2003

O espírito na carne: o cristianismo e o corpo

por Lorenzo Mammi

Resumo

É opinião comum que a transição do pensamento pagão para o Cristianismo seja marcada por crescente desinteresse pelo corpo. Isto, no entanto, não é de todo verdadeiro. A filosofia da Antiguidade tardia talvez seja mais ascética do que o pensamento dos primeiros padres da Igreja. Para um sábio estoico, epicurista ou neoplatônico, era necessário afastar-se de todas as sensações corporais para que a felicidade pudesse ser atingida. Os cuidados com o corpo eram reduzidos ao mínimo, os desejos sensuais deveriam ser esquecidos. Para um cristão, a relação entre alma e corpo – sintetizada no célebre ditado de São Paulo: “O espírito é forte, mas a carne é fraca”- demandava abordagem mais matizada. Em primeiro lugar, nada existe que Deus não queira. O corpo, e até a matéria bruta, passam então a fazer parte da criação, e já não são apenas princípios criativos. Em segundo lugar, se o corpo é o lugar da tentação, essa tentação não pode ser abolida por simples ato de vontade. A felicidade não pode ser atingida nessa vida, e o sábio cristão sabe se despir do orgulho pagão e confessar sua natureza carnal. Por isso, na literatura cristã dos primeiros séculos, há muito maior atenção aos impulsos carnais do que se encontra nos filósofos pagãos da mesma época. Sem dúvida, Santo Agostinho é muito mais sensual do que Plotino, porque para ele a relação entre espírito e carne é caracterizada por uma tensão e uma luta contínuas, não por um domínio absoluto do primeiro sobre a segunda. Nos primeiros pensadores cristãos, espírito e carne convivem numa união conflitante, mas inevitável. É o estado que Eric Auerbach definiu como “criatural”, e que está na base da estética páleo-cristã.


A finalidade deste texto é tentar identificar algumas mudanças na maneira de pensar a relação entre alma e corpo, na passagem do neoplatonismo ao pensamento cristão, e descrever a maneira como essas mudanças afetam o valor atribuído às imagens e, em última análise, os hábitos visuais de nossa cultura. Abordarei essa questão em duas frentes: na primeira parte, pela análise de textos cristãos dos primeiros séculos, e sobretudo de santo Agostinho. Na segunda, pela leitura de imagens sagradas da Idade Média e da Alta Renascença. Uma única tese unifica as duas seções: que o pensamento cristão é o primeiro a assumir o corpo, em todos seus aspectos físicos — incluindo portanto o erotismo —, como um tema explícito de reflexão. E que no pensamento clássico, ao contrário, a exclusão do corporal é programática tanto na reflexão filosófica como na experiência estética e moral.

Como ponto de partida, podemos assumir a conhecida tese de Kierkegaard (em As etapas eróticas espontâneas ou o erotismo musical, pp. 51-4), segundo a qual a sensualidade, como determinação do espírito, é uma invenção do cristianismo. Segundo Kierkegaard, o erotismo antigo age num plano psíquico, não num plano espiritual: atinge o indivíduo como um acidente, um poder exterior ao qual é necessário se dobrar; é algo externo às profundezas da alma, indiferente a elas. Sua imagem é Eros, deus que obriga a amar, mas que nunca ou raramente se apaixona. O cristianismo, ao contrário, colocaria o Eros como potência da alma, algo que é determinado pela consciência individual e que a consciência individual deve, no entanto, expulsar de si. Evidentemente, observa Kierkegaard, a sensualidade existia, num sentido amplo, antes do cristianismo; se não, o cristianismo não poderia excluí-la. Mas, em sentido estrito, ela nasce como princípio espiritual justamente no momento de sua exclusão: é só nesse momento que se reconhece que há algo, no espírito, que inclina naturalmente para, ou que gera, a sensualidade.

Significativamente, para explicar esse mecanismo, Kierkegaard faz referência ao conceito da encarnação. Eros é o deus do amor, porque o distribui no mundo, mas não o possui ele mesmo. Ele detém o poder do amor, mas não o encarna nem o representa. Ao contrário, um indivíduo encarna um princípio, ou uma faculdade, quando o possui em sua plenitude e, por assim dizer (são palavras de Kierkegaard), “suga-o de todos os outros indivíduos, para concentrá-lo em si”. Ao falar da Encarnação, o filósofo está pensando evidentemente em Cristo.

