2003

O corpo do Renascimento

por Carlos Antônio Leite Brandão

Resumo

A partir das análises das obras de Leon Battista Alberti, Leonardo da Vinci e Miguel Angelo, distinguem-se três maneiras de se considerar o corpo humano no século XV e no início do século XVI.

No De re aedificatoria de Alberti, o corpo é pensado como organismo e serve como metáfora para estabelecer as diretrizes da arte, da arquitetura e da cidade. Além disso, tal metáfora do corpo como organismo funciona como instrumento para se pensar a política e a conformação da sociedade. Por essa razão, temos em Alberti a noção de um corpo ético que passa a ser aplicada nas várias dimensões do mundo e da cultura.

Na pintura de Leonardo da Vinci, apoiada nas suas considerações sobre arte e natureza, o corpo humano é pensado como fenômeno em permanente relação e metamorfose com o ambiente e a natureza… Se em Alberti ele serve como ideia que abriga noções e paradigmas a moldarem seu projeto do mundo, em Leonardo é visto em permanente relação com o mundo existente, deixando-se afetar por ele de forma variada, conforme as circunstâncias. O corpo é parte desse mundo e, por isso, o vemos como corpo fenomênico, imanente, lançado no meio de outros corpos, da atmosfera e da luz com os quais reage e menos o corpo em si e mais esta relação aquilo que compreendemos em nossa visão.

Nas pinturas de Miguel Ângelo, o corpo aparece como matéria sobre a qual as paixões da alma e a dimensão psicológica do sujeito imprimem seu selo. Nessa dimensão expressionista de sua arte aponta-se o conflito e a tensão permanente entre corpo e alma, matéria e forma. Essa tensão indica emergência da poderosa e antinatural subjetividade moderna e o novo modo como ela se põe a pensar e a se relacionar com o mundo que a cerca. Essa subjetividade, esse conflito, essa tensão e esse antinaturalismo estarão presentes, um século depois, na arte barroca, no racionalismo cartesiano e na construção da ciência moderna.

O “corpo de ethos e da ideia”(Alberti), o “corpo dos corpos e da matéria”(Leonardo), o “corpo do pathos e da alma”(Miguel Angelo): três modos através dos quais o Renascimento e o Maneirismo pensaram o homem e o mundo e prefaciaram a Ciência, a Arte, o homem e o mundo modernos.


INTRODUÇÃO[1]

Seja pela metodologia com que investigamos o Renascimento, seja pelo dinamismo e pluralidade que constitui o período, não cremos que a ideia de corpo aí formulada seja homogênea ou única. São várias e nos dedicaremos, inicialmente, a compreendê-las em quatro autores emblemáticos do quattrocento e do cinquecento: Alberti, Leonardo, Michelangelo e Donatello. Os diferentes modos com que tais autores representavam o corpo humano tanto revelam os modos e as conotações pelos quais o homem viu a si e ao mundo que o cercava como assentam os alicerces da noção de corpo vigente a partir do século XVIII. É possível estabelecer um nexo evolutivo entre tais representações. Contudo, é mais rico vê-las mergulhadas dentro de uma mesma névoa que, anulando as distâncias temporais e espaciais existentes, as faz vizinhas e contemporâneas.

A REPRESENTAÇÃO DO CORPO NO MEDIEVO

A representação do corpo na Idade Média era presidida pela prévia adoção de elementos esquemáticos e abstratos dentro dos quais a figura era construída. O que se tinha em vista não era propriamente a realidade do corpo mas sua acomodação dentro de grades e proporções figurativas e simbólicas, como o esquema dos três círculos em que se representava a cabeça de Cristo, exemplificadas em Villard de Honnecourt e tão bem estudadas por Panofsky, ao tratar da escultura, da pintura e da arquitetura do período.[2] Assim concebido, o corpo serve como índice da imutável e universal ordem celeste, porta-se como alegoria do divino e caminho para o seu conhecimento, conduz-nos da ordem terrena para a ordem celeste, do micro para o macrocosmo. A natureza terrena encontra sua dignidade só na medida em que corresponde à ordem divina e às Sagradas Escrituras. Seus corpos são representados dentro de uma visão teocêntrica, através da qual o artista pretende se fundir com o divino e vislumbrar a realidade incorpórea e imortal, contraposta ao espaço mundano e à história. Não há propriamente a representação do corpo individual e humano assim como não há a expressão da individualidade do artista, do cientista ou do filósofo nas suas obras:

O eu individual sai deste isolamento a que está reduzido como mero ser vivo, supera-o e se funde com o intelecto absoluto e uno; […] o verdadeiro ser sujeito do pensar não é o indivíduo, o eu, mas um ser substancial, inteiramente racional, impessoal e comum a todos os sujeitos pensantes, cuja união com o indivíduo é sempre exterior e acidental.[3]

O CORPO EM ALBERTI: A ALMA DO ÉTHOS
 E A METÁFORA DO ORGANISMO

O corpo ético

No segundo livro do De pictura (1435), Alberti (1404-72) coloca os corpos a serem representados em função da historia ou dos acontecimentos com os quais eles estão envolvidos. Essa historia, colocada à margem na pintura medieval e em sua figuração do eterno, insere a dimensão temporal e vivida: o ser humano no tempo e o tempo como coisa humana. Não é a beleza física dos corpos ou a sua representação naturalista, a mímesis, que interessa ao pintor albertiano, mas a beleza da historia e a transmissão de fatos e valores ao espectador. Os corpos expressam-se na historia, e não fora dela. Representar a historia tem um sentido ético e pedagógico: conformar as almas dentro do bene beateque vivendum, uma vida mais justa e melhor que os homens devem procurar construir em sua vida pública e privada.[4]

Os gestos e movimentos do corpo exprimem as afecções da alma, as quais estão de acordo com a historia a que eles remetem. A arte da pintura está em levar-nos à metapintura dessa historia, mais ampla do que a moldura delimita, mas que não é o campo da religião e da ordem divina, como remetido pela arte medieval: é o campo ético do bene beateque vivendum do projeto do humanismo cívico italiano. Os corpos são “funcionários” desse projeto, tal como a atividade artística e intelectual promovida por Alberti. Por isso, a mediocritas é fundamental para conter a representação e a hybris do artista e do intelectual: a desmesura da paixão e a representação do indivíduo não devem ser figuradas, e sim contidas pelo todo e pela historia; o ingegno demasiado febril e excitado do pintor deve ser refreado pela necessidade de moderar os impulsos, a pose, e compor os movimentos com dignidade e discrição sem ceder espaço ao pathos individual ou a um expressionismo “sem decoro”. A pintura não deve manifestar prioritariamente o gênio e virtuosismo do criador ou a personalidade do representado, mas o valor comum, socialmente útil e compartilhado, contido na historia e que ela promove junto ao público e à cidade.

Como se lê nesse segundo livro do tratado sobre a pintura, os corpos destilam uma polissemia de sentidos, a um só tempo éticos e estéticos, tensionados sob as noções de conveniência, dignidade, natureza, beleza e imitação. Posta a serviço do primeiro humanismo, a representação do corpo em Alberti recoloca o mundo, as ações humanas e o tempo histórico no motivo e no tema da pintura, a jusante do caminho trilhado por Giotto. A historia como res gesta — a fulgurar nos atos figurados, nas posições dos corpos e nos panejamentos — vem educar a alma do espectador dentro de um projeto ético calcado na virtù.  Assim, o corpo representado (incluindo a natureza, mesmo que Alberti não se dedique muito à análise de sua representação), a atividade do artista e a fruição do espectador são animados pela mesma alma do éthos a trafegar entre essas três instâncias. O mundo da arte e o mundo da virtú, a representação do corpo e a construção ética de um projeto social para o humanismo, não se separam, pois tanto a arte como a ciência se conformam na paideía humanista e não têm autonomia. Elas só têm sentido se forem úteis ao bene beateque vivendum e ao seu conteúdo histórico, ético e pedagógico.

