O ABC da razão: a Enciclopédia diante da barbárie
Resumo
A Encyclopédie francesa tem uma história curiosa e acidentada. Começa em 1745 com um projeto, do livreiro Le Breton, de traduzir um dicionário inglês de artes e ciências, que passa por várias mãos até chegar às de d’Alembert e Diderot, em 1747. Mas com eles o projeto toma um rumo e uma dimensão diferentes: os dois volumes da edição inglesa se transformarão em dez, em 1750, e chegarão a dezessete, em 1772. Nesse meio tempo acontecem muitos percalços. Os enciclopedistas enfrentam a oposição dos jesuítas, ameaças de censura do governo e discordâncias internas (como entre d’Alembert e Rousseau). Robert Darnton diz que “a atribulada história de um dos maiores feitos filosóficos de todos os tempos” se deve ao fato de ser uma empreitada coletiva não apenas intelectual, mas moral. O saber que exorciza o erro e a superstição é o que praticavam os sábios da Royal Society e da Academia de Ciências de Paris. Se Locke e Condillac deram a esse saber sua teoria do conhecimento, os enciclopedistas escolhem a ordem alfabética e descontínua do dicionário por ser a mais adequada a um campo aberto a experiências. Inspiram-se na árvore do saber de Bacon, mas dão outro peso aos seus conteúdos, sem hierarquizações ontológicas. O conhecimento deve passar dos clérigos aos filósofos. Além disso, a Ilustração valoriza a inteligência prática, não só a especulativa. Pois é a utilidade, afinal, que define o caráter (burguês) do empreendimento. Viver não é entregar-se à contemplação, mas produzir e trabalhar.
Em 1745, o livreiro francês Le Breton obteve uma autorização real a fim de editar a Cyclopaedia, or Universal dictionnary of the arts and cciences, de Ephaïm Chambers, grande sucesso de venda, publicada em Londres, em 1728. O negócio era seguro, pois investia em duas modas recentes: a anglomania e os dicionários.[1] Le Breton firmou contrato com dois tradutores, o alemâo Godefroy Sellius e o inglês John Mills, este apresentado como rico e opulento herdeiro. No século XVIII, aventureiro e o homem de letras às vezes se confundem: logo o empreendedor (l’entrepreneur como então se dizia) descobriu que Mills era apenas um modesto bancário e que nem sequer conhecia francês como dizia. Decidiu desfazer o negócio, primeiro a bengaladas, em seguida por meios legais.
Para dar solidez à empreitada, associou-se a outros livreiros, Briasson, David e Durand, e em 1746 entregou o lugar de editor ao erudito ábade Jean-Paul Gua de Malves. O jovem e brilhante matemático Jean Ie Rond d’Alembert, membro da Academia de Ciências desde os 23 anos, acompanharia os artigos científicos da obra, enquanto responderia pela tradução do desconhecido Denis Diderot — que já vertera para o francês a História da Grécia, de Temple Stanyan, e o Dicionário universal de medicina, de Robert James.
Mas Gua de Waives não era o homem de que precisava Le Breton: tinha um temperamento demasiado forte, não sabia trabalhar em equipe, resistia a reconhecer o lado comercial do empreendimento. Em 1747 deixou o posto, o que levou os livreiros a promover Diderot e D’Alembert à condição de editores (em breve D’Alembert seguiria cuidando da parte científica e Diderot, do resto da obra, especialmente da “Descrição das artes”). Pode ter sido então que a enciclopédia de Chambers pareceu meio limitada e que o projeto, não se sabe por sugestão de quem, tomou um rumo diferente. O plano e o propósito de Chambers eram bons, não a execução. Como diria Diderot mais tarde, o dicionário inglês deixava um pouco a desejar quanto às ciências, ficava tudo a dever quanto às artes mecânicas e, sobre as liberais, trazia uma palavra onde cabiam páginas (o que não era de surpreender, visto que a Cyclopaedia tinha apenas dois volumes in-fólio, acompanhados de 21 grandes gravuras). Ern 1750, o “Prospectus” anunciava uma obra maior, com dez volumes in-fólio de texto e dois de pranchas. O resultado foi maior ainda: quando a empreitada acabou, em 1772, a Enciclopédia, ou Dicionário razoado das ciências, artes e ofícios contava dezessete volumes de texto (71 818 artigos) e onze de pranchas.
