1996

O assédio eletrônico

por Eugênio Bucci

Resumo

O isolamento é requisito para usufruir da televisão. Por outro lado, nunca se falou tanto em interatividade. Ela que – acredita-se – conectou o mundo.

Contraditoriamente, para estar ligado no (ao) mundo, é preciso renunciar à condição de sujeito ou protagonista, de modo a adotar a condição passiva de espectador. E isso mesmo quando há nela troca de informações.

No limite, o sujeito não se compromete fisicamente. Tampouco identifica-se como ser social. Ele é, no máximo, virtual.

Nesse sentido, um caso é singular: o do programa retrospectivo anual. Por quê? Porque o requisito para ser lembrado como fato é o de ter sido veiculado televisivamente. O que há, então, é a memória destituída de suporte físico. Decorrência lógica disso é que a televisão torne-se protagonista de seu próprio relato (tido por frio, imparcial, objetivo etc.). Pode, pois, quem protagoniza a história contá-la?

Não só pode, como o faz melodramaticamente, já que a televisão brasileira consolidou-se à custa de novelas. Isso que resulta na confusão entre o acontecimento, sua leitura televisiva e a ênfase na própria televisão.

Retrospectivamente, o ano tinha sido, ao que tudo indicava, sentimental. Era 1989, e o muro de Berlim tinha caído. Era a própria ideologia triunfante. A dissolução de todas as tiranias. Nada mais de Stalins ou Pinochets. Por outro lado, falsificações históricas, pequenas ou grandes, progrediam. Primeiro porque a memória histórica era já quase toda eletrônica; logo, falsificável.

Nesse contexto, determinado canal televisivo contou a história da ditadura militar brasileira. Como, durante sua vigência, ela nunca tinha sido veiculada como ditadura, a edição foi fácil. Foi também fácil quando, de volta à democracia, recontou-se tal história, já que, para tal, o canal apropriou-se da tese libertadora, junto ao mencionado fim das tiranias. Tratava-se mesmo de uma transição dramática, cuja compensação vinha na forma de uma democracia paradisíaca. Eis como se purgar: maquiando o passado por meio da assimilação não só de um discurso anti-ditatorial “a posteriori”, como de imagens originadas de fontes alheias, com o objetivo de reprogramar a memória.

É assim que a televisão, que tanto serve ao público – diz o senso-comum –, sela, em troca disso, um pacto: o do espectador que se vai deixando cada vez mais enredar. Mas isso é mais antigo. Originou-se com as artimanhas do jornalismo escrito, em busca de um mercado cativo. Era e é – cada vez mais – o jornalismo de mãos dadas com o entretenimento. Disso, a publicidade é exemplar, pois ela erotiza o que não é necessariamente sexual. Uma marca de água mineral, uma revista feminina, uma apólice de seguro até.

Atores e atrizes, cantores e cantoras – astros “pop”; quem os anuncia, inclusive. Do contrário, o que pensar de apresentadores e apresentadoras – âncoras mesmos?

O fenômeno é tal que até a retórica é assim, seja a notícia esportiva ou de guerra, sobretudo porque, além do mencionado melodrama, há o maniqueísmo. Passa-se da fabricação de necessidades para a de fantasias, como a posse da garota-propaganda da pasta de dente.

Por isso que a fantasia sexual – em amplo sentido – não é mais pessoal.

Não há aquela história de que se não houvesse mais segredos íntimos ninguém se cumprimentaria na rua? Pois bem. Não mais. Não quando elas são fabricadas. O que há, pois, a esconder? Nada. E seguem os cumprimentos.

 


(A VINGANÇA I — E a vingança foi quase maligna. Eu voltava para São Paulo, dia 29 de junho de 1995, bem de manhãzinha. Desembarquei no aeroporto de Cumbica. Na véspera, dia 28, eu tinha cumprido em Belo Horizonte o meu segundo compromisso com a Funarte, fazendo uma exposição sobre “o assédio eletrônico”. Um repeteco do que eu dissera na noite anterior no Rio de Janeiro. Tanto no Rio como em Belo Horizonte, critiquei impiedosamente os chamados meios eletrônicos. Disse que, a pretexto de nos libertar e de nos integrar com todo o planeta, eles nos isolam, nos confinam, sugam para si a erotização que deveríamos dedicar às relações com o próprio mundo. Não o mundo virtual, mas o mundo real. Repito: a vingança foi quase maligna. Em Cumbica, para ganhar tempo, decidi depositar o cheque que recebera em Belo Horizonte no caixa eletrônico — o pagamento do Rio de Janeiro seria depositado diretamente pelos cariocas. Eu estava afobado, fechei o cheque no envelope apropriado e… bem, a gente nunca sabe o lugar certo onde pôr os honorários. Claro, enfiei o envelope no lugar errado. Por lugar errado entenda-se uma fresta que fica ao lado da abertura de onde a gente tira o dinheiro quando faz o popular saque eletrônico. Algo me dizia que não era bem aquilo, digo, que o buraco era outro, mas, apressado, e já um pouco desmoralizado, como estava, insisti e fui introduzindo o troço mais ou menos à força, machucando o papel do envelope. Tive a sensação de que o Banco Nacional, onde tenho conta corrente, estava me recusando o depósito. O vexame começou ali. Quem não sabe conviver com um caixa de banco 24 horas não merece tecer considerações sobre meios eletrônicos. É um analfabeto. O sujeito que esperava atrás de mim tomou a atitude cortês de me alertar: “Olha, não é aí não”. Para livrar as mãos, eu segurava minha mala no meio das pernas apertadas, e prendia a pasta embaixo do braço esquerdo. No bolso do paletó, eu tinha a passagem comprada para o ônibus que me levaria à praça da República. E que zarparia dentro de poucos minutos. É óbvio que concordei com o solícito cidadão. O buraco não era ali mas o envelope já tinha ido. Não tanto que não desse para ver um cantinho dele. Mas nem tão pouco que desse para a gente puxar de volta com a unha. O monitor do caixa já estava disparando aquelas mensagens irritantes: “Você errou! “, “Tente de novo!’ “Aperte a tecla corrige, seu idiota!’ “Cadê o seu depósito, animal?”. Nocauteado, zonzo, eu abri lugar para que a fila não me linchasse. Os clientes dos muitos bancos associados à instituição do caixa eletrônico 24 horas iam se sucedendo, alguns olhavam para mim com um pouco de pena, outros só demonstravam irritação. Tomei um pouco de coragem e, enquanto eles me humilhavam depositando e sacando com toda a naturalidade, com toda a familiaridade, com uma obscena intimidade com a máquina, tomei a decisão: saquei do telefone. Aquele que fica ao lado de todo caixa eletrônico e que só serve para uma voz do outro lado dizer: “Sinto muito mas não posso quebrar o seu galho”. Naquela manhã de 29 de junho, entretanto, dei com uma moça mais compreensiva. Ela percebeu que tudo o que me faltava era falar com um interlocutor humano. Disse que eu não me preocupasse, que alguém iria ali mais tarde, retiraria o meu cheque das entranhas daquele monstro insensível de lata e arrogância, e que o depósito seria feito na minha conta. Eu fiquei desesperado. Seria o atestado definitivo de incapacidade. Eu teria cassado o meu passaporte para o universo ilimitado dos “novos meios”. Peguei o molho de chaves de casa e, reassumindo abruptamente meu lugar na fila, começei a cutucar o cantinho do envelope. A minha atuação era perfeitamente ridícula. De repente, num só segundo, voltou-me à cabeça o que eu tinha dito para merecer aquelas centenas de reais de um cheque que, a essa altura, fingia que nunca tinha me visto antes. Até o cheque, ali encalacrado, queria se livrar de mim. O cheque que era meu! Atordoado, eu me recordava das ofensas que havia cometido. Eu me arrependi. Tudo o que dissera carecia de legitimidade, de conhecimento de causa, tudo me vinha na memória como uma construção sem sentido. Ridícula como aquela cena ali no aeroporto de Cumbica diante de um caixa eletrônico. Eu dissera que, diante da máquina, o homem estava ilhado. Como eu, ali no caixa eletrônico, era uma ilha, cercado de todos os lados pela execração pública.)