A perspectiva moral também modela a escultura no De statua (escrito entre 1443 e 1452 ou por volta de 1464) e no sétimo livro do De re aedificatoria. Na medida em que se conformem na mediocritas, na dignidade e na conveniência, tais estátuas educarão também o corpo e a alma de quem as vê. Dessa forma, os feitos e as posições devem ser sóbrios, dignos e majestosos, de maneira a difundir no fruidor “uma graça e majestade dignas da natureza divina”.[5]

O corpo como organismo

No seu De re aedificatoria, Alberti pensa os edifícios e a cidade como um corpo orgânico vivo. O axioma do edifício-corpo e a metáfora do organismo servem também como modelo para entender e criar máquinas e instrumentos, definir dimensões e funções dos implementos construtivos apropriados a uma obra e ao uso humano a que elas se destinam. Em torno da ideia de que o edifício deve ser pensado como um organismo vivo e como um corpo, em sua totalidade e em seus membros, alinhavam-se os princípios de solidez, funcionalidade, economia e decoro que devem reger todas as ações, desde a construção de edifícios, cidades e máquinas até a condução apropriada (masserizia) dos negócios, da família e do indivíduo.

O corpo como organismo funda a concinnitas em que se traduz a beleza albertiana: as várias partes de um corpo se ajustam às funções e à totalidade à qual pertencem. Isso disciplina a estrutura de um edifício, a construção de um tratado como o próprio De re aedificatoria, o esqueleto de um cavalo, o funcionamento do corpo humano, a participação dos indivíduos ou de uma classe dentro do corpo social da cidade e do Estado. Dentro do todo, e só dentro do todo, os membros adquirem função e legitimidade.

Máquinas e edifícios são admirados na medida em que se assemelham aos organismos vivos da natureza e são úteis, mais do que belos. Reciprocamente, os corpos e o funcionamento dos organismos e da natureza são admirados por seu caráter mecânico na medida em que são regidos por uma economia funcional. A máquina imita o corpo orgânico da natureza e esta, pensada metaforicamente por Alberti, mimetiza, reciprocamente, os princípios técnico-mecânicos dos artifícios humanos admirados pelo genovês: “Bastará esclarecer, aqui, que as máquinas devem ser consideradas como corpos animados, com mãos excepcionalmente fortes e que para remover os pesos se comportam exatamente como cada um de nós”.[6]

De modo explícito, Alberti é o primeiro teórico que trabalha a ideia do corpo como uma máquina e vice-versa, e as ilustrações que foram inseridas em edições posteriores de seu tratado sobre a arquitetura confirmam isso. Nesse humanista, a noção do corpo como organismo antecede a artificialização da natureza e a concepção totalmente mecânica do mundo. Cumpre, contudo, já introduzir a diferença entre a concepção de Alberti e a cartesiana. Alberti vê tudo em relação e procura correspondência entre corpo, natureza e instrumentos. São metáforas que se enviam reciprocamente pelos parâmetros comuns percebidos nessas três instâncias. Por isso, seu mecanicismo é metafórico e procura sempre associar máquinas a modelos, figuras, organismos e necessidades práticas humanas. Ele vê os instrumentos como extensão das capacidades do organismo humano de pôr-se em relação com o mundo e utilizá-lo. Será outra a perspectiva de Descartes. O filósofo francês constrói sua máquina não por relação de imagem e como metáfora, mas como dedução e aplicação de princípios claros e distintos, leis abstratas e mecânicas entrevistas fora da história e fora das necessidades e dos imperativos humanos. Tais princípios são de ordem matemática, situados fora das exigências históricas e espaciais. Alberti vê relações, ações e produções capazes de resolver os problemas construtivos e úteis ao bene beateque vivendum. Descartes vê essência e fundamentos do mecanicismo universal que só a abstração da ciência moderna poderia acessar. Para Alberti a máquina é produto da história humana e metáfora que multiplica as possibilidades de todo o nosso ser. Para Descartes a máquina, o mundo e o corpo são aquilo que se subtrai ao nosso ser e não se relaciona com ele, opondo-se à essência do cogito. O corpo cartesiano é uma máquina sem alma, incapaz de servir, nem mesmo como metáfora, para a compreensão de nossa constituição; o ser humano é um ser inorgânico, desprovido de corpo, de mundo, de história; e a natureza, algo com que nos relacionamos não por simpatia, mas pela vontade de dominá-la. Alberti humaniza a máquina e a coloca em função dos fins humanos. Descartes, inversamente, mecaniza o homem e o mundo.

Os organismos de Alberti envolvem roldanas fantásticas e ligações de ordem mágica, mítica e astrológica cujo pleno conhecimento nos é vedado. Entre os corpos e os astros, entre os estados das árvores e as fases da lua, entre os animais e as forças dos céus imperam mecanismos secretos de funcionamento: o universo é feito de correspondências ocultas, aberto, repleto de possibilidades insuspeitas e relações de toda ordem. Nossos corpos são os termos dessa proporção e jogo universal.

A noção de corpo-organismo de Alberti emerge de um substrato ético e pedagógico mais do que dos campos da arte, da técnica e da ciência. É um paradigma que orienta a formação do indivíduo e a economia que gere sua ação, sua casa e sua sociedade, de modo a fazer face aos ataques iminentes da fortuna. Essa concepção faz parte da pesquisa da ciência e da arte dedicadas a procurar um nómos na natura naturans, uma constância, uma regra, uma medida e uma harmonia.

Essa harmonia, contudo, não é a única força a pautar o mundo. Alberti, ainda constituindo o primeiro humanismo, observa que, talvez mais decisiva, impera outra força que ultrapassa a nossa compreensão. Com mais nitidez assistimos à destruição e à corrupção incessante das coisas, à constituição de um mundo de ilusões e desencantos sucessivos, à ausência de uma verdade estável, ao prolongar-se de um mundo irracional e tumultuoso, dominado pela loucura fantástica, pelo absurdo e pela fortuna. O homem, em Alberti, é o ponto onde se concentra a luta entre essas duas forças. Esse homem não é a imagem de Deus, o nó e o vínculo do universo, copula mundi, mas justamente o responsável por fraturar essa ordem natural e racional que o axioma do corpo-organismo tenta recuperar. A ideia do organismo é assim um contra-exemplo situado numa referência mítica ou arquetípica, capaz de colocar em xeque a instabilidade e insanidade das cidades e do homem, animal irrequieto e “impazientissimo de alcuno suo stato e condizioni”.[7]

Alberti não apenas destrói a celebrada imagem do homem criador e medida de todas as coisas. Ele inaugura uma ruptura do homem com Deus e a natureza e, prenunciando o maneirismo, divide-nos internamente e revela nossa constituição trágica: corpo e alma se põem em colisão jamais pacificada, onde natureza e antinatureza, razão e paixão, Apolo e Dioniso, finitude e infinitude passam a engendrar o homem moderno, Hamlet em permanente conflito consigo mesmo, eternamente exilado e “extra-vagante” na natureza. Ao dessacralizar o homem, Alberti dessacraliza seu corpo, torna-o opaco e sujeito às analogias com a máquina, prestes a ser tragado pela mundanidade da natura naturata. A partir de Alberti, o corpo passa a ser visto, como em Leonardo, feito das mesmas substâncias das demais coisas, fundindo-se com elas, investigado e experimentado pela arte e pela ciência juntamente com as demais matérias do mundo micro e macrocósmico. Ou então, como em Michelangelo, o corpo passa a ser visto como a matéria plástica em que são impressas as conformações impostas por aquilo que a Modernidade consagrou: a subjetividade infinita, poderosa e trágica.