A publicação do “Prospectus”, cujo fim era atrair subscrições, mostrou que havia resistências à enciclopédia francesa: em 1751, o periódico jesuíta Journal de Trévoux registrava várias críticas, assinadas pelo reverendo padre Berthier e contestadas por Diderot. Em junho do mesmo ano surgiu o volume I, com o célebre “Discurso preliminar”, de D’Alembert, e no começo de 1752 o volume II. Ora, entre um e outro, um certo abade Jean-Martin de Prades, colaborador da Enciclopédia, defendera na Sorbonne uma tese de teologia, logo censurada e condenada ao fogo. O arcebispo de Paris lançou uma carta pastoral contra o autor, que tratou de despachar-se para a Holanda. Aos jesuítas juntaram-se as Nouvelles Eclésiastiques, porta-voz do jansenismo. Os devotos denunciavam a existência de uma conspiração contra a religião e o governo, chefiada pelos enciclopedistas. O resultado foi uma sentence do Conselho de Estado que proibiu os dois primeiros tomos.
A sanção não era tão grave como parece, pois os volumes já estavam distribuídos e na verdade revelava o apoio de Malesherbes, encarregado de controlar os livros publicados no reino. Graças a ele e ao partido antijesuíta, muito forte na corte, a Enciclopédia foi autorizada a prosseguir, sob vigilância, e entrou numa fase de calma relativa. Em 1753, apareceu o tomo III, no ano seguinte o quarto, cuja tiragem ultrapassou 4 mil exemplares (no princípio, Le Breton previra uma tiragem de 1625 cópias). Ainda em 1754, D’Alembert entrou para a Academia Francesa, um dos principais redutos da opinião, distinção que também honrava a Enciclopédia. Em 1755, foi a vez do volume V, que contava com a adesão de Voltaire e com o verbete “Enciclopédia”, “uma espécie de discurso do método”,[2] escrito por Diderot. Os enciclopedistas parecem confiantes: tanto assim que, em seu artigo, Diderot não hesita em formular às claras a finalidade do empreendimento (“mudar amaneira geral de pensar”) e até em explicitar seu sorrateiro sistema de remissões.[3] O volume VI é de 1756, o sétimo, de 1757, ano que anuncia os tempos difíceis que virão. Em abril, o rei sofre um atentado e o Parlamento baixa um edito condenando à morte ou às galés os autores de livros perigosos; os panfletos inimigos se multiplicam : primeiro, são os Cacouag, deVaux de Giry, depois, os de Moreau,[4] em seguida ainda as Pequenas cartas sobre grandes filósofos, de Palissot, e A religião vingada, de Soret e Haye; para piorar, em novembro, a publicação do verbete “Genebra”, de D’Alembert, no volume VII, consumará uma ruptura intestina, a de Jean-Jacques Rousseau. No princípio de 1758, outra perda: D’Alembert cede às pressões e decide abandonar seu posto (aceita seguir cuidando apenas dos artigos de matemática). A consequência é que, pela primeira vez desde o “Prospectus”, passa-se todo o ano sem que nenhum volume venha a público. Em meados de 1758, o materialista Helvétius lança De l’esprit, tratado que, para escândalo geral (do arcebispo de Paris ao papa Clemente XIII), reduz a moral uma física experimental. Embora Helvétius nem mesmo fosse colaborador do Dicionário enciclopédico, seu livro é associado a Diderot e reaparece a litania da conspiração contra a religião e o governo, sobretudo em Préjugés contre l’Encyclopédie, texto de enorme influência do jansenista Abraham Chaumeix. Em janeiro de 1759, quando o volume VIII está prestes a sair, o procurador-geral Joly de Fleury discursa contra os livros ímpios no Parlamento de Paris, citando a Enciclopédia, De l’esprit — este, um “resumo” daquela… e ainda quatro livros de Diderot. O efeito é imediato: o Parlamento suspende a circulação dos sete volumes publicados e resolve submetê-los a uma comissão de censura. A sentença vem em março: o Conselho do Rei revoga o privilégio de impressão da Enciclopédia, cabendo aos editores indenizar os assinantes pelos adiantamentos recebidos. Le Breton e os demais ameaçam prosseguir o negócio na Holanda ou na Suiça, e então as autoridades concedem um privilégio para a impressão de uma coletânea de pranchas gravadas, de cujo preço se descontaria aquilo que tinham a haver os assinantes. Para encurtar a ópera: o primeiro volume das Pranchas sai em 1762, o último, dez anos depois, e enquanto isso o governo decide fazer vistas grosas à atividade clandestina de Diderot, que continua sozinho a preparar os volumes de texto (também desertaram Turgot, Marmontel, Duclos, Morellet, Voltaire etc.). Em 1766, ele entrega ao público, de uma só vez, os dez volumes que faltam, mesmo após certificar-se de que Le Breton, às escondidas, submetera as provas a uma censura preventiva. Ato derradeiro: a distribuição é proibida em Paris e Versailles e, por desobediência, o mesmo Le Breton tem de amargar alguns dias na Bastilha. Conforme escreveu Robert Darnton, “quaisquer que sejam seus defeitos, a consecução da obra significa uma grandiosa vitória do espírito humano e da palavra impressa”.[5]
Eis em poucas linhas a atribulada história de um dos maiores feitos filosóficos de todos os tempos. Nenhum dos dicionários precedentes, que se multiplicam a partir de fins do século XVII,[6] se compara à Enciclopédia quanto às dimensões (a não ser o Universal Lexicon, de Zedler, 64 volumes in-fólio, quatro de suplementos. 1732-50); cada um deles foi escrito por um só autor, ao passo que a obra dirigida por Diderot e D’Alembert foi empreitada coletiva, feita “par une societé de gens de lettres”; condição, aliás, para que fosse um dicionário “universal”, ao contrário dos demais, que tratavam de assuntos isolados (históricos, biográficos, religiosos etc.) e tinham pouco prestígio intelectual. Mas, poderá perguntar o leitor, por que razão um simples dicionário foi objeto de tantas disputas no século XVIII, das acusações de plágio aos livros censurados ou mandados à fogueira, das sátiras às ordens de prisão e ameaças de execução? Como bem afirmou Darnton em outra parte, o que poderia ter de explosivo esse amálgama de tanta informação sobre todos os assuntos, que “contém milhares de palavras sobre moagem de cereal, fabricação de alfinetes e declinação de verbos”?[7]
A Enciclopédia provocou tamanha confusão porque Diderot e D’Alembert conseguiram dar-lhe um feitio filosófico, integrando-a de modo eficaz ao combate das Luzes. A fim de entender o que isso significa, retomemos a abertura do verbete “Enciclopédia”, na qual Diderot escreve:
A finalidade de uma enciclopédia é juntar os conhecimentos esparsos sobre a superfície da terra; expor seu sistema geral aos homens com os quais vivemos, e transmiti-lo aos homens que virão depois de nós; a fim de que os trabalhos dos séculos passados não tenham sido trabalhos inúteis para os séculos que virão; que nossos pósteros [neveux], tornando-se mais instruídos, tornem-se ao mesmo tempo mais virtuosos e felizes, e que não morramos sem ter bem merecido o gênero humano.[8]
A leitura desse texto parece reforçar a impressão de desconcerto do leitor: o que poderia haver de mal em “juntar conhecimentos esparsos” e em seguida “transmiti-los a nossos pósteros”?
