitária. São dois estágios, já opostos, do mesmo choque da literatura com o mundo da mercadoria. Em Balzac, deflagrado com a força tremenda de uma percepção inaugural que desafia todos os poderes antigos e novos da representação ficcional. Em Mallarmé, quintessenciado em inscrições hiperelípticas que já supõem a distância abissal entre a poesia e o mundo da representação (ou a representação do mundo que tem sua expressão corrente na imprensa). Mas assim como em Mallarmé esse impasse vai em vertigem para o grande Nada totalizante e fundador, em Balzac é o grande Todo do teatro social burguês que guarda ainda o horror do vácuo “hediondo” que o funda. Nesse caso, por caminhos totalmente opostos, a poesia pura e a prosa da vida estão falando, a seu modo, não a mesma coisa, mas da mesma coisa.

O paralelo serve ainda à explicitação do ponto delicado da relação entre literatura e jornal em Balzac. O espaço público constituído pela nova imprensa articulada com a universalização da forma-mercadoria é, como na transformação do antigo publicismo em jornalismo gritante, demagógico e escandaloso, a quebra de um “espelho concêntrico” em estilhaços rebrilhantes exibidos à massa.[9]Isso implica um sintoma de comprometimento das próprias possibilidades da representação tal como ela se realiza no romance. Para Balzac, a imprensa será o domínio do jogo das representações desconectado do horizonte da verdade, ou da manipulação dos verossímeis sem o lastro de sentido que os fundamentaria.[10] Por sua vez, a literatura na qual o romancista se empenha, ao construir a Comédia Humana, aspira a uma representação totalizante do mundo que ao mesmo tempo experimenta a sua potência e perde terreno, como indica, entre outras coisas, o panorama entrópico dos meios de massa. Fazendo o pacto com as regras simbólicas da sociedade que quer representar e que ao mesmo tempo abomina — pacto sem o qual a própria representação não pode se dar, e regras dadas pelo mercado e pela dissolução das relações éticas —, o esforço totalizador da Comédia Humana é uma empreitada pressentida pelo próprio autor como um risco exposto entre o tremendo esforço de verdade e o malogro ou a mistificação. Embora o tema da “crise da representação”, sabidamente marcante na literatura posterior, não faça parte expressa do universo de Balzac, a sua relação com a imprensa é sintomática da latência desse conflito: a imprensa, que é para ele o mundo da mentira, avança na verdade da literatura, e de certo modo contém a verdade desta, sinalizando o seu confronto inevitável com os limites do desejo de totalizar o mundo pela representação.

 

 

O título “Ilusões perdidas” é uma fórmula de amplo espectro. Em princípio, refere-se simplesmente às desilusões individuais internas ao romance. Mas já foi interpretada, em lance grandemente generalizador, como um movimento constitutivo do imaginário da história e do romance modernos. Lukács, para quem o confronto com o rebaixamento dos valores “autênticos” origina o gênero, viu nesse romance o próprio paradigma da destruição, pelo capitalismo, do humanismo revolucionário das primeiras concepções burguesas da sociedade e da cultura, assim como em D. Quixote o mundo dos ideais feudais cavalheirescos fora destruído pela sociedade burguesa em via de formação.[11] Mas a fórmula-título do livro, além de conter um retrospecto histórico latente, parece ter também o poder de se realimentar da própria história de maneira multifacetada e paradoxal. A história moderna pode ser lida, a partir de seu núcleo originário, como uma espiral de desilusões: do mundo feudal e aristocrático evocado nostalgicamente pelos primeiros românticos, do humanismo universalista burguês entregue aos especuladores (é o quadro de 1830) e rompido pela fratura da luta de classes exposta em 1848, desilusões agravadas no século xx pelo panorama das guerras mundiais, do nazismo, da desilusão do socialismo pelo stalinismo e pela ruína do império soviético (apontando somente alguns marcos da história política sem mencionar minimamente os naufrágios da história cultural). Assim, o mesmo Lukács, por exemplo, lido hoje, é atingido por um novo efeito de “ilusões perdidas” quando diz que Balzac, no crepúsculo de uma “época de transição”, faz a ponte entre “o sol do humanismo revolucionário da burguesia” que “já se havia posto” e “o alvor do nascente novo humanismo democrático e proletário” que “ainda não era visível”.[12] No pôr do sol atual de todo um ciclo da tentativa socialista, o processo das ilusões perdidas entra em verdadeiro curto-circuito. Pode-se dizer que, se as ilusões burguesas são destruídas pela ideia socialista, as ilusões do socialismo são destruídas ainda pelas ilusões burguesas (que parecem extrair a sua resistência, em grande parte, da própria capacidade de se alimentar da corrosão). Todo esse panorama aceleradamente controvertido e especular nos devolve, de alguma forma, ao romance de Balzac.

Em primeiro lugar, porque ele atualiza aquilo que se apontou como paradoxal na própria posição do autor: o conservador Balzac, diz Carpeaux, cria a literatura moderna porque talvez só um “reacionário”, monarquista antiburguês, pudesse “descobrir e admitir”, no calor da hora, a traição, pela burguesia vitoriosa depois de 1830, dos ideais do liberalismo em conflito com as “necessidades econômicas e utilitaristas” do século XIX. Esse conflito é camuflado ou ausente da obra daqueles autores do “romantismo social”, politicamente mais “progressistas”, como Victor Hugo, Lamartine e George Sand.[13] (Haja dialética capaz de acompanhar, com esse desenvolvimento desigual das ideologias, o rastilho espiralado dos seus paradoxos na vida contemporânea.) A virulência com que Balzac olhava o triunfo da burguesia, a universalização do dinheiro e do mercado, que dão contexto para essa pulverização de todo compromisso ético, tinha um fundo nostálgico e conservador, saudosista de um mundo feudal ou burguês “puro”, pré-capitalista. Mas o seu mundo burguês de fato, pós-feudal e pré-socialista, acaba tendo uma ressonância simétrica no nosso mundo burguês de fato, neoliberal, pós-utópico e pós-socialista, onde parecem se pulverizar todas as ilusões que não sejam as da pujança e da legitimação universal pelo mercado.

Por outro lado, esse processo que alimenta a corrosão dos valores alimentando-se dela, em que as ilusões são continuamente negadas e repostas, em que nenhuma ilusão persiste dentro da reiterada circulação das ilusões, encontrou desde o começo seu tempo e seu espaço próprios no jornal. O jornal diário dá lugar a essa contínua dissipação do mundo em fragmentos, que rejeita qualquer ideia de permanência, que desmente pela sua própria materialidade toda transcendência e que centrifuga o sentido, mesmo quando pretenda sustentar uma interpretação unitária dos fatos. E ao mesmo tempo que detona o espaço da tradição e as interpretações cíclicas do tempo mítico, prolifera em mitologias pontuais, instantâneas, localizadas e voláteis, tendo como único lastro a aluvião estacionária dos estereótipos e dos clichês.

Por isso mesmo os jornalistas, mais do que nenhuma outra categoria, tomaram para si, sabendo-o ou não, o mote formulaico das “ilusões perdidas”. Se o romance de Balzac critica o jornalismo, propõe junto com isso o lema heroico da classe: desfazer-se de falsas esperanças, denunciar entusiastas ingênuos, aposentar valores reconhecidos e aceitos, sempre depois de tê-los alimentado um a um. O jornal produz a ilusão que ele mesmo vai se encarregar de destruir e repor, num rito (e num ritmo) que se consuma em etapas sucessivas ou então no ato instantâneo de uma mesma representação, e do qual o jornalista se sai como o “campeão das ilusões perdidas” por excelência.