A ILHA

Isolamento e sujeito virtualizado

Estar ilhado do convívio social é um requisito para usufruir dos meios eletrônicos. O isolamento é uma premissa da interatividade de que tanto se fala, e que se tornou um objeto do desejo da sociedade de consumo, ou melhor, das ilhas de consumo de nosso tempo. Pelo que se diz todos os dias em favor dos meios eletrônicos, isolamento teria que ser o exato oposto de interatividade, mas não é. Hoje, acredita-se que, agora sim, o mundo está ligado, plugado, conectado. Agora todos estão relacionados entre si, independentemente de países, culturas e idiomas.

Na TV, há a simultaneidade entre o evento e sua imagem nos telejornais do mundo. Na TV, finalmente, deu-se a ausência de mediação, o contato é direto, sem traduções nem filtros. A contemporaneidade é a simultaneidade.

Contraditoriamente, porém, para estar ligado no (ao) mundo é preciso renunciar, ainda que momentaneamente, à condição de sujeito, de protagonista — e adotar a postura passiva de espectador. E, mesmo quando se dá ao espectador a abertura para o que se chama de interatividade eletrônica, interatividade que acontece mais como um aprofundamento do que como ruptura da condição de espectador, o que se verifica é a troca de informações, mas não a troca de vivências ou experiências.

Se admitimos a interatividade eletrônica como um aprofundamento, ou um novo estágio da condição de espectador, é possível divisar diversas gradações para a interatividade. Ela acontece, primariamente, quando o espectador tem muitas opções de canais diante da TV, ou quando pode interferir, com um simples telefonema, na programação ou no desenrolar de um programa de entrevista, ou no desfecho de um quadro de ficção; há interatividade quando se compra um liquidificador pelo anúncio da TV, e também há interatividade no vai-e vem de relatos íntimos pela Internet.

O que nos interessa, de saída, é observar que, tanto para o espectador que se entende como passivo, aquele que interage pouco ou quase nada, como para aquele espectador altamente interativo, estar ilhado é um requisito indispensável. O efeito ilha não se desfaz. Acontece justamente o contrário. Nas portas e janelas da interatividade eletrônica, o sujeito não se compromete fisicamente — ele mal se identifica como ser social; identifica-se apenas virtualmente. Ao que se chama de realidade virtual corresponde um dado que deveria ser mais discutido entre nós: o sujeito virtualizado. Não há inter-relações; há apenas uma espécie estranha de interalienação ou interalienações.

O caso Contagem regressiva

O fato de que o homem virou uma ilha é admitido, expressamente, pela televisão. Pelo discurso, pela fala da TV. Vale a pena registrar de que modo isso acontece. A Rede Globo exibiu em junho de 1995 uma série jornalística (ou um documentário em capítulos) chamada Contagem regressiva. A série tinha três características marcantes, que aqui nos interessam de modo especial:

1- Ao fazer a retrospectiva jornalística dos últimos trinta anos, recapitulou a história a partir das imagens veiculadas pela TV. Vendo a série, o telespectador observou que o requisito de ter aparecido na TV (que já constitui um filtro para o que é ou não é notícia, para o que repercute ou não na sociedade), ou de ter gerado imagens para os telejornais, passa a ser exigido dos eventos que devem entrar para a história recente. Com isso, a memória em vídeo, a memória eletrônica, ou, em palavras mais precisas, aquela memória que prescinde de qualquer suporte físico, ganha o estatuto de documento com valor histórico.
2- Se os fatos mais importantes dos últimos trinta anos eram recuperados segundo as imagens que renderam aos telejornais, ou melhor, se principalmente aquilo que rendeu boas imagens para os telejornais adquiriu a dimensão de fato histórico dentro de uma retrospectiva histórica, é natural, apenas natural, que um dos principais personagens de Contagem regressiva tenha sido o próprio veículo televisão e, de modo especial, a Rede Globo.
Antes, o que se discutia era se um personagem histórico poderia ser ele mesmo um historiador. Leon Trotski foi um dos muitos que se viram diante desse problema e dedicou-se a comentá-lo nas primeiras páginas de sua magistral História da Revolução Russa. O ponto era: como ele, um dos autores da revolução, teria condições de narrar aquela mesma revolução num relato que tivesse valor histórico? Teria ele o distanciamento necessário para produzir algo que ultrapassasse os limites de uma memória pessoal? Lembro o caso de Trotski porque ele foi um dos poucos a vencer o desafio, o que prova que personagens de acontecimentos históricos podem, cercando-se de cuidados, de regras claras e de critérios, produzir relatos de valor histórico. Agora, porém, nossa discussão é outra. Pode o veículo que noticia o mundo (seja esse veículo a televisão em geral ou uma emissora em particular) narrar a história do mundo narrando a história de si mesmo? É este um expediente com validade histórica? Ficou irrelevante o dilema de um personagem que se pretende historiador. Agora, estamos diante de um narrador que não vacila em virar personagem de sua narrativa — personagem central.
3- A terceira característica é mais prosaica. Por isso, talvez, é a que mais gosto de comentar. Contagem regressiva fundiu deliberadamente ficção e realidade. Acompanhando as memórias jornalísticas, pontuando-as, vinham à tela os integrantes de uma família fictícia, interpretados por atores globais bastante conhecidos — uma família que ia envelhecendo ao longo dos últimos trinta anos, seguindo, pela TV na sala de jantar, as tendências, as modas e os acontecimentos.

Só a imagem vale

No plano aparente de Contagem regressiva, ficção e realidade tinham uma separação bem demarcada. E, se claramente demarcada, a ficção não arranharia o que precisasse ser estritamente documental mas, ao contrário, até daria mais ritmo e mais sabor à sucessão dos eventos. Contudo essa, digamos, inovação merece mais análise, porque ela traz para o plano aparente uma promiscuidade oculta que persiste no telejornalismo desde muito tempo. Ou seja: à separação aparente corresponde um imbricamento subterrâneo que corrompe o telejornalismo em sua função de retratar o que se entende por realidade.

Em palavras mais claras, o telejornalismo, de um modo geral, se define por adotar uma narrativa melodramática. Isso, que é um definidor do telejornalismo em todo lugar, manifesta-se de modo bem acentuado no Brasil. Aqui, a TV se consolidou à custa de novelas. O que quer dizer: ela envolveu, capturou o público à custa da emoção produzida pelas novelas melodramáticas.

O melodrama virou o código da TV – e da TV brasileira é o código por excelência.

Para cativar seu público, a TV promove uma dramatização da notícia e do programa jornalístico, como se ele fosse uma peça de ficção melodramática. De preferência com o final feliz.

Em Contagem regressiva, esse movimento, tornado mais visível pela existência da peça de ficção aparente que pontuava toda a série, ganhou mais intensidade.

Dramatizou-se alucinadamente a história, numa confusão entre quatro fatores:
1- acontecimento;
2- a leitura do acontecimento pela TV;
3- a própria TV;
4- e a própria Globo.

Os fatos foram, por assim dizer, enriquecidos com frases trágicas, ou cômicas, ou, enfim, frases de efeito dramático. A sucessão conflituosa e contraditória dos episódios reais ganhou na série uma coerência que não era lógica, mas sentimental. Então, a queda do muro de Berlim, por si mesma, virou a ideologia triunfante. Tudo passava a fazer um sentido cósmico a partir da decrepitude da Guerra Fria, do desmoronamento das ditaduras comunistas. Subproduto dessa coerência melodramática, proclamou-se de modo carnavalesco o fim de todas as tiranias. Não há mais Stalins, não há mais tiranos do Leste europeu, e também não há mais Pinochets no Chile. As tiranias, como por obra de um pano teatral que caísse, interrompendo o curso das coisas para inaugurar outro ato, foram todas varridas.

A partir daí, pequenas ou grandes falsificações históricas passam a ser possíveis. Primeiro, porque a memória histórica é eletrônica (a imagem eletrônica, o documento histórico que prescinde do suporte físico, não inaugura, mas amplia, banaliza a possibilidade de se retocar a posteriori os acontecimentos passados e seu significado, talvez, também, banalize a própria História: a simultaneidade da cobertura dos fatos no espaço se estende para uma simultaneidade dos acontecimentos no tempo). Depois, porque se a própria TV se torna protagonista da história e se o recurso da emoção ficcional vem em socorro da importância dos eventos, o passado pode ser alterado em função da intensificação da dramaticidade.