Antes de mais nada, não é inútil observar que a empreitada empenha o homem em sua totalidade, não sendo apenas intelectual, mas também moral: instruímos nossos semelhantes tendo em vista sua virtude e, em última análise, sua felicidade. Durante a Ilustração, não há nada mais filosófico do que mobilizar virtude e felicidade, amarrando uma à outra.
Além disso, o tipo de conhecimento recolhido e a maneira de reuni-lo também implicam escolhas filosóficas. Como se sabe, só se instrui ao combater os erros, as ideias falsas, as superstições. Ora, o saber que exorciza o erro e a superstição, e pelo qual se interessa a Enciclopédia, é o conhecimento técnico e científico do século XVIII, a ciência “tal como a praticam efetivamente, em seus laboratórios, os sábios da Royal Society, fundada por baconianos, ou da Academia de Ciências de Paris, e tal como a física newtoniana oferece o modelo considerado definitivo”.[9] Esse saber é avesso ao sistema fechado, aberto à experiência e nela fundada. Visto que não há Deus que garanta o conhecimento; visto que a natureza não é transparente e jamais exibe por inteiro seus segredos; vista que aposta na aventura renovada da experiência, essa ciência é necessariamente vagarosa e sujeita a interrupções, descontínua e fragmentária, não dando a ver “senão algumas peças rompidas e separadas da grande cadeia que liga todas as coisas”.[10]
Locke e Condillac deram a esse saber sua teoria do conhecimento, Diderot e os enciclopedistas fizeram seu inventário e, para tanto, escolheram a forma do dicionário. O gênero é estratégico primeiramente por motivos práticos, permitindo uma difusão do conhecimento e pondo-o ao alcance do homem comum, como queria a Ilustração. Em seguida, diante da multiplicação daquilo que se sabe e da impossibilidade de operar uma síntese, o dicionário é uma resposta a essa dificuldade.[11] Mas há ainda outra razão, mais decisiva, que torna o dicionário a forma mais adequada ao conteúdo descrito. O conhecimento, como se viu, não procede por dedução, não há verdades primeiras donde decorrem as demais, pois a hierarquização do ser é uma quimera do espírito de sistema. A ciência não passa de um vaivém entre a observação, a reflexão e a experiência, que preenche os claros de uma natureza inesgotável, que às vezes se entrega, às vezes resiste. Ora, se a ciência é “um grande terreno semeado de lugares obscuros e de lugares iluminados”[12] que ordem mais adequada para descrevê-la do que a alfabética, essencialmente descontínua? Contando com a riqueza do vocabulário, que gênero é melhor que o dicionário para inventariar a riqueza infinita e a variedade irredutível da natureza? Aberto a essa riqueza e variedade, o dicionário exclui as hierarquizações ontológicas e permite, por exemplo, que à descrição de uma “planta do Brasil e das ilhas da América meridional” (“Aguaxima”) se siga a exposição da imensa ”cadeia dos seres” que, gradativamente, passa do mineral ao vegetal, deste ao animal, até chegar ao homem (“Animal”). Permite ainda que o saber não possua territórios privilegiados, que o espírito não seja superior à mão nem que as artes liberais, melhores que as mecânicas.
Mas, apesar dessas notórias vantagens e de suas implicações filosóficas, o dicionário padece de um enorme inconveniente: amarrar o mapeamento do saber à ordem puramente contingente do alfabeto não implica renunciar à ordem do todo, sem a qual não existe ciência ou filosofia? Topamos aqui com aquilo que Béatrice Didier chama “o paradoxo dos dicionários”: como podem as Luzes confiar seu ideal de racionalidade a uma ordem de apresentação totalmente irracional? como se podem compatibilizar razão e dicionário?
