Na noite das Luzes
Resumo
Paris, 24 de julho de 1749. O filósofo Denis Diderot é preso por ordem expedida pelo ministro da guerra, que acumula ainda os cargos de chefe de polícia francês e censor do governo. No documento o sinete assinala a aprovação de Luiz XV, o “Bem-amado”.
Quando é assim, há de se convir: o que há é uma batalha entre a razão de Estado e a razão no sentido amplo do termo. Por mais que a mão seja monárquica, quem a comanda, no caso, é a Igreja; mais especificamente, “o infame”, “o tartufo” – o jesuíta, enfim.
No mesmo dia, Diderot escreve uma carta ao rei. A polarização é tal que assim se expressa: ou o rei é ilustrado, ou está do lado dos “padres”. Ou escolhe o bem, ou o mal. Tomar os dois partidos ao mesmo tempo? Loucura.
De nada adianta a lógica implacável de Diderot; afinal, ele não só é preso, como interrogado pelos livros apreendidos em sua casa.
O que há de ameaçador neles?
“A razão” – seria possível responder apressadamente. Acontece que o que escreve Diderot vai além, pois a razão, para ele, não encerra o debate. Ela é o próprio debate. Seus prós e contras. A crise dela.
Para tanto, Diderot desempenha papéis literários, como o de louco, criança, alcoviteiro. Abandona o “espírito a toda sua libertinagem”. Eis seu sistema contra o estabelecimento de um “sistema de pensamento”. Trata-se, pois, do livre-pensar, para o horror dos bem-pensantes.
Exemplo disso dá a Alameda das ideias, que começa por uma bifurcação. De um lado a via crúcis por que passam os adoradores de um Deus vingador; de outro, um passeio por entre os sistemas metafísicos, cujas disputas levam a nada. Eis que surge um novo caminho, que leva à cidade dos prazeres, onde o excesso também escraviza. Afinal, a vida, trata-se de passá-la fornicando?
O passeio é, então, interrompido pela nova redação de As joias indiscretas, romance libertino ao gosto de As Mil e uma noites. Com a diferença de, no caso, não haver uma Scherazade, mas um anel que leva quem o usa a revelar tudo – realmente tudo – sobre si.
A razão entregue à libertinagem e aos passeios. De que consta, enfim, a filosofia de Diderot?
A seguinte passagem da Enciclopédia é, nesse sentido, esclarecedora: “Por que não introduzir o homem em nossa obra como ele é no Universo? Por que não fazer dele um centro comum? Há no espaço infinito algum ponto de onde se possa com mais vantagem fazer partir as linhas imensas que se deve estender a todos os outros pontos para instituir o sistema de tudo o que é possível saber ou esperar racionalmente saber?”
Tratava-se – está claro – de um tempo em que a filosofia exigia coragem, não só porque havia reis e padres, mas também porque ela, em seu interior, consistia numa ruptura radical.
Paris, 24 de julho de 1749[1]: a noite termina e Diderot acaba de se levantar, quando batem à porta do modesto alojamento que ele ocupa, na rue de la Vieille Estrapade, na paróquia de Saint-Médard: “Abra em nome do rei!”. O Filósofo[2] consente e vê-se face a face com dois oficiais da polícia, portadores de uma ordem de busca e de prisão.
A ordem vem do alto, pois emana do conde d’Argenson, que acumula as três funções de ministro da Guerra, intendente de Paris encarregado da polícia e “diretor da biblioteca”, ou seja, da censura. A qual se aplica a toda obra considerada “contrária ao Estado, à religião e aos bons costumes”. Entenda-se: ao Estado monárquico, aos dogmas da religião de Estado e aos bons costumes pregados (e raramente respeitados) pelos padres dessa religião de Estado.
Há de convir-se que, quando é preciso um ministro da Guerra para servir de polícia na República das letras, é porque existe crise aberta entre a razão de Estado e a razão em sentido estrito, ou seja, a razão esclarecida apenas pela luz natural reclamada pelos “filósofos” para denunciar o obscurantismo de um clero que, pretensamente iluminado pelas lu zes sobrenaturais da Revelação, empenha-se em cegar o rei sobre o verdadeiro bem de seu Estado. Pois não é o rei que a razão combate. Na época, Luís XV merece ainda o nome de “Bem-Amado”, mesmo entre os filósofos. Seu inimigo é o Jesuíta, o Tartufo, “o infame”. O reino encontra-se num estado crítico, dizem eles. Se o rei não quiser que chegue a um estado desesperador, cumpre-lhe escolher. A alternativa é simples: a liberdade ou a morte. A liberdade de pesar, com os filósofos, ou a morte do corpo político, com os padres.
“Majestade”, escreverá Diderot, ”se vós quereis padres, não que reis filósofos, e, se quereis filósofos, não que reis padres. Pois, sendo uns por condição os amigos da razão e os promotores da ciência, e os outros os inimigos da razão e os fomentadores da ignorância, se os primeiros fazem o bem, os segundos fazem o mal; e vós não quereis ao mesmo tempo o bem e o mal.”[3]
Portanto, não há conciliação possível entre os padres e nós. Como não há entre a água e o fogo, entre a água benta com a qual eles buscam extinguir a chama da razão que vos oferecemos, majestade, para que possais ver com clareza os negros propósitos desses demônios de sotaina. Não sejais o príncipe das trevas deles. Escolhei nossas luzes. Tornai-vos, graças a nós, um Príncipe esclarecido.
Por enquanto, uma coisa é certa: naquela manhã de julho de 1749, o rei da França não escolheu o partido das luzes, já que foi em seu nome que o conde d’Argenson assinou a “ordem de prisão com o selo real” apresentada pelos dois policiais. Ela é assim redigida: “Levar a Vincennes o sr. Didrot [sic], autor do Livre de l’aveugle [Livro dos Cegos]. Apreender seus papéis. Interrogá-lo no local sobre esse livro. Les pensées philosophiques. [Os pensamentos filosóficos]. Les bijoux indiscrets. [As joias indiscretas]. L’allée des idées. [A alameda das ideias]. L’oiseau blanc, conte bleu [O pássaro branco, conto de fadas]”.
Convencidos de que seu homem os tem escondidos em casa, os dois policiais entregam-se a uma busca minuciosa. O resultado é bastante magro: encontram 21 caixas forradas de manuscritos aparentemente sem interesse, mas nada de pensamentos filosóficos dissimulados num armário ou debaixo do travesseiro. A busca da Alameda das ideias também não os leva a nada. Quanto ao pássaro branco, conto de fadas, são forçados a constatar que deve ter voado.
Resta o Livro do cego — na verdade uma brochura intitulada Lettre sur les aveugles à l’usage de ceux qui y voient [Carta sobre os cegos para o uso dos que veem], publicada no anonimato um mês antes. Se tivesse lido Poe, Diderot a teria colocado bem à vista no pano da chaminé, lugar mais idôneo para cegar policiais. Ele fez melhor: deixou dois exemplares à vista sobre sua mesa. Infelizmente, os espertos cães de caça não caíram no estratagema. E o interrogatório começa, para prosseguir no Torreão de Vincennes, perante o sr. Berryer, braço direito de D’Argenson.
A RAZÃO EM TODOS OS SEUS ESTADOS
Antes de interrogar por nossa vez o autor dessa Carta sobre os cegos e de fazê-lo confessar que uso propõe que os que veem (ou que acreditam ver) façam dela, lancemos um rápido olhar sobre os escritos que precedem. Seu inventário, com efeito, faz refletir sobre a diversidade dos aspectos que a razão apresenta, num filósofo que dela se serve não apenas como uma arma crítica contra os que ele combate, mas que a utiliza contra si mesmo ou contra aquela parte de si mesmo com a qual não cessa de dialogar, de argumentar, de disputar, como fará Jacques com seu mestre, ou Ele com seu Eu,[4] sem que um jamais tenha definitivamente razão sobre o outro. Em Diderot, a razão não encerra o debate, é o próprio debate, o pró e o contra. Ela está incessantemente em crise, e não vive senão de provocá-la.
É nisso que Diderot representa, para seus contemporâneos, o Filósofo por excelência. Seu cogito envolve um sum, mas um sum que se experimenta dividido entre um ego e um alter ego que pensa de outro modo, interferindo nas “longas cadeias de razões” que o primeiro, cartesiano por conveniência, pretende lhe impor, fazendo o papel de louco, de criança, de palhaço, de alcoviteiro: “Abandono meu espírito a toda sua libertinagem”, leremos no início de Le neveu de Rameau. “Meus pensamentos são minhas marafonas.” Modo de dizer que seu espírito se recusa a esposar um sistema. Sem por isso tornar-se um bordel. Pois a libertinagem a que convidam essas marafonas, se adquire às vezes formas licenciosas, continua sendo uma libertinagem intelectual, e a devassidão uma devassidão de ideias. Isso é o suficiente para horrorizar os bem-pensantes. Entre os quais um certo Hardy de Levaré, cura de Saint-Médard que, tão logo é publicada a carta anônima sobre os cegos, se apressem a revelar ao sr. D’Argenson que o chamado Diderot é seu autor.
Não é o primeiro serviço que esse zeloso ministro de Deus presta ao poderoso ministro do Rei. Dois anos antes, em 1747, já havia denunciado seu paroquiano por seus Pensamentos filosóficos,[5] maus por definição, por se tratar de pensamentos e por serem filosóficos. O livro fora condenado e queimado, mas o pensador deixado livre. Livre para escrever tudo o que pensava dos bem-pensantes e dos mestres que lhes ensinavam a bem pensar.
Diderot não se privara disso. A prova: sua Alameda das ideias — na verdade o passeio do cético, viagem imaginária num jardim alegórico de caminhos que se bifurcam (para retomar um título de Borges). O primeiro caminho é descrito como uma espécie de via-crúcis semeada de espinhos, que percorrem, balindo cânticos, procissões de adoradores ensanguentados de não se sabe qual Deus vingador, o qual supostamente se delicia com seus sofrimentos, e que se oculta tanto melhor a seus olhares supersticiosos na medida em que eles trazem espessas vendas sobre os olhos. Depois disso, após bifurcação, o passeador se vê no meio de metafísicos de sistema, cujas vãs disputas o arrastam a “caminhos que não levam a parte alguma” (Holzwege, para falar como Heidegger), o que apenas reforça seu ceticismo. Até que, bifurcando mais uma vez, ele entra numa “alameda das flores” com as cores de Watteau, na qual não pensa em outra coisa se não embarcar para Citera, com o único propósito de buscar seu prazer. Mas os devotos de Vênus e de Priapo encontrarão lá a felicidade? Nosso cético permanece cético: será que eles não contribuem, ao contrário, para agravar o mal-estar no interior da civilização do qual eles são o sintoma? E será uma maneira racional de “cultivar nosso jardim” (como dirá Cândido) passar a vida a “fornicar” [faire la bête à deux dos] (como dizia Rabelais), sem que jamais as duas metades, mal acasaladas por cego Amor, fiquem juntas mais que uma noite e um momento (como disse Crébillon)?