O CORPO EM LEONARDO: A ALMA DO MUNDO
E O MUNDO COMO FENÔMENO

Recusando uma ideia a priori e externa às coisas, Leonardo parte do fenômeno, “daquilo que se vê com os olhos antes de se saber que se trata de uma árvore, rio ou rocha”.[8]  Nessa visão, o corpo humano deixa de ser investido por uma ideia que o reveste de distinção, como em Piero della Francesca ou Masaccio, para compartilhar a alma do mundo e fazer-se da mesma substância deste. Assim como a ciência moderna retira a concepção hierárquica do universo e torna homogêneos os espaços sublunar e supralunar, Leonardo confere uma mesma tessitura a todos os corpos, sem privilegiar um ou outro, e examina-os mergulhados indistintamente numa mesma atmosfera e luz ambiente.

Em Alberti, a alma ética, a historia e o projeto de um mundo compunham a cena pictórica. Em Leonardo, o motivo é a alma graciosa de uma subjetividade que desabrocha em poesia silenciosa sobre o fundo de ruínas, grutas obscuras e seres em convulsão e tumulto.

Na Virgem das Rochas (c. 1483-4), os corpos são envolvidos pela matéria e pela luz da gruta, não se destacando sobre a paisagem. Unidos ao ambiente, eles são imprecisamente delimitados, seus contornos perdem solidez, se dissolvem na penumbra do ambiente e com ele se misturam. Contrastando com a clareza e precisão das pinturas florentinas do período, nas quais a linha do desenho tem primazia, o quadro é dominado por uma monocromia em tom escuro e Leonardo esboça a “perspectiva aérea”, segundo a qual tudo o que vemos é alterado pela substância da matéria e da atmosfera interposta entre nosso olho e seu objeto.[9] Assim fazendo, a pintura passa a referir-se à percepção e não somente à geometria, e as anamorfoses e deformações ocorridas no ato de perceber subvertem o conhecimento das essências e legitimam o conhecimento dos fenômenos.

Corpo e historia cedem lugar a essa natureza subterrânea, de recônditos investigados tanto pela pintura como pela ciência, como a geologia que tanto fascinava o pintor. O quadro não tem significados a priori explícitos. As expressões e os gestos que se revelam sob a luz que vem do fundo são indefinidos e sugerem um enigma aberto à nossa indagação. Assim dispostos, os corpos se colocam em relação direta com a natureza em um determinado instante e lugar. Nas feições, nas mãos e nos dedos revelados pela luz emerge uma espiritualidade profunda, uma espécie de saber sobre nosso destino e sobre a precariedade de nossa condição: “O homem não é mais o protagonista, como no quattrocento, mas um elemento do universo, como a terra e o céu”.[10] Leonardo nos confirma: o homem é criatura que “padece da máxima loucura” e que, “a não ser pela voz e silhueta, é menos que animais”.[11]

Também na Adoração dos reis magos (1481-2), Leonardo adota a monocromia tênue, elimina o caráter sagrado da representação e coloca todas as figuras, incluindo os reis magos, em um turbilhão que circula em torno da Mãe e do Menino. Os corpos parecem fantasmas. Toda a realidade se move convulsa, incluindo os cavalos e as ruínas ao fundo. Mundo natural e mundo humano, perturbações cósmicas e turbamentos da alma e dos sentimentos se ligam ciclopicamente.[12] Também aqui os contornos imprecisos dos corpos são absorvidos dentro do movimento e da luz geral do ambiente.

Aquilo que a luz revela mais detidamente são as posições dos corpos, as reações fugazes do rosto e o espanto dos olhares diante daquela aparição. Como na Última ceia (1495-7), a Adoração dos reis magos representa estados psicológicos que a alma, desarmada pela surpresa da revelação, imprime na cera dos rostos. Desdobrando a concepção presente no De pictura, de Alberti, os movimentos da alma se revelam por meio dos movimentos dos corpos. Segundo Leonardo, “o essencial a se analisar dentro de uma pintura são os movimentos apropriados ao estado mental de cada ser vivo”.[13] Corpo e alma interagem permanentemente e não há ruptura entre nossa subjetividade e nosso exterior.

Atrás da Gioconda (1503-6) reaparece uma paisagem fantástica de rochas e cursos d’água, saturada de vapores, como se fosse o laboratório onde as matérias transmutam entre os estados sólido, líquido e gasoso. Diante dessa transmutação contínua, emerge o rosto da Gioconda como se fosse um dos frutos dessa usina do universo. Seu sorriso não revela nenhum sentimento particular mas também não é puro enigma. Ele é a florescência do ser em perfeita consonância com a química natural. Nesses lábios, selada boca de vulcão, vem o vapor de uma alma que traz o sentimento da natureza, e não o sentimento histórico e ético de um Alberti, ou a melancolia do sentimento ausente das alegorias de Botticelli ou o sentimento moral que veremos em Michelangelo. A alma que exala da boca entreaberta é a mesma que compõe a fábrica do mundo, o que a move também move todo o corpo da natureza. Escreve Leonardo:

O homem é chamado pelos antigos um mundo menor, designação justa, pois que é composto de terra, de água, de ar e de fogo, como o corpo terrestre, e parece-se, portanto, com ele. Se o homem possui os ossos para servirem de armadura e para sustentarem a carne, o mundo tem as rochas que sustentam a terra; se o homem contém em si um lago de sangue, em que aumenta e diminui o pulmão na respiração, o corpo da terra tem o mar oceânico que aumenta e diminui de seis em seis horas; se deste lago de sangue saem as veias que se vão ramificando por todo o organismo, também o mar oceânico enche o corpo terrestre de inúmeras veias de água: mas faltam ao nosso globo os nervos que não lhe foram dados porque se destinam ao movimento. Ora, o mundo, na sua perpétua estabilidade, não se move, e quando não existe movimento, os nervos são inúteis. Mas, quanto ao resto, o homem e o mundo são semelhantes.[14]

A natureza revelada por Leonardo não se deixa fixar: é dinâmica, mutável, revolta. Leonardo não pretende fixar-lhe as leis, descobrir suas essências imutáveis, estabelecer uma verdade inefável ou repropor uma estabilidade original ou ideal da qual nos teríamos afastado. A alma que ele tem em vista não se faz de uma harmonia perdida e avizinhada pela imitação dos antigos. É uma alma voltada para o futuro e que se contrapõe ao intelectualismo, ao humanismo e ao matematismo da primeira metade do quattrocento ou ao programa neoplatônico de Ficino e sua contemplação do mundo das ideias. Ela não se inspira na Antiguidade clássica ou em um projeto de humanismo cívico conformado a priori, mas na usina do universo, com suas termodinâmicas e atmosferas de grutas e paisagens que constroem incessantemente o presente numa sucessão de metamorfoses. Os corpos de Leonardo são a matéria desse labor em que se consome e desliza, sob a luz, a alma de um mundo a ser constantemente inquirido, representado e construído pelo artista, pelo engenheiro e pelo cientista. Em todos eles a mímesis da representação é, simultaneamente, invenção. É na perspectiva da invenção que Leonardo trabalha a arte, a ciência, a matemática, a filosofia: “A lua, densa e pesada, densa e pesada, como se sustenta a lua”.[15] Invenção, ingegno, engenharia: “omo sanza lettere“, como ele próprio se definia, que só constrói teorias na medida em que elas possam se converter em arte, objetos, instrumentos, máquinas e saúde mental, física e espiritual.[16]

Os corpos das figuras de Leonardo são representados no instante de um acontecimento espacial e temporal. Dali a pouco desaparecerá o sorriso da Gioconda, do qual exala o pneúma da alma e da natureza; pacificar-se-á o ciclone produzido em torno da Mãe e do Menino; cessará a luz que ilumina a mão do anjo e o rosto da Virgem na gruta; silenciar-se-ão as especulações e interjeições dos apóstolos na última ceia. Para retratar a Batalha de Anghiari, Leonardo representa um tumulto de corpos, armas, cavalos e nuvens de pó embebidos no movimento intenso da luta entre pisanos e florentinos. Em todas essas obras o corpo aparece em função da explosão do instante em que o tempo se avoluma.