Nesse ponto preciso, há uma linhagem da arte que segue o caminho oposto, à frente do qual Balzac desponta como um naïf, um “gênio ingênuo” não só da economia política como da literatura, com sua grandiloquência apaixonada e muitas vezes descalibrada de observador agudo e visionário romântico, arrastando tudo com a energia do seu vitalismo universal.[14] Na linhagem radical da poesia e da prosa modernas, a arte empreende uma crítica das ilusões da própria linguagem, da representação ficcional (o que lhe custa um preço em negatividade); mas na arte a ilusão não pode deixar de ter assim mesmo um valor afirmativo, e essa afirmação é um diferencial inequívoco, ao mesmo tempo que gerador de uma sequência infinita de mal-entendidos com a crítica jornalística. A arte aceita a ilusão como seu bem de raiz, e isso lhe permite desfazê-la, além de suportar a desilusão. O paradigma jornalístico, tal como é percebido por Balzac, denuncia a ilusão que recusa no seu nascimento, e se vê condenado a produzi-la e reproduzi-la ao infinito.

Ao vermos mais de perto alguns aspectos do romance naquilo que interessa diretamente ao nosso tema, estaremos reencontrando nele a transfiguração imaginária, nas suas primeiras rodadas, de um longo e perfeitamente reconhecível campeonato de ilusões perdidas (frente ao qual a arte opõe muitas vezes e de muitas formas, como já em Balzac, o seu luto, que é, no entanto, luta contra a melancolia).

Ao chegarem a Paris, Lucien e a senhora De Bargeton sofrem as primeiras pequenas e grandes desilusões. Antes de mais nada, a sensação de perda que o impacto da metrópole imprime no provinciano, com a autodescoberta de um caipirismo súbito e incômodo, anotada aqui de maneira muito particular: “a gente da província não tem o mesmo aspecto nem o mesmo valor, quando separados das pessoas, das coisas, dos lugares que lhes servem de moldura”. O deslocamento do meio nativo produz uma espécie de desbotamento, a falta de uma nuance essencial, “tal como o claro-escuro dos quadros flamengos é necessário à vida das figuras que o gênio dos pintores ali colocou”. Essa perda de contexto não deixa de sinalizar o que será depois um dos problemas da representação jornalística: como a entrada na metrópole, ela tira as coisas do lugar onde elas guardam seu sentido, e dissipa o seu “segredo”.[15]

Acresce que os amantes perdem a graça um para o outro. A sedução das novidades, a multiplicação indeterminada das pessoas nas ruas empalidecem a atração irresistível que recém tinha arrastado os amantes em fuga (“na província, não há escolha a fazer: o hábito de ver as fisionomias dá-lhes uma beleza convencional”). Lucien absorve a “assombrosa rapidez” da cidade onde meia hora no café ou no teatro ensinam mais “do que em dez anos de província”. Ridículo na Ópera com suas vistosas vestimentas ingênuas, rompido com a senhora De Bargeton, esnobado pela aristocracia e literatos parisienses em meio aos quais tenta se insinuar, descobre por um momento Paris como a “capital do acaso” (um alfaiate alemão lhe sugere que, com um belo traje, a passeio pelas Tulherias, está arriscado a casar com uma inglesa rica em quinze dias). Mas, como descobre logo, esta é uma ilusão que tem seu preço (“Em Paris não há acaso senão para pessoas extremamente relacionadas”).

Dois conhecimentos decisivos o colocarão numa encruzilhada: o jornalista Estevan Lousteau e o escritor Daniel de Arthez. Com o primeiro, conhecerá o relato de esperanças malogradas, as ilusões perdidas do jovem escritor que é engolfado pelo mundo da sobrevivência e da concorrência, mas que vê nas vantagens oferecidas pelo jornalismo a única saída realista. Com o segundo, que “vivia de artigos conscienciosos e mal pagos, feitos para dicionários biográficos, enciclopédicos ou de ciências naturais”, os conselhos para que se afaste do “lupanar do pensamento” do jornalismo, como condição para realizar, fora do mercado e de qualquer expectativa de sucesso imediato, o seu trabalho literário. De Arthez é o mentor intelectual de um grupo de “sábios naturalistas, jovens médicos, escritores, políticos e artistas”, o Cenáculo, onde monarquistas e republicanos, cristãos e ateus, metafísicos e cientistas, convivem num clima de utópica tolerância, “discutindo sem disputar” a serviço do saber (chamou-se Cenáculo, em 1824, um grupo de escritores reunidos logo sob a liderança de Victor Hugo, e do qual participaram, entre outros, Vigny, Nodier, Musset, Sainte-Beuve; o nome traz portanto a marca da associação literária, reiterando de certo modo os termos da dedicatória do romance em que se propõe a Hugo uma frente contra os poderes abusivos da imprensa; De Arthez, por sua vez, tende a ser visto como uma projeção idealizada de Balzac, o que é plausível desde que não se cristalize com isso a economia contraditória das personae em jogo no livro, e o papel também especular de Lucien de Rubempré).

Daniel de Arthez, “amálgama de um belo talento e de um belo caráter”, é, de certo modo, a versão citadina e intelectual do cunhado David Séchard, o inventor modesto que lança todas as energias no trabalho reservado e quase invisível. O “sistema de submissa pobreza” pregado pelo Cenáculo, e a severidade de De Arthez, que raia o moralismo, chocam-se com a “doutrina militante” de Lousteau, posicionado contra “essa gente da glória póstuma”, que impede as “jovens imaginações” de “se agitar na idade em que o movimento é possível e aproveitável”. Lousteau faz aqui o papel mefistofélico que tem seu patrono, na economia geral da Comédia Humana, em Vautrin, o delinquente sedutor que aparece de maneira surpreendente, por sinal, ao final de Ilusões perdidas, travestido como o falso jesuíta espanhol Carlos Herrera. Sem estar investido das proporções “quase sobre-humanas” com que Vautrin surge “do mesmo modo imprevisto e misterioso que Mefistófeles no Fausto de Goethe”, em momentos de crise, a Rubempré e Rastignac, Lousteau cumpre a mesma função de apresentar como o mais sensato realismo “o caminho do arrivismo nu e cru”.[16]

Lucien está, portanto, nesse momento, entre o paradigma angelical de Séchard/De Arthez e o paradigma demoníaco de Lousteau/Vautrin, assim como, nos autos dramáticos medievais, a alma dividia-se entre as demandas da ascese e do sensualismo, da “glória póstuma” do paraíso e do imediatismo tentador do mundo. Mas o dualismo tradicional implícito no tema da tentação demoníaca, esta por sua vez explícita em algumas passagens, tem a feição moderna do pacto fáustico: contra o estatismo monacal, a adesão ao movimento que promove mais movimento, a agitação em cadeia que move tudo e que supõe a energia primária da idade juvenil, chamada a participar mimeticamente da turbulência do presente. Esse movimento do movimento é Paris e o mercado, o bazar das galerias e o jornal. A demanda energética, convincente no argumento de Lousteau, é o fundamento que tira o dilema de Lucien do plano medieval da alegoria moral, e o lança no universo onde as ambivalências e os contrários se rebatem. No entanto, o Mefistófeles jornalístico de Balzac não tem mais as proporções ambivalentemente negativas e renovadoras do Mefistófeles goethiano. A adesão ao movimento encadeado do mundo torna-se nele adesismo oportunista articulado em procedimentos bem definidos, em técnicas de manipulação precisas que encontram terreno fértil no mundo movediço e estacionário, camaleônico e ao mesmo tempo regressivo, como veremos adiante, do jornal.

É portanto nesse campo de forças mercurial que Lousteau lança as sementes da iniciação jornalística, ensinando a Lucien, antes de mais nada, que o jornalismo é uma forma de poder que abre portas antes inalcançáveis, desde que o jornalista saiba esgrimir o poder de derrisão imediata conferido pela escrita diária. Um teatrólogo inédito, por exemplo, pode se beneficiar desse poder de intimidação: “se o senhor tiver o poder de fazer com que digam que o jovem galã sofre de asma; que a jovem prima-dona esconde uma fístula onde quer que seja; que a soubrette tem mau hábito, será representado no dia seguinte”.[17] Como toda a publicidade pessoal dependerá dos efeitos, mesmo os paradoxais, desse sistema de referências, “a polêmica é o pedestal das celebridades”, banho lustral sem o qual não se entra no mercado das reputações.