Grave questão, à qual, mal terminado seu passeio filosófico (que não chegará a publicar), Diderot se lançará de novo ao redigir As joias indiscretas, um romance libertino ao gosto das Mil e uma noites. Com a única diferença de que as histórias que o sultão Mangogul se faz contar por scherazades estilo Pompadour, não é de suas bocas hipócritas que ele as ouve sair, mas de suas “joias”, que um anel mágico lhe permite fazer falar à vontade. E o mínimo que se pode dizer é que essas joias têm a língua bem solta (seja para se queixarem de ser mal polidas por um aiatolá senil, seja para se gabarem de rutilar com todo o brilho para jovens brâmanes de dimensões hercúleas). Pois não se imagina tudo o que pode, sob a pena de um Diderot, sair da joia de uma dama, sobretudo da que se diz devota. O pudor me proíbe aqui dizer mais. De resto, talvez haja curas de Saint-Médard na sala que me denunciariam à delegacia de costumes por libertinagem exagerada.[6] Notemos apenas que, se o dr. Freud dispusesse de tão maravilhoso artifício para assim fazer falar o sexo, de coração aberto, teria se poupado o trabalho de interpretar os sonhos de suas histéricas. O levantamento do recalque teria sido uma brincadeira de criança. Ele não teria passado a vida a colocar-se e a recolocar-se a questão: “Was will das Weib?” — o que quer a mulher?
E então, o que ela quer?, perguntar-me-ão. Não contem comigo para dizer-lhes. Traiçoeiramente travestidas de curas de Saint-Médard, talvez haja na sala um comando de pesquisadoras em woman studies que — mesmo se não estamos nos Estados Unidos — lançariam sobre mim o anátema do politicamente incorreto.[7] Se quiserem saber o que quer uma mulher, leiam As joias indiscretas: é grande arte.
Arte talvez, mas não ciência, protestarão alguns, mais desejosos de matemas que de literatura libertina. Para estes, recomendarei a leitura de outro livro que Diderot, decididamente inexaurível, publica poucos meses após as Joias. Num gênero completamente diferente, posto que se trata de cinco Mémoires sur différents sujets de mathématiques (teoria dos sons, projeto de um novo órgão, novo compasso, problemas de resistência do ar), reunidas num luxuoso compêndio ilustrado de gravuras rococós que representam pequenos cupidos traçando conscienciosamente x e y numa folha de papel.
De todo modo, regalar o ouvido escutando o sexo falar de si mesmo não impede ouvir também em acústica matemática. Não são os psicanalistas lacanianos aqui presentes que irão me contradizer. Racionalistas militantes, eles são os homens das luzes de nosso tempo, que sustentam que o assunto sobre o qual operam é o assunto da ciência. Infelizmente, por mais que desenhem grafos na lousa, combinem as pequenas letras de sua álgebra de mil e uma maneiras, torçam, destorçam, cortem, tornem a colar tiras de Moebius, mitras de bispos e garrafas de Klein, gastem quilômetros de cordão para atar e desatar intermináveis cadeias borromeanas, toda a sua ciência analítica fracassou até aqui em matematizar a relação sexual. O que é matematizável, na doutrina, é antes que não há relação sexual. Teorema desolador, que no entanto se deduz logicamente (não por a + b mas por $ ◊ a) do axioma de que a mulher tampouco existe. A não ser da maneira como existia a diagonal do quadrado aos olhos dos gregos antigos. Ou seja, como um escândalo para a razão analítica, a qual, assim como não sabia, no tempo de Pitágoras, reduzir a uma cifra redonda a raiz quadrada de dois (donde a crise dos irracionais), sempre fracassa em descobrir a cifra do enigma que é a Feminidade. Incomensurável com o Homem, único parâmetro que vale no inconsciente, a Mulher é seu irracional. E a relação deles é tão impossível de calcular quanto a da diagonal com o lado do quadrado, ou da circunferência do círculo com o diâmetro: quer se escreva √2– ou r, não se acabará de alinhar decimais até o fim do mundo.
Estou brincando. Mas nem mais nem menos seriamente que Diderot em face dessa insolúvel quadratura do círculo que se ria uma relação racional entre os sexos. Insolúvel? Não exatamente, caso se leia o capítulo XVIII[8] de suas Joias indiscretas, no qual, entregando por brincadeira seu espírito de geômetra a toda a sua libertinagem, ele nos faz visitar a bem-aventurada “ilha da razão” (para retomar o título de uma comédia de Marivaux), governada por um certo Ciclófilo que descreve em detalhe a anatomia íntima dos autóctones: os machos são providos de joias talhadas em forma de cilindro, cones e pirâmides, as fêmeas apresentando os mesmos volumes como concavidades. De modo que não apenas há relação sexual, mas cada relação, calculada quase que milimetricamente, tem a garantia de ser perfeita, sem nada deixar a desejar, sem nenhum objeto pequeno a vadio — esse eterno cociente irredutível em torno do qual se tece o véu do fantasma que, em nossas terras, se impõe como terceiro entre um homem e uma mulher, e os impede de ser um só. Na ilha do Ciclófilo, em troca, é o sonho, o gozo assegurado para o resto da vida. Fim dos casais mal juntados. O exame pré-nupcial é uma questão de régua e com passo. Acrescentemos a isso o termômetro, instrumento muito útil para assegurar que as joias dos dois noivos, ainda que isoperimétricas, sejam também perfeitamente isotérmicas. Com efeito, imagine-se a desgraça de uma garota de dezoito anos com temperamento incendiário que, dotada pela natureza de uma jóia em forma de porca perpetuamente incandescente, estremecesse de horror, em sua noite de núpcias, ao sentir um esposo sexagenário adaptar-lhe um parafuso do calibre adequado, talvez, mas gelado pelos anos. Esse parafuso seria um parafuso sem fim, o casal não duraria muito.[9] Donde o teste preliminar do termômetro imposto aos dois futuros cônjuges, que as sim estarão seguros de tecer o perfeito amor. Resultado: ao contrário do que se passa alhures, os casamentos são tanto mais deliciosos na ilha de Ciclófilo na medida em que são puros casamentos de razão. Lá não se torna a casar em justas núpcias [convoler en justes noces], mas em exatas núpcias, diante de um padre geômetra que abençoa os recém-casados comuns C. Q. D. que valem por todos os Améns e os Deus vos abençoe dos curas hipócritas de Saint-Médard, os quais lavam suas mãos ante os trágicos fiascos, as crises de histeria e outras catástrofes conjugais que não deixarão de sobrevir, se o bom Deus assim o deseja.
Utopia paródica? Certamente. Assim, que os psicanalistas fiquem tranquilos: eles têm ainda belos dias pela frente. Já era isso o que anunciava Diderot. Salvo que, para ele, psicanálise queria dizer análise da alma e de suas representações, tal como Locke a havia fundado e desenvolvido em seu Ensaio sobre o entendimento humano. “Nihil est in intellectu quod non prius fuerit in sensu”, afirmava: todas as nossas ideias não passam de combinações mais ou menos complexas de ideias simples vindas de nossos cinco sentidos, e no entendimento transformadas, por um trabalho de reflexão e de abstração, em ideias gerais. Ora, esse trabalho, nós o efetuamos inadvertidamente esse trabalho desde o nascimento, à mercê da experiência perceptiva, sem ordem nem método. Nosso entendimento, tabula rasa no ponto de partida, página branca ou pedaço de cera sem nenhuma inscrição, torna-se com o tempo um palimpsesto em cujo dédalo estratificado não somos mais capazes de discernir o que nos vem originariamente desta ou daquela fonte sensível. Analisar metodicamente as representações complexas, reduzir o conceito geral abstrato à diversidade concreta de seu material sensível primitivo, reencontrar as “impressões originais” sob as ideias feitas através das quais acreditamos ver as coisas como elas são, sem suspeitar até que ponto nossos “pré-conceitos” nos iludem, e denunciar as ilusões transformando-as em razão, eis a tarefa do filósofo.
AS LUZES DO CEGO
É precisamente a essa “psicanálise” que Diderot se entrega em sua Carta sobre os cegos para o uso dos que veem, a fim de curá-los da cegueira retirando-lhes a venda dos preconceitos.
A metáfora não é nova. O passeador cético já não havia encontrado, dois anos antes, procissões de adoradores do Deus oculto com uma venda nos olhos? Ao vê-los desencaminhados, como os cegos de Bruegel, nessa noite escura iluminada para eles com os falsos brilhos de um são João da Cruz, era grande a tentação, para o cético, de arrancar deste ou daquele a venda que o obsedava: seria, dizia-se Diderot, “como um cego de nascença a quem se abrissem as pálpebras”. Mas, para que um desses cegos de nascença aceitasse ver o mundo à luz da justa razão, seria preciso ainda que o desejasse. Infelizmente, “quem acreditaria? Esses frenéticos são felizes; de modo nenhum lamentam a perda de um órgão cujo valor desconhecem; portam a venda como um ornamento precioso; derramariam até a última gota de seu sangue para não se desfazer dela”. Julgando incuráveis esses neuróticos obsessivos que se deliciam absurdamente com o próprio sintoma que põe a perder sua vida, o cético renunciava a arrancar-lhes a venda. “Deixemo-los com seus preconceitos: nos arriscaríamos demais se os tirássemos; talvez eles devam sua virtude apenas à sua cegueira.”[10] Quem sabe a que fantasmas perversos se entregariam, desembaraçados dessa venda?
O marquês de Sade, ele, o saberá. E sua virtuosa Justine aprenderá o que custa ter uma irmã sem preconceitos, formada pelo chamado Noirceuil,[11] seu mestre em filosofia, que, não contente em expor teoricamente seus grandes princípios, fará com que eles entrem em sua cabeça e em outras partes do corpo (por cima, por trás, a golpes de chicote) durante as sessões de trabalhos práticos realizados a dois ou em grupo, organizados não num liceu ou numa academia, mas numa alcova ad hoc, na qual nenhum conceito ficará sem intuição, nenhuma intuição sem conceito, para falar como o autor da Crítica da razão pura, contemporâneo do autor da Histoire de Juliette.
Embora ourives em matéria de joias, o autor da Carta sobre os cegos não tem a alma de um Noirceuil. E, embora ele se contente em dar lições de filosofia por correspondência, não é na tinta negra e cínica de um Valmont que ele molha sua pena para dirigir-se à sua destinatária. A qual, se já não é mais uma Cécile recém-saída do convento, nem uma madame de Tourvel abeatada, nem uma Justine com a virgindade espavorida, mesmo assim não possui a envergadura de uma madame de Merteuil, muito menos a de uma Juliette. É simplesmente uma mulher livre e esclarecida (chamemo-la Sofia)[12] que pede apenas que seu ami go Filósofo — com a melhor das intenções — a ajude a desembaraçar-se dos restos de uma venda quase tão transparente quanto o rendado de sua saia: o que significa que ela já vê muitas coisas em sua verdadeira realidade, à luz da razão.