O que motiva a pintura de Leonardo, mais do que a historia, a alternativa ética ou moral ou a técnica e o rigor da composição empregada, é ver a alma dos corpos nascer como nasce o musgo da dureza das pedras, da desesperança das ruínas ou da usina cósmica do universo. Tão logo ela se apresenta, Da Vinci costuma deixar a obra: ela está completa, embora nos pareça inacabada. Basta-lhe o esboço dos corpos em velozes traços condizentes à combustão do instante. Compostos de linhas sutis e rápidas, contornos imprecisos, plasticidade rarefeita e precariamente estruturados, corpos e gestos irradiam pela atmosfera circundante e catalisam todo o ambiente. Portando o broto dessa alma, os corpos não são meras “coisas”, não são a pura extensão de Descartes ou do realismo pictórico. Mais do que matéria, são luz, energia e movimento. O sfumato e a monocromia não são meras técnicas pictóricas pré-impressionistas, mas modos pelos quais a materialidade dos corpos é dissolvida para dar lugar à luz daquela graça anímica sobre a qual Leonardo se debruça.[17]

Leonardo coloca os corpos sempre em relação, não separa neles o que lhes seria essencial e imutável daquilo que é acidental e contingente. Em sua “perspectiva aérea”, os corpos não se definem em si mas sempre circunstanciados e em função de um olhar que os percebe dentro de um ambiente e de uma atmosfera espacial e temporal própria: são sempre fenômeno, acontecimento, essência e acidente inseparáveis e irredutíveis à pura extensão, à matemática e à geometria. Como em Alberti, o corpo traz a alma junto a si. Mas, à diferença do genovês, Da Vinci o vê inserido no mundo natural mais do que no mundo ético da historia. A geometria da “perspectiva linear” é insuficiente para quem lida com a percepção concreta e não com a abstração intelectual. Alberti percebera esse limite da representação renascentista, mas é a atividade pictórica e teórica de Leonardo que rompe com esse limite e a articula junto com as alterações atmosféricas afetas à percepção humana das coisas.[18]

Na Sant’Anna (1501-6) permanecem os motivos principais do sfumato, da “perspectiva aérea”, da monocromia e da graça. Mas Leonardo acrescenta-lhe uma monumentalidade que traduzirá o ideal heroico colocado ao indivíduo do cinquecento, como se verá em Michelangelo. Esse ideal serve como protótipo do homem maneirista, a se agigantar sobre a natureza e se afastar da ruína política, econômica e religiosa da sociedade. Desligado de um éthos coletivo, estranho a um organismo cósmico que a ciência revela, sem identidade com uma sociedade com a qual ele não mais se identifica, torturado e cindido por incertezas de toda ordem, esse novo indivíduo mergulhará na infinitude de sua subjetividade, nas águas recônditas de seu páthos, em cujo reflexo vacila sua imagem e identidade, como Narciso. Sua salvação não mais se encontra na fusão com o divino e com a vida eterna, como no Medievo; ou na humildade, como em Giotto; ou na construção de um projeto orgânico que modele o éthos, como em Alberti; ou na fusão com o mistério da natureza e a origem da vida, como vimos em Leonardo até aqui. O novo indivíduo pode se salvar de duas formas. Uma é escapando no onírico, no fantástico, no desmedido, no irreal, no excêntrico, dando origem às deformações, ao grotesco, às heterotopias e aos surrealismos, como em Bruegel, Arcimboldi, Parmigianino, Vignola, Peruzzi, Ammanati, Zuccari, Shakespeare e outros. Outra, como em Michelangelo, Maquiavel, Galileu, Montaigne e Pascal, impondo-se pelas virtudes humanas e terrenas da força, da grandeza, do poder de uma subjetividade infinita, autônoma e antinatural, como a própria ciência moderna. Subjetividade desligada do corpo ético e do corpo orgânico.
Quando essa subjetividade desvencilhar-se da tragicidade do páthos maneirista, a res cogitans emergirá nítida, fundamento primeiro de um indivíduo cujo corpo será só res extensa.

Alberti e Leonardo representam o nascimento, e não renascimento, de um tipo de saber inédito, com novos objetivos e novas concepções do cientista, do artista e do filósofo “não vinculado a ortodoxias de nenhuma espécie, intolerante a qualquer pretensão hegemônica, crítico por vocação e muitas vezes rebelde, investigador inquieto e experimentador de todos os domínios da realidade”.[19] Em contraste com o velho mestre da escolástica ou do comentador de livros, como a Sagrada Escritura, eles representam o conhecimento vivamente interessado na existência humana, a combater a habitudine mentale do Medievo e inaugurar um novo saber: “Os homens jogarão fora seus próprios víveres: isto é, semeando”.[20] Esse conhecimento passa a se desenvolver em dois campos privilegiados: Alberti percorre mais o campo ético, moral, pedagógico e político, em consonância com o humanismo cívico; Leonardo frequenta mais o campo das ciências da natureza, sedento de conhecê-la a fundo e agir sobre ela, tal como os astrólogos, mágicos e médicos da época. Daí representarem em suas obras, respectivamente, o “corpo ético e cívico” e o “corpo natural”; daí procurarem a verdade na história e na experiência das coisas e dos homens, a começar por eles próprios, tal como o fará Montaigne em seus Ensaios, mais do que na revelação e na dedução; daí a desconfiarem até mesmo que essa verdade pode não existir ou, ao menos, não ser acessível à razão humana; daí a “visão alada” e a “perspectiva aérea”, a capturarem o homem e as coisas sempre em relação, dentro de um conjunto de incessantes interações lógicas, matemáticas, mágicas e herméticas. Suas visões não são contrapostas, mas diversas e complementares: constituem correntes que convivem dentro da complexidade do Renascimento, a qual só é redutível a quem o vê com simplismo.

Filosofia e pintura, matéria e intelecto, arte e natureza, anatomia e desenho, razão e imaginação, ciência e magia: tudo forma uma sinfonia. O corpo em Leonardo não é apenas corpo, mas alma: alma do pintor, alma daquele que é representado, alma infinita do mundo, pneuma universal. Aquilo que move a água no mundo ao fundo da Gioconda é também o que move o sangue e anima o corpo retratado. Na Sant’Anna esse equilíbrio começa a se romper e um leve furor começa a ferver nas veias, agigantar o corpo e embaçar os olhos: em consonância com a moderna travessia dos mares e a exploração dos céus, impunha devassar e atravessar o desconhecido e sombrio oceano interior. Michelangelo será navegador.