Pois foi graças a essas possibilidades milagrosas que, pela primeira vez, de modo acabado e espetacular, a Rede Globo contou a história da ditadura militar no Brasil.

Mas havia um pequeno problema: se as imagens históricas eram as imagens que apareceram na TV, como a ditadura poderia fazer parte da retrospectiva? Durante o tempo que durou, a ditadura militar nunca apareceu na TV como ditadura. A Globo nunca falou dela como ditadura. E agora o fez. Só pôde fazê-lo porque a retrospectiva histórica de Contagem regressiva passou a se comportar, naquele momento como em vários outros, como peça de ficção. A tese libertadora, apoteótica do fim das tiranias pedia, dramaticamente, que o caso brasileiro fosse contado de modo intenso. Era preciso carregar na descrição da ditadura para enaltecer o paraíso que é a nossa atual democracia (paraíso que, evidentemente, resplandece também uma ficção).

Foi essa necessidade tipicamente melodramática que forçou (e autorizou) a pequena maquiagem do passado. Se imagens históricas eram as imagens efetivamente exibidas em sua época pela televisão, e se a Globo nunca exibira nenhum fato grave contra a ditadura no Brasil, durante to­do o tempo de duração da ditadura, tratava-se de introduzir na história, a posteriori, algo que ainda não fazia parte da própria história registrada no vídeo. O que o público viu nesse capítulo foi uma novela jornalística que deu ao telespectador de hoje um passado que nunca havia sido pre­sente para o telespectador de ontem.

Primeiro, a conduta servil da Rede Globo durante a ditadura, indispensável para a manutenção da própria ditadura, foi sonegada. Ao mesmo tempo, sozinha, e inexplicavelmente, a ditadura passou de mocinha a vilã nos melodramas que fazem o nosso telejornalismo diário. Assim como nas novelas personagens do bem às vezes bandeiam para o lado do mal, a ditadura brasileira virou demônio depois de ter sido anjo. Como num feitiço. Sem explicações. A Globo, que foi sustentáculo ativo do regime dos banimentos, das torturas e dos desaparecimentos, passou a denunciar, de repente — com algumas décadas de atraso, é verdade —, os crimes cometidos pelos ditadores. Quanto às imagens dos crimes da ditadura, que antes não apareciam na TV, a Globo as importou de outras fontes, e as acrescentou, a posteriori, repito, na memória eletrônica da TV e da História.

Durante muito tempo perdurou uma luta de paradigmas no Brasil: quem contaria a história de quem? A Globo contaria para as novas gerações a história das lutas das esquerdas contra a ditadura, ou as esquerdas contariam a história da Globo? O que vemos hoje é que o paradigma da Globo ganhou. Quer dizer: a televisão ganhou.

Ou, em outras palavras, prevaleceu o modelo de integração planetária que ilhou os homens. Não foi por acaso que, logo na abertura da série Contagem regressiva, o apresentador Pedro Bial declarou: “Todo homem é uma ilha. Mas de toda ilha tem um homem acenando para o seu semelhante”.

É bem significativo que essa frase faça parte do repertório ativo da nossa televisão atual, mas tenho hoje uma visão um pouco mais pessimista. De minha parte, admito que todo homem seja uma ilha. Mas não vejo tantos acenos assim. No máximo, vejo encenações para uma câmera, ou olhos vidrados, meio abobalhados, às vezes piscando. Não para o seu semelhante. Mas para o seu monitor.

(Melo)dramatização e erotização

Pagando o preço de uma conversão

Repete o senso comum que os meios eletrônicos são instrumentos a nosso serviço. Em grande medida, é uma percepção acertada, eu reconheço. Afinal, eles obedecem aos nossos comandos. Você é quem liga a televisão, quem muda de canal, aumenta o volume, tudo por controle remoto. Principalmente agora, com o advento do videocassete, do videolaser, dos canais por assinatura, a multiplicidade de ofertas faz de cada telespectador um senhor de seu equipamento.

Atualmente, é possível conjugar cada vez mais telefone, modem, computador, TV, filmes pela TV, imagens, fotos, tudo. Você controla o seu computador. Palmas para você.

Dizem, como um indício da falência da sociedade de massa, que não existe nenhum computador pessoal igual a outro computador pessoal. Bem, é um fato. Não sei se há realmente uma falência da sociedade de massa (pois a sociedade de massa sempre se compôs de pequenas diferenças individuais), mas que o computador pessoal é único, vá lá, é verdade. O conjunto dos programas que cada computador tem, a maneira como cada um desses programas está configurado, como eles se relacionam e, principalmente, os arquivos que se guardam dentro de cada um dos programas, tudo isso é algo de muito pessoal.

Falam, então, da personalização do mercado de consumo. Falam em “customização”: cada mercadoria adaptada ao seu cliente, seja ele um segmento do mercado, uma empresa, ou uma pessoa física. Hoje, fabricam-se automóveis e até bicicletas personalizadas. Cada bicicleta é diferente da outra. Não haveria mais, portanto, segundo essas visões, o consumo de massa. O consumo estaria evoluindo para a personalização total. Falam que o público consumidor deixou de ser manipulado pelos meios ele­trônicos. Falam, enfim, que esse mesmo público — e cada indivíduo isoladamente — tende a ser cada vez mais o controlador dos meios.

De minha parte, indo na contramão, quero ser menos entusiasmado com essa liberação que viria através dos chips. Mesmo correndo o risco de ser conservador, um conservador à esquerda. Pelo menos por enquanto os meios eletrônicos menos nos servem e mais nos assediam. Eles nos assediam prometendo nos servir. Mas, antes, cobram um pacto: que sirvamos a eles primeiro, com um gesto de aproximação.

Eles cobram de nós uma conversão, uma conversão quase mística. Você precisa aderir.

Num primeiro momento você tem que aderir incondicionalmente a esse tal novo modo de vida, inteiramente amarrado pelos meios eletrônicos. Só depois dessa adesão é que você começa a adquirir a prerrogativa de opinar — não importa que essa prerrogativa esteja apenas remotamente posta, virtualmente posta. Não importa. Estar cada vez mais comprometido com os meios eletrônicos tornou-se um pressuposto do que entendemos como cidadania, chega a ser um passaporte para a realização pessoal de cada um. É motivo de comemoração, deslumbramento e celebrações entre os novos usuários dos novos meios.

A dança de acasalamento

O assédio, essa exigência da conversão, não são invenções dos meios eletrônicos. Têm sua origem mais próxima, imagino, nas artimanhas do jornalismo e dos veículos de comunicação não eletrônicos, anteriores aos eletrônicos, para envolver o público e criar um mercado próprio, cativo.

Foi assim, dando a base para a conversão cobrada hoje pelos meios eletrônicos, que o jornalismo confundiu-se mais e mais com o entretenimento. Mais do que informar o leitor, ouvinte ou, mais tarde, o telespectador, o jornalismo (e os veículos de comunicação que o jornalismo engendrou) preocupou-se em entretê-lo, emocioná-lo, comovê-lo. A notícia talvez tenha validade por ser útil, mas o veículo que a transporta procura credenciar-se junto ao seu consumidor por ser ele, veículo, afetivamente imprescindível, mais do que útil. Por isso a dramatização: o que o jornalismo pretende é tocar a alma do freguês, é conquistar seu coração. Coração conquistado é cliente cativo.

Vamos dizer que conquistar corações seja uma ambição amorosa, uma ambição amorosa do jornalismo de mercado. Ela começou com o papel, mudou-se para os meios eletrônicos e aí potencializou-se muito mais. (Quando as massas adotaram a TV como o veículo por excelência da segunda metade do século XX, adotaram-na como uma divindade, ou como o elo da irmandade planetária, ou como o símbolo ativo da comunhão mundial simultânea, ou ainda como o sinal da ubiquidade do ideal comum.) O jornalismo perdeu em profundidade, mas ganhou, e ganhou muito, em emoção.

Como vimos, os meios eletrônicos precisam tocar a alma do consumidor. Por isso mistificam, por isso trabalham tanto com religiosidade, por isso dramatizam. Por isso, de uma vez por todas, precisam seduzir o público — e, então, erotizam. Podemos aqui entender erotização de maneira bem abrangente: desde seu sentido mais estreito, aquela erotização que busca acionar diretamente o princípio do prazer, até seu sentido mais amplo, admitindo-se mesmo a hipótese de que seria possível erotizar até as relações não delimitadas pela sexualidade — hipótese de que falaremos mais a seguir.