Não era esse o caso da jovem srta. Simoneau, cega de nascença, que o sábio Réaumur,[13] nessa primavera de 1749, havia decidido mandar operar da catarata pelo oculista prussiano Hilmer. Momento que, uma vez feita a operação e retirada a venda por este último, era anunciado como um grande momento filosófico. Enfim, ia-se descobrir a que se assemelha o mundo visto por olhos que se abrem à luz pela primeira vez, não mais apenas metaforicamente, mas realmente. E esperava-se também que se obtivesse a resposta de um problema que permaneceu por muito tempo sem outra solução a não ser a especulativa: a que Molyneux[14] havia colocado a Locke, e que este reproduziu no livro II de seu Ensaio sobre o entendimento humano.
Suponha um cego de nascença já, ao qual ensinaram a distinguir pelo tato um cubo e um globo do mesmo metal, e mais ou menos do mesmo tamanho, de modo que, quando tocasse um ou outro, pudesse dizer qual é o cubo e qual é o globo. Suponha que, tendo o cubo e o globo sido postos numa mesa, esse cego viesse a adquirir a visão: a pergunta é se, ao vê-los sem tocá-los, ele poderia discerni-los, e dizer qual é o globo e qual é o cubo.[15]
Pequeno problema divertido de metafísica, como qual se confrontaram sucessivamente vários filósofos do século, de Locke a Condillac, passando por Leibniz, Berkeley, Voltaire, La Mettrie etc. É que, sendo uma coisinha à-toa, ele punha radicalmente em questão os fundamentos e a unidade de nossa percepção do mundo: o olho sozinho, abrindo-se à luz, vê os corpos como extensos e figurados, ou esses corpos se reduzem apenas a manchas coloridas? Qual a relação entre as ideias da visão e do tato? É uma relação de semelhança, como a de uma pintura que imita para criar, pelo artifício da perspectiva, a ilusão de objetos em relevo? O mundo visível está estruturado como uma aparência enganosa? Caso esteja, raciocinando um pouco o cego acabará por reconhecer, no que vê como um paralelepípedo, uma “expressão” da face quadrada do cubo que ele tocou, e Leibniz tirará dessa entre-expressão mútua das ideias da visão e do tato argumentos que lhe permitirão concluir pela harmonia do mundo, um mundo onde nada é sem razão, onde tudo “conspira” e ressoa com tudo.
Mas o visível não seria antes estruturado como uma linguagem convencional, as ideias da visão se relacionando com as do tato tão arbitrariamente quanto as palavras com as coisas? Ou como as palavras de uma língua se relacionam com as de outra língua? Nesse caso (é a tese de Berkeley, bispo de Cloyne, na Irlanda), não tendo aprendido jamais a decifrar os signos e dispondo apenas de um dicionário bilíngue tato-visão, o cego que voltasse a ver ficaria diante do globo e do cubo como eu, por exemplo, diante de uma página de Lacan traduzida em escrita chinesa. Por mais que raciocine durante horas, ele não será capaz de relacionar as manchas coloridas que percebe em seu olho com as sensações de algo duro, liso ou pontiagudo que o globo e o cubo haviam produzido em sua mão, assim como eu não seria capaz de relacionar uma série de ideogramas a determinada fórmula bem francesa de Lacan, como: “Não há relação sexual”, ou “O inconsciente é o discurso do Outro”.
O divertido, no caso, é que essas duas fórmulas lacanianas são bastante berkeleyanas. Vejamos a primeira: menos radical que o dr. Lacan, porém mais austero quanto aos costumes, o bispo Berkeley nuançaria, acrescentando: “Pelo menos antes do casamento”.
À segunda, em troca, ele nada teria a acrescentar. Pois, se as ideias da visão e as do tato são como as palavras de duas línguas de raízes tão diferentes como o francês e o chinês, minha experiência perceptiva testemunha que o tempo todo — sem ter consciência disso, a tal ponto estou habituado — traduzo-as uma na outra. Vejo fogo: não ponho minha mão nele. Se o tocasse, cometeria um doloroso contrassenso, que não cometerei duas vezes. Assim, como sujeito da percepção, sou bilíngue desde minha tenra infância: falo correntemente duas línguas. E esse duplo discurso sensível não é nem incoerente nem insensato. O que ele me dá a ver e o que ele me dá a tocar constituem um mesmo mundo, no qual descubro um sentido comum. Meu universo é um universo de discurso, e esse discurso, longe de ser delirante, dúplice, enganador, é o de um Conversador supremamente dotado de razão. As sim, como chamar esse Conversador a não ser de Deus? Um Deus que só me concede essa dupla linguagem por que quer meu bem. Pois, se me fala aos olhos daquilo que eu poderia pegar com a mão, é menos para convidar-me a tocar esse mundo do que para afastar-me. Certamente o tato é o sentido da verdade, na medida em que me põe em conta to com o real da coisa.[16] A visão, em troca, se me permite abarcar com o olhar várias coisas ao mesmo tempo, só as apresenta a mim à distância, com as inevitáveis ilusões que isso comporta. Mas querer bancar um são Tomé a propósito de tudo é correr o risco de perder a vida: aproximar-se demais de certas verdades particularmente duras, pontiagudas ou queimantes pode ser mortal. Mais vale assumir o risco de criar ilusões, se é o preço a pagar pela sobrevivência. Eis por que praticamos mais de bom grado a linguagem figurada da visão que a linguagem realista do tato. E estamos tão acostumados a isso que nem mais lembramos que tivemos de aprendê-la, como aprendemos a compreender e a falar nossa língua materna. Esquecemos que esse imaginário visível, que nos permite evitar a cruel prova do real, está estruturado como uma linguagem, e é portanto de ordem simbólica. Tanto nos servimos de nossos olhos que nos tornamos surdos a essa linguagem, não temos consciência de que Deus significa-se a nós através dela, que o visível é palavra do Evangelho, que o que um Merleau-Ponty irá chamar a “prosa do mundo” é a prosa de seu divino criador, e que nós a praticamos da manhã à noite, como M. Jourdain, sem o saber.
Eis aonde suas especulações sobre o problema de Molyneux conduziam o bispo Berkeley, que assim via reforçado um idealismo pelo qual Diderot, em 1749, não sentia evidentemente a menor simpatia intelectual: “Sistema extravagante”, escreverá, ”que só podia ter nascido de cegos”,[17] do gênero daqueles que o cético cruzava na alameda dos espinhos, com a venda nos olhos. Cego, um bispo evidentemente o é por profissão. E uma venda episcopal é uma venda de porte. O paradoxo é que é justamente a solução proposta por Berkeley ao problema do cego de nascença que passaria a ver que lhe permite cegar-se ainda mais sistematicamente em seu extravagante idealismo. Se ao menos seus argumentos não se sustentassem! Mas ele raciocina bem, esse maldito homem de Deus!, desespera-se Diderot. Sistema extravagante, sim, mas todavia quase irrefutável, “sistemaque, para a vergonha do espírito humano e da filosofia, é o mais difícil de combater, embora o mais absurdo de todos”.[18] Que o sono da razão produza monstros, como na água-forte de Goya, nada de surpreendente. Mas que desperta, lúcida, a razão possa delirar em suas regras e engendrar semelhante monstro metafísico, que pesadelo para todo homem racional!
Kant solucionará o problema da forma que sabemos, limitando o exercício legítimo da razão ao campo da experiência possível. Ora, o problema de Molyneux era na origem um puro problema metafísico. À questão de saber o que um cego de nascença veria ao adquirir a visão, somente a razão especulativa podia responder. A experiência nada tinha a dizer, uma vez que isso não era possível. E não era possível porque a operação não era tecnicamente realizável.
Claro que se podia sempre (tendo Jesus já curado um cego de nascença) pedir aos Céus para consentir tal milagre. Ao menos para quem estivesse no campo dos devotos. Pois, no das Luzes, contar com um milagre para fazer avançar a causa da justa razão teria sido singularmente inconsequente. De resto, o milagre havia se produzido. Não por graça de Deus. Graças aos progressos da cirurgia. Em 1728, na Inglaterra, o hábil William Cheselden conseguia “diminuir as cataratas” de um cego de nascença de treze anos, e publicava um longo relatório sobre as reações pós-operatórias de seu jovem paciente, no qual Berkeley encontra uma espantosa confirmação de suas teses.[19] Assim, ele não somente tinha a seu favor argumentos racionalmente irrefutáveis, mas a experiência parecia confirmar seu extravagante sistema!
Inadmissível! Sem dúvida a experiência fora mal conduzida. Ou Cheselden, em seu relatório, havia interpretado mal as afirmações de seu cego curado. Teria sido preciso um verdadeiro filósofo à sua cabeceira, para interrogá-lo, e colocar-lhe as questões corretas…
Assim, quando, no início de 1749, correu os salões o rumor de que o oculista Hilmer ia abrir os olhos da jovem protegida de Réaumur, toda a Paris filosófica quis ver aquilo. A começar por Diderot, que pediu para presenciar a retirada da bandagem, com sua querida Sofia. Mas Réaumur recusa a presença do Filósofo: “Ele quis que o véu fosse retirado apenas diante de alguns olhos insignificantes” [sans conséquence],[20] escreverá, amargo, à sua correspondente. E tanto mais amargo quanto, entre esses “olhos insignificantes”, estavam os do conde D’Argenson, responsável pela manutenção da ordem, ou seja, manutenção das vendas sobre os olhos da população. Era o cúmulo! Como testemunha esclarecida, Diderot é que deveria estar presente. Ele e seus olhos, que não eram insignificantes. Como filósofo, teria sabido tirar todas as consequências que se impunham diante do espetáculo dessa moça cega sendo desembaraçada de sua bandagem. Interrogada por ele sobre o que seus olhos novos percebiam, seguramente ela não teria se posto de joelhos e exclamado: “Milagre! Vejo Deus me falar”, ou outras balelas episcopais…
SAUNDIDERSON
Imaginamos portanto Diderot desesperado por não ter assistido ao espetáculo. Enganamo-nos. Ele não se deixa abater, dizendo-se certamente que, se Réaumur decidira convidar o chefe de polícia, era porque aparentemente não contava com revelações muito impactantes da parte da jovem Simoneau, jovem corajosa talvez, mas que, mal preparada para esse tipo de experiência e demasiado ingênua para avaliar suas implicações metafísicas, devia trazer sob sua bandagem uma espessa venda de preconceitos impenetráveis às verdadeiras luzes da razão. Consolemo-nos, não perdemos grande coisa, ele escreve à sua correspondente. E, para consolá-la, envia-lhe essa Carta que, ele espera, lhe mostrará que não há melhor consolação que a consolação da filosofia. “Privado de uma experiência na qual não via muito a ganhar para a minha instrução nem para a sua […], pus-me a filosofar com meus amigos sobre a importante questão que ela tem por objeto. Como ficaria feliz se o relato de uma de nossas conversações pudesse substituir, junto a você, o espetáculo que muito levianamente, eu lhe havia prometido.”[21]
Assim, por não ter podido oferecer a coisa mesma para que ela olhasse, são palavras que ele oferece em troca para que ela leia. Ela não tem do que se queixar. Pois, em vez do espetáculo malogrado de uma cega de nascença que, mesmo operada, não teria visto mais que a ponta de seu nariz, Sofia tem direito ao relato perfeitamente bem-sucedido (sobretudo do ponto de vista literário) de uma conversação filosófica a respeito de e com cegos.