DE LEONARDO A MICHELANGELO: A “TEMPESTADE”, DE GIORGIONE

Leonardo vira homem e natureza fundirem-se. Em Giorgione (c. 1477-1510) são universos distintos, como na Tempestade (c. 1505). Ele vê o ser humano dentro da paisagem natural que o circunda e abriga, mas que não é feito dos mesmos elementos dela e não a prolonga em si. Giorgione, ao contrário de Alberti, não conta uma historia. Ao contrário de Giotto ou Masaccio, também não faz do acontecimento humano e do personagem o motivo principal da pintura. É o fundo e a intensidade da vida física aquilo que mais o atrai, tornando superlativo e colorido aquilo que Leonardo representava no sfumato e no detalhe até  embeber o personagem. Em Leonardo o movimento e a luz vêm da natureza e continuam no corpo humano. Giorgione paralisa esse corpo para enfatizar totalmente a energia da natureza sublime, sobre-humana, extra-humana. Em Michelangelo essa energia será internalizada, espiritualizada, retirada da paisagem e depositada na subjetividade. Aí confinada, não tendo por onde correr e continuar, essa energia vira furor. Comparando o Tondo Doni (1504) de Michelangelo com o tratamento dado por Leonardo ao mesmo tema, percebe-se como essa energia confinada se põe em ebulição. Também na escultura e na arquitetura de Michelangelo toda a energia interna conclui-se na carne, nas feições, na parede, no contorno. No barroco é que tal energia se derramará das esculturas para o espaço circundante e do edifício para a cidade.

Bem acolhido na natureza, o corpo humano se mostra pacificado, quieto e em repouso na Tempestade. É um corpo quase mítico, desprovido de historia, desligado do tempo e sem relação com o espaço, diante do qual está alheio e distante.[21] Assim, a natureza é uma realidade autônoma e independente do sujeito. E, reciprocamente, o corpo desse sujeito independe do espaço e do tempo circundante. Esse será o tema de Michelangelo.

O CORPO EM MICHELANGELO: A ALMA E O FUROR DO PÁTHOS

A alma graciosa e delicada, o pneuma universal que apenas por um sopro exala da boca da Mona Lisa, agiganta-se em Michelangelo (14751564) e vibra em todo o volume heroico dos corpos de suas pinturas e esculturas. Uma subjetividade infinita, contrapartida do universo infinito que simultaneamente se especulava, aflora nos nervos, nos olhos, na testa, nos dedos e no furor dos músculos de seus personagens.

No teto da capela Sistina (1508-12) os corpos têm sempre um movimento agudo e uma energia imensa, mas sempre controlada pelo rigor da vontade e pela magnitude dos acontecimentos que inauguram o mundo e a vicissitude humana. Resulta disso um drama em que o movimento se torna tensão, luta e esforço entre o interior e o exterior dos seres representados e entre esses seres e os espaços que os circunscrevem e emolduram. O mesmo se observa na luta entre os elementos continentes e os elementos contidos da arquitetura da Laurenziana, do Campidoglio e da basilica de São Pedro. A constrição dos espaços diante da magnitude dos corpos implica uma desnaturalização dos seres, colocados fora de qualquer paisagem natural ou realidade exterior identificável. Pois o espaço em que os seres se movem é, efetivamente, o espaço moral e o espaço infinito da subjetividade, onde não há o naturalismo, a graça e a beleza de Leonardo, Giorgione ou Rafael:

Para Michelangelo, não existe um espaço preestabelecido, estável, definido por normas de proporção ou de geometria; suas figuras se contorcem e se debatem, tensionam-se em escorços exasperados para “buscar” um espaço, sem nunca se conectar a uma perspectiva, mas, ao contrário, tentando abrir uma perspectiva com o esforço sobre-humano de seus gestos. O platonismo de Michelangelo não é fé no céu das ideias eternas, mas busca desesperada de qualidade ideal mediante uma áspera e dolorida experiência de vida.[22]

Toda a atenção do pintor se concentra na luta entre potência e ato, corpo e alma. Para representá-la, a escultura, por prescindir do espaço natural, é meio mais adequado do que a pintura.[23] Luta entre o tempo e o eterno, entre o corpo e a alma, entre potência e ato, entre a figura e o espaço: sujeito e objeto entrechocam-se. Toda pretensão de equilíbrio e estabilidade cede lugar à tensão profunda entre dois polos.

Essa tensão entre a energia duramente contida diante do ato que está prestes a executar se exprime no rosto, no pulso, nos braços, nas mãos e nos dedos do David (1501-4), feito ainda na juventude de Michelangelo. O artista captura o movimento e a tensão interior, não a ação propriamente dita, assim como no Moisés (1513-6) que ele faz para a tumba de Júlio II. É este também o motivo da Batalha de Cascina (1504), na qual Michelangelo figura a surpresa do exército florentino ao ser assaltado à beira do Amo, e não a luta propriamente dita, ao contrário da escolha feita por Leonardo na Batalha de Anghiari.

Os non-finito dos Prigioni de Michelangelo (1513-32) são admiráveis na medida em que a matéria inerte é escavada até a fronteira onde ela deixa reluzir a luta interior e o movimento espiritual: cessa o trabalho do cinzel no momento em que se evidencia o fio onde a alma trava sua batalha para tentar liberar-se da prisão da matéria. Esta perde a sua inércia enquanto o espírito explode na finitude do tronco, do rosto e do corpo desses “Prometeus acorrentados”. Michelangelo não nega a matéria em nome de um platonismo em que a ideia e a imagem estivessem dela completamente separadas. Ao contrário, sem a matéria ele não teria o motivo de sua arte, que é justamente o de libertar-se dela. Nele, a vida dói e dela não há como escapar. A matéria em Michelangelo é destituída de espírito e convertida em pura materialidade, corpo físico. Simetricamente, a ideia converte-se em ideal, puro conceito destituído de toda materialidade.[24]

Ao contrário de Leonardo, nada se relaciona com a experiência sensória, como o ar e a luz. Os gestos e a musculatura não são tensionados por um esforço real mas — como na Criação de Adão, no Ezequiel, na Sibila délfica ou nos Ignudi — pela energia carregada nas curvas, nos ângulos, nas torções e no paroxismo dos músculos. “Michelangelo não quer apenas exprimir a forma, mas a força do conceito: são as ideias que põem em movimento a realidade e determinam o suceder-se das épocas e a história”, escreve Argan a respeito do Tondo Doni (1504).[25] Como no Noé embriagado do teto da Sistina, a gravidade e o peso físico dos corpos transformam-se em impulsos ou em forças impotentes, afogadas na sua própria incapacidade de converter-se em ato capaz de redimir o mundo. Pois, como no Juízo final (1536-41), a justiça e a ordem divina estão afastadas da justiça e da ordem humana, e as mãos da divindade colocam todos dentro de um mesmo ciclo no qual até os beatos aparecem condenados.

A mesma impotência comparece na Descida da cruz (1547), pensada pelo artista para seu próprio túmulo, e na Pietà Rondanini (155264), última das esculturas do gênio de Caprese. Indivíduo e mundo, homem e natureza, estão definitivamente rompidos. Só na morte o espírito se liberta e sai do corpo, como na Pietà Rondanini: insustentável, o corpo desliza pelos braços impotentes para detê-lo enquanto o espírito se liberta de todo cárcere terreno, natural e ético.

“Entre o David e a Pietà Rondanini assiste-se à passagem do corpo ao espírito, do externo ao interno, do paganismo ao cristianismo, da representação à expressão.”[26] Mas uma outra passagem acontece: não é só espírito o que se liberta do corpo na Pietà Rondanini. Nela não encontramos nada mais de heroico, grandioso e monumental na representação do corpo humano. Dilui-se a plástica, o volume desliza para a linha vertical da selpentinata e a matéria dissolve-se no silêncio até a alma recolher-se no divino. Aí esvai-se também o espírito do humanismo e o Renascimento exala seu último suspiro para dar lugar ao maneirismo, ao artista moderno e ao exame do corpo sem alma, corpo máquina, corpo como pura res extensa.