Diderot e D’Alembert resolveram o paradoxo por meio da exposição do “sistema geral” do saber: como Chambers, tornaram o dicionário uma enciclopédia (termo que significa “encadeamento de conhecimentos”) e deram-lhe as vantagens de um discurso contínuo. Assim, as diferentes disciplinas podiam ser tratadas “absolutamente e de modo independente” e também “relativamente umas às outras”.[13] Ou, nas palavras de D’Alembert: como Dicionário razoado das ciências, artes e ofícios, o empreendimento contém a descrição dos “princípios gerais” e dos “detalhes mais essenciais” de cada ciência e arte, mas, como Enciclopédia, expõe “a ordem e o encadeamento dos conhecimentos humanos”.[14] Para preencher essa dupla exigência, os enciclopedistas, ainda a exemplo de Chambers, reproduziram com toda precisão e detalhe a árvore baconiana do saber na abertura da obra e conectaram cada verbete do dicionário a esse mapa geral. Por exemplo: “Anatomia. Ordem enciclopédica, entendimento, razão, filosofia ou ciência, ciência da natureza, física geral, particular, zoologia, anatomia simples e comparada”.[15] Como diz Alain Grosrichard, “a palavra, antes mesmo de ser definida, será relacionada à ciência da qual depende e que lhe confere valor de conceito”. Além disso, continua, “o artigo conterá remissões, ocasionadas ora por algumas palavras que outras palavras podem explicar, ora pela coisa ou objeto de que trata o artigo, que coisas tratadas em outro artigo (ou ilustradas numa gravura) podem esclarecer sob nova luz”. Essa técnica remissiva — espécie de “estratégia da piscadela”[16] — é sem dúvida o maior segredo da Enciclopédia: sua grande finalidade é certamente burlar a vigilância do censor, mas sobretudo permitir que o leitor se oriente sobre o lugar que as várias ciências e artes ocupam na árvore do conhecimento. Mais ainda: conforme observa Alain Pons, é essa técnica, e não o conteúdo estrito dos artigos, que deve “mudar a maneira geral de pensar”: “Os ‘preconceitos’ depositados nos homens pelo hábito, pelo tempo, pela história, serão desenraizados quando outras associações, outras conexões, conformes à natureza e à razão, forem estabelecidas entre as ideias”.[17]
No “Prospectus”, Diderot retomou o critério epistemológico de Bacon e dividiu o conhecimento em três territórios: filosofia, história e poesia,[18] aos quais correspondiam as principais faculdades do espírito: razão, memória e imaginação. Em seguida, no dizer de Robert Darnton, “podou” a árvore de Bacon segundo o programa filosófico de Locke. Ora, se examinarmos com Robert Darnton as alterações introduzidas, compreenderemos melhor o alcance filosófico e até politico da Enciclopédia.
As artes da imaginação aparecem em posição parecida nos dois esquemas, embora Diderot seja mais minucioso e acrescente as artes plásticas, não mencionadas por Bacon. Em relação à história, ambos a dividem em natural, eclesiástica, civil e literária, mas dão a cada qual um peso diferente. Enquanto Diderot pouco se detém na eclesiástica, Bacon lhe atribui vários ramos, entre os quais a história da Providência, que narra a intervenção de Deus nas coisas humanas. Quanto à história natural, Bacon a julga “deficiente”, ainda sujeita a desenvolver-se, sobretudo na área das artes mecânicas, que são justamente as de mais espaço na Enciclopédia. Assim, se Diderot examina apenas o trabalho dos homens, Bacon não o separa do trabalho da Providência, donde resultam diferentes concepções da históiia civil e da literária. Enquanto Bacon julga a história literária (ou do “conhecimento”) um capítulo “deficiente” da história do mundo, os enciclopedistas a equiparam à civil: em sua versão, esta se ocupa das grandes nações, dos reis, dos conquistadores, aquela, dos grandes gênios, dos homens de letras, numa palavra, dos filósofos.