No romance, o jornalista Lousteau tira proveitos venais da sua posição, e a literatura definida por ele vem vestida da metáfora romântica da prostituição: em degraus sucessivos, ela pode ser a moça pobre e desconhecida, a manteúda que tem no jornalista o seu rufião, ou a vitoriosa e brilhante cortesã insolente. Mas metáforas datadas como esta vêm acompanhadas de outras notações concretas de natureza discursiva, como aquelas que dizem respeito ao “método crítico” de Lousteau: sem ler o livro que resenha, a Viagem ao Egito, por exemplo, caça alguns erros de vernáculo aqui e ali e depois escreve que o autor conhece a linguagem dos obeliscos mas desconhece a própria língua, e que, “em vez de nos falar de história natural e de antiguidades, deveria ocupar-se com o futuro do Egito, o progresso da civilização, e os meios de ligar o Egito à França”. Se o autor tivesse ido por esse caminho, explica Lousteau, o método consistiria em dizer que “em vez de nos fastidiar com política, deveria ter-se limitado à Arte, a pintar-nos o país pelo seu lado pitoresco e geográfico” etc. Em suma, encobrir a própria lacuna e parecer que está em posição superior ao objeto de que trata é a maneira simples e desenvolta de fundar a autoridade da própria posição. A ostentação de domínio do campo assuntivo, que abarca figuradamente todas as coisas, é o princípio dos princípios, e o trailer de uma série encadeada de procedimentos que fundam a coluna de atuação desse ativista do nada, que simula o seu domínio sobre o mundo a partir do momento exato em que, fechando um contrato fáustico rebaixado, se entrega à máquina que parece comandar.

“Tentado” por Lousteau numa encruzilhada que combina a Bíblia, o contrato fáustico e a esfera prosaica, ferido pela “horrível poesia das dificuldades”, Lucien percebe no jornal “uma arma a seu alcance”, e sente-se “bastante hábil para a manejar”. Chegará lá através do percurso que passa pelo conhecimento dos livreiros, da bolsa dos boatos, glórias, conspirações e mentiras, depois de ter visto “os cordéis do comércio de livros e a cozinha da glória”, atravessando o bazar das galerias onde, seduzido pelo alarido das vozes da multidão, pelos olhares e os corpos das mulheres, agarrado ao seu manuscrito prestes a perder-se com a aura num limiar pré ou quase-baudelairiano, desembocará no ponto-de-epifania que vem a ser a visão simultânea do espetáculo do palco e dos bastidores do teatro, onde percebe finalmente “o avesso das consciências, o jogo das engrenagens da vida parisiense, o mecanismo de todas as coisas”.

Esse acesso ao teatro do mundo, em notável cena de estreia, coincide, como se verá, com a estreia jornalística de Lucien e com a sua estreia na vida amorosa parisiense. O poder e o sexo, através do jornal, o teatro e a mulher, entram em núpcias mundanas com o (ex-) poeta, para quem a publicação terá o sabor ambivalentemente fascinante e ameaçador da estreia teatral: “a letra de forma é para os manuscritos o que o teatro é para as mulheres, põe em relevo as belezas e os defeitos: tanto mata como faz viver”. O jogo reverberante entre os três elementos magnetizadores, o teatro, a mulher e a letra impressa, que se espelham e se ofuscam, que ao mesmo tempo iludem e fazem ver excessivamente, entre o excesso de representação e o desnudamento cru, marca o lugar ambivalente do teatro como análogo e encadeado, numa rede de deslocamentos, ao significante literário — o phármacon, veneno e remédio que mata e dá vida. Note-se que a tessitura de todos esses termos converge, em condensação extrema, para o segredo poético do nome: comédia humana. A cena é uma espécie de simulacro epifânico da obra, aleph onde a personagem e o Autor se espelham num foco concentrado de semelhanças e divergências. Nesse ponto, quando se entregará à sedução da letra teatralizada que o projeta na cena pública entre fascínio e horror, tendo acesso ao esconde-esconde da mulher que se entremostra no palco visível e no bastidor, Lucien estará no cabo das tormentas, no ponto extremo do dilema entre o jornal e o fundamento da literatura, ali exatamente onde os mundos se tocam e se separam definitivamente.

A armação da cena vem de um duplo triângulo: Lousteau é amante de Florine, atriz sustentada por um velho negociante rico chamado Matifat; na noite do espetáculo, Lucien de Rubempré será por sua vez desejado por Coralie, atriz sustentada pelo burguês Camusot (ambas as atrizes estrelam a peça estreada, e Coralie, apaixonada por Lucien à primeira vista, recusa-se a desempenhar o seu papel se não receber o sinal positivo dele). Os dois triângulos são feitos de ambivalências: dois poetas de província extraviados no jornalismo, e duas jovens atrizes que se entregam por dinheiro a dois velhos burgueses que fazem, sem saber, o papel do freguês aproveitador aproveitado.

Antes do espetáculo, em lance não menos teatral, Lousteau revela a Lucien que está em jogo a possível compra de um jornal que os fará redatores, negociação que depende no entanto do dinheiro de Matifat e Camusot, cujo ânimo positivo só será confirmado, por sua vez, pelo efetivo sucesso de suas divas. A crítica positiva do espetáculo assim como a corte à atriz serão decisivas para o sucesso da negociata, que cai nas mãos de Lucien. O espetáculo inaudito da “mistura de altos e baixos, de transações de consciência, de elevações e covardias, de traições e de prazeres, de grandezas e de servidões” oferecido pela vida literária deixava Lucien “fora de si”. E agora, quando abre-se a cena do espetáculo, ele, “absorto a um canto do camarote, tendo um braço sobre o veludo vermelho do peitoril, e a mão pendente”, vê do alto a cena parisiense que está finalmente prestes a empolgar, cena que lhe faz acessível “a fascinação dessa vida composta de raios e de nuvens”, brilhando “diante dele como um fogo de artifício, depois da profunda noite de sua vida trabalhosa, obscura e monótona”. Narcotizado pelo que vê e pelas possibilidades que se abrem à sua frente, mergulhado no sortilégio da representação em que “a vida não é mais nem santa nem real”, em que “a gente ri de todas as coisas sérias, e as coisas impossíveis parecem verdadeiras”, embriagado por tudo, desde a “féerie da cena”, o espetáculo dos camarotes, os sujos corredores dos bastidores onde “reina como que uma peste que devora a alma”, até o horror e o “vácuo hediondo” do teatro vazio e apagado, desprendendo ainda o “odor infecto” das candeias oleosas, Lucien experimenta, à maneira de uma iniciação profana, o desencantamento do mundo como representação sobre o vazio, como o conhecimento da grande ilusão — que se redobra e se recobre nele, no entanto, naquele momento forte frágil, com a ilusão de poder. E, com efeito, no jantar entre jornalistas que se segue ao sucesso da peça, no quarto de Florine sob os auspícios de Matifat, Lucien escreve a brilhante página que exalta o espetáculo, as atrizes, e que “revoluciona o jornalismo pela revelação de uma maneira nova e original”, integrando-o ao novo órgão e à corporação.

Uma das coisas que faz a força da cena é o poder de intensificação, a potência da aposta que está lançada ambiguamente em direção ao conhecimento do mundo e ao seu obscurecimento, a aceleração centrifugada das contradições desse poeta “que é a harpa eólica dos vários ventos e das várias tempestades da sociedade” francesa no período pós-napoleônico.[18] Como diz Baudelaire, as personagens de Balzac são animadas pelo mesmo “ardor vital” do seu criador, todas são, de algum modo, geniais; sempre mais reais do que o real: mais ardilosas e ativas na luta, mais pacientes no sofrimento, mais gulosas no gozo, mais angélicas na devoção, suas almas “são armas carregadas de vontade até as tampas”.[19] De fato, se toda iniciação ao jornalismo fosse digna dessa cena de Balzac, o mundo teria definitivamente um outro brilho. Na cena combinam-se, no mesmo lance e com extraordinária clareza, o “rito iniciático” e a anatomia moral; a revelação e a degradação; a religião, a poesia, o teatro e o jornal. A mescla de níveis, como essa, já foi apresentada como fraqueza, mas a ela também se deve, certamente, a força do estilo de Balzac. No caso, a “iniciação” de Lucien de Rubempré é uma experiência de escritor e jornalista, momento privilegiado que surpreende ainda o núcleo da contradição que está em jogo “como duas torrentes que, numa inundação, querem juntar-se”.