O CORPO EM DONATELLO: DA REPRESENTAÇÃO À EXPRESSÃO

A escultura de Donatello (1386-1466), outro protagonista do Renascimento, como Brunelleschi (1377-1446) e Masaccio (1401-1428), nos revela várias visões do corpo e da condição humana que bem serviriam para resumir um pouco de tudo aquilo que dissemos sobre Alberti, Leonardo e Michelangelo.

No David marmóreo (1409) Donatello ainda segue alguns princípios da composição gótica, como a linha sinuosa e o olhar evasivo, beato e desencarnado. Mas o San Giorgio para Orsanmichele (1417-20) é ereto, vertical, firme, totalmente seguro e cônscio de si e do seu corpo. Seu olhar firme, sua atenção alerta, sua força bem-disposta, a gravidade do manto sustentado pelos ombros largos, as pernas abertas, bem assentadas no solo, a energia concentrada na pose ereta e no prumo vertical — diversa da energia que se dispersa do corpo através da linha ondulada da composição gótica — representam a figura heroica e moralmente estruturada na virtù e na responsabilidade do indivíduo ante seu destino e a história, como proposto na pedagogia humanista. Na medida em que encarna o valor ético do humanismo cívico pretendido para o cidadão florentino — diante, sobretudo, da ameaça de Milão —, essa estátua se aproxima do projeto albertiano e de sua metáfora do organismo.

Não é propriamente o indivíduo que é retratado, mas o modelo de um homem que faz a masserizia de si e se volta para construir o mundo e defender sua liberdade e sua cidade. É um soldado, mais que um santo. Qualquer ação que porventura esse San Giorgio venha a desenvolver não é gratuita ou derivada de qualquer força celeste ou natural, mas resultado de uma vontade humana atenta às exigências do mundo e que levantará o grandioso escudo tão logo se faça necessário.

No aspecto viril e grave, tanto esse San Giorgio como o San Ludovico se aproximam de Masaccio e do David e Moisés de Michelangelo. Mas a dimensão psicológica de Michelangelo é mais bem prefaciada nas esculturas que Donatello esculpe para o Duomo florentino. Grave, pesado, firme e atento ao mundo circundante, como o San Giorgio, permanece o corpo estático e musculoso de São João Evangelista (1413-5). Não é propriamente uma figura bíblica mas muito mais: um legislador atento aos problemas da polis, imbuído plenamente da virtù cívica que os gestos concisos demonstram dominar. Aí desponta uma interioridade que, diversa da de Michelangelo, não se refere à subjetividade individual e moral que conforma o drama do pathos e o conflito da alma, mas o embate com o mundo de um ser supra-individual, intersubjetivo, modelar, ético e político. Esse é o organismo, como em Alberti, que o corpo pretende representar.

Nos profetas (1415-35) emerge um drama interior mais humano do que heroico. A testa enrugada e o olhar absorto, como os de Jeremias e Habacuc, expressam a alma pensante, a tensão que precede a ação e a decisão a ser perpetrada na história e sobre a qual o indivíduo medita e avalia, pois sabe ser ele o responsável pelo destino de si e de seus concidadãos. Não se trata apenas de aplicar a lei e a virtù, mas de reconhecer que aquilo que se profere e se faz cai dentro da contingência e relatividade do mundo. Os atos já não são previamente definidos, mas pesados conforme o contexto em que se inserirão. De modo a otimizar seus efeitos, cada palavra e gesto são meditados.

O profeta, como Jeremias e Habacuc, é surpreendido na secularidade de sua ação — absorto ou discursando, por exemplo —, e não mais, como no San Giorgio e no San Ludovico, em postura estática e em guarda. O manto não cai pesado e grave sobre o forte corpo, mas é sustentado pela mão. A boca e a testa perdem a firmeza da pedra e do modelo arquetípico, suas linhas talhadas pelo cinzel não são mais tão retas e desenhadas mas amolecem em rugas e curvas naturalistas, expressando a turbação da alma no momento em que ela medita ou profere a palavra que, mais que divina, é política e lançada ao público. Não se trata mais de uma representação objetiva do corpo e de um projeto ético, mas de uma subjetividade tensionada, como a do David de Michelangelo e sem a segurança do São João Evangelista.

O David de bronze (c. 1430) mal se sustenta sobre os pés, enlanguesce-se o corpo na medida em que perde energia e o olhar se ausenta do mundo, como se não desse conta do gesto que acaba de cometer, como se não mais houvesse um responsável pelo seu destino e pela história. A melancolia desce do chapéu em flores e prenuncia Botticelli (1445-1510). Evadindo-se da história e alheia ao drama humano, a espada mal se sustenta nas mãos, ao contrário do escudo do San Giorgio. O soldado de Orsanmichele cede lugar a um adolescente vacilante que custosamente se mantém nas pernas deformadas, oscilante e instável. Não é um autor da história mas uma figura quase alegórica ou mitológica, desatenta à vida concreta dos homens e da cidade. A mesma alienação constitui o grupo da Giuditta e Olofernes (1455-60). De um lado, o olhar perdido no vazio, melancólico, como a Giuditta de Botticelli (1472-3); de outro, um gesto sem força que deixa a espada cair sobre o pescoço de um Holofernes exangue.

A dor da Madalena na madeira (1453-5) desfigura o corpo. Anti-classicismo e paroxismo do pathos, ela é pura expressão da dor do ser humano, que sofre a história mais do que a constrói. O trágico “barroco” já está todo aqui, no Renascimento. Nesse corpo desfigurado, o ideal do herói histórico e da virtù cívica do humanismo, que a arte de Donatello ajudara a promover, desaparece totalmente, resultando uma imagem decomposta e dissolvida fitomorficamente. Corpo transmutado em espectro, habitado pela alma da morte, “imagem da angústia que hoje chamaremos existencial: da autodestruição, do dissolver-se da forma humana em uma que, ao seu redor, se desagrega em uma luz sem raio, morta”.[27] Do apagar-se dessa luz externa — que antes se concentrava sobre o corpo, enaltecendo-lhe a função cívica, heroica e histórica — emergirá o claro-escuro de Da Vinci, a situar o homem sob a luz da natureza mais que da história; emergirá a subjetividade de Michelangelo, expressa sob a luz artificial da ribalta moderna em que o fulgor infinito da alma luta para vazar a opacidade finita do corpo; emergirá, enfim, o “indivíduo” moderno, individuos, ser “em-divisão”. Divisão essa que primeiro fratura a alma e a subjetividade para depois cindir radicalmente a res cogitans do espírito e a res extensa do corpo. Eis então o corpo moderno, resíduo constituído ao se subtrair o éthos, a simpatia com a natureza e o páthos do corpo complexo e relacional gerado pelos renascentistas.

DA ARTE À CIÊNCIA: O CORPO SEM ALMA EM VESÁLIO E DESCARTES

A pintura e a escultura do Renascimento mostram o corpo a partir de novas visões que o homem estabelece sobre si mesmo, sobre a natureza que o cerca e sobre o absoluto. As mudanças verificadas não, se devem a um avanço do conhecimento prático e a novos dados empíricos obtidos pelas ciências, como a anatomia. Antes, são mudanças de ordem teórica que motivam as transformações artísticas e a prática científica, e que levam tanto à destruição dos velhos hábitos do pensamento medieval como à semeadura das interpretações modernas do corpo humano. Toda essa mudança é perpetrada nos vários campos e num clima intelectual tumultuado, em que se debatem várias correntes, novas e antigas, e no qual a pesquisa é muita mas toda certeza é duvidosa. Nesse clima, e correlata às mudanças verificadas na elaboração do corpo pela arte, nasce também a imagem moderna do corpo para a medicina.