Mas as maiores díferenças entre os dois mapas estão nas ciências derivadas da razão, quer dizer, na filosofia. Bacon separa filosofia e teologia, dando ao “estudo divino” uma árvore à parte, Diderot subordina a segunda à primeira. É bem verdade que a “teologia revelada” aparece no alto de sua árvore, mas a dignidade do lugar é só aparente. Primeiro, porque é determinada pelo princípio lockiano de que nosso entendimento progride por unificações crescentes, começando pelas sensações e chegando afinal ao conceito de uma inteligência infinita e não criada. Em seguida, devido à vizinhança de várias “práticas e disciplinas suspeitas” — “ciência dos bons e maus espíritos”, “adivinhação”,”magia negra” — que arrastam a teologia e a religião para o domínio do incognoscível.
Conforme: bem afirma Darnton, o “Prospectus”, de Diderot, e o “Discurso preliminar”, de D’Alembert, desenham de outro modo as fronteiras entre o cognoscível e o não-cognoscível em suma, excluem a teologia do território do saber e confiam seu governo à filosofia. A maior consequência prática do golpe é retirar o conhecimento das mãos dos clérigos e passá-lo para os filósofos. Da Renascença até o moderno enciclopedismo, de Bacon, Descartes, Newton e Locke até Jean-Jacques Rousseau, a história é o triunfo da civilização, e esta, um trabalho dos homens de letras.
Não custa aqui lembrar o caráter emblemático de que o filósofo é dotado para as Luzes. Na Enciclopédia, Du Marsais o define como um homem “que quer agradar e se tomar útil”; em outra parte, Diderot afirma que “aqueles que refletem” devem se juntar “àqueles que se mexem” para formar “uma espécie de liga filosófica” a fim de vencer a “resistência da natureza”.[19] Quando exalta o filósofo, a Ilustração presta homenagem não apenas à inteligência especulativa, mas também, e talvez principalmente, à prática. Ou, se quisermos, à “inteligência das mãos”. Segundo mostrou Jacques Chouillet,[20] a quem devo essa feliz expressão, quando fala em “metafísica das coisas”,[21] Diderot não apenas afirma a igual dignidade da arte (técnica) e da ciência, mas também que as “artes mecânicas” mobilizam raciocínios tão abstratos quanto os do sábio ou do filósofo. As ciências e artes têm, pois, origem e desenvolvimento comuns, e a única coisa que as distingue é que, além do caráter especulativo, as artes encerram igualmente uma prática. Do mesmo modo, as chamadas artes “liberais” (as “belas-letras” e as “belas-artes”) se diferenciam das “mecânicas” porque umas são “mais a obra do espírito que da mão” e as outras, o oposto. Aliás, o que é da mão e o que é do espírito na pintura, na escultura, na arquitetura ou ainda na música e na dança, que usam mecanismos sensoriais e musculares?
A abolição da falsa hierarquia entre o teórico e o prático, entre o belo e o útil, acarreta a “dupla promoção” das artes mecânicas e do artesão. Não era por acaso que a Enciclopédia celebrava o relojoeiro Caron de Beaumarchais como grande artista e tampouco era por acaso que Diderot ousava atribuir aos experimentadores científicos (“manobristas de operações” ou “de experiências”, como dizia) o espírito de divinação próprio dos gênios (“a inspiração”). Chegamos assim ao ideal máximo da Enciclopédia, no qual, segundo alguns estudiosos, transparece o caráter “burguês” do empreendimento: a utilidade. Para os enciclopedistas, “o ideal humano já não é o santo ou o herói, mas o homem útil que, por seu trabalho, melhora a condição da humanidade. Viver não é entregar-se à contemplação, à oração ou à ascese, não é tampouco exercer na guerra virtudes heróicas, é produzir, trabalhar”.[22]
Para terminar, volto à história. Em 1768, o cavalheiro de Jaucourt, que escrevera um quarto dos verbetes da Enciclopédia, constatava numa carta que “o preço dessa obra aumenta todos os dias”,[23] em razão de sua escassez. No mesmo ano, farejando um bom negócio, o livreiro Charles Panckoucke comprou os direitos sobre as futuras edições do dicionário. Começava aqui uma outra história. Até a década de 1770 a Enciclopédia só era acessível nos luxuosos volumes in-folio da primeira edição de Paris e da segunda, impressa em Genebra (1771-0). Nas mãos de Panckoucke ela estava prestes a ganhar os formatos in-octavo e in-quarto, tornando-se assim o maior best-seller da Ilustração.