Na cena do teatro em Ilusões perdidas não temos simplesmente, portanto, o confronto entre o mundo angelical do Cenáculo e o mundo demoníaco que teve suas portas abertas por Estevan Lousteau, mas a cisão deste segundo mundo num duplo aspecto fáustico: para o artista, a aceitação da ilusão que constitui a arte permite entrar no âmago da desilusão do mundo burguês; para o jornalista e campeão das ilusões perdidas, a desilusão de base levará à reprodução ativa das ilusões do mundo burguês, carregada pela universalização da forma-mercadoria. Essa extrema imbricação antitética do artista com o jornalista, que os aproxima e separa num momento crucial do destino da personagem, leva a corrigir a ideia de que o romancista se espelha em Daniel de Arthez e David Séchard contra Lucien de Rubempré, como se, com essa idealização, ele não tivesse entrado para valer no teatro do mundo e no mundo do mercado. O pacto com o mundo foi feito pelos dois, o narrador e a personagem: o narrador, que nesse ponto está mais longe de De Arthez e Séchard do que de Lucien de Rubempré, pelo poder de conquistar o mundo — a sociedade burguesa, seja dito — pela representação totalizante de sua verdade e da verdade de sua ilusão, e a personagem, que espelha e desmente as expectativas do narrador, pelo poder de conquistar o mundo apostando na dissipação das verdades, e na desilusão que produz e reproduz ilusões.

É nesse quadro complexo que tem de ser avaliada a pertinência das “observações visionárias” (como diria ainda Baudelaire) de Balzac sobre o jornalismo. Mais do que uma oposição literal entre “jornalista” e “artista” (cujos papéis podem ser, nesse ponto exato, reversíveis), o que está em jogo é a encruzilhada ética que opõe duas disposições de consequências contrárias, e que responde pela pergunta muito atual: qual o comportamento da ilusão (e dos profissionais da ilusão) numa época em que se perdem ilusões? Como se comporta a produção de ilusões (sempre reposta, necessária e incontornável) quando ela não é sustentada por nenhuma crença, e dá lugar à proliferação de ilusões a prêmio, sem jogo dialético e/ou estético com a verdade, legitimando-se do poder sobre os meios de fazê-las circular?

No caso de Lucien de Rubempré, a cena condensa, em transfiguração ambivalentemente elevada e rebaixada, o amadurecimento das condições necessárias para que a personagem se invista da posição, quase mítica, do jornalista (“mítica” aqui no sentido de que constitui um paradigma originário, cuja pertinência não está na referência individualizada, mas na descrição de uma posição virtual de tal modo bem percebida na sua raiz que está sendo sempre preenchida pelos casos concretos). A primeira dessas condições parece ser o enredamento imediatista no jogo de forças, mas a partir de uma posição distanciada pela superioridade do camarote, não como um demiurgo, que projetasse a cena que está no palco, mas como um mercúrio que se imiscui em todas as partes do teatro como se estivesse fora dele. O dramaturgo-romancista seria o demiurgo, que começa a perceber pelo espelho ambivalente do teatro e do jornal que a cena pode engolfar a própria representação, e que ela exige um redobrado e intensificado esforço, à beira da mistificação e do fracasso, de totalização ficcional. O mercúrio imiscuído é o produtor desiludido de imagens que aceita como fatalidade a condição definitivamente ilusória do mundo, poeta que trai (ou que sempre traiu) a sua origem como promotor da desilusão engajado no mercado de ilusões.

A segunda condição para o investimento “arquetípico” do jornalista em Ilusões perdidas é a chegada a um ponto ideal de desilusão e desencantamento que poderá tanto ser tomado como marca de superioridade frente ao estado atual do mundo, quanto como marco zero das ilusões a partir do qual elas podem começar a girar de novo, em falso, movidas agora pelo poder de produzi-las. É o que acontece com a manipulação virtuosística de qualquer ponto de vista, esgrimida conforme as necessidades mais imediatas da circunstância, e descolada de qualquer compromisso com a verdade ou com a coerência, que será praticada num verdadeiro festival retórico pelos jornalistas com os quais Lucien convive depois da sua primeira iniciação da estreia.

Importa ainda ao interesse literário dessa visão que ela não se faz só, em Ilusões perdidas, de descrições de tipo documental ou anedotas satíricas, mas de pastiches estilísticos brilhantes em que Balzac imita as várias modalidades ou possibilidades do texto jornalístico, carnavalizando por sua vez o dialogismo paraliterário do “negociante de frases” assumido, e o vácuo ético em cima do qual ele trabalha. É essa interpretação incorporada à textura do romance que nos interessa, e que, ao sondar os limites e os confins do discurso jornalístico, realizado ou virtual, mantém a sua validade para além das limitações pessoais ou das motivações ideológicas que moveram Balzac a fustigar a imprensa de maneira geral e a tentar politicamente limitar a sua liberdade (que ele observou ser, por outro lado, uma liberdade aparente regulada por interdições de linguagem nada explícitas).[20]

Depois da cena no teatro, segue-se a ceia em que Lucien, admitido entre os pares da imprensa, participa de um verdadeiro simpósio metajornalístico onde se discutem as perspectivas futuras do veículo. Não vou me furtar a parafrasear longamente a passagem, porque, como veremos adiante, nesse romance de “imagens” e de “ideias”, para usar os termos caros a Balzac, é difícil separar às vezes o movimento cênico e o movimento conceitual. É o caso dessa ceia (capítulo xviii da segunda parte, na edição brasileira) que por si só já sugere um contraponto antitético com o Cenáculo, e da qual participam um diplomata alemão e um grupo de jornalistas franceses. O diplomata dá vazão a seu germanismo contando uma anedota de guerra em que um general prussiano diz a um general russo, olhando Paris vencida do alto de Montmartre, em 1814, que em vez de incendiá-la, como quer o russo, é melhor deixar a França morrer desse “câncer que viam estendido a seus pés, ardente e fumegante, no vale do Sena”, isto é, a própria cidade, com seu cosmopolitismo e sua imprensa (que o diplomata se rejubila de não ter em seu país). Diplomaticamente, acrescenta que ceia aquela noite “com leões e panteras que me fazem a honra de aveludar as patas”.

Em resposta, os comensais franceses fazem uma demonstração quase jogralesca de sua confiança na capacidade de fazer qualquer coisa passar por verossímil: “poderíamos dizer e provar à Europa que Vossa Excelência vomitou uma serpente esta noite, que ela esteve a ponto de morder a senhorita Túlia, a mais linda de nossas bailarinas, e sobre isso tecer comentários sobre Eva, a Bíblia, o primeiro e o último pecado”, diz um; “faríamos imprimir dissertações científicas sobre todas as serpentes encontradas no coração e no corpo humano para chegar ao corpo diplomático”, diz outro; “poderíamos até mostrar uma serpente qualquer neste frasco de cerejas em aguardente”, acrescenta um terceiro, completado por um quarto que afirma ao diplomata: “os senhores mesmos acabariam por acreditar”. Esse brainstorm de pauta continua com outras observações enunciadas numa sucessão eletrizada: “a influência e o poder do jornal estão apenas em sua aurora”, “o jornalismo está na infância, há de crescer. Tudo, daqui a dez anos, há de depender da publicidade. O pensamento tudo iluminará, e ele…”, “tudo há de crestar”, “fará reis”, “desfará monarquias”, concluindo: “se a imprensa não existisse, seria preciso não a inventar; mas existe, dela vivemos”.