Combatendo a escolástica, os renascentistas reinterpretaram Galeno (130-200 d. C.) e empreenderam dissecações secretas para confirmá-lo.[28] Assim como a iconografia proposta por Villard de Honnecourt inseria o corpo dentro de um esquema abstrato constituído a priori e moldado conforme as Sagradas Escrituras, também a medicina do ensino escolástico fundava todo o saber sobre o corpo na exegese da verdade divina e submetia a observação ao texto filosófico-religioso.
A novidade renascentista, comum a Donatello, Alberti, Leonardo e Michelangelo, está em “tentar observar o corpo e já não dissertar sobre ele, como os teólogos medievais tinham por hábito fazer”.[29]

A arte e a ciência renascentista nos mostram corpo, tempo, espaço e natureza dessacralizados, convertidos em coisa humana, considerados a partir da finitude de nosso olhar e em função dos propósitos e dos contextos de nossa existência. Essa novidade também mudará a perspectiva do corpo na medicina. Professor em Pádua, o médico holandês André Vesálio (1514-64) implementará na prática essa nova perspectiva teórica. Submetendo o texto à prova da observação e da experiência, fazendo o olhar desviar-se do texto para o corpo dissecado, das ideias para a observação sensível liberta de pressupostos apriorísticos, a prática médica de Vesálio equivale, em parte, à prática artística de Leonardo.

Figuras acompanham o texto de suas Fabulae anatomica sex (1520). São mais que ilustrações: elas permitem à ciência tratar o corpo desligado do cadáver real e, assim fazendo, constituir o objeto da anatomia e do saber teórico próprio à ciência médica moderna. Tais ilustrações desligam-nos do corpo real e estão para a medicina assim como a invenção da perspectiva está para a arquitetura: libera-nos do saber das oficinas e dos afazeres da prática imediata e fundam a ciência e a arte na instância intelectual e reflexiva em que são compreendidos os fenômenos, a distância. A representação do corpo serve, a um só tempo, para dessacralizá-lo e para aumentar nossas possibilidades de compreendê-lo e operá-lo, como constructo intelectual, tanto na arte como na cirurgia.

O corpo, como representação, é desligado do campo negativo da morte, e a compreensão de seu funcionamento passa a ser assimilada, progressivamente, à de processos mecânicos, físicos e químicos totalmente objetivos. A arte de Michelangelo desenvolve-se sobre o tema da luta entre corpo e alma até concluir-se no desfalecimento da Pietà Rondanini e da Descida da cruz, em que a alma se liberta e deixa à vista a essência do corpo: pura materialidade e carência de toda espiritualidade. Vesálio trabalha sobre um corpo-artefato destituído e separado da alma da morte. Michelangelo captura o momento em que a alma se esvai do corpo. Vesálio chega a seguir: quando o corpo examinado é pura materialidade contraposta à pura espiritualidade do cientista que o examina e opera.

Dos despojos de Leonardo e Michelangelo, Vesálio elabora o corpo da medicina: corpo transformado em artefato para o qual converge o processo de dessacralização do mundo. Para permitir a mediação entre aquele que é só espírito e aquilo que é só matéria, surge a representação do corpo. Essa representação, e não o cadáver, é o objeto da medicina. Vimos como a pintura nos levou a entender o corpo moderno como constituído ao se subtrair o éthos, a psique, a simpatia com a natureza e o pathos do corpo complexo e relacional renascentista. Analogamente, o corpo de Vesálio é residual e se constitui no momento em que subtraímos a morte do cadáver e fazemos a vida habitar apenas a morada imortal do espírito. Com ele começa a se forjar o projeto de um corpo biônico. Nessa morada virtual, o corpo só penetra espiritualizado, ou seja, transfigurado em linguagem, desenho e representação. A analogia com a máquina é um dos modos que elegemos para representar esse corpo destituído de uma identidade pessoal própria. Inventamos a analogia com a máquina para permitir ao nosso espírito conviver com o corpo da representação e efetivar não mais a descrição escolástica ou a observação renascentista mas seu insaciável e moderno afã de domínio e artificialização.

O projeto de Vesálio é similar ao do cartesianismo. Na teoria dos autômatos de Descartes, corpo e universo, inteiramente distintos do cogito que constitui o sujeito, são reduzidos à res extensa e às propriedades geométricas e mecânicas passíveis de serem compreendidas e manipuladas pelo espírito.[30] Ou seja, a subjetividade da alma não se introduz na extensão autômata do corpo e das coisas. Contudo, essa subjetividade se dá uma representação do mundo, confere-lhe uma ordem e pretende dominá-lo. Ela não cria nada de novo, mas pode modificar o que lhe é dado a partir da constituição de uma natureza vicária, de segunda ordem, manipulável e operável nos laboratórios ou mentalmente. Sua física não lida propriamente com a natureza, mas com a representação dela. Tal como Vesálio faz com o corpo.

O corpo medieval era habitado por uma alma divina com a qual o artista, o cientista e o intelectual, fazendo-se análogos de Deus, acreditavam fundir-se ao produzir suas obras. Para isso, eles renunciam ao princípio da subjetividade e subordinam-se a uma lei heterônoma na qual o indivíduo se vê compreendido. O Renascimento dessacralizou esse corpo, juntamente com a natureza, o espaço e o tempo. Para isso aquela alma divina foi substituída pela alma do éthos, da natura e do pathos. No último Donatello, como na Madalena na madeira, até mesmo vislumbramos a alma da morte desfigurar o corpo que a contém. O momento e a luta dessa alma por liberar-se é o tema privilegiado de Michelangelo. O que resta do corpo é o resíduo sobre o qual a ciência moderna se erguerá: um corpo sem alma e reduzido à mera facticidade. Esse corpo se expressa tanto na res extensa de Descartes como na representação que lhe dá o médico holandês nas suas lições em Pádua e nas figuras de seus livros.

Ao subtrair-se do corpo a própria alma da morte, constituem-se o objeto da medicina moderna e a moderna noção do corpo-máquina, presente na teoria dos autômatos de Descartes, desdobramento da ideia do corpo como representação com a qual ainda trabalhamos. As próteses químicas e a inteligência artificial desenvolvidas em nossos dias são a alma que fazemos florescer sobre este corpo desanimado que estendemos na maca da Modernidade e que Rembrandt pinta na Lição de anatomia do dr. Tulp (1632) e na Aula de anatomia do dr. Joan Deyman (1662). Também essas próteses e essa inteligência artificial são artifícios miméticos pelos quais procuramos constituir e vivificar uma representação da alma capaz de animar o corpo da representação que os sucedâneos de Vesálio e Descartes nos deixaram como herança. Esse corpo, desprovido até mesmo da morte, proverá a ciência, a arte e a filosofia modernas.

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Ruggiero Romano & Alberto Tenenti, “Introduzione”, in Leon Battista Alberti, I libri della famiglia, op. cit., pp. VIII-XXXVIII.

Notas

[1] Este artigo faz parte da pesquisa “Hermenêutica e arquitetura”, desenvolvida com o auxílio do CNPq e o apoio da pró-reitoria de pesquisa da UFMG.

[2] Erwin Panofsky, Evolução das artes visuais, Erwin Panofsky, L’architecture gothique e la pensée escolastique; Erwin Panofsky, A perspectiva como forma simbólica.

[3] Ernst Cassirer, Individuo y cosmos en la filosofia del Renacimiento. Trad. Alberto Bixio. Buenos Aires: Emecé, 1951, p. 164. Sobre isso, ver ainda Carlos Antônio Leite Brandão, A formação do homem moderno vista através da arquitetura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1999, pp. 64-6.

[4] Para maiores esclarecimentos sobre o sentido da pintura e, especialmente, sobre o conceito de historia no De pictura, ver Carlos Antônio Leite Brandão, Quid tum?, o combate da arte em Leon Battista Alberti. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2000, pp. 157-61.