Uma outra referência esclarecedora é a que Kierkegaard faz à música: a música também é posta pelo cristianismo, enquanto, assim como o erotismo se define ao ser excluído do espírito, a música se define, como princípio autônomo, ao ser excluída da linguagem. Ela encontra seu objeto, então, na “genialidade erótico-sensual”. Ou séja: a música torna-se análoga à — e representativa da — sensualidade, como parte da fala que é excluída do logos discursivo, assim como a sensualidade seria uma disposição do espírito que o próprio espírito exclui de seu horizonte ético-racional.

Seguindo à letra a tese de Kierkegaard, poderia parecer que a filosofia antiga foi muito mais tolerante que a cristã, quanto à sensualidade. Sabemos, no entanto, que não é esse o caso. Apenas, na filosofia antiga a sensualidade é uma questão meramente corporal. Sua exclusão dilui-se no problema mais amplo da separação entre alma e corpo, e não constitui um problema em si. Em compensação, a separação da alma do corpo é a principal questão filosófica desde Platão: no Fédon (67 d), Sócrates afirma explicitamente que “a tarefa dos filósofos é liberar e afastar a alma do corpo”. Separada do corpo, a alma se libera automaticamente da sensualidade. Deixa de desejar, assim como deixa de ser uma individualidade, dissolvendo-se na alma universal.

O poder da razão discursiva (logos), nessa perspectiva, está na capacidade de encontrar, desfazendo a ilusão das aparências sensíveis, a verdade interior, ou anterior, das ideias. A própria beleza sensível só terá sentido enquanto remeter a uma beleza intelectual, que pitagóricos platônicos identificam com as proporções matemáticas. Os corpos belos da escultura grega são belos enquanto remetem a uma forma pura e revelam na matéria o cânone, a lei, a proporção ideal.

A separação entre alma e corpo é ainda mais acentuada no neoplatonismo. Em Plotino, aliás, a tensão entre sensível e inteligível, sensação e ideia, se aproxima de um ponto de ruptura: de um lado, acima das próprias ideias, há uma unidade inefável, imóvel, que não pode ser descrita porque está além de qualquer predicado; do outro lado há a matéria, que é mera temporalidade e não se fixa, não participa do Ser, e portanto também não pode ser descrita, porque não chega a ser algo.

A alma universal (alma do mundo) é pensada por Plotino como uma grande esfera de luz, a esfera do Ser, de tudo o que é. A matéria é as trevas, o nada que circunda essa esfera. O mundo material é a superfície iluminada das trevas. Recebe o Ser por reflexo, não tem essência própria. A experiência sensível da alma situa-se, para Plotino, nesse limiar. Dispersando-se sobre a superfície iluminada do nada e perdendo, por assim dizer, a espessura de sua essência luminosa, a alma esquece a si mesma, como parte da esfera do Ser. Por outro lado, no momento em que recupera sua essência e reconhece sua origem, ela abandona toda multiplicidade, funde-se com a alma universal e se desfaz como individualidade. Não há mediação possível entre alma e corpo. Desse ponto de vista, o comércio entre espírito e matéria que constitui a nossa existência terrena é algo inegável, mas inexplicável. Mais do que inexplicável: escandaloso. Porfírio, o aluno que organizou e publicou as obras de Plotino, assim começa sua biografia do mestre: “Plotino, o filósofo do nosso tempo, parecia se envergonhar de ter um corpo”. A relação entre alma e corpo, essas duas entidades incomensuráveis e inconciliáveis, é o grande problema, não apenas teorético mas também moral, de toda a filosofia platônica.[1] Imbuídos de neoplatonismo, os filósofos cristãos dos primeiros séculos tiveram de lidar com duas verdades reveladas que pareciam, nesse quadro, verdadeiros absurdos: a encarnação e a ressurreição dos corpos. Como poderia o divino assumir um corpo, passar por um processo de crescimento e corrupção, morrer, ressuscitar — enfim: ter uma história, e no entanto permanecer divino? Por outro lado: como os corpos, após o juízo final, podiam, sendo matéria, tornar-se incorruptíveis e eternos — ou seja: como o não-ser da matéria podia participar do verdadeiro Ser?