Erotizando relações de poder

A publicidade, todos sabemos, cuida de erotizar o que é não sexual. Uma marca de água mineral, uma revista feminina, um seguro de vida: tudo isso é vendido com base em apelos sexuais. Mas esses apelos sexuais, por mais insistentes, repetitivos, reiterados, não contribuem para uma liberação sexual. Eles não se inserem dentro de uma evolução que erotiza mais e mais a existência humana no sentido de libertá-la, no sentido de expandir o ser e suas potencialidades para sentir a vida, mas, bem ao contrário, fazem parte de uma ordem que aprisiona.

Os meios de comunicação transpiram sexo — e constituem a prisão. Falamos, então, de um erotismo que não liberta. Falamos, talvez, de sexismo. Herbert Marcuse imaginou mudanças sociais que trariam a erotização das relações humanas numa trilha de libertação. Ele assinalou que Freud praticamente não fez distinção entre eros e sexualidade, a não ser mais no fim da vida. Na visão dele, Marcuse, sexualidade seria algo menos abrangente do que eros. Embora a minha contribuição a este seminário seja produto da observação direta dos meios eletrônicos (e não da revisão de teorias, o que eu não saberia fazer), creio que é pertinente relembrar o que diz Marcuse em Eros e civilização, um texto da década de 60: “Sob condições não-repressivas, a sexualidade tende a ‘tornar-se’ Eros — quer dizer, a auto-sublimação em relações duradouras e expansivas (incluindo relações de trabalho) que servem para intensificar e ampliar a gratificação instintiva” .

Nós não vivemos exatamente numa sociedade livre, onde as amarras da repressão foram rompidas. Vivemos ainda numa sociedade reprimida. Daí que a erotização (sexualização) a que me refiro, em vez de tornar prazerosas relações que seriam meramente mecânicas, burocráticas ou de produção, concorre para sexualizar relações de poder e de consumo. Sexualiza-as sem modificá-las, reforçando-as.
Trata-se de uma sexualização obstinada e invasiva — que acontece, sobretudo junto ao público infantil, como uma erotização contra a vontade, mais ou menos violenta, que produz o desejo e não a satisfação do desejo. Se é verdade que os modelos de poder vigentes ainda oprimem (basta ver o uso político dos meios de comunicação do Brasil, incontestavelmente opressor), o que temos é uma erotização da relação entre dominante e dominado. Nesse sentido, essa erotização mais intimida do que liberta.

A exemplo da publicidade — e aqui fazendo um pouco o caminho de volta —, também poderíamos falar no mesmo tipo de erotização com o jornalismo.

Jornalistas de TV, homens e mulheres, constituem-se como símbolos sexuais, a exemplo de atrizes de cinema, dos cantores de rock, dos astros pop. Um dos fenômenos da televisão é a fabricação de ídolos de massa e alguns deles, claro, são os qué exercem a profissão de jornalistas.

Sabemos hoje que toda a programação da TV é erotizada ou, melhor, sexualizada: das Xuxas e Angélicas da vida, passando pelas meias de Hebe Camargo, até o penteado mutante de Cid Moreira. Sexualizam-se os programas infantis – de maneira perigosa e irresponsável. Mas isso é o óbvio. Erotizam-se as novelas. Mas também é óbvio e não quero me ocupar disso. O ponto é que se erotiza o jornalismo, e não apenas pela característica de popstar dos jornalistas. Eu destacaria, aqui, pelo menos dois planos da erotização do jornalismo.

No plano do repertório (da pauta) mais aparente, há a inegável compulsão de se falar de sexo. Sexo vende jornalismo — e o jornalismo se vende ao sexo (com muita frequência, veículos jornalísticos se anunciam como produtos usando apelos sexuais). Ele abusa de fofocas, intrigas, pequenas maldades picantes, debates intermináveis sobre a vida sexual das celebridades. Cria-se o mercado dessas intimidades, dos segredos de alcova. Expor privacidades e indiscrições se converte numa exigência crescente, que amofina o pudor e dá as bases para a troca das intimidades como o veio principal da pornografia interativa, que veremos adiante.

Mas também no plano da organização daquilo que se diz há uma erotização. A mera melodramatização das notícias de temáticas não diretamente sexuais, como um evento esportivo, as guerras na Europa, as excentricidades de líderes estranhos, como Kadhafi, Jirinovski, ou Saddam Hussein, concorre para cimentar, pouco a pouco, essa erotização que se dá pelo melodrama.

O melodrama tem um quê de obscenidade: trabalha devassando intimidades, não necessariamente sexuais, mas intimidades sentimentais — e, à medida que devassa intimidades, descaracteriza-as enquanto tais. A exibição dos melodramas, como as novelas, supõe a fantasia e a satisfação de fantasias de cada telespectador. Seguindo o mesmo diapasão, as notícias no telejornalismo se dividem entre bem e mal (há sempre o vilão da guerra, e há também o lado bom da guerra; há sempre a doença conspirando contra a saúde, mas há vida buscando vencer a morte; a pureza idealizada das crianças é superexplorada, assim como o patriotismo, que vira ufanismo; enfim, as notícias compõem pequenos melodramas dentro dos noticiários, num tipo de espetáculo em que a emoção barata vale mais que a objetividade).
Tenho insistido nesse ponto: que o telejornalismo vai se comportando como uma novela ou, mais propriamente, uma soap opera, cujos personagens bons e maus se prolongam em lances de intensa dramaticidade. Ou de intensa melodramaticidade. O telespectador liga a TV para saciar suas fantasias e para absorver novas fantasias que depois serão saciadas. Assim é com as novelas, assim é com os programas jornalísticos.

Antes, o objetivo do capital era fabricar necessidades. Agora, ele fabrica desejos e fantasias, em escala exponencial. O capital, (des)encarnado nos meios de comunicação, já não se destina a produzir novas necessidades, como escovar os dentes com flúor de última geração, comer produtos supervitaminados ou ter cuidados médicos ultra-especializados. Cria desejos no consumidor, desejos de possuir sexualmente a moça da pasta de dentes, de viajar num veleiro, de transar com a enfermeira loira e portanto se associar àquele plano de saúde.

Dessa forma, os meios eletrônicos de comunicação, liderados pela TV, buscam estabelecer uma relação de fidelidade, fabricando ideologicamente uma relação erótica permanente. O que significa: falsificando uma relação erótica duradoura.

Assim é que a televisão firmou-se junto ao público: travando com ele uma relação erótica — de um erotismo perverso e pervertido. A televisão diz para o consumidor: venha, ligue-me. Ela diz mais: ligue-me e goze passivamente, goze sem parar. A televisão proporciona o carrossel de imagens bonitas, o fluxo é contínuo, ininterrupto, são imagens multicoloridas, emoções impactantes. Nada para você se preocupar por muito tempo. Tudo para você gozar. Gozar sem ter que inventar o próprio prazer.

A excitação que vem do monitor para o homem

O clamor do sexo

Seja porque se deixam converter em produtos personalizados, seja porque nos englobam num oceano de gozo contínuo, seja porque nos seduzem, seja porque nos prometem prazer ininterrupto, os meios eletrônicos são íntimos de cada um de nós. E nos convidam mais e mais para interagir com eles. Ou é um programa da Rede Globo que aborda o telespectador com o mote “Você decide”, em que a massa diz sim ou diz não, ou são os que poderíamos chamar rolling playing games eletrônicos, ou são os capacetes, luvas, máscaras e roupas especiais de realidade virtual, ou são os bancos de pesquisa que atendem a cada minúcia da nossa curiosidade. Hoje você caminha pelos meios eletrônicos como quem caminha ora por um supermercado, ora por uma cidade estranha, por um parque de diversões. E hoje, também, dentro dos meios eletrônicos, você caminha por lugares menos comportados, por alcovas, caminha movido por excitações inconfessáveis.

O ponto é: do seu equipamento que te liga aos meios eletrônicos você não tem vergonha. Nem tanto por uma liberação que ele lhe tenha proporcionado, mas porque, diante dele, você não se compromete. Não haverá contato físico. O seu equipamento é seu íntimo, quer dizer, compartilha como ninguém de sua intimidade; é ele o cúmplice de suas fantasias.