O simpósio prossegue com uma mistura de tiradas de efeito, cartadas de direita (da parte do “ministro” alemão e do jornalista Claude Vignon), entre lances cínicos, estocadas de inteligência, rasgos semipatéticos. Afirmações apocalípticas sobre o futuro da imprensa são feitas num bate-rebate de tons, entre o humor e o sarcasmo, a impotência, a autoflagelação, a atitude crítica, o cinismo franco etc. Circulando no jogo dialogal, elas não se cristalizam como afirmações categóricas, autoritárias e monológicas, mesmo que sustentem, de modo direto, indireto ou contrário, uma espécie de porta-voz ideológico do autor (à maneira do que acontece com alguns dos primeiros românticos, aristocratas nostálgicos e antiburgueses, faz-se uma crítica da indústria cultural afinal muito parecida com a dos modernos críticos “apocalípticos” da cultura de massa). Ouvindo aqueles homens “gritando o seu mal”, “rasgando o ventre de sua nutriz para predizer o futuro”, “metidos na armadura damasquinada de seus vícios e sob o brilhante capacete de sua análise fria”, Lucien “gozava com embriaguez daquela sociedade inteligente”, diante da qual o Cenáculo, “esse céu da inteligência nobre, teve de sucumbir sob tão completa tentação”.

Dessa cena é possível reter e desdobrar algumas noções importantes. Em primeiro lugar, a ideia, colocada em registro satírico, de que é possível produzir e validar qualquer fantasia, uma vez que o contexto da representação pode torná-la verossímil e crível mesmo para quem conheça o referente do qual se partiu. O jornal, que se serve dos materiais extraídos da realidade, é, como a literatura e o ensaio o são de outro modo, bricolagem, isto é, construção de uma estrutura significativa com materiais feitos originariamente para outros fins. Assim, não só quando um texto é constituído de informações forjadas, como é o caso, mas de elementos “verídicos”, existe nele uma tendência “ficcional” embutida nos procedimentos de recorte e montagem. Assim também, mesmo quando não é “ficção”, ou exatamente por apresentar-se como não sendo, o efeito de sentido dado pela congruência dos elementos entre si investe-se de uma certa autonomia em relação ao contexto externo, o que torna o texto, também ele, “mais real do que o real”. Esse campo permite uma margem grande e ao mesmo tempo sutil de manobras (nele está inscrito em sintonia fina o problema da ética jornalística). Pela suposta literalidade da sua representação, ao contrário do caráter declaradamente ficcional da literatura, o jornal aproveita-se duplamente daquela boa (ou má) fé inerente à leitura, dada pelo fato de que queremos acreditar no que lemos, e embarcamos por princípio, mesmo quando armados de recuo crítico, em tudo que se apresente por escrito como crível (esta talvez seja, em tudo o que constitui o mundo do jornal, a ilusão mais difícil de perder). Na cena da ceia, o jogo da ficção bizarra criada aos olhos do diplomata, e passível de tratamento jornalístico, acaba, como uma serpente que morde o rabo preso, por convencer o seu próprio objeto: “os senhores mesmos acabariam por acreditar — disse Vignon ao diplomata”.

Mas isso ainda é pouco para dar conta do modo como Balzac representa o mundo diabolicamente mercurial que resulta da conjunção de literatura e mercado, capital e meios de massa. A propósito, parece ter intuído o poder desse símbolo em algum nível difuso, quando faz Claude Vignon lamentar-se de que estão todos condenados a escrever nos jornais como quem “explora uma mina de mercúrio, sabendo que ali há de morrer”. Mercurial é o mundo da linguagem em contínua metamorfose, em que nenhum valor assenta, em que tudo o que é dito é descartado e reposto por um sistema de contrapesos infindável. Que essas propriedades por excelência da linguagem sirvam não propriamente ao jogo poético, mas como serviço ao dinheiro e dissipação do lastro do valor, ético, que complementa o fluxo mercurial da linguagem, é o ponto — demoníaco — da crítica balzaquiana à imprensa.

Essa contradição está ilustrada em dois episódios posteriores, “A primeira luta” e “Estudo sobre a arte de cantar a palinódia”. Já em pleno exercício de suas funções de crítico, Lucien é encarregado pelo jornal de demolir sob pseudônimo o livro de Nathan, um romancista, que sai em segunda edição. Fica surpreso e confuso, porque admirava a obra, e não saberia como atacá-la. Lousteau mostra-lhe então que mesmo uma obra-prima pode e deve tornar-se, por acrobacia crítica, “sob a tua pena, uma estólida bobagem”, “uma obra perigosa e malsã”. O método consiste em conquistar a estima do leitor com uma isenção inicial, mas assumindo o compromisso da inteligência crítica francesa perante o mundo, compromisso este consubstanciado no elogio, caro ao leitor burguês, dos escritores já clássicos do século xviii. É preciso mostrar que a língua francesa, impiedoso “verniz distendido sobre o pensamento”, leva o escritor a pensar permanentemente, forçado à inteligência pela própria “natureza da língua”. A essa “literatura de ideias”, prossegue Lousteau, é preciso contrapor a tendência atual à “literatura de imagens”, que substitui os sentimentos (ou pensamentos) pelos acontecimentos. “O movimento não é a vida, o quadro não é a ideia! Formula sentenças assim, e o público as repetirá.” Segue-se um lamento pela decadência do bom gosto, a defesa da tradição voltairiana contra os românticos, acrescida das consequências esquerdistas desta crítica, e esmaga-se o livro de Nathan, que, embora tenha méritos, “dá em França direito de cidadania a uma literatura sem ideias”. Para completar, lisonjeia-se o assinante dizendo que a França não se deixará surpreender, e “lamentarás que tão hábil editor conheça tão pouco os instintos do país”. Diante de Lucien, estupefato por ouvir um discurso cheio de “verdades literárias de que não havia sequer suspeitado”, arremata didaticamente: “Aí tens o arcabouço. Polvilha-me de espírito esse arrazoado, aviva-lhe o sabor com um fio de vinagre, e Dauriat (o editor e principal alvo de toda a operação) estará frito na panela dos artigos”.

Num momento posterior, em nova conjuntura do mercado livreiro e da relação do jornal com o editor, trata-se de elogiar o mesmo livro de Nathan. Lucien, surpreso, é encarregado de fazê-lo também sob pseudônimo, e novamente não sabe o que dizer, dessa vez a favor, do livro. Blondet, que o julgava “mais forte”, mostra-lhe que é preciso ser capaz de “considerar todas as coisas sob o seu duplo aspecto”, sem acreditar literalmente nelas. “Em literatura, meu pequeno, todas as ideias têm direito e avesso; ninguém pode arcar com a responsabilidade de dizer qual o avesso. Tudo é bilateral no domínio do pensamento. As ideias são binárias. Jano é o mito da crítica e o símbolo do talento. Triangular não há senão Deus!” Seguem-se exemplos literários, de Molière, Corneille, Rousseau e Homero, tomando-se a lógica poética como equivalente do casuísmo crítico (“Quem de nós poderia pronunciar-se entre Heitor e Aquiles?”). Ao mesmo tempo que Blondet dá a literatura como exemplo a ser seguido por procedimentos ambivalentes, Vernou defende em seguida os mesmos procedimentos com um argumento contraliterário: “nós somos negociantes de frases e vivemos de nosso comércio. Quando você quiser fazer uma grande e bela obra, um livro, enfim, poderá colocar nele os seus pensamentos, sua alma, amá-lo, defendê-lo; mas artigos, lidos hoje e amanhã esquecidos, esses não valem a meus olhos senão aquilo que por eles nos pagam”.

“Assombrados” de encontrar em Lucien escrúpulos excrescentes de ex-candidato a poeta, vestígios de ilusões não perdidas, “acabaram de rasgar-lhe a toga pretexta” (toga branca, franjada de púrpura, usada em Roma pelos mancebos das famílias patrícias) “para vestir-lhe a túnica viril dos jornalistas”, em paródia de rito batismal.

O caminho crítico é indicado dessa vez por Blondet: mostrar que “a última perfeição da arte literária é exprimir a ideia pela imagem”, na qual concentra-se a poesia, tão pouca numa língua marcada pelo excessivo positivismo do estilo francês. A contribuição de uma literatura de imagens é, pois, indispensável para que se processe a evolução do século xviii para o novo século: “Inventa o Progresso! (uma admirável mistificação destinada aos burgueses)”.