Primeiro com o cego de Puiseaux (uma cidadezinha do centro da França), para junto de quem o Filósofo e seus amigos se dirigem “no mesmo dia em que o prussiano fazia a operação da catarata na jovem Simoneau”. Eles não terão lamentado a viagem, tantos são os conhecimentos que esse não-vidente de bom senso oferece, ao lhes falar do fundo dessa noite na qual, tendo por assim dizer “olhos na ponta dos dedos”, vê melhor que nós, em plena luz. Especialmente em questões morais, como a do pudor, que nada significa para ele; ou de estética, como a definição clássica do belo, a qual ele faz notar o quanto é própria aos videntes, e portanto muito relativa. Quanto à ideia que tem de um espelho, ela deslumbra o Filósofo, e faz refletir o analista lacaniano, aos olhos do qual sabemos que papel estruturador adquire o “estágio do espelho” na constituição do eu como instância de desconhecimento imaginário.
É precisamente ao questionamento radical dos prestígios do imaginário, e à subversão de um mundo em ordem no qual nos comprazemos em reencontrar nossa tranquilizadora imagem no espelho, que Diderot irá se lançar na continuação de sua Carta. Por meio, desta vez, de uma pseudoconversa com Saunderson, o famoso geômetra inglês (1682-1739) que, mesmo sem ter olhos, é mais lúcido acerca do que nos diz respeito, em verdade e realmente, nesse admirável espetáculo do mundo em que os que têm olhos imaginam ver a obra de um Deus supremamente bom e racional — o maior Arquiteto, o maior Relojoeiro, o maior Engenheiro, Cenógrafo, Diretor de ópera que o mundo conheceu desde a eternidade, sem esquecer que Ele é também o maior dos Conversadores e o maior Autor do mais belo livro jamais publicado (com exceção da sagrada Bíblia e do sagrado Alcorão) na literatura universal: o Livro da Natureza, permanentemente aberto a todos os olhos. Ora, ao lermos o que Diderot ousa pôr nos lábios de seu Saunderson, salta aos olhos que esse grande bom Deus, esse Polifemo de uma eloquência inimitável (quer tenha Moisés, Jesus, Maomé, Clarke, Newton ou o bispo Berkeley como profetas), não apenas não nos diz absolutamente nada, não apenas é tão cego como o homérico ciclope mutilado por Ninguém, mas também nem sequer existe; o que nos olha lá do alto, por cima das nuvens, de modo nenhum é o Olho eterno de um Pai providencial: é um buraco negro, uma órbita viva que se abre sobre um abismo sem fundo no silêncio eterno dos espaços infinitos.
Leiamos o relato dos últimos momentos de Saunderson, tais como Diderot os reinventa para a necessidade de sua causa: “Quando estava à beira da morte, chamaram a seu leito um ministro muito hábil, o sr. Gervaise Holmes. Eles tiveram uma conversa sobre a existência de Deus da qual nos restam alguns fragmentos que traduzirei da melhor maneira possível”, ele anuncia a Sofia, sem esclarecer (mal ela terá compreendido) que a referida conversa é a que o Filósofo teve consigo mesmo.
Não tendo Saunderson jamais oculta do seu ceticismo, “o ministro começou por objetar-lhe as maravilhas da natureza”: “Meu senhor”, redarguiu-lhe o filósofo cego, “todo esse belo espetáculo não foi feito para mim! Fui condenado a passar minha vida nas trevas, e citais-me prodígios que não entendo, e que provam apenas para vós e para os que veem como vós. Se quereis que eu creia em Deus, deveis fazer-me tocá-lo”.[22]
Quando alguém se chama Holmes, não é por tão pouco que se perturbará. “Senhor”, retomou habilmente o ministro, “pode as mãos em vosso corpo, e encontrareis a divindade no mecanismo admirável de vossos órgãos…”
Quereis tocar em Deus? Elementar, meu caro Saunderwatson: tocai-vos. O Deus que não podeis ver, vós o tendes à mão, essa mão que utilizais com tanta habilidade como se tivésseis olhos na ponta dos dedos. Apertai simplesmente essa mão com vossa outra mão, e sereis forçado a constatar que é a Mão divina do grande Mecânico (da qual a vossa é o produto) que tereis apertado, prova evidente de que o encontrastes, e portanto de que Ele existe, e, como um Pai a seu filho bem-amado, vo-la estende ainda nesse momento crítico, essa Mão, para convidar-vos a dar o grande salto, e a vê-lo enfim face a face, na eterna luz de seu paraíso.
O problema é que Saunderson, após algumas observações de bom senso sobre as falhas da grande máquina do mundo (“A ordem não é tão perfeita que não apareçam ainda de tempo em tempo produções monstruosas”,[23] diz, enquanto leva a mão àquela parte de sua própria máquina que, evidentemente, apresenta um grave defeito de fabricação, já que ele nasceu sem olhos. Então, “virando-se para o ministro, acrescentou” — mirando-o cegamente nos olhos: “Vede, sr. Holmes, não tenho olhos. Que fizemos a Deus, vós e eu, para que um tivesse esse órgão e o outro não?”.[24]
Argumento sem réplica, e tanto mais forte quanto, na boca mesma desse monstro, a demonstração é acompanhada de “mostração” e assume de imediato um valor performativo: ei-lo, sr. Holmes, esse Deus que quereis fazer-me tocar com o dedo. Mas na verdade sois vós que pondes o dedo no olho, imaginando que ele é perfeito. Não sou eu, eu que vos falo, o defeito vivo de sua criação? E esse defeito não atesta, mais seguramente que todas as vossas provas, que o Ser supostamente perfeito que me criou não existe? Não atesta que eu, como vós, como esse mundo mesmo onde nascemos, não somos senão o efeito momentaneamente viável de certa combinação aleatória de moléculas entre incontáveis outras combinações possíveis, que já produziram e ainda produzirão incontáveis outros mundos? Jamais o lance de dados de que somos o efeito abolirá o acaso que, desde a noite dos tempos, preside à partida sem fim nem propósito que a natureza joga consigo mesma. Je n’ai pas d’yeux, donc Dieu n’est pas,*[25] sr. Holmes. Ou, se existe, é o que vedes aqui, agora, em meu leito de agonia, mãos juntas sobre o peito: um pobre monstro nascido cego, a ponto de expirar, e que vos diz um eterno adeus. Pois acabou-se: eu e Deus morremos; retornamos, de mãos dadas, ao nada. Orai por nós se isso vos agrada…
Com esse happy end da morte de Deus, ao vivo, sob os olhos mesmos de seu devoto ministro (como se Saunderson fosse um nome de Deus comparável a Alá, Godot ou Jeová), reconheço que faço Diderot dizer mais do que ele escreve. Mas não mais do que pensava, e queria fazer, além de Sofia, que seus leitores filósofos pensassem. De resto, ele próprio não se incomoda em recorrer à ficção, e fazer morrer a seu modo o Saunderson da história: em Diderot, quando se trata de coisas sérias e a razão se vê levada a seus extremos, fala com uma paixão tão comunicativa que o universitário mais insensível sente, contra a vontade, a sua entrar em crise, e não pode deixar de se comportar sem a reserva a que está obrigado.
O fato é que os propósitos subversivos de Saundiderson, se não chegaram a abalar o reverendo Holmes (que não pôde ouvi-los, já que são inventados), não deixarão indiferente esse outro ministro de Deus que é o cura de Saint-Médard. Adivinhando o danado paroquiano que se oculta sob esse pseudônimo, ele se apressará a revelar ao ministro do rei o verdadeiro patronímico do autor da Carta anônima. E o sr. D’Argenson, supondo até que tivesse sido cego ao que havia de irreligioso (e mesmo de antecipadamente sadia no) na conversa desse padre e desse moribundo, não podia deixar passar os “olhos insignificantes” que lhe atribuía insolentemente, no início da Carta, o vulgar filho de um cuteleiro de Langres. Insignificantes, meus olhos de chefe de polícia? Vais ver, Filósofo, que consequência eles trazem para ti. E, em resposta à sua correspondência, o Filósofo se vê encerrado no Torreão de Vincennes.
O FILÓSOFO E SEU DUPLO
Para Diderot o golpe é duro: quando uma ordem de prisão lança alguém, sem outra forma de processo, num desses buracos negros que são as bastilhas reais, não se sabe quando ele verá a luz de novo, nem mesmo se voltará a vê-la.
Mas seu encarceramento também é grave para outros. Vimos que os dois policiais encarregados de detê-lo haviam encontrado em sua casa um lote de 21 caixas cheias de manuscritos aparentemente inofensivos. Na verdade tratava-se da tradução de uma parte dos artigos da Cyclopaedia do inglês Chambers, publicada em 1728. Esses artigos deviam ser vir de material para uma enciclopédia francesa que um consórcio de livreiros havia iniciado, alguns anos antes. Em 1747, eles haviam confiado sua direção a Diderot e a D’Alembert, que, à frente de uma “sociedade de homens de letras”, transformarão completamente o projeto inicial para fazer dele, após vinte anos de renhidos combates,[26] esse monumento das Luzes que é a Encyclopédie, ou Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers (28 volumes in folio, dezessete de textos e onze de ilustrações, 71818 artigos…). Com Diderot detido, esse formidável empreendimento editorial achava-se bruscamente suspenso. Para os livreiros, era uma catástrofe financeira: eles haviam investido muito e viam-se ameaçados de falência.