Quanto à relação erotizada, nós já vimos, ela já estava posta. Ela se consolidara antes. O erotismo ou mesmo a pornografia não invadiram os meios de comunicação eletrônicos, ao contrário do que muitos dizem. Eles são naturais dentro dos meios eletrônicos. A intimidade entre eles e cada usuário ou espectador, repito, uma intimidade dada desde antes, clama pelo sexo.

Antes, o cidadão e a cidadã, recolhidos à sua intimidade, podiam ler histórias picantes, contos libertinos, podiam mesmo folhear histórias em quadrinhos excitantes, e sentiam alimentada a sua imaginação, incendiada a sua libido. Agora, só isso não basta. É preciso mais. Ninguém é mais refém do suporte do papel. O cidadão eletrônico ou o cidadão virtual, cuja libido já estava difusamente acionada pelos fantásticos horizontes do mundo virtual, dentro do oceânico sentimento virtual, quer ser acariciado em suas partes mais íntimas por esse mesmo equipamento. Nem que seja virtualmente.

Por isso é que digo: aquilo que muitos chamam de pornografia é um desdobramento natural dentro dessa relação que já nasce erotizada.
Mas, se para fazer parte da sociedade de informação eletronificada ficamos cada vez mais ilhados, se voltamos assim a nossa libido para dentro do monitor, e temos com ele um envolvimento afetivo, muito próximo, estaríamos então aceitando um pacto a partir do qual passamos a integrar um imaginário que cobra de nós um ingresso: uma fatia de nossa própria imaginação. Nós não sabemos se o que vemos na tela é uma resposta às demandas da nossa imaginação ou se a nossa imaginação é que é acionada pelo que enxergamos.

Eu poderia ilustrar, ou demonstrar, esse vínculo de muitas maneiras. Escolhi, talvez por proximidade, talvez porque o tema nos seja aqui especialmente caro, e talvez, ainda, porque nada seria tão explícito, o caminho do sexo explícito nos meios eletrônicos. Tenho notado que os filmes pornô vêm tematizando cada vez mais, e de maneira nada ingênua, a relação do homem atual com esses meios. Os dois vídeos pornô que vou citar aqui são dois exemplos muito representativos. O primeiro nos fala do desejo que nos vem da tela — e o segundo nos apresenta uma possibilidade inversa: a maneira como a tela traga, captura o nosso desejo.

O primeiro tem um nome bem original: Sex (EUA, 1994, dirigido por Michael Ninn, VCB Pictures—vca Platinum). Sei que foi bastante premiado num dos festivais dedicados ao gênero. A cena que mais me serve à argumentação mostra, de modo irretocável, o que é a excitação que nos chega da televisão, dentro dessa aldeia global de ilhas. Eu diria: uma aldeia oceânica. Ou talvez um arquipélago global, envolvido pelo sentimento oceânico virtual. Vamos a ela.

É forçoso que eu descreva a cena: um astro do showbiz, não sei bem se ele é um modelo, um ator, um astro, enfim, tem uma espécie de pesadelo ou de alucinação. Ele, o personagem, passa por um momento de enorme frustração amorosa (na medida em que alguma frustração amorosa pode ser enorme dentro de um vídeo pornô) e por um grave desencontro de identidade. Nessa cena, ele está diante de um painel com mais de uma dúzia de monitores de TV compondo uma tela gigante (nada muito diferente daquilo que a gente vê no programa Domingão do Faustão, mas o ambiente, aqui no vídeo, é bem escuro). À frente da grande tela de muitos monitores, repousa no chão um televisor solitário. Dele, brota uma figura feminina, trajando um maiô de couro preto. Ela quebra esse televisor, ao sair dele, e em seguida o destrói. Como se ele fosse o ovo.

Prostrado, desmoralizado diante da(s) TV(s), nosso personagem não se recupera da amada que teria perdido, da identidade que lhe foi subtraída pela indústria que fez dele um astro. Alguém, uma voz, uma entidade, chama-o à “razão”? O que mais ele pode querer? Agora que desfruta de tudo aquilo que sempre quis ter, por que não aproveita? Mas nosso personagem não reage.

Aos poucos, no entanto, a mulher que sai da TV traz para junto de si outras duas, muito bonitas, que, imagens transformadas em gente, iniciam uma coreografia lésbica para entreter (ou para acordar) nosso herói entristecido.

Para o bem e para o mal, a TV, nessa cena, se fez a substituta do próprio inconsciente do personagem: como num sonho, ele vê brotar da tela seus medos e seus desejos desconhecidos. Refeitos em desejos de prazeres conhecidos. Tanto que, a uma certa altura da coreografia lésbica, ele passa a “interagir” com as três mulheres. Ele, é claro, transa com as três — ou esse vídeo pornô não seria um vídeo pornô.

Em minha opinião, isso é um emblema. Muitas vezes, o homem contemporâneo espera dos meios eletrônicos que eles lhe forneçam as fantasias (e teme que lhe forneçam os pesadelos) de forma acabada. Como uma fantasia prêt-à-porter. Essa é uma característica nova do erotismo pelos meios eletrônicos. Como um superego onipresente, a TV nos diz: goze, goze, goze. Mas, como um inconsciente solícito, está sempre nos dando algo, nos alimentando de desejos, nos proporcionando os sonhos para gozar.

Sei que há uma grande resistência ao vídeo pornô. Uma resistência moral, travestida de resistência estética. Muitas vezes, o que há é uma resistência do reprimido. Como estou me socorrendo, aqui, desse gênero um tanto maldito (embora não se reconheça nele a grandeza necessária para que possa ser chamado de maldito), eu gostaria, antes de prosseguirmos, de fazer aqui uma defesa do vídeo pornô, desses que existem em locadoras e já em alguns canais por assinatura no Brasil. A sua defesa é essencial para a compreensão do assédio, um assédio sexual, dos meios eletrônicos sobre cada um de nós.

O que pretende esse gênero de vídeo-cinema? Pretende produzir excitação no espectador. Ou melhor: excitação genital. Ou, melhor ainda, ele vende ereções aos homens e também às mulheres. Para isso, valem-se principalmente do sexo genital levado ao paroxismo, associado ou não a situações de sedução mais ou menos vulgares, mais ou menos estúpidas, mais ou menos mecânicas (para muitos, antieróticas). Eles conduzem os olhos do espectador ao que já se chamou no Carnaval carioca de genitália desnuda. Aqui, no entanto, estamos falando de genitálias em close, em plena fornicação, praticando aquilo que um dia alguém definiu numa piada: sexo explícito, sexo implícito, sexo explícito, sexo implícito. E assim segue até o orgasmo espetacular. A excitação é uma mercadoria.

De novo, peço licença para comentar um autor. Desta vez, trata-se de Freud, em O mal-estar na civilização, de 1929: “Vale a pena observar que os próprios órgãos sexuais, cuja visão é sempre excitante, dificilmente são julgados belos; a qualidade da beleza, ao contrário, parece ligar-se a certos caracteres sexuais secundários”.

Destaco três ideias básicas:
1- A visão dos órgãos sexuais é sempre excitante. De fato, a simples ideia de contemplar partes íntimas, sobretudo as partes íntimas de alguém que nos desperte interesse, é sempre, sempre muito estimulante.
2- Não são julgados belos. A arte não tem se ocupado de genitálias para realizar a beleza — salvo em ocasiões e momentos isolados como, mais recentemente, nas obras como a de Lucien Freud, cujo objetivo talvez não seja o belo, mas o desconforto. Mas a beleza, tal como a enxerga­mos, por questões que já devem ter sido objeto de outros debates deste curso, ficou apartada de genitálias desnudas.
3- A beleza tem a ver com os órgãos sexuais secundários. É o semblante de uma mulher, suas curvas, seus cabelos, as linhas delicadas dos lábios, a pele macia que produzem aos olhos do artista a matéria-prima da beleza; não é evidentemente sua vagina. Do mesmo modo, o David de Michelangelo é belo em sua harmonia corporal, não em seu pênis diminuto, um pauzinho protocolar.