Enfim, trata-se de escrever um terceiro artigo, dessa vez assinado por “De Rubempré” ele mesmo, em que se critica os dois artigos anteriores, e se afirma que o livro é o mais belo da época. “Terás ganho quatrocentos francos nesta semana, além do prazer de haver escrito a verdade nalgum lugar. As pessoas sensatas darão razão a C., a L., a Rubempré ou aos três.” Se, como diz a mitologia, a verdade é água no fundo de um poço, aí estão três baldes. “Vamos!”

Esses arrazoados brilhantemente oportunistas e talentosos são compostos de questões críticas perfeitamente relevantes, como, por exemplo, o caráter dialógico do texto literário, onde múltiplas vozes contrárias se superpõem em contraponto; o caráter ideologicamente construído da ideia burguesa de progresso; a contraposição entre uma literatura de ideias e uma literatura de imagens, que o próprio Balzac sustentou em escrito polêmico sobre a obra de Stendhal, e às quais corresponderiam de um lado a corrente voltairiana e stendhaliana, e, de outro, a corrente romântica de Chateaubriand, Lamartine e Victor Hugo (Balzac concebia a sua própria obra como uma síntese dessas duas linhas estilísticas, originariamente a iluminista e a romântica, combinando o crivo da inteligência e a “forma original das ideias” com as descrições e diálogos próprios à dramatização das imagens — combinação esta que tem em Ilusões perdidas excelente exemplo de realização). O romancista não poupou, dessa maneira, os cartuchos mais poderosos e caros do seu próprio pensamento para caracterizar o repertório imaginativo e crítico desse grupo jornalístico, ao qual não falta inteligência nem informação. Mas o alto investimento de valor na vivacidade discursiva das personagens realça por contraste o uso perverso das ideias a serviço de interesses localizados e cindido pela parcialização. Curiosamente Balzac projeta nessa “primeira luta” e sua “palinódia” uma paródia de seu próprio pensamento crítico, onde a dialética que permitiria pensar as relações entre as três correntes literárias (como a água de três baldes que se intercomunicam) é quebrada num curto-circuito que corta através dela, convertendo-a numa “diabólica” (no sentido etimológico: lance através, corte, cisão) ou na “pequena dialética” das contraposições mercuriais sem termo. Assim, o três que movimenta o pensamento e que encadeia a linguagem na interrogação da verdade (remetida aqui a um Deus abscôndito e descartado) reflui para o dois (o mito de Jano de dupla face) que é, em última instância, um (o indiferenciado indiferente que se consuma nas três críticas divergentes do mesmo texto).

Em suma, as mesmas ideias que sustentam um processo dialético são deslocadas de contexto no romance, e ilustram uma démarche regressiva em que o movimento discursivo remete ao estado de indiferenciação mítica (sem ter mais nada, no entanto, da integridade do mito). A triangulação simbólica é retraída para um imaginário “bilateral” que se reduz a uma especularidade vazia. É impossível imaginar uma autodemonstração mais completa do próprio princípio balzaquiano da literatura que sintetiza imagens e ideias, às quais as falas se referem e que elas mesmas ilustram num zigue-zague dialógico-aporético cujo corte só pode ser ético.

De maneira mais simples, pode-se dizer que a arte, trabalhando aqui sobre a ilusão ficcional, na construção do grande verossímil que reconhece e mostra o vazio que o constitui, vai na direção da des-mitização, contra a indiferenciação regressiva. Sua “ingenuidade” relativa e assumida na intensificação do mundo e no grão de utopia que lhe confere a graça é a garantia de sua superioridade ética — a aceitação da ilusão permite superar a ilusão, e suportá-la pelo direito e pelo avesso. O jornalismo, tal como é analisado pela ficção de Balzac, procede por desilusão remitizante, negação do mito que reconduz ao mito, esvaziado de sua verdade arcaica e reinvestido de sua crueldade primária.

Assim, o rito batismal de Lucien de Rubempré, que acabamos de comentar, coroa o processo pelo qual o poeta, atraído pelo mito de sua consagração, é arrancado em carne viva dos seus vagidos literários pelos sacerdotes do ofício jornalístico, para ser entronizado no alto da roda da fortuna, no ponto em que rompe definitivamente com o Cenáculo, e pouco antes que comece o colapso dessa glória instantânea.

Sobre o Cenáculo em retirada ficam ressoando duas frases curiosamente “atuais”. Blondet diz, niilista, que se trata de uma “igrejinha filosófica e religiosa” que se inquieta “com o sentido geral da humanidade”. Vernou acrescenta, como um nouveau philosophe, que suas teorias ociosas são palavras que se transformam, de tempos em tempos, “em tiros de fuzil ou em guilhotina” (denunciando o caráter totalitário da totalização filosófica e literária).

Ao final do livro, depois do fracasso, da volta à província, do arrependimento, da recaída oportunista, de novo arrependimento e tentativa de suicídio, Lucien encontra Vautrin, que lhe promete o poder e o dinheiro, no caminho de volta a Paris. Um homem da província ainda dirá sobre ele: “Esse rapaz não é um poeta é um romance sem fim”. (Mais uma alusão reflexiva ao próprio texto, que se confunde com sua personagem como se nela estivesse a própria interminabilidade e a contradição insolúvel do mundo, com a qual o romancista pactua como condição incontornável da representação.)[21]

O interesse da análise balzaquiana do mundo do jornal não está no seu caráter “documental”, descritivo, supostamente literal e estigmatizante, mas na maneira como surpreende na fonte uma atitude existencial e discursiva que tem força de paradigma e, assim, se realimenta do próprio real, que muitas vezes a imita com insistência e clareza espantosas.

Ao mesmo tempo, se a pessoa pública tornou-se uma ficção, e mero suporte imaginário dentro de um processo de pulverização da pessoalidade, que a mídia alimenta e realimenta com a sua “lança de Aquiles” que (ainda Balzac) tem o ambíguo poder indiferenciador de ferir e curar tudo o que toca, a questão ética será sempre o limite para essa ficção na relação desigual entre os poderes da imprensa e os da pessoa.[22]

Esse quadro interessa certamente à reflexão mais geral possível sobre a imprensa de um ponto de vista ético. Os problemas colocados pelo romance estão latentes todo o tempo na representação jornalística, e algumas vezes emergem de modo agudo. É claro, portanto, que a leitura do romance tem como contraponto a leitura diária da imprensa, que atualiza frente ao romance, com maior ou menor intensidade, aquele confronto originário a partir do qual ele se formou. E nesse caso, entre os jornais brasileiros, a Folha de S.Paulo merece menção especial pelo modo como trouxe à tona, nos últimos dez anos, com ênfase metajornalística, alguns dos motivos tipicamente balzaquianos (que em outros jornais estão presentes mas em geral e menos ostensivamente explicitados). A Folha (justiça seja feita) ganhou uma certa dianteira do processo jornalístico e cultural, deixando atrás de si, em dado momento, não só os seus concorrentes, mas também intelectuais, artistas, universidade, políticos, partidos, graças a um diagnóstico da situação contemporânea no qual o poder da imprensa foi pensado como poder em estado puro. Nos termos de Balzac: não mais sacerdócio, nem serviço aos partidos, mas negócio. O negócio supõe uma explicitação agressiva da concorrência aliada à inovação técnica, legitimação universal pelo mercado, e avaliação da cultura como território das ilusões perdidas (permeabilidade máxima com a moda, cenas de niilismo explícito e transgressões éticas e estéticas fizeram época no incêndio da “Ilustrada” de que hoje temos o rescaldo).

Tudo isso tem um caráter declarativo, e dá o tom a um discurso publicitário e doutrinário facilmente reconhecível, associado ao valor da “liberdade de informar”, que de todo modo merece estar sempre em discussão, confrontado com o exercício de poder que ele supõe.