Notas
[1] Observa Jacques Proust, ern Diderot et I’Encyclopédie. Paris: Albin Michel, 1995, p. 47.
[2] Jacques Chouillet. L’Esthétique des Lumières. Paris: PUF, 1974, p.75.
[3] O exemplo clássico é o verbete “Eucharistic”, em si mesmo bastante anódino, cujo caráter explosivo aparece nas remissões de outro artigo, “Anthropophagie”: “Eucharistie, communion, autel.” Ver Encyclopédie ou Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers. Paris, 1750-65, t. p. 498, edição fac-símile (Nova York; Paris: Pergamon Press, p. 149 b).
[4] A invenção da palavra para zombar dos filósofos é “um dos achados do século XVIII”, segundo Arthur M. Wilson (Diderot: sa vie et son oeuvre. Paris: Laffont-Ramsay, 1985, p. 232), e se deve ao panfleto Premier mémoire sur ler cacouacs” de Vaux de Giry, abbé de Saint-Cyr. Os “cacouacs”, “estranhas e repugnantes criaturas”, seriam um povo selvagem cuja grande arma era o veneno, localizado embaixo da língua. Em Nouveau mémoires pour servir à l’histoire des cacouacs, Jacob-Nicolas Moreau aperfeiçoou a ideia.
[5] Robert Darnton. O lluminismo como negócio: história da publicacão da “Enciclopédia” (1775-1780). São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 23.
[6] Alain Pons. “Introduction”. In: Encyclopédie ou Dictionnaire raisonné des sciences, arts et métiers. Paris: Garnier-Flammarion, 1986, vol. I, pp. 24-5.
[7] Robert Darnton. “Os filósofos podam a árvore do conhecimento: a estratégia epistemological da Encyclopédie”. In: O grande massacre de gatos. 2a ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988, p. 247.
[8] Encyclopédie, t. I, p. 1156; t. v, p, 635a.
[9] Alain Pons, op. cit., p. 35.
[10] Diderot. “De l’interprétation de la nature”. In: Oeuvres philosophiques, Paul Vemière (ed.). Paris: Garnier Frères, 1980, p. 182.
[11] Béatrice Didier. Alphabet et raison: le paradoxe des dictionnaires au XVIIIe siècle. Paris: PUF, 1996, p. 4.
[12] Diderot, op. cit., p. 189.
[13] São palavras do próprio Chambers, citadas por Alain Pons, op, cit., p: 37.
[14] Jean le Rond D’Alembert “Discours préliminaire des editeurs”. Encyclopédie, t. I, pp: 1-9
[15] Encyclopédie, t. I, p. 409; p. 127a
[16] Alain Grosrichard. “Na noite das Luzes”. In Adauto Novaes (org.). A crise da razão. São Paulo: Companhia das tetras, 1996, p. 280.
[17] Alain Pons, op. cit., p. 44.
[18] Diderot escreve: “Entendemos aqui por poesia apenas aquilo que é ficção”. O termo exclui assim a versificação e inclui a arquitetura, a música, a pintura, a escultura, a gravura etc. Cf. “Explication détaillée du système des connaissances humaines”. In: Encyclopédie, t. I, p. L; p. 21.
[19] Diderot. “De l’interprétation de la nature”, op. cit., p. 178.
[20] Jacques Chouillet, op. cit., pp. 74ss.
[21] No verbete “Art”. In: Encyclopédie, t. I, pp. 717-44; pp. 203a-210d.
[22] Alain Pons, op. cit., p, 55.
[23] Arthur M. Wilson, op. cit., p. 480.