Com a pornografia, deu-se o oposto. Antes de chegarmos aos meios eletrônicos, falo por agora da pornografia como um campo genérico. Faço apenas uma distinção. Trato menos da pornografia cujo objetivo é a caçoada dos costumes, que desmonta com zombarias o moralismo hipócrita, e mais da pornografia que tem por objetivo o tesão de quem dela se serve. Falo da pornografia como afrodisíaco, como aquele objeto cultural que, quando bem concebido e bem-acabado, nos tira do sério, leva-nos a cobiçar a mulher do próximo e nos alimenta o desejo de transgredir na vida privada. Falo um pouco dessa poderosa cumplicidade entre transgressão e desejo, essência de tudo o que seja libertino.

A obsessão da pornografia é por aquilo que admitimos ser excitante. Ela não está nem aí para aquilo que concordamos ser o belo. Não vou me ocupar do que possa ser o belo, ou de que modo aquilo que nos excita as partes baixas não possa encontrar, também, sua forma de expressão su­blime, mas o fato é que a pornografia, ao lixar-se para a beleza como definição, ou como objetivo primeiro, talvez lixe-se para a idéia de ser arte. Ela quer ser tesão. Quanto a ser ou não ser uma forma de arte, é o de menos. Às vezes, todos sabemos, consegue ser uma arte de suprema elevação.

Aqui me ponho de volta na era dos meios eletrônicos. Para os vídeos pornô, esses herdeiros da literatura e do cinema que já ganharam autonomia e se firmaram como um gênero próprio de manifestação do erotismo contemporâneo, o que conta é o coito. Em close. A imagem é absoluta.

Num pornô, não há de ser a situação dos personagens que acende a libido do espectador; não é a sinuosa linha da sedução, não é o que a arte é capaz de insinuar ou sugerir; é, sim, a explicitação do coito — o que, convenhamos, é de uma estupenda estupidez. Mas, muitas vezes, de uma estupenda excitação.

E aqui chegamos a duas verificações que, ao menos para mim, foram surpreendentes.
1- Se é verdade que à pornografia, também na era eletrônica, já não importa ser ou não ser arte, e se para ela o que vale é aquilo que excita, mesmo em prejuízo da beleza, e em prejuízo de qualquer refinamento, estamos diante de um gênero que não se incomoda em ser feio. E de feio também admite tirar sua finalidade, que é o tesão. Teríamos, aí, uma estética da feiúra, numa alucinada apologia do puramente genital — que, normalmente, não está associado à beleza.
2- O mais surpreendente porém não é isso. O mais surpreendente é que talvez exista mesmo certa transcendência nessa arte das partes pudendas.

Vemos uma repetição interminável do coito desumanizado, despersonalizado. As personagens, suas faces, seus seios, seus braços e pernas deixam a cena ser roubada pelos genitais em close. Não são mais elas, personagens humanizadas, que estão ali. São seus órgãos sexuais, lambuzados, eretos, grudados entre si, esfregando-se. Pelo atrito, pelo exagero e pelo paroxismo, os órgãos sexuais se alforriam de seus donos. São apenas eles, órgãos sexuais, a dominar a cena. Eles vão além dos corpos de seus proprietários originais.

Eis, então, que a ausência de pudor se confunde com a ausência de autor, com a ausência de sujeito (de novo, a ausência aparente de sujeito; de novo, o fantasma do sujeito virtualizado, que existe, age, mas não está lá nem mais como imagem). Quem faz amor ou quem faz sexo ali na tela não são duas pessoas, mas apenas duas genitálias. Quem copula é apenas o sexo. O sexo virtual pelo sexo virtual. Em termos gramaticais: sujeito oculto, ou indeterminado: trepa-se, ejacula-se.

Aí, a pornografia da era eletrônica, feito o próprio capital, ganha vida própria, cursos próprios, objetivos próprios; expressa-se por si, existe por si, para além da finalidade estreita de uma mensagem. Não pode mais ser controlada por um autor, mas vira um processo anônimo. É um mundo autônomo (como a arte também é) — mas dessubjetivado (como a arte não pode ser).

De todo modo, é um gênero legítimo. Não apenas porque somos contra a censura, defendemos o direito da livre expressão, as liberdades sexuais etc. Isso seria meramente correto. Digo que é um gênero legítimo porque legitimamente enraizado, verdadeiramente seminal, dentro do vínculo entre a tela de imagens eletrônicas e seus usuários. (Bem, aqui termina a minha defesa do vídeo pornô.)

Mais adiante voltarei com uma cena de outro vídeo mas, por agora, quero tratar um pouco da permuta das intimidades na era eletrônica. O que excita, nesse gênero, sem dúvida, é uma intimidade devassada. O órgão sexual é excitante em parte também porque se atreve a se mostrar, a se deixar ver, quando deveria se recolher. Recentemente, numa cidade do litoral paulista, um vídeo se tornou um supersucesso. A qualidade nem era tão boa, mas os personagens eram gente do lugar. Vídeos domésticos, cenas “autênticas”, têm um apelo muito especial.

O que interessa agora é ter a noção de que essa troca de intimidades não é muito comprometedora, pois o assédio pelos meios eletrônicos elimina o contato carnal. Se a carne é fraca, o chip é inócuo. Estamos falando, portanto, de um curioso erotismo sem riscos físicos — se é que pode existir erotismo sem riscos físicos.

Em matéria de troca de intimidades pelos meios eletrônicos, vamos então sair um pouco do vídeo e ir a alguns de seus territórios vizinhos. O telefone e a Internet.

O telefone

Há um livro chamado Vox. É uma novela de um americano, Nicholson Baker, lançada pela Random House americana em 1992, editada no Brasil pela Companhia das Letras. Aliás, para quem gosta de libertinagens literárias, e imagino que todos os leitores deste livro gostamos, eu recomendo outro, Fermata, do mesmo autor, lançado pela mesma editora. Mas eu me lembro de Vox aqui porque ele é uma literatura que se faz a partir de outro meio. Melhor: ele é uma espécie de recuo ao suporte papel, regressa à literatura com aquisições eróticas vindas de algo que virou moda nesta nossa era: as transas pelo telefone.

Como literatura, Vox tem sua inteligência. Como pornografia, é mais quente à medida que se aproxima do final, quando a transa telefônica vai se consumando. Na ficção (ou relato autobiográfico, difícil saber) de Nicholson Baker, os personagens que se põem em contato não se conhecem pessoalmente, e procuram ganhar intimidade à medida que se falam. A preocupação é tipicamente literária e, eu diria, demodée. Uma bobagem um tanto caduca, até, pois não há mais tanto romantismo no erotismo da era eletrônica. Assim como os meios de comunicação eletrônicos erotizam sua abordagem do telespectador ou usuário, o erotismo propriamente dito dentro deles é muito mais genitalizado. O que vale é o coito, como bem demonstram os videos pornôs. A preocupação relativamente romântica do relato de Baker, no entanto, é útil para nós aqui à medida que atesta a angústia causada pelo desejo de uma intimidade genital e o vazio que ela produz, uma vez que não vem acompanhada de uma intimidade afetiva. Pior: quando se torna intimidade afetiva, deixa de ser intimidade genital. O melhor sabor da autêntica sacanagem, portanto, é perdido.

O que é que oferecem esses serviços telefônicos? Alguns prometem ligar o cliente com “gente como a gente” — e não com profissionais. Imagino que devem ser dos melhores. A maioria apenas põe o cliente em contato ou com mensagens gravadas ou com atendentes profissionais. São uma mania. Há cerca de um, dois anos, houve uma explosão desse campo de negócios no Brasil. Surpreendeu a todo mundo, inclusive aos que investiram seu dinheiro nisso — muitos não estavam equipados para a enorme procura.

A clientela procura aquilo que se tornou uma mercadoria, um objeto de consumo de nossa era eletrônica: excitação. Às vezes, procura uma ejaculação ou um orgasmo, solitário ou ao lado de alguém que escuta na extensão.

Imagino que nunca, como em nosso tempo, o desejo de expor a própria intimidade, de um indivíduo ou mesmo a intimidade conjugal, foi tão intenso como fantasia. Nunca uma sociedade nos cobrou tanto isso. Os serviços de sexo por telefone se anunciam em todos os veículos de comunicação. Durante um tempo, foram uma febre nas madrugadas da televisão.