Em episódio recente, quando atacou a Folha com o instrumento do arbítrio, o presidente da República escolhia e discriminava a dedo a instituição que melhor lhe corresponde por conceber também o poder como jogo de mercado. Ele entende disso: não tinha história política pessoal e empolgou a Presidência com marketing político. Nesse quadro, ninguém polarizou tão bem com Collor como a Folha, por um duplo mecanismo de oposição e identificação.

A carta de Otávio Frias Filho, levantando-se contra o arbítrio do poder presidencial autoritário e demagógico, é um marco na história da imprensa além de obra de escritor (voltamos com todas as honras a Balzac). Mas ela implica pressupostos éticos que devem levar à discussão do arbítrio do poder e da desigualdade dos poderes. A palavra ética, que tem para esse jornalismo uma relevância restrita ou inseparável do contexto de mercado, deve ganhar então uma relevância nova na discussão das relações não só do Estado com a imprensa, mas da imprensa com a sociedade.[23]

Notas

[1] A conexão da literatura com a imprensa diária produz um efeito tão revolucionário quanto a aplicação do vapor para uso industrial, diz sugestivamente um contemporâneo, citado por Hauser, a propósito das transformações que sofre a produção literária sob a Monarquia de Julho. Em 1836, e portanto no momento aproximado em que Balzac inicia Ilusões perdidas, o jornal La Presse introduz uma inovação decisiva para o extraordinário aumento de assinantes nos dez anos seguintes, com assinaturas pela metade do preço cobertas por anúncios e avisos pagos. A concorrência acirrada entre as empresas jornalísticas tem no produto literário um atrativo privilegiado. Os jovens de talento que não têm meios de fazer carreira política ou literária dedicam-se ao jornalismo, que é ponte para a literatura, substituto dela e instrumento de influência. Os jornais publicam romances em folhetins (Balzac escreveu um por ano para La Presse, de 1837 a 1847). Em alguns casos, como no de Alexandre Dumas, o autor trabalha com inúmeros colaboradores anônimos, constituindo “fábricas literárias completas” em que as narrativas são produzidas “quase mecanicamente”. “A obra literária converte-se em mercadoria no sentido mais absoluto do termo; tem sua tarifa de preços, confecciona-se segundo modelo e entrega-se em data prefixada.” Os preços são regidos pela demanda e não têm nada a ver com o valor artístico do produto. Sob o lema “Enriquecei-vos!”, dirigido à burguesia como “fórmula mágica”, e tendo nos grandes industriais a sua nova aristocracia, a Monarquia de Julho de Luís Filipe é um período de florescimento industrial e comercial em que o dinheiro domina a vida pública e privada, rendendo tudo numa extensão até então nunca vista. O capitalista que monopoliza a direção da sociedade dispensa-se de apresentar-se como protetor da Igreja, da Coroa, das artes ou das ciências, pois agora terá todas as honras simplesmente pelo fato de ser rico. O novo tipo de herói nos romances de Stendhal e Balzac testemunha um clima ideológico de ilusões perdidas, pela “renúncia ao ideal, desprezo pela sociedade e, com frequência, por um desesperado cinismo frente às normas e convencionalismos em vigor”. Arnold Hauser, “La generación de 1830”, Historia social de la literatura y el arte, Madri, Guadarrama, 1968, vol. II, pp. 11-76.

[2] “A sua própria situação social era mais ou menos a do seu Colonel Chabert ou de Julien Sorel: um burguês parisiense, entravado primeiro pela Restauração monárquica, depois pela revolução industrial. Não gostava de confessar isso.” “O seu destino comercial tem algo da ascensão rápida e queda profunda de seu César Birotteau.” “Atribuiu-se, como Musset, uma nobreza duvidosa, que só deu prestígio no ambiente da boêmia literária; sonhava, durante a vida inteira, com duquesas e condessas que enchem os seus romances como enfeites de casa, destinados a impressionar os credores.” Otto Maria Carpeaux, “Literatura burguesa”, História da literatura ocidental, Rio de Janeiro, O Cruzeiro, 1963, vol. v, pp. 2120 e 2123.

[3] “É uma interessante consequência da dialética particular da história, do desenvolvimento desigual das ideologias, que Balzac com a sua visão do mundo muito mais indefinida, a miúdo francamente reacionária, reflita com mais perfeição e profundidade do que o seu grande rival (Stendhal), mais progressista e mais claro do que ele, o período que vai de 1789 a 1848. Balzac julga o capitalismo com os olhos da direita, da parte feudal, romântica. O seu ódio profundo contra o nascente sistema capitalista mundial vem daí, mas gera tipos imortais dessa sociedade, tais como Nucingen e Crével.” Georg Lukács, “A polêmica entre Balzac e Stendhal”, Ensaios sobre literatura, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968, p. 139. “O catolicismo romântico, místico, influi sobre Balzac tanto como o socialismo feudal, e ele em vão procurava coordenar essas duas orientações com um monarquismo político construído sobre modelos ingleses, ou com a concepção poética da dialética evolutiva espontânea de Geoffroy de Saint-Hilaire.” G. Lukács, op. cit., p. 138. “O fato de Balzac, como Engels salientou com justeza, haver descrito ‘com paixão e sem véus’ exatamente os inimigos dessa sociedade, os heróis republicanos do convento de Saint-Merry, é a prova mais esmagadora do fecundo germe abrigado nessa sua fé na possibilidade do desenvolvimento da humanidade, apesar do pessimismo do seu mundo artístico e de todas as inevitáveis ilusões próprias das condições históricas em que se encontrava.” G. Lukács, “Balzac: Les illusions perdues”, op. cit., p. 120. “Balzac é o Machiavelli da burguesia, analisando-lhe e resumindo-lhe os processos. Deste modo, o grande realista, acreditando na permanência dos maus instintos na natureza humana, torna‑se fatalmente reacionário. É verdade que a ideologia político-religiosa de Balzac não é tão sólida como os seus romances; o seu monarquismo é tão duvidoso como o seu catolicismo.” O. M. Carpeaux, op. cit., p. 2124.

[4] G. Lukács, “Balzac: Les illusions perdues”, op. cit., p. 116.

[5] “Uma leitura assídua de Balzac transforma nossos amigos vivos em sombras e nossos conhecidos em sombras de sombras. Seus caracteres têm uma vida inflamada. Eles nos dominam e desafiam o nosso ceticismo. Uma das maiores tristezas de minha vida é a morte de Lucien de Rubempré; e eu jamais pude me desembaraçar completamente da tristeza que ela me causou. Ela me atormenta nos meus instantes de prazer. Eu me lembro dessa morte quando eu rio… Mas Balzac não é mais realista que Holbein. Ele criava vida, não copiava a Vida.” Oscar Wilde, “Intentions”, citado por Ernst Robert Curtius, Balzac, Paris, Bernard Grasset, 1933, p. 405.

[6] “Quatro homens tiveram uma vida imensa: Napoleão, Cuvier, O’Connell, e eu bquero ser o quarto. O primeiro viveu a vida da Europa, e se inoculou exércitos! O segundo desposou o globo! O terceiro encarnou um povo! Eu carreguei uma sociedade inteira na cabeça!” Carta de Balzac a madame Hanska, em 1844, citada por E. R. Curtius, op. cit., p. 144.

[7] A afirmação de que Ilusões perdidas é um grande romance de ideias não desconhece o fato de que os “exageros melodramáticos”, “a falta de ordem e o desleixo racional do texto”, ligados à própria pressa obsessiva com que era escrito, e que “só raramente prejudica a legitimidade do conjunto nas esferas baixas ou médias”, segundo Auerbach, “não é capaz de criar a atmosfera certa para as zonas mais elevadas da vida — inclusive para as intelectuais”. Erich Auerbach, Mimesis, São Paulo, Perspectiva, 1976, pp. 422-3. Mas, se está longe de ser um romance de ideias em estado puro, a combinação da tradição intelectual da narrativa iluminista francesa com a imagética narrativa romântica (através da qual Balzac definiu a sua própria obra, como se verá adiante), aplicada à conturbada atmosfera intelectual do meio jornalístico-literário, onde reina já uma certa imbricação de literatura com meios de massa, resulta, no caso de Ilusões perdidas, em enorme força.