Nos primeiros séculos do cristianismo há um proliferar de hipóteses, sobretudo a respeito da encarnação, que tentam conciliar o texto bíblico com as categorias filosóficas herdadas dos gregos, amortecendo o impacto da união de espírito e matéria. Jesus não possuiria propriamente um corpo, mas seria uma alma tornada visível. Ou então Jesus e Cristo seriam duas pessoas distintas, o Cristo espiritual, Verbo de Deus, baixando no Jesus material apenas no momento do batismo, para abandoná-lo logo antes da crucificação.[2]

Até o século IV há uma grande indefinição sobre o assunto. Será santo Agostinho, entre os séculos IV e V, quem imprimirá à questão um rumo totalmente novo.[3] Agostinho inverte os termos do problema: em vez de elaborar conceitos absolutos de alma e de corpo, e depois tentar combiná-los, sai em busca de um conceito que resuma a mistura de alma e corpo, que é a realidade da natureza humana e o signo de sua imperfeição, para investigar em seguida como essa natureza mista pode ser orientada para seu lado espiritual ou carnal. Nas Sagradas Escrituras, Agostinho encontra a palavra que procura: carne.[4] Ao interpretar a famosa sentença do evangelho de Marcos — “O espírito é forte, mas a carne é fraca” —, o santo entende que espírito, aqui, não é a alma, mas o espírito divino que a ilumina, e carne indica a natureza humana em sua totalidade, e não apenas o corpo.

A frase de João — “O Verbo se fez carne” — deve ser interpretada no mesmo sentido: o Verbo divino não assumiu apenas um corpo, mas também uma alma humana. Os termos da questão são portanto deslocados: para o platonismo, a alma participava do divino, ou seja, havia uma progressão descendente, porém contínua, entre o divino e o humano. Havia porém uma fratura insuperável, dentro do humano, entre alma e corpo. Para Agostinho, a dicotomia entre alma e corpo não é essencial, mas contingente, fruto do pecado. Em compensação, não há continuidade, mas um salto incomensurável, entre espírito divino e alma humana.

A encarnação, mediação entre humano e divino, é o ato da vontade divina que preenche esse salto. É imperscrutável. Só pode ser aceita com um ato de fé, mas, se aceitarmos isso, as aporias do platonismo podem ser resolvidas. Assumindo a carne (ou seja, não apenas um corpo, mas também uma alma humana), o Verbo indicou que não apenas a alma, mas a carne como um todo pode ser salva. Nós não somos almas prisioneiras de um corpo, mas uma mistura de alma e de corpo, de espírito e matéria. Certamente, podemos nos voltar para nossa origem espiritual ou ceder ao peso de nosso fardo material, mas em todo caso é a alma quem toma as decisões. A laceração está nela, entre bona voluntas e cupiditas, e não entre alma e corpo. Em De civitate Dei (XIV, III), Agostinho escreve explicitamente, referindo-se ao pecado original: “Não é o corpo corruptível que tornou a alma pecadora, mas a alma pecadora que tornou o corpo corruptível”.

O homem, em outras palavras, não é um fragmento de alma universal perdido em um lugar estranho, mas um ser em si impuro, que precisa da permanência do auxílio divino para ser mantido na pureza. Deus quis unir; em Cristo, o divino ao humano, e essa união é a base e a justificativa de uma outra união, que de outra maneira não compreenderíamos: a união, em cada homem, de uma alma e de um corpo.

A santidade cristã, portanto, é algo totalmente diferente da sabedoria pagã. Para o pensamento clássico, o sábio poderia alcançar um estado de felicidade já nesta vida, mediante a redução do corpo a mero instrumento da alma racional. Para um cristão, a felicidade não é deste mundo, e não é possível se salvar apenas com o auxílio do pensamento discursivo (o logos no sentido grego). O santo é alguém em estado de tensão e de tentação contínuas, que só se mantém puro porque tem consciência de sua natureza carnal. Isso abre o caminho a uma psicologia que chega até as minúcias, até os detalhes escabrosos, e que não tem paralelos no mundo antigo. Vale a pena, a esse respeito, citar um passo de De civitate Dei (XIV, XVI):

Quem, amigo da sapiência e das felicidades sagradas, mantendo uma vida conjugal, e no entanto, como ensina o Apóstolo, sendo consciente de possuir seu corpo em santidade e honra, e não na doença do desejo como um pagão que ignora Deus — quem não preferiria, se pudesse, procriar filhos sem desejo sensual, de maneira que, nesse ofício de gerar filhos, os membros que foram criados para essa função obedecessem à mente, como aqueles destinados a outras tarefas, seguindo o comando da vontade, e não o ardor excitado do desejo? Mas até aqueles que amam essa volúpia, tanto nas uniões conjugais como na impureza da devassidão, nem eles se excitam quando querem; mas às vezes o movimento aparece de maneira importuna, sem ser solicitado; às vezes abandona aquele que deseja avidamente e, enquanto a alma ferve de concupiscência, o corpo permanece frio. É admirável, portanto, que o desejo sexual se recuse a servir não apenas à vontade de procriar, mas também ao desejo de lascívia; e, embora na maioria das vezes se oponha à mente que o refreia, às vezes chega a se voltar contra si mesmo, e não obedece a si mesmo, como faria se excitasse o corpo segundo a excitação da alma.