Foi por isso que eu me permiti ligar. É engraçado, mas devo admitir que, em minhas hesitações pequeno-burguesas, só tive coragem de telefonar ao me dar a desculpa de que fazia aquilo movido por uma curiosidade jornalística. Em certo sentido, foi isso mesmo. Tanto que posso confessar esse meu gesto libertino sem maiores incômodos de consciência.

Das vezes que liguei, eu me frustrei durante quase todos os minutos. Lembro-me de que gostei um pouco de uma moça que, como eu, me pareceu um pouco recatada, tímida, caipirinha. Pelo menos era esse o tipo que ela fazia e, no começo, me convenceu. Ela perguntou o meu nome, eu menti, perguntou do que eu gostava, e fui dizendo a verdade. Ela um pouco me acompanhava, contava coisinhas suas, até que chegamos naquele ponto.

Ela então me sussurrou que estava deitada na cama, só de calcinha, e com uma camiseta, vejam só, com uma camiseta do Mickey. Achei tão caipira aquela cena que me deixei envolver um pouco. Contei que também estava na cama, mas não tive como entrar em detalhes. Eu não tenho nenhuma camiseta do Mickey.

O que sei é que a conversa foi esquentando, e suponho que deve ser assim com todo mundo. A moça do outro lado interpretava muito bem. Parecia realmente muito interessada na minha pessoa. Ela passou a me dizer das “loucuras” que faria comigo (era assim que ela falava), descrevendo minuciosamente cada uma dessas “loucuras” e, ainda que eu não conseguisse passar dos hums e hã-bãs, ela estava me enredando e sabia disso. Foi então que ela se tornou mais ousada, e todo o nosso castelo libidinoso desmoronou.

Numa sequência irrefreável de obscenidades que me agradavam, ela pronunciou a frase fatal, de que nunca pude me esquecer. Já ofegante, num volume mais alto, a moça disse assim:
“Ai, se você estivesse aqui, aí nós ia transar legal.”
Foi um horror. Descobri que meu erotismo é muito limitado, elitista, cretino até. Não sabe conviver com certos erros de português. Com outros erros até que tudo bem, mas aquele foi demais.

De todo modo, o sexo por telefone é uma realidade irrevogável dentro das possibilidades do assédio eletrônico. Todo mundo já fez ou vai fazer. Nem que seja com alguém conhecido.

A internet

As limitações de linguagem, e de gramática, são menos problemáticas na Internet. Mesmo porque, quando o idioma internacional é aquele inglês sumaríssimo, ninguém comete atentados contra o português. Piadas à parte, em algumas BBSS brasileiras trafega muita pornografia, e as pessoas se falam mesmo em português.

Hoje já é possível ter, do Brasil, um ótimo uso da Internet, incluindo os serviços em web, que são páginas com imagens. Pelo serviço America On-line, você acessa várias publicações, das bem comportadas àquelas dedicadas a temas eróticos. Mas é mesmo pela Internet que você tem acesso às coisas mais divertidas. Aqui, eu que não sou um rato de computador, um hacker ou um netsurfer, como dizem aí, gostaria de apenas destacar os alt.sex, que são os grupos de discussão sobre sexo. Neles você pode ler relatos de experiências ou fantasias sexuais, confissões de leitores que encontramos em várias revistas masculinas pelo mundo afora, ou mesmo grupos de discussão sobre temas estranhos, tipo a homossexualidade de Jesus Cristo ou, para quem quer ser ainda mais herético, sobre a homossexualidade do Pato Donald.

As infovias, que fazem o interligamento planetário dos meios eletrônicos, tecendo a chamada rede, carregam mais do que informações. Elas carregam aquela relação erotizada, já mencionada aqui, entre o usuário e seu equipamento. Elas transportam a libido, a excitação. Elas transportam o que o isolamento, esse novo celibato gerado pela era eletrônica, pode sublimar de energias, fomes e expectativas. Transportam ansiedades.

De novo, a pornografia, aí dentro, é legítima. É virtualmente natural.

De novo, estamos diante de uma feira de intimidades. É bom registrar que, se os meios de comunicação, em grande parte criados pelas necessidades da informação cada vez mais rápida (não obrigatoriamente mais profunda), têm seguido, em função dessa origem, algumas regras básicas do jornalismo, o mesmo não se dá agora com os meios de comunicação em sua fase eletrônica. A erotização da relação entre os veículos e seu público fez com que, de modo especial e destacado nos meios eletrônicos, regras clássicas do jornalismo fossem rompidas sistematicamente.

O jornalismo clássico, por mais que ceda aos apelos da exploração da sexualidade alheia, não deixa de se debater na defesa do respeito às privacidades. Segundo suas regras, intimidades não existem para serem devassadas. Ou não seriam mais intimidades. No entanto, dentro da Internet, não permutar intimidades seria tão anacrônico quanto uma exigência de contrato com firma reconhecida em cartório. A Internet acabou virando um veículo também erótico, uma extensão, ou um agravamento, da erotização entre os meios eletrônicos e o seu público.

O que se deu, então, foi uma inversão da regra ética de preservar a privacidade. Pelo contrário: nos meios eletrônicos aumenta a demanda doentia por segredos, privacidades e intimidades. Hackers estouram segredos de Estado, econômicos ou militares. Outros advogam que toda informação é pública, a tese do “caiu na rede é peixe”. No campo sexual, a demanda é tamanha que começa a acontecer, a exemplo do vídeo pornô, a fabricação de intimidades, quase que em linha industrial, mas para entrega personalizada.

Estamos falando de tamanha obsessão, de tal consumo interativo de intimidades que, por isso mesmo, não falamos mais de intimidades, mas da encenação pública de intimidades forjadas.

Reforçando a minha hipótese do efeito ilha, teríamos milhões de seres isolados cujas intimidades se desprenderam para dentro dos chips, e hoje trafegam na rede internacionalizada de computadores, nos monitores de TV, nas linhas telefônicas. Com a virtualização do sujeito, desaparece portanto a noção original de intimidade. Em seu lugar, brota outra. A dos genitais sem dono, a das fantasias anônimas, que não são de ninguém e são de todos, a da fornicação estéril, ascética e segura, como a que se prega depois da AIDS. Sem contato físico. Sem riscos de vírus. Ou melhor, só o seu computador corre esse risco.

É claro que a incessante libidinagem internética acendeu a fúria dos censores. Está em vias de aprovação nos Estados Unidos uma lei para punir com uma multa de até 100 mil dólares os atentados ao pudor, com palavras ou imagens. Inventos eletrônicos já permitem que os pais censurem a TV para seus filhos, mediante senhas secretas no controle remoto. Há outros inventos nessa mesma linha já em fase de testes. Mas o debate ainda está longe de estar concluído. A questão mais grave diz respeito ao internacionalismo da rede. Como podem as leis de um país viger sobre um espaço que já é mundial? Pode uma lei americana censurar a mensagem de um sueco?

Outro ponto a anotar é que, também nos Estados Unidos, já se registram crimes sexuais cometidos por meio de abordagens feitas pela Internet. Alguém atrai alguém à sua casa via Internet, e os casos de crime envolvem crianças e adolescentes na condição de vítimas. (Só digo que, aqui para nós, é o caso de anotar esses fatos — mas não considero que essa questão modifique a natureza que estou procurando delimitar dos meios eletrônicos. Trata-se de comportamentos excepcionais, de usuários que parasitam a rede, e não se realizam nela. De modo que essa questão não tem a ver com o que estamos discutindo. Eu não estou discutindo os meios eletrônicos como um instrumento para se consumar uma venda, um casamento, uma reportagem ou um crime sexual. Eu os estou discutindo como um novo universo. Um universo de seres ilhados.)

Dia desses, uma amiga que mora em Nova York me contou de um bar onde as pessoas vão, pedem uma bebida, e sentam-se diante de computadores para ficar navegando na Internet. “É impressionante”, ela me disse. “Ninguém conversa com ninguém.