Ferida de dinheiro, dirão, não é mortal. Mas era a razão, no caso, que corria o risco de ser penalizada. E não a menor das penas: as dos “homens de letras” que haviam aceitado colocar a sua a ser viço do empreendimento filosófico comum: Voltaire, Montesquieu, Quesnay, Turgot, D’Holbach, Marmontel, Dumarsais, Tronchin etc., sem esquecer o mais íntimo amigo de Diderot: Rousseau.[27] A notícia do encarceramento no Torreão de Vincennes desse alter ego querido representa para ele um golpe terrível: “Nada jamais descreverá as angústias que me fez sentir a desgraça de meu amigo. Minha funesta imaginação, que leva sempre o mal ao pior, desorientou-se. Julguei-o lá para o resto da vida. A cabeça quase ficou transtornada com isso”.[28]
Três meses mais tarde, ela ficaria completamente transtornada, na estrada de Paris a Vincennes que ele percorria a pé, três vezes por semana, para ir abraçar o Filósofo preso. Sendo longo o percurso, ele se habituara, enquanto caminhava, a percorrer as páginas de um livro ou jornal. Nesse dia de outubro o sol era forte, e o caminhante solitário estava mergulhado na leitura do Mercure de France. Teria feito melhor se com ele cobrisse o crânio: pois, ao virar uma página e deparar com o tema do concurso da Academia de Dijon para o prêmio do ano seguinte, foi acometido de uma súbita e fulminante insolação intelectual. Acidente de percurso do qual seu primeiro Discurso será apenas a primeira consequência. Tanto melhor para nós, mas não para ele, uma vez que, a crer no que disse, “todo o resto de minha vida e de meus infortúnios foi o efeito inevitável desse instante de desvario”.[29]
“O progresso das ciências e das artes contribuiu para corromper ou para aprimorar os costumes?” Tal é a escolha crítica diante da qual o coloca esse Mercure [Mercúrio], funesto mensageiro de um deus que ia provar-lhe, na hora, a verdade do adágio antigo: “Quos vult perdere Juppiter dementat”[30] — Júpiter aliena os que ele quer pôr a perder. Que se julgue: “No mesmo momento, entrevi outro universo, tornei-me um outro homem”, ele escreverá nas Confissões. Na segunda de suas cartas a Malesherbes, era em termos mais clínicos que se descrevia como são Paulo extasiado no caminho de Damasco:
Se existe algo parecido com uma inspiração súbita, é o movimento que se produziu em mim nessa leitura; de repente sinto o espírito deslumbrado por mil luzes; multidões de ideias vivas apresentaram-se ao mesmo tempo com uma força e uma confusão que me causaram um distúrbio inexprimível; sinto a cabeça tomada por um atordoamento semelhante à embriaguez. Uma violenta palpitação me oprime, agita meu peito; não podendo mais respirar caminhando, deixo-me cair sob uma das árvores da avenida e fico ali uma meia hora em tal agitação que, ao levantar-me, percebo toda a frente de meu casaco molhada de minhas lágrimas sem ter nota do que as derramara.[31]
Iluminação, essa súbita inspiração? Certamente, mas que no momento o fascina a ponto de cegá-lo, e só o inspira impedindo-o de respirar. Na verdade, trata-se muito exatamente de uma crise, no sentido médico em que se entendia o termo na época. “crise: esforço que a natureza produz nas doenças, geralmente acompanha do de suor ou algum outro sintoma, e que faz pensar na ocorrência de uma doença”, lê-se na edição de 1740 do Dictionnaire da Academia Francesa. E é de fato por meio de uma crise que a Natureza, há muito recalcada, retorna a ele (“Expulsem o natural, ele retorna a galope”) para ditar-lhe a resposta que se impõe à questão colocada pela Academia: sim, longe de aprimorar os costumes, as ciências e as artes são culpadas de corrompê-los. Resposta em forma de veredicto (esse veredicto que é etimologicamente uma crise,[32] mas um veredicto tão inesperado para o sábio artista que Rousseau se orgulha de ser (compositor de uma ópera-balé — Les muses galantes —, ele acaba de escrever os artigos de teoria musical que Diderot lhe encomendou para a Enciclopédia) que a princípio ele só consegue anunciá-lo a si mesmo na linguagem cifrada do sintoma, em que o médico reconhece que seu doente está a ponto de entrar em crise, com consequências boas ou nefastas. Comparem-se as linhas da carta de Malesherbes citadas mais acima com o que escreverá Bordeu: “A crise, diz Galeno, e depois dele toda a sua escola, é precedida de um desarranjo singular das funções; a respiração se torna difícil, os olhos ficam brilhantes; o doente cai no delírio, acredita ver objetos luminosos; chora…” etc. Seguem-se então estas ou aquelas “excreções críticas” (Bordeu remete aos artigos Urina, Escarro, Suor, Hemorragia), que são outros tantos “meios de conhecer a ocorrência da doença”,[33] melhor dizendo, seu resultado, favorável ou fatal.
No caso de Rousseau, é numa folha de papel branco molhada de lágrimas que flui, pelo canal de um lápis preto, a excreção crítica. Extremamente crítica, inclusive, pois se trata do primeiro jato da famosa “prosopopeia de Fabricius”, eloquente e sublime escarro lançado contra as ciências e as artes pelo futuro autor do primeiro Discurso que, arrasado debaixo de sua árvore, acaba de descobrir-se terrivelmente enfermo da civilização.
A crise, de resto, está apenas começando, e o doente está tão pouco curado que, retomando o caminho para Vincennes, chega lá “numa agitação que raiava no delírio”. Clínico perspicaz, “Diderot o percebeu. Disse-lhe a causa e li para ele a prosopopéia de Fabricius escrita a lápis debaixo de um Carvalho”.[34]
Pensar-se-á que, ao ouvir seu alter ego deblaterar contra as ciências e as artes para a glória das quais ele, Diderot, ambicionava erguer o monumento da Enciclopédia, o Filósofo terá caído de costas, terá chamado o outro de falso amigo, de ignóbil traidor da causa das Luzes. De maneira nenhuma. Ao contrário, como o médico que, constatando o estado desesperado de seu paciente, lhe prescreveria o vomitivo ou o clister indispensável para provocar um salutar suplemento de excreções críticas, “ele exortou-me a dar prosseguimento a minhas ideias e a concorrer ao prêmio”. Dócil, o paciente se apressa a obedecer, e passa noites redigindo um belo discurso com essas excreções mescladas de bile negra. “Concluído esse Discurso, mostrei-o a Diderot, que ficou contente com ele.”[35] Os acadêmicos de Dijon também, uma vez que, em 9 de julho, o coroam. E Diderot não apenas aplaude essa decisão, mas imediatamente se encarrega de mandar imprimi-lo e publicá-lo, munido do verso de Ovídio que Rousseau havia escolhido como divisa e que figurava na página de rosto, em exergo: “Barbarus hic ego sum, quia non intelligor illis”.[36]
A atitude e a conduta de Diderot, nesse episódio, são no mínimo surpreendentes. Ao aplaudir o Discurso desse Barbarousseau, o “amigo da razão e promotor da ciência” não teria ele próprio perdido um pouco a razão? No fundo do buraco negro no qual havia passado quatro longos meses, não havia se tornado tão cego quanto os “inimigos da razão e os fomentadores da ignorância” que lá o lançaram?
É verdade que os primeiros tempos de sua estadia no Torreão de Vincennes o mergulharam em profunda melancolia. Mas não a ponto de fazê-lo sucumbir na loucura de um Tasso (ou de um marquês de Sade, trinta anos depois).[37] Após alguns momentos de depressão, ele logo recupera todo o seu caráter filosófico. A prova: traduz de memória a Apologia de Sócrates nas margens de um Milton — o Homero inglês, outro cego exemplar. Como afirmar melhor que o paraíso jamais está perdido para quem, mesmo no inferno escuro de seu calabouço, continua a ter fé nas luzes libertadoras do logos, como filho e herdeiro digno de Sócrates, como Saundiderson reforçado por um Socratson?
Então por que, mal saído de sua prisão, ele faz a apologia desse falso irmão que ele maieutizou apenas para fazê-lo parir seu Discurso bárbaro, e que ainda por cima o mercado pretende agora tomar como um outro Sócrates que sustenta teses exatamente contrárias às de seu alter ego? Que se releia, com efeito, o início do Discurso: “O restabelecimento das ciências e das artes contribuiu para aprimorar ou corromper os costumes? Eis o que é preciso examinar. Que partido deverei tomar nessa questão? Aquele, senhores, que convém a um homem de bem que nada sabe, e que nem por isso se despreza”.* Em suma, como dizia o antepassado: “Sei apenas que nada sei”. E me orgulho disso, acrescenta Rousseau. Mas ele sabe o suficiente, o sofista, e maneja suficientemente bem a arte da retórica para demonstrar que essas mesmas ciências e essas artes são a causa de todos os males de que padecem seus contemporâneos. Não chegará ele a lançar por escrito o anátema contra a imprensa, qualificada de “arte de eternizar as extravagâncias do espírito humano”? São as suas extravagâncias, que essa arte funesta terá permitido eternizar, indignar-se-ão, ao lerem, impresso preto no branco, que, “graças aos caracteres tipográficos e ao uso que fazemos deles, os perigosos devaneios dos Hobbes e dos Spinozas permanecerão para sempre”. Como se os devaneios dele, Rousseau, fossem inofensivos! Ide, obras célebres, das quais a ignorância e a rusticidade de nossos pais não seriam capazes”, ele ousa prosseguir:
Acompanhai, entre descendentes, essas obras mais perigosas ainda, de que exala a corrupção de costumes de nosso século, e levai junto aos séculos vindouros uma história fiel das vantagens de nossas Ciências e de nossas artes. Se vos lerem [estaria pensando nas Joias indiscretas?], […] levantarão as mãos aos céus e dirão, com o coração amargurado: Deus todo-poderoso, tu, que tens nas mãos os espíritos, livra-nos das luzes […][38]
Quais luzes? As de um Saunderson, certamente, pelas quais Diderot seria lançado no cárcere, denunciado pelo cura de Saint-Médard…
O quê? O cura de Saint-Médard e J.-J.Rousseau no mesmo combate? O mesmo aspersório obscurantista brandido contra o archote das luzes? Pior ainda: pois, se Rousseau também sonha com o archote, trata-se antes da tocha purificadora que brandem hoje os barbudos de toda espécie para incendiar, em nome de Deus todo-poderoso e misericordioso, as bibliotecas que abrigam os escritos satânicos de um Salman Rushdie e outros renegados. Esse roussocrata enfurecido não acaba por metamorfosear-se num aiatolá de olhar flamejante, quando declara, na penúltima página de seu Discurso, que “considerando-se as tremendas desordens que a imprensa já causou na Europa, julgando-se o futuro pelo progresso que o mal faz de um dia para outro, após dia, pode-se com facilidade prever que os soberanos, para banir essa arte terrível de seus Estados, não tardarão a ter tanto trabalho quanto tiveram para introduzi-la”? Seguindo nisso o sensato exemplo do sultão Achmet, príncipe esclarecido como jamais houve algum, o qual, “cedendo à importunação de algumas pessoas de pretenso bom gos to, consentira em instalar um prelo em Constantinopla. Mas, assim que a prensa começou a funcionar, viram-se obrigados a destruí-la e a jogar as peças num poço”. O poço de uma verdade ímpia que, sem eles, jamais teria saído dali…
Lendo isso, os livreiros associados para imprimir a Enciclopédia devem ter se regozijado. E perguntado se não chegara o momento de se reconverterem em artesãos copistas, e lançarem-se à caligrafia barata do Evangelho, o único livro que, segundo Rousseau, merece escapar das chamas. Pois, quanto aos outros livros, ele pensa, como o califa Omar, que eles são bons para ser queimados:
Conta-se que, tendo sido o califa Omar consultado sobre o que se deveria fazer da biblioteca de Alexandria, respondeu nestes termos: “Se os livros dessa biblioteca contêm coisas opostas ao Alcorão, são maus e é preciso queimá-los; se só contêm a doutrina do Alcorão, queimai-os do mesmo modo: são supérfluos”. Os nossos sábios citam esse raciocínio como o Cúmulo do absurdo. Supondo, no entanto, Gregório, o Grande, no lugar de Omar e o Evangelho no lugar do Alcorão; a biblioteca teria sido igualmente queimada e esse seria talvez o mais belo traço da vida daquele ilustra pontífice.[39]
Eis o gênero de afirmações incendiárias que em dezembro de 1751 Diderot podia ler no Discurso editado sob seus auspícios. Ora, na mesma data, aparecia o Prospectus redigido pelo mesmo Diderot e endereçado aos futuros assinantes da Enciclopédia, cujo primeiro volume já estava no prelo. Como por acaso, ele também evocava a biblioteca de Alexandria. Mas num tom completamente diferente, e para deplorar sua perda: “Que a Enciclopédia se torne um santuário onde os conhecimentos dos homens estejam ao abrigo dos tempos e das revoluções”, declarava, consciente do caráter sagrado do monumento cujas fundações ele e seus colaboradores acabavam de lançar. E, lamentando que os antigos egípcios, caldeus, gregos, romanos não tenham deixado semelhante monumento de seu saber, exclamava:
Façamos pois, para os séculos vindouros, o que lamentamos que os séculos passados não tenham feito para o nosso. Ousamos dizer que, se os antigos tivessem produzido uma enciclopédia tal como produziram tantas coisas grandiosas, e apenas esse manuscrito tivesse restado da famosa biblioteca de Alexandria, ele teria sido capaz de nos consolar da perda dos demais.[40]
Entre os dois, aparentemente, é como o dia e a noite: se amanhã devesse restar apenas um livro, que seja nossa Enciclopédia, proclama o Filósofo, com os olhos da razão voltados para uma civilização futura esclarecida pelo progresso das ciências e das artes. A esse prospectus progressista se opõe, termo a termo, o respectus retrógrado de seu alter ego. Com os olhos do coração nostalgicamente fixos num passado povoado de felizes bárbaros ignorantes e incultos, verdadeiro paraíso perdido cuja assombrosa visão ele tivera debaixo de sua árvore, Rousseau proclama, ao contrário: que nossa bíblia seja o Evangelho. E mais: para quê o esforço de aprender a ler, mesmo o Evangelho, se a ciência que ele nos ensina é a virtude? Essa ciência se acha ao alcance de qualquer analfabeto, contanto que saiba, dentro dele, ouvir a voz da consciência: “Oh! virtude, ciência sublime das almas simples, acaso é preciso tanta pena e tanto aparato para conhecer-te? Teus princípios não estão gravados em todos os corações? E não bastará, para aprender tuas leis, voltar-se sobre si mesmo e ouvir a voz da consciência no silêncio das paixões? Eis aí a verdadeira filosofia”.[41]
Donde se poderia concluir que a filosofia pela qual Diderot se bate não é senão uma pseudo filosofia, e que ele não passa de um sofista aos olhos de seu alter ego. Isto é claro: o mais Sócrates dentre os dois não és tu, sou eu, parece com efeito dizer-lhe Rousseau. Tua ciência sem consciência não é senão ruína da alma e corrupção dos costumes, senhor raciocinador. Ao que o raciocinador poderia evidentemente responder: sou eu, não tu, quem segue o verdadeiro Sócrates. Tua consciência sem ciência não é senão imbecilidade de espírito e barbárie grosseira, pobre louco. Guarda para ti e teus carneiros balantes tua moral de pastor.