A impotência torna-se matéria de reflexão filosófica, assim como o prazer involuntariamente ligado à procriação. O descompasso entre alma e corpo não é sinal de um afastamento salutar, mas fruto do pecado original (segundo Agostinho, Adão e Eva, antes da culpa, procriavam sem nenhuma sensação particular, como quem semeia um campo).
 A separação, longe de ser o objetivo, torna-se o problema, cuja solução está configurada na encarnação e será cumprida na ressurreição dos corpos.

Para Agostinho, não existe no homem uma racionalidade pura, que habita o corpo como um hóspede. A razão está sempre em situação, no entrelaçamento indissolúvel de estímulos corporais e mentais. Veja-se, por exemplo, Confissões (X, XXX), em que Agostinho comenta seu estado atual, posterior à conversão:

Vós [Deus] me levastes a controlar a concupiscência da carne, e a concupiscência dos olhos, e a ambição do mundo. Vós me afastastes dos amplexos… E, no entanto, ainda vivem as imagens dessas coisas na minha memória, onde foram gravadas pelo hábito e, embora me venham à mente com pouca força enquanto estou acordado, no sono, ao contrário, me levam não apenas ao prazer, mas até ao consentimento e a algo muito parecido com a ação. E essas imagens ilusórias têm tanta força sobre minha alma e meu corpo, que as falsas visões do dormente me persuadem como as visões verdadeiras da vigília não conseguem fazer. Então, Senhor meu Deus, eu não sou eu mesmo? Por que tanta diferença entre eu e eu mesmo, entre o momento em que adormeço e o momento em que volto a acordar? Onde está então a razão, que resiste a esses estímulos enquanto estou desperto?

O conflito entre alma e corpo é fruto do pecado, e da consequente corrupção. A verdadeira salvação não é o abandono do corpo e a volta da alma para seu lugar originário, como para os platônicos, mas o retorno da harmonia plena entre alma e corpo, após o juízo final.[5]

As questões ligadas à cristologia afetaram profundamente outro problema crucial da religião paleocristã: a produção das imagens. Assim como o cristianismo propõe uma nova relação entre alma e corpo, da mesma maneira, e consequentemente, comporta uma nova relação entre forma e matéria. A arte cristã descende de duas tradições: de um lado, na arte clássica, a obra de arte era fruto de um domínio racional do visível, graças a um sistema superior de proporções (os cânones). A imitação da natureza gerava formas que, por seu caráter ideal, independiam de seu suporte material (como quando a mesma estátua era reproduzida em vários materiais) ou até de seu campo específico (o mesmo cânone proporcional podia ser aplicado a um templo, uma melodia ou uma imagem). Por outro lado, a tradição hebraica rejeitava toda representação, porque Deus por sua natureza não pode ser visto, e qualquer veneração de imagens seria idolatria.

O choque entre as duas tradições foi violento. São conhecidas as disputas intensas sobre as imagens, que levaram, nos séculos VIII e IX, à iconoclastia bizantina. Aqui também a questão central era a encarnação. Cristo é Deus que se tornou visível, quis ser visto — mas quem se atreveria a representá-lo? A escolha humana de um cânone representativo certamente não pode competir com o corpo que o próprio Deus escolheu para si. A razão é superior à natureza, mas a natureza de Cristo é superior à razão. A mediação de uma tékhne humana, nesse caso, levaria necessariamente ao sacrilégio. Uma lenda do século VI narra a história de um pintor cuja mão secou porque ele ousou representar Jesus com a mesma iconografia com que se representava Júpiter.[6]

Surgem então as imagens aqueiropitas, produzidas por vontade divina, sem a intervenção do homem (akbeiropoíeton, feito sem as mãos). Há dois tipos de aqueiropita:

a) os ícones pintados por intervenção angélica, como os retratos