[8] Ao longo deste texto, cito pela tradução brasileira de Ernesto Pelanda e Mário Quintana, As ilusões perdidas, São Paulo, Victor Civita, 1978. Para o texto original, minha edição é La comédie humaineÉtudes de moeurs: scènes de la vie de province, ii, Bibliothèque de La Pléiade, Paris, nrf, 1935.

[9] “Publiciste, ce nom jadis attribué aux écrivains comme Grotius, Puffendorff [sic], Bodin, Montesquieu, Blakstone [sic], Bentham, Mably, Savary, Smith, Rousseau, est devenu celui de tous les écrivassiers qui font de la politique. De généralisateur sublime, de prophète, de pasteur des idées qu’il était jadis, le publiciste est maintenant un homme occupé des bâtons flottantes de l’actualité. Si quelque bouton parait à la surface du corps politique, le publiciste le gratte, l’étend, le fait saigner et en tire un livre qui, souvent, est une mystification. Le publicisme était un grand miroir concentrique: les publicistes d’aujourd’hui l’ont mis en pièces et en ont tous un morceau qu’ils font briller aux yeux de la foule.” Esse trecho faz parte da “Monographie de la presse parisienne”, de 1843, publicada pela primeira vez em 1844 no livro coletivo Grande ville, nouveau tableau de Paris, comique, critique e philosophique. É um ensaio de tipologia detalhada dos homens de letras, politicamente empenhado na aprovação de leis reguladoras do exercício da imprensa, comparada ao final, em metáfora romântica típica, à mulher sedutora frente à qual o público, como um marido enganado, “succombe toujours”.

[10] Curiosamente, o axioma da imprensa parisiense do romance balzaquiano — “tudo que é provável é verdadeiro” — consiste numa apropriação, para fins não poéticos, da concepção aristotélica do verossímil, segundo a qual “a obra do poeta não consiste em contar o que aconteceu, mas sim coisas que podiam acontecer, possíveis do ponto de vista da verossimilhança ou da necessidade” (Aristóteles, Poética, IX). Se o verossímil assim entendido garante à poesia, em Aristóteles, a enunciação de “verdades gerais” mais elevadas do que aquelas de que dispõe a narrativa histórica que “relata fatos particulares”, sua transposição deslocada para o jornalismo, que também relata fatos particulares, é um simulacro irônico da verdade poética ao mesmo tempo que uma traição à verdade histórica. Essa assunção pelo jornalismo de antigos atributos da literatura ilustra bem a espécie de inversão demoníaca que Balzac vê no fenômeno da imprensa. Por outro lado, a literatura realista remaneja o campo do verossímil, que passa a ser dado agora não propriamente pela legitimação do possível, mas pela “ilusão referencial”, por aquelas notações descritivas que têm por função exclusivamente a criação de um “efeito de real”, “fundamento dessa verossimilhança não confessada que forma”, segundo Roland Barthes, “a estética de todas as obras correntes da modernidade” (Roland Barthes, “L’effet de réel”, Communications 11, Paris, Seuil, 1968, pp. 84-9). Temos aí portanto um cruzamento complexo de “efeitos de verdade” trocados, em que a imprensa assume, com o novo poder dado pela sua posição no mercado, atributos não confessados da literatura, e essa sofre de volta, em contrapartida, uma espécie de consciência da ilusão que seus esforços referenciais não conseguem amenizar. Creio que está aí o núcleo teórico correspondente ao contraponto entre literatura e jornal desenvolvido em Ilusões perdidas.

[11] G. Lukács, op. cit., p. 101.

[12] Idem, ibidem, p. 120.

[13] O. M. Carpeaux, op. cit., pp. 2119 e 2124.

[14] A expressão “gênio ingênuo da economia política” é de Carpeaux. O traço descalibrado da escrita balzaquiana é analisado por Auerbach: “Balzac submerge os seus heróis bem mais profundamente na temporalidade; com isto, perdem-se-lhe a medida e os limites daquilo que, anteriormente, era considerado trágico; e a seriedade objetiva diante da realidade moderna, que se desenvolveu mais tarde, esta ele ainda não possui. Qualquer enredo, por mais trivial ou corriqueiro que seja, é por ele tratado grandiloquentemente, como se fosse trágico; qualquer mania é por ele vista como paixão”. E. Auerbach, op. cit., p. 431. O vitalismo universal é um elemento importante na interpretação de Curtius, desenvolvida no livro citado, em especial no capítulo “Energie”.

[15] Curtius dedica também um capítulo à importância dada ao “segredo” na vida e obra de Balzac, como dimensão irredutível da intimidade sobre a qual o mundo moderno avança de modo “obsceno”. A redução da margem da intimidade será apontada seja nos efeitos da especulação imobiliária que influi “sobre os costumes de Paris” diminuindo as residências, suprimindo os jardins e lançando a liberdade da “santa vida privada” para a faixa dos “cinquenta mil francos de renda” (Les petits bourgeois), seja à medida que “os olhos do jornal, Argos moderno, ganham em ousadia e avidez”. E. R. Curtius, op. cit., p. 31.

[16] G. Lukács, op. cit., p. 117.

[17] “Soubrette” é uma personagem da tradição teatral, a camareira ou dama de companhia. A expressão “tem mau hábito”, inexpressiva, corresponde no original a “tue les mouches au vol”.

[18] G. Lukács, op. cit., p. 107.

[19] Em “Journaux Intimes”, citado por E. R. Curtius, op. cit., p. 393.

[20] “La presse n’est pas aussi libre que le public l’imagine, en France et à l’étranger, d’après ce mot ‘liberté de presse’. Il y a des faits impossibles à dire, et des ménagements nécessaires avec les faits dont on parle. Aussi le jésuitisme tant stigmatisé par Pascal était-il biens moins hypocrite que celui de la presse. A sa honte, la presse n’est libre qu’envers les faibles e les gens isolés.” “Monographie de la presse parisienne”, op. cit.

[21] Theodor W. Adorno, “Crítica da cultura e da sociedade”, Prismas.

[22] Esse mesmo tipo de problema, abordando a questão ética do jornalismo através de suas relações enviesadas com a literatura, é o tema do livro interessante de Janet Malcolm, O jornalista e o assassinoUma questão de ética, São Paulo, Companhia das Letras, 1990.

[23] Mantive nesta versão o mesmo roteiro da palestra apresentada no curso “A Ética” em maio de 1991, sem procurar desdobrá-la em função de situações novas; ao contrário, testemunhando, com as alterações próprias do estilo escrito, o quadro de ideias e a conjuntura daquele momento. De lá pra cá, alguns fatos mereceriam observação, se fosse o caso: o recrudescimento da concorrência entre empresas jornalísticas, aguçado na batalha dos anúncios classificados de domingo entre a Folha e o Estado de S. Paulo, por exemplo, fez aflorar, num grau a mais, uma certa tendência que leva o jornal a tomar-se como o seu próprio assunto, de modo heroico (e como se a expansão febril do caderno de anúncios classificados fosse um fato histórico de uma relevância inaudita, mais do que uma escaramuça pela ampliação do espaço político-mercadológico em conjuntura de crise). No caso, o heroísmo a-histórico é uma remitização que esconde a história do próprio jornal que se põe no centro da cena. Por outro lado, a crítica cultural diária que foi dominante pela ostensibilidade sistemática com que fundava a autoridade da própria posição, durante um certo período, entrou, com a recessão, em fase recessiva, e não há o que lamentar quanto a isso, a não ser pela retração do espaço da discussão cultural. Em contrapartida, um jornalismo assumidamente ficcional e especulativo como o de Arnaldo Jabor contribui justamente na direção de mostrar que a reconciliação ética e estética com a ilusão coloca as coisas mais próximas de suas verdades (participando também de uma tendência que me parece animadora na vida cultural agora: o cineasta faz literatura e jornal como o editor do jornal faz teatro e o compositor popular faz romance enquanto o outro faz ensaio e o outro política, vídeo ou holografia). Já que a vida pública é um teatro, que o seja de melhor qualidade.

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