Ora, em absoluto: bravo, Rousseau, responde Diderot. É que, apesar das aparências, os dois Sócrates não (ou ainda não) se tornaram irmãos inimigos. Praticam juntos a “verdadeira filosofia” contra os mesmos “inimigos da razão”. Ainda que dividam os papéis no campo de batalha, e um creia num Deus que o outro prefere ignorar, nada impede que formem um par e combatam como um único homem, cada um com suas armas próprias, para defender a ideia comum que têm da razão humana, em seu uso prático e teórico. Mutatis mutan dis, um está para o outro assim como o Kant da segunda Crítica (e da Religião nos limites da simples razão) estará para o Kant da primeira. Se Rousseau, músico de vocação, declara especializar-se na escuta da voz da consciência (“instinto divino, imortal e celeste voz”, que a Profession de foi du vicaire savoyard fundará em razão), a retransmissão pública que oferece dessa voz, em 1751, de modo nenhum visa a deslustrar “a glória desses homens célebres que se imortalizam na república das letras” e provam que ela não é povoada apenas de homens corruptos. Testemunham-no “os Verulamio, os Descartes, os Newton”,[42] e presentemente os D’Alembert e os Diderot que Rousseau não nomeia, mas nos quais não obs tan te pensa. Modesto, dizendo-se incapaz de alcançar, ele, o obscuro cidadão da República de Genebra, a mesma imortalidade nessa república das letras na qual Diderot acaba no entanto de dar-lhe o direito de cidadania, conclui seu Discurso com estas palavras de uma vigorosa eloquência: “Esforcemo-nos para estabelecer, entre eles e nós, essa gloriosa distinção que outrora se conhecia entre dois grandes povos: um sabia dizer bem e o outro agir bem”.[43]
Em suma: a ti, Diderot, o papel do instruído e sábio ateniense. A mim, Rousseau, o do virtuoso espartano. Sabes dizer bem sem com isso fazer mal? Eu sei fazer bem sem com isso maldizer meus amigos. A prova: falo bem de ti.
Pouco sensível aos elogios, Diderot apreciará no entanto o de seu amigo em seu justo valor: “O elogio de um homem honesto é a mais digna e doce recompensa que outro homem honesto pode receber: após o elogio de sua consciência, o mais lisonjeiro é o de um homem de bem”. E, quando esse homem de bem se identifica com a voz da consciência, que reconforto para o homem de ciência! “Ó, Rousseau, meu caro e digno amigo, jamais tive a força de me recusar a teu louvor: com ele senti crescer meu gosto pela verdade e meu amor pela virtude”, ele confidenciará, bem no meio do artigo “Enciclopédia” da Encyclopédie.[44]
Da virtude, Diderot terá muita necessidade, para lançar-se às novas batalhas que o esperam e para obstinarse em querer satisfazer, volume após volume, esse gosto pela verdade que a coalizão dos ortodoxos em vão tentará tornar-lhe amargo. Sócrates ele é, Sócrates continuará sendo, mesmo que tenha de beber a cicuta na taça da verdade. Façanha tanto mais meritória quanto, nesse meio tempo, Rousseau a terá deixado cair, pondo fim a essa fraterna relação vivida até então entre os dois como a repetição, no plano individual, da gloriosa distinção entre Esparta e Atenas. Doravante, no mundo do logos que eles defendiam juntos, será a guerra do Peloponeso.
A ÁRVORE ENCICLOPÉDICA
Deixemos o Cidadão acreditar estar agindo bem ao desenvolver, sozinho no fundo dos bosques, as consequências da visão retrospectiva que tivera, debaixo de sua árvore, no dia em que ia visitar o Filósofo. Sem prever que já havia, em sua mente, começa do a afastar-se dele para conquistar para sempre uma pátria imaginária, nela sonhar o contrato social, ou povoá-la com os seres de sua afeição, felizes por serem iletrados.[45]
Quanto ao Filósofo, à testa da “sociedade dos homens de letras” que colaboram com a Enciclopédia, ele não se contenta em dizer bem. Embora tenha a forma de um Dicionário, essa Enciclopédia não trata apenas de palavras,[46] mesmo definidas de tal modo que a ciência possa tornar-se essa “língua bem-feita” de que fala (e que fala) Condillac. Língua que, permitindo dizer bem o que se sabe, permite ser bem entendido por outros que, ao lerem essas palavras, poderão assim ter uma ideia justa das coisas que ignoram. Certamente, reconhece Diderot, “não se pode negar que, desde a renovação das letras entre nós, devemos em parte aos dicionários as luzes que se espalharam pela sociedade, e esse germe de ciência que dispõe insensivelmente os espíritos a conhecimentos mais profundos”. Assim era importante “ter um livro que se pudesse consultar sobre todos os assuntos”. O Dicionário das ciências, das artes e dos ofícios será esse livro.
Mas, mesmo sendo um dicionário universal, não mereceria também o título de Enciclopédia? Com efeito, o que é uma enciclopédia? Abramos esta, no artigo Enciclopédia. Após ter advertido o leitor de que uma enciclopédia depende da filosofia, Diderot passa à definição da palavra: “enciclopédia, s. f. (filosofia). Essa palavra significa encadeamento dos conhecimentos; ela é composta da preposição grega en e dos substantivos Kyros ‘ círculo’, e paideia, ‘ conhecimento’”. Segue-se um comentário sobre a ideia que o Filósofo faz da coisa, não como ela é (pois não existe ainda enciclopédia digna desse nome, visto que “competia apenas a um século filosófico tentar uma enciclopédia”[47]), mas como deveria ser, uma vez realizada conforme ao objetivo fixa do por seus diretores.
Qual é esse objetivo? É “reunir os conhecimentos espalhados sobre a face da Terra”, responde Diderot; expor seu sistema aos homens com os quais vivemos e transmiti-lo aos que virão depois de nós, a fim de que […] nossos sobrinhos, mais instruídos, se tornem ao mesmo tempo mais virtuosos e mais felizes, e que não morramos sem ter merecido o gênero humano”.
Se o primeiro objetivo da Enciclopédia é, portanto, instruir o gênero humano, esse objetivo é apenas um meio para alcançar seu fim último, que é educá-lo na prática da virtude, na qual (o fazer bem indo de par com o viver bem) encontrará sua felicidade. Ou seja: lançar os fundamentos de uma nova Atenas que viva virtuosamente, como uma Esparta (ou o inverso).
Eis o que deve ser a ambição de uma enciclopédia autenticamente filosófica. Pois, “hoje que a filosofia avança a grandes passos; que submete a seu império todos os objetos de sua alçada; que seu tom é o tom dominante, e se começa a sacudir o jugo da autoridade e do exemplo para obedecer às leis da razão”,[48] a Enciclopédia será “filosófica” ou nada será.
De que modo o será?
Dando a saber, em primeiro lugar. Convidando cada um a fazer sua a divisa das Luzes: Sapere aude! Ouse saber. O que não quer dizer ousar saber tudo: “Aquele que se anuncia como sabendo tudo mostra apenas que ignora os limites do espírito humano”[49] e se toma por Deus. Um filósofo, mesmo enciclopedista — e justamente por ser enciclopedista —, não se toma loucamente por Deus. Longe de visar à onisciência e de pretender captar o universo do ponto de vista absoluto que seria o de seu improvável criador, de pretender conhecer todas as coisas tais como elas são em si, ele, se atém ao ponto de vista do homem e à representação que este faz das coisas tais como elas lhe aparecem. Relativo, esse ponto de vista lhe dá apenas uma representação parcial e interessada, mas é por esta que o Filósofo se interessa, por ser a única interessante. Que se pense que,
se banirmos da superfície da terra o homem ou o ser pensante e contemplador, o espetáculo patético e sublime da natureza não é mais que uma cena triste e muda. O universo se cala; o silêncio e a noite dele se apoderam. Tudo se transforma numa vasta solidão em que os fenômenos inobservados se passam de maneira obscura e surda. É a presença do homem que torna a existência desses seres interessante.