[5] Leon Battista Alberti, De re aedificatoria. L’architettura. Renato Bonelli & Paolo Portoghesi (eds). Texto latino e trad. Giovanni Orlandi. Milão: 11 Polifilo, 1966, 2 vols., p. 663. Sobre a escultura no De statua e no De re aedificatoria, ver Carlos Antônio Leite Brandão, A formação do homem moderno vista através da arquitetura, op. cit., pp. 169-73.

[6] Leon Battista Alberti, De re aedificatoria. L’architettura, VI, 8, p. 497. Para uma introdução ao axioma edifício-corpo em Alberti, ver Carlos Antônio Leite Brandão, Quid tum?; o combate da arte em Leon Battista Alberti, op. cit., pp. 180-4.

[7] Eugenio Garin, Rinascite e rivoluzioni; movimenti culturali dal XIV al XVIII secolo. Roma; Bari: Laterza, 1975, p. 149.

[8] Giulio Carlo Argan, Storia dell’arte italiana. Firenze: Sansoni, 1992-4. 3 vols., p. 234.

[9] “Evvi un’altra prospettiva, la quale chiamo aerea imperocchè per la varietà dell’aria si possono conoscere le diverse distanze di vari edifici terminati ne’ loro nascimenti da una sola linea, come sarebbe ii veder moti edifici di lá da un muro che tutti appariscono sopra l’estremità di detto muro d’una medesima grandezza, e che tu volessi in pittura far parer piú lontano l’uno che l’altro; è da figurarsi un’aria un poco più gorssa. Tu sai che in simil aria le ultime cose vedute in quella, come son le montagne, per la gran quantità dell’aria che si trova infra l’occhio tuo e dette montagne, queste paiono azzurre, quasi del color dell’aria, quando il sole è per levante” (Leonardo da Vinci, Trattato della pittura. Roma: Newton & Compton, 1996, I/ 95).

[10] Lionello Venturi, La pittura del Rinascimento; da Leonardo da Vinci a Durer. Genebra: Skira, 1989, p. 18.

[11] Leonardo da Vinci, Obras literárias, filosóficas e morais. Trad. Roseli Sartori. São Paulo: Hucitec, 1997, “Pensamentos”, 107 e 205.

[12] Ver Giulio Carlo Argan, Storia dell’arte italiana, op. cit., p. 237.

[13] Ver Michael Baxandall, O olhar renascente, pintura e experiência social na Itália da Renascença. Trad. Maria Cecília Preto R. Almeida. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 65.

[14] Leonardo da Vinci, Traité de la peinture de Leonard da Vinci, cap. XII, “De la figure”, parágrafo 351. Citado e traduzido in José Gil, Metamorfoses do colpo. Trad. Maria Cristina Meneses. Lisboa: A Regra do Jogo, 1980, pp. 118-9. Sobre essa simetria entre o corpo humano e a natureza, ver Eugenio Garin, Rinascite e rivoluzioni, op. cit., pp. 245-7.

[15] Leonardo da Vinci, Obras literárias, filosóficas e morais, op. cit., “Pensamentos”.

[16] Sobre a relação entre arte, engenharia e ciência em Leonardo, ver Hubert Damisch, Théorie du nuage, pour une histoire de la peinture. Paris: Editions du Seuil, 1972, pp. 214-48.

[17] Venturi observa como isso foi um ideal poético, antes de se tornar um estilo de pintura, citando uma passagem de Leonardo bem anterior à elaboração da Virgem das Rochas. “Pon mente per le strade sul fare della sera ai visi di uomini e di donne quando è cattivo tempo, quanta grazia e dolcezza si vede in essi. Grandissima grazia d’ombre e di lumi s’aggiunge ai visi di queli che seggono sulle porte di quelle abitazioni che sono oscure, e gli occhi del riguardatore vedone la parte ombrosa di tali visi essere oscurata dalle ombre delia predetta abitazione (…) e di questi tali rappresentazione e aumentazio-ne d’ombre e di lumi il viso acquista assai di bellezza”. Ver Lionello Venturi, La pittura del Rinascimento, op. cit., p. 12.

[18] Para uma comparação entre a perspectiva de Alberti e a de Leonardo, ver Hubert Damisch, Théorie du nuage, op. cit., pp. 188-96 e 214-22.

[19] Eugenio Garin, Rinascite e rivoluzioni, op. cit., p. 123.

[20] Leonardo da Vinci, Obras literárias, filosóficas e morais, op. cit., “Profecias e adivinhações”, 9.

[21] O horizonte de Giorgione “é meramente natural, edênico — dentro daquele horizonte, só o mito tem direito de acesso, não a história. (…) Para Giorgione, o espaço é sempre distanciamento, distância, desejo fugidio de estar lá, onde não estamos”, Giulio Carlo Argan, Clássico anticlássico; o Renascimento de Brunelleschi a Bruegel. Trad. Lorenzo Mammi. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, pp. 361 e 363.

[22] Giulio Carlo Argan, Clássico anticlássico, op. cit., p. 313.

[23] “É fácil observar, no entanto, que as diferentes expressões artísticas de Michelangelo não tendem de maneira alguma a ser reduzidas ao desenho ou ao traço, e sim à escultura. O caráter plástico de sua pintura foi salientado frequentemente; quanto à arquitetura, é fácil observar que as colunas das paredes do vestíbulo da Biblioteca Laurenziana, por exemplo, são concebidas como prigioni, ou que a cúpula de San Pietro é imaginada como um colossal nu arquitetônico. Além disso, a escultura é a arte que manifesta mais diretamente o processo ideal do artista, particularmente enquanto figura: che là pin cresce upiú la pietra scema [porque ela cresce mais ali onde a pedra mais diminui]” (Giulio Carlo Argan, Clássico anticlássico, op. cit., pp. 313-4).

[24] Sobre a passagem da ideia ao ideal em Michelangelo, ver Erwin Panofsky, Idea. Trad. Henri Joly. Paris: Gallimard, 1989.

[25] Giulio Carlo Argan, Storia dell’arte italiana, op. cit., vol. 3, p. 15.

[26] Lionello Venturi, La pittura del Rinascimento, op. cit., p. 59.

[27] Giulio Carlo Argan, Storia dell’arte italiana, op. cit., vol. 2, p. 181.

[28] É Mondino de Luzzi (1270-1326), professor da Universidade de Bolonha, o primeiro a escrever um tratado de anatomia com o objetivo de confirmar os ensinamentos de Galeno. Sobre isso, e servindo a esta conclusão voltada para apontar os laços existentes entre o corpo na pintura e na medicina renascentista, ver José Gil, Metamorfoses do corpo, op. cit., pp. 117-30.

[29] José Gil, Metamorfoses do corpo. op. cit., p. 122.

[30] “De sorte que o eu, ou seja, a alma, pela qual eu sou o que sou, é inteiramente distinto do corpo, e é mais fácil de conhecer que este, e, mesmo que o corpo não existisse, ela não deixaria de ser tudo o que é” (Discours de la méthode, p. 33; utilizamos aqui a tradução de Gilberto de Mello Kujawsky, Descartes existencial. São Paulo: Herder; Edusp, 1969. p. 116; nessa mesma obra, ver ainda pp. 146-9). Sobre isso, consultar, ainda, Carlos Antônio Leite Brandão, A formação do homem moderno vista através da arquitetura, op. cit., pp. 200-12; Roger Levèvre, La vocation de Descartes. Paris: PUF, pp. 173 e 189; e A. Rivaud, “Remarques sur le mécanisme cartésien”, in Adam et alii, Descartes. Paris: Alcan, 1937, pp. 296-306.

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