A EXCITAÇÃO QUE VAI DO HOMEM PARA O MONITOR  A tela confina o desejo

Agora, falemos um pouco de outro vídeo pornô. Erotismo à flor da pele (selo Vogue Erotic Home Vídeo). É um dos melhores retratos que já encontrei da migração do desejo para dentro da tela. A história é bem elementar, como tem de ser. Uma garota encontra, num ponto de ônibus em Paris, um embrulho. Leva-o para casa e descobre que se trata de um vídeo erótico. A princípio ela quase não liga para o seu novo achado. Nossa heroína é muito bonita, é rica, tem um namorado que a trata muito bem. Mas, aos poucos, a trama que a fita lhe apresenta vai conseguindo enfeitiçá-la: uma moça, prisioneira de uma sala, deixa-se, a princípio contra a própria vontade, tocar, acariciar e chicotear por uma outra, que parece ser sua senhora. A jovem, bonita e rica espectadora começa a se identificar com a condição da senhorita cativa, e nessa identificação excita-se para além do próprio controle. Ela então se aproxima do monitor, como que enfeitiçada. É aí que, num lance um pouco surrealista (e um tanto grosseiro), do monitor brotam três falos aos quais ela se entrega com beijos e afagos de perdida paixão. De repente, duas mãos saídas de dentro da TV laçam a personagem que estava do lado de fora, amarrando-a com uma coleira de couro. A heroína é tragada para dentro da TV. Será a nova prisioneira, substituindo a anterior. Depois, de lá, de dentro da tela, estará olhando, como espectadora privilegiada, os novos amores de seu namorado — que se excita vendo-a dentro da TV.

Eu gosto dessa fita. Gosto da atriz, que acho quase linda, a Zara Whites, e da maneira um tanto cabeça como o filme é organizado. É um estranho pornô, dirigido pelo francês Francis Leroi, um nome que se anuncia como um mestre do gênero.

Vamos começar com o mecanismo de atração da nossa heroína, da nossa “ânima”, para a caverna do dragão, a TV. A princípio ela recusa os estímulos que lhe são oferecidos pelo filme. Mas, depois, a busca recorrente de algo mais excitante, e novamente mais excitante, numa escala interminável, leva-a a ter na TV uma morada virtual, que nada mais lhe dá além de um novo estímulo para sua fome. Isso evolui até que, num dado momento, ela, que contemplaria o vídeo para extrair mais prazer de sua vida real, passa a habitar o vídeo (faz de seu desejo um participante do jogo que está na tela). O que era sua morada virtual passa a ser sua morada “real”. Ela é que se virtualizou. De lá de dentro, seu desejo engaiolado apenas pode observar tristemente o mundo.

É como se a ida ao vídeo pornô reforçasse a necessidade do vídeo pornô (em lugar de satisfazê-la); é como se a amarração recorrente de começo (impulso, princípio) e fim (o gozo prometido) fosse o reflexo, em metalinguagem, da própria natureza da pornografia. Resumindo: pornografia vicia. Eis o sentido do destino da mocinha que termina presa dentro da tela. Ela é “ânima” aprisionada. O herói para libertá-la não é ninguém. O herói já não existe.

No primeiro vídeo que citei aqui, tratávamos de um sonho, ou um pesadelo, vindo da tela para o espectador, como se a tela fosse a origem dos sonhos. Agora, temos a tela sugando o desejo ou, se quisermos, nosso próprio corpo sexual. É o processo que eu descrevia, quando falava no desejo despregado, desprendido, alienado de seu corpo de origem.

Nossa heroína, nossa querida e cobiçada Zara Whites, uma vez dentro da tela, substituirá aquela mocinha que ali estava no começo e, o mais espantoso, passará a ver o mundo de lá de dentro. De lá de dentro, ela assiste ao sexo do namorado com outra pessoa. Num dado momento, o desejo do espectador se desprende, e passa a olhar as relações íntimas de seu antigo dono de lá de dentro da tela.

Outro traço característico do quadro que tento expor e que está bastante referenciado nessas cenas é a posição central ocupada pelo genital. E de modo mais dominante pelo falo. Ereto. A estrutura do pornô, e de toda a pornografia eletrônica, tem em seu centro um mastro ereto e em sua órbita uma figura feminina despida e despudorada. Mulheres que transam mulheres cobiçam o mastro, simulam-no. Homens que transam com homens o reafirmam. É a genitalização fálica absoluta da sexualidade.

Acho ainda muito sugestivo o tipo de roupas que usam as personagens do vídeo dentro do vídeo em Erotismo à flor da pele. Como em muitas fitas do gênero, elas trajam lingeries e couro pretos, carregam um figurino explicitamente sado-masô, que ritualiza a relação dominante-dominado, senhor-escravo. E é isso mesmo: nossa Zara Whites deixa-se dominar, escravizar. Em uma palavra mais apropriada: ela se deixa viciar na pornografia.

Nesse instante, ela deixa de ser, em seu anonimato, uma consumidora — e passa a ser consumida. Ela deixa de ser senhora, e passa a ser escrava. Deixa de ser sujeito — vira sujeito virtual e, imediatamente, vira objeto. Será que não é isso a que estamos assistindo? Será que nesse espetáculo não somos nós mesmos (os viciados) os objetos na pornografia eletrônica?

Um anticlímax

Se estamos mesmo enquadrados dentro de nova ordem eletrônica, acredito que não se pode falar em uma ficção libertina, como regra, dentro dos novos meios de comunicação e mesmo em suas ramificações pelos meios não diretamente eletrônicos. Na cultura que vai se consolidando a partir desses meios, a cultura do hambúrguer, do free shop e do celular, vai se dando uma dupla inversão, que nem é assim tão nova:

1) Erotizam-se as relações de poder (uma erotização ou uma sexualização expressa na relação entre os meios eletrônicos e seu público), que não são relações de libertação, ou relações revolucionárias.
2) Deserotizam-se, pela genitalização impessoal, mercadológica e sem sujeitos ativos, as sexualidades.

Eu não afirmaria, com todas as letras, que estejamos vivendo uma nova ordem repressiva. Não. Há uma consciência crescente em torno dos direitos sociais e dos direitos individuais; em todo o planeta aparentemente crescem os valores da democracia etc. Mas há em mim, e não posso omitir isso aqui, alguma desconfiança com relação a tudo isso. O totalitarismo do politicamente correto — um regime que faz de cada ser anônimo um agente repressor de qualquer diferença, sobretudo nos domínios da arte –, aliado à busca dessa integração eletrônica do planeta, à promessa de supressão de todos os conflitos, de todas as diferenças de interesse, envolvida em euforias e deslumbramentos, trazem um novo universo de homens ilhados que mais me preocupa do que excita. É algo que temos que olhar com mais espírito crítico e menos empolgação.

A nossa fantasia sexual parece que já não é mais nossa. Aquilo que teríamos de mais secreto parece que não é mais secreto. Alguém já disse que, se todos conhecêssemos as intimidades sexuais uns dos outros, ninguém mais se cumprimentaria na rua. Bem, hoje todos conhecemos as intimidades alheias. As intimidades fabricadas para consumo público. Hoje já não temos intimidades a esconder. Só a declarar. E todos nos cumprimentamos. Não mais na rua. Mas no computador.

(A VINGANÇA — Ou a gente se cumprimenta nos simulacros de computador, que são as relações humanas inteiramente virtualizadas. A propósito, voltando ao princípio deste artigo, era uma relação humana inteiramente virtualizada aquela minha conversa com a moça do telefone do caixa eletrônico. E a propósito, de novo, devo contar aqui o final daquela historinha, a luta que travei contra o caixa 24 horas. É um desfecho rápido e, ainda que bem-sucedido, bastante melancólico. O fato é que eu, fuçando lá na pontinha do envelope com a minha chave, consegui puxá-lo de volta. Recuperei o meu dinheiro, depositei outra vez, mas direitinho: pus tudo no buraco devido. Ligado com a moça telefônica, eu comemorava com ela o êxito da operação. Corri, alcancei o ônibus e fui para casa. Não foi naquele 29 de junho que a avançada informática bancária brasileira me derrotou. Só foi quase. Ou foi só um susto. Do episódio, ficou comigo a impressão de que essas máquinas não gostam muito de mim. Bastou uma chance, e uma delas me espezinhou. No que foi terrivelmente injusta. Eu apenas desconfio, mas não desgosto tanto assim do assédio eletrônico.)

P. S.: Agradeço a Maria Paula Dallari Bucci e aos amigos Fernando Haddad, Maria Rita Kehl, Ricardo Balbachevsky Setti e Nigge Marianne Piovesan Loddi, que me ajudaram a preparar esta exposição.

 

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