Donde uma espécie de “revolução copernicana”, antecipadamente kantiana. “Por que não introduziremos o homem em nossa obra como ele é no universo? Por que não faríamos dele um centro comum? Há no espaço infinito algum ponto de onde possamos com mais vantagem fazer partir as linhas imensas que nos propomos estender a todos os outros pontos”,[50] para formar o “sistema” de tudo o que podemos saber ou esperar racionalmente saber?
Ora, desde Bacon (revisto por Locke) o filósofo sabe que o entendimento humano só adquire esse saber pelos sentidos. Que todas as suas ideias são primeiro percepções, sobre as quais ele opera
de três modos, segundo suas três faculdades principais, a memória, a razão, a imaginação. Ou o entendimento faz uma enumeração pura e simples de suas percepções pela memória; ou as examina, as compara e as digere pela razão; ou se compraz em imitá-las e em contra fazê-las pela imaginação. Do que resulta uma distribuição geral do conhecimento humano bastante bem fundada: em história, que se relaciona à memória; em filosofia, que emana da razão; em poesia, que nasce da imaginação.[51]
Distribuição tão bem fundada que permite, a partir desses três ramos principais que são a história, a filosofia e a poesia, engendrar formalmente, por ramificações cada vez mais finas, o sistema completo dos conhecimentos humanos teóricos, práticos e técnicos “espalhados na Terra”. Reuni-los de qualquer modo e expô-los sem ordem não teria sido conforme à definição de enciclopédia, que é “encadeamento dos conhecimentos”. Assim compreendemos que
o primeiro passo que precisávamos dar para a execução racional e clara de uma enciclopédia era formar a árvore genealógica de todas as ciências e de todas as artes, que marcasse a origem de cada ramo de nossos conhecimentos, suas ligações entre si e com o caule comum, e nos servisse para relacionar os diversos artigos ao verbete a que estão subordinados. Não era algo fácil. Tratava-se de encerrar numa página o esboço de uma obra que só se pode executar em vários volumes in-folio, e que um dia deve conter todos os conhecimentos humanos”.[52]
Fácil ou não, está feito: e o leitor pode de fato admirar a árvore do conhecimento que cobre majestosamente a última página do Prospectus e que será reproduzida na abertura do primeiro volume da Enciclopédia. Evidentemente, não foi debaixo de uma árvore dessa espécie que Rousseau teve sua visão: esta teria se transformado em pesadelo. Pois, que representa aos olhos deste essa árvore genealógica, senão (funesto rebento da árvore do Gênese que fez a infelicidade de nossos primeiros pais, expulsos do Éden por terem ousado saborear seu fruto) a árvore que nos oculta para sempre a floresta primitiva, esse paraíso perdido das origens no qual o homem no estado de natureza era bom e feliz sem saber?[53]
Para Diderot, ao contrário, não é sem saber que os homens podem esperar um dia viver bem agindo bem. Assim ele se deu por missão juntar para seus contemporâneos e transmiti-los às gerações futuras os frutos produzidos havia séculos por essa árvore do conhecimento. Missão impossível para um homem só, evidentemente, mesmo especialista do universal,[54] e mesmo ajudado por um espírito geométrico do calibre de D’Alembert: não apenas a coleta é imensa, como nem tudo é bom de guardar: alguns frutos estão podres, outros envenenados, outros ainda não maduros. Como fazer a triagem e servir cada material na embalagem vulgarizada que convém ao leitor?
Uma divisão das tarefas se impunha portanto, “e de imediato lançamos os olhos a um número suficiente de cientistas e de artistas”, escolhidos entre os mais compententes em sua ciência ou sua arte. “Distribuímos a cada um a parte que lhe convinha: as matemáticas ao matemático; as fortificações ao engenheiro; a química ao químico […]”, a música a Rousseau,
a jardinagem, as artes liberais, as principais dentre as artes mecânicas a homens que deram prova de habilidade nessas diferentes áreas; assim, tendo cada um se encarregado apenas do que entendia, pôde julgar corretamente o que os antigos e os modernos escreveram a respeito, e acrescentar, com os recursos deles obtidos, conhecimentos próprios: ninguém avançou sobre o terreno de outrem, nem se imiscuiu no que talvez não conhecesse.[55]
o que acontece muito seguidamente no microcosmo das letras, das ciências e das artes, onde a pilhagem se pratica descaradamente, onde as mesquinhas vaidades de autor fazem que um tenha ciúme do outro, onde se está disposto a todas as baixezas para se fazer aplaudir, onde as academias, os salões, os círculos são facções que se enfrentam a golpes de ditos espirituosos mortais e de epigramas sangrentos — onde reina a guerra civil de todos contra todos.
Nada disso entre os homens de letras e os artistas que o Filósofo contrata para trabalhar. Evitando ir buscá-los num corpo já constituí do — academia ou universidade —, ele os desejou “esparsos, cada um ocupa do com sua parte, e ligados apenas pelo interesse geral do gênero humano, e por um sentimento de benevolência recíproca”.[56] Assim eles constituem uma sociedade que, de certo ponto de vista, assemelha-se àquela cujo princípio o Contrato social enunciará nos seguintes termos: “Cada um de nós põe em comum sua pessoa e todo o seu poder sob a suprema direção da vontade geral”, única “forma de associação que defende e protege com toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual cada um, unindo-se a todos, obedece no entanto apenas a si mesmo, e permanece tão livre quanto antes”.[57]
Não acontece exatamente o mesmo entre os enciclopedistas? Cada especialista (homem de ciência, homem da arte ou do ofício) não se obriga perante todos os demais a colocar sua pessoa e todo o seu saber (legitimamente adquirido pelo exercício de suas próprias faculdades e seu trabalho pessoal) sob a suprema direção da vontade geral? Vontade geral que se exprime através desse nós utilizado pelo Filósofo no Prospectus,[58] manifestando que, enquanto “diretor”, ele não é senão um simples governante, primeira pessoa de um “plural” que lhe delega, não o poder de legislar, mas o de enunciar e pôr em obra as leis da razão, expressão dessa vontade geral esclarecida?
“No mesmo momento”, escreverá Rousseau no Contrato,
em vez da pessoa particular de cada contratante, esse ato de associação produz um corpo moral e coletivo […], o qual recebe desse mesmo ato sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade. Essa pessoa pública, que se forma assim pela união de todas as outras, assumia outrora o nome de cidade, e assume hoje o de república…
Em 1751, a nova república das letras que acaba de ser criada no âmago da muito católica monarquia francesa assume o nome de Enciclopédia. Não que ela se queira um Estado dentro do Estado. Seria antes o contrário: estando seus cidadãos submetidos apenas às leis da razão, que valem para todo homem, sem distinção de religião nem de nacionalidade (quer se trate de príncipe da Igreja ou vizir do grande Turco, remendão judeu ou financista huguenote, czarina de todas as Rússias, rei da Prússia ou da França, é a mesma coisa), ela tem o direito de estender pacificamente seu império à Terra inteira.
Ela também reivindica independência em face do poder local: “Se o governo se imiscui em semelhante obra, ela não se realizará. Toda a sua influência deve portanto limitar-se a favorecer a execução dela”. Talvez regando-a com algumas subvenções, para que se enraíze melhor. Mas seguramente sem confiá-la aos Sócrates funcionários pagos a tanto por página: “Com uma única palavra um monarca pode fazer surgir um palácio do meio das ervas; mas não é assim com uma sociedade de homens de letras, como se fossem um grupo de operários. Uma enciclopédia não se ordena”.[59]
Entenda-se: não se ordena a partir do alto, de Deus ou de um Mestre, e muito menos de seus vigários e delegados de polícia. Se ali reina a ordem, é a dos saberes que crescem e nela se multiplicam de forma ao mesmo tempo racional e orgânica, ramificando-se como uma árvore majestosa que desdobra sua ramagem até os últimos e às vezes surpreendentes ramos — fabrico de malhas, por exemplo, se seguimos as bifurcações do ramo história, ou superstição e magia negra, se seguimos as do ramo filosofia, e que se bifurca em “ciência de Deus”, com um sorriso voltairiano nos lábios…
“MUDAR A MANEIRA COMUM DE PENSAR”
Donde a questão: por que ter corta do essa árvore em milhares de artigos, redistribuídos e encadeados por ordem alfabética, que nada mais tem de genealógica? Seriam os enciclopedistas, que se dizem homens de razão, incorrigivelmente “homens de letras”, a ponto de deixarem ditar sua lei pelas letras do alfabeto? “Uma enciclopédia não se ordena” como um castelo de Versalhes com seu parque à francesa, no qual a laranjeira em vaso e o teixo ornamental, cuidadosamente cortado, ocultam a floresta para sempre desaparecida que eles substituem. Mas podia a Enciclopédia ordenar-se de A a Z, como um dicionário comum? O pulular de seus 71818 artigos em milhares de páginas não teria por efeito transformá-la numa floresta tão espessa que ocultaria a árvore do saber aos olhos do leitor desorientado? Perdido nesse labirinto, não correria ele o risco de perder a razão à força de buscá-la?
[Não: “Acreditamos ter tido boas razões para seguir nessa obra a ordem alfabética”, respondia D’Alembert no Discurso preliminar. E como supor que as razões de um geômetra não são as melhores? Ainda mais que essas razões são também as do Filósofo.
Razões práticas, em primeiro lugar: essa ordem nos pareceu “mais cômoda e mais fácil para nossos leitores, que, desejando instruir-se sobre a significação de uma palavra, a encontrarão mais facilmente num dicionário alfabético que num outro qualquer”.
Sim, mas a coisa a que se refere essa palavra, poderão objetar, está ligada a outras coisas, com as quais, no sistema de uma ciência particular, mantém relações de princípio e consequência, e não de simples consecutividade. O fato de C seguir A e B no alfabeto não permite demonstrar por A mais B esta ou aquela propriedade de C.
Sem dúvida. Assim a palavra, antes mesmo de ser definida, será relacionada à ciência da qual depende e que lhe confere valor de conceito.[60] Sobretudo, o artigo conterá remissões, ocasionadas ora por algumas palavras que outras palavras podem explicar, ora pela coisa ou o objeto de que trata o artigo, que coisas tratadas noutro artigo (ou ilustradas numa gravura) podem esclarecer sob nova luz, revelando relações inesperadas com os objetos de tais e tais outros artigos, constituindo redes que “fortalecem as consequências, entrelaçam o ramo ao tronco, e dão ao todo aquela unidade tão favorável à verdade e à persuasão”.[61]
O que supõe do leitor que faça o esforço de se deslocar de um artigo a outro, e que ouse avançar, de remissões em remissões, até verdades que — à primeira vista — talvez nem quisesse saber. Mas “sapere aude”! Ousa saber, ousa fazer uso de tua razão, mesmo e sobretudo quando se trata de submeter à sua crítica as ilusões que te cegavam.
Pois essas “remissões de coisas” não têm por único efeito confirmar hipóteses, transformar gradativamente o provável em certo, o verossímil em verdadeiro. “Quando preciso, elas produzirão também um efeito totalmente contrário; irão opor as noções, fazer contrastar os princípios, atacar, abalar, derrubar secretamente algumas opiniões ridículas que ninguém ousaria insultar abertamente”[62] — siga nosso olhar, amigo leitor, e retire sua venda.
Estratégia do piscar de olho, da alusão, usando o deslocamento um pouco como o desejo o usa no trabalho do sonho para contornar a censura.[63] Com a diferença de que essa estratégia, consciente e racional, não tem por finalidade permitir ao sonhador continuar dormindo, mas despertá-lo de seu sono dogmático. De repente, a ordem alfabética não se mosta mais justificada pela simples comodidade ou facilidade, em suma, por meras razões práticas. Ela permite exercitar o leitor na mesma prática da razão crítica que os autores da Enciclopédia: dicionário “raciocinado”, ela se quer também — construída com uma ciência e manobra da com uma arte comparáveis às que Diderot admira em seu artigo sobre o ofício de tricotar meias[64] uma máquina de fazer raciocinar, que não deixa de fazer ressoar os ídolos para denunciar sua perigosa inanidade.[65]
Essa maneira de destruir o erro dos homens opera muito prontamente sobre os bons espíritos, e opera infalivelmente e sem nenhuma consequência desagradável, secretamente e sem alarde, sobre todos os espíritos. É a arte de deduzir tacitamente as consequências mais fortes. Se essas remissões de confirmação e de refutação forem previstas de longe e preparadas com habilidade, elas darão a uma enciclopédia o caráter que deve ter um bom dicionário: esse caráter é o de mudar a maneira comum de pensar.[66]
Restaria então lançarmo-nos a alguns trabalhos práticos simples. Assim, partindo de um artigo qualquer (“Labirinto”, por exemplo), poderíamos percorrer pacientemente, de remissão em remissão, os outros 71817 artigos, e, uma vez chegados ao centro do labirinto (onde o Homem das Luzes ocupa, quem sabe?, o lugar vago deixado pelo Minotauro da fábula), perguntar-nos: “Então, cidadãos? Em que mudamos nossa maneira comum de pensar?”.
Seria um pouco longo. Certamente demandaria gênio,[67] que não é a coisa do mundo mais bem partilhada. E excelentes espíritos, ao mesmo tempo apreciadores da velha linguagem e abertos à modernidade, não deixariam de me objetar? “Por que se dar ao suplício da estrapade[68] e torturar os miolos? A Internet pensa por nós.”
Façam bom proveito.
Tradução de Paulo Neves
Notas
[1] Este texto condensa o conteúdo de duas conferências parcialmente diferentes, dadas uma no Rio de Janeiro, outra em São Paulo.
[2] É como o chamavam seus amigos.
[3] Início do Discours d’un philosophe à un roi (1774).
[4] Em Le neveu de Rameau.
[5] Publicados na primavera de 1745, e a princípio atribuídos a Voltaire, ou a La Mettrie — grande honra para um iniciante.
[6] Receio formulado por ocasião da conferência dada no Rio.
[7] Receio formulado por ocasião da conferência dada em São Paulo.
[8] Acrescentado após a edição de 1747. Cf. Diderot, Oeuvres (col. Bouquins, Laffont), t. II, pp. 205 ss.
[9] Idem, ibidem, p. 206.
[10] La promenade du sceptique, in Diderot, op. cit., t. i, pp. 84-5.
[11] A negridão de seu olho, inscrita em seu nome, revela suficientemente a de sua alma.
[12] Ignora-se o nome da destinatária da Carta sobre os cegos. Seria Mme. De Puisieux, amante de Diderot na época? Ou Mme. De Prémontval, a quem ele já dedicara suas Dissertações sobre diferentes temas das matemáticas? Ou uma destinatária puramente convencional?
[13] Célebre por seus trabalhos sobre os insetos e pelo aperfeiçoamento do termômetro que leva seu nome.
[14] William Molyneux, físico e geômetra irlandês, autor de uma Dioptrica nova (1692).
[15] Essai sur l’entendement humain, capítulo 9, § 8.
[16] Ficando entendido, é claro, que a “coisa”, segundo Berkeley, não é senão minha representação. “Esse est percipi, aut percipere.”
[17] Lettre sur les aveugles, in Diderot, op. cit., t. I, p. 164.
[18] Idem, ibidem.
[19] Cf. a terceira edição de sua Nova teoria da visão (1732).
[20] Diderot, op. cit., p. 139.
[21] Idem, ibidem, p. 140.
[22] Idem, ibidem, p. 166.
[23] Idem, ibidem, p. 168.
[24] Idem, ibidem.
[25] O jogo homofônico entre d’yeux e Dieu era certamente muito intencional da parte de Diderot.
[26] Cf. R. Darnton, L’aventure de l’“Encyclopédie”, Perrin, 1982.
[27] Encarregado dos artigos concernentes à música.
[28] Confessions, livro VII, Pléiade, t. I, p. 348.
[29] Ibidem, p. 351.
[30] Citado no livro X das Confessions, p. 525.
[31] A Malesherbes, em 12 de janeiro de 1762.
[32] Bordeu (o médico que Diderot põe em cena em Le rêve de D’Alembert) irá assinalá-lo, no início de seu artigo “Crise” da Enciclopédia: “Galeno nos ensina que a palavra crise é um termo dos tribunais que os médicos adotaram, e que significa, propriamente falando, um julgamento”.
[33] Idem, ibidem.
[34] Confessions, p. 351. Foi possível demonstrar que não havia carv lhos no caminho de Vincennes. Mas, no relato retrospectivo que Rousseau faz da cena, era-lhe preciso um Carvalho (com maiúscula), mais nobre, mais “romano” que um vulgar castanheiro.
[35] Ibidem, p. 352.
[36] “Sou aqui um bárbaro, já que não me compreendem.”
[37] Cf. as cartas escritas por Sade no mesmo Torreão, entre fevereiro de 1777 e fevereiro de 1784.
[38] Discours sur les sciences et les arts, Pléiade, t. III, pp. 27-8.
[39] Ibidem.
[40] Prospectus da Encyclopédie, in Diderot, Oeuvres, t. I, p. 220.
[41] Discours sur les sciences et les arts, p. 30.
[42] Ibidem, p. 29.
[43] Alusão, evidentemente, a Atenas e a Esparta.
[44] Op. cit., pp. 421-2.
[45] Todas as infelicidades de Saint-Preux e de Julie não vêm do fato de terem passado a escrever-se cartas?
[46] Ainda que as palavras ocupem um lugar importante nas reflexões de Diderot: “O vocabulário é um quadro bastante fiel dos conhecimentos de um povo”, ele escreve no artigo “Enciclopédia” (p. 375), cuja primeira parte desenvolve considerações sobre a estrutura e a história da língua.
[47] “Até então ninguém havia concebido uma obra tão vasta; ou pelo menos ninguém a havia executado. Leibniz, de todos os sábios o mais capaz de perceber as dificuldades envolvidas num tal projeto, desejava que elas fossem superadas.” O que nenhum dos autores de enciclopédias conseguira fazer, “e Leibniz não o ignorava quando solicitava uma” (Propectus, p. 212).
[48] Artigo “Enciclopédia”, p. 371.
[49] Prospectus, p. 215.
[50] Artigo “Enciclopédia”, p. 395.
[51] Prospectus, p. 225.
[52] Ibidem, p. 214.
[53] “Povos, saibam assim que a natureza quis vos preservar da ciência, como uma mãe arranca uma arma perigosa da mão de seu filho; que todos os segredos que ela vos oculta são outros tantos males dos quais vos protege” (Discours sur les sciences et les arts, p. 15).
[54] Dos 71818 artigos que contará a Enciclopédia, Diderot escreverá pouco mais de 5 mil, sobre os temas mais variados, de “Absolvição” a “Spinoza”, “Ecletismo”, “Coveiros”, “Huris”, “Intolerância”, “Gozo” etc… J. Proust dá a lista dos que ele assinou, em seu Diderot et l’Encyclopédie (1962), reed. Albin Michel, 1995, pp. 530-8.
[55] Prospectus, p. 216.
[56] Artigo “Enciclopédia”, p. 368.
[57] Contrat social, livro I, capítulo VI (“Do pacto social”), Pléiade, t. III, pp. 361-2.
[58] Também por D’Alembert, no Discours préliminaire.
[59] Artigo “Enciclopédia”, p. 368.
[60] Cf. supra: “enciclopédia”, relacionada a “filosofia”.
[61] Artigo “Enciclopédia”, p. 402.
[62] Ibidem.
[63] “Toda vez, por exemplo, que um preconceito nacional merecesse respeito, caberia ao artigo que lhe é dedicado expô-lo respeitosamente e com todo o seu cortejo de verossimilhança e de sedução; mas também retirar o lodo da construção, dissipar o acúmulo inútil de poeira, remetendo aos artigos em que princípios sólidos servem de base às verdades opostas” (ibidem, p. 403).
[64] “meias, s. m. (fabri co de malhas […]). É a parte de nosso vestuário que serve para cobrir as pernas […]. O tear de fazer meias é uma das máquinas mais complicadas e mais consequentes que temos: pode ser visto como um único raciocínio cuja conclusão é a fabricação do objeto.”
[65] Filosofia que Nietzsche praticará a golpes de martelo, sem poupar esse ídolo que é a razão dos enciclopedistas, divinizada pelos Sócrates do povo que serão os revolucionários de 1789, que podem ser jogados no mesmo cesto que seus devotos inimigos.
[66] Artigo “Enciclopédia”, p. 403.
[67] Segundo Diderot, o homem de gênio é aquele que, mediante remissões inéditas, descobre (ou inventa) novas relações entre as coisas, conduzindo “a novas verdades especulativas ou à perfeição das artes conhecidas, ou à invenção de novas artes, ou à restituição de antigas artes perdidas” (ibi dem, p. 404).
[68] “estrapade, s. f. Suplício militar que consiste em amarrar as mãos de um soldado em suas costas, elevá-lo com uma corda a uma altura bastante grande, e depois deixá-lo cair até quase junto ao chão, de modo que o peso de seu corpo lhe faz desconjuntar os braços. […]
“Diz-se também dos malabarismos de saltimbancos que fazem a simples ou a dupla estrapade ao passarem uma ou duas vezes o corpo entre seus braços presos a uma corda, de modo que estes parecem desconjuntados como acontece na estrapade.
“Diz-se ainda do aparelho ou da árvore elevados e preparados para produzir a estrapade, o instrumento do suplício.
“Diz-se figuradamente ‘donner l’estrapade à son esprit’, quando o espírito faz um violento esforço para inventar algo difícil de achar” (Furetière, Dictionnaire universel, contenant généralement tous les mots françois, tant vieux que modernes, & les termes de toutes les sciences et des arts […], 1690).
Acrescentemos: nome da rua onde residia, no no 3, Diderot, quando os policiais vieram detê-lo em 24 de julho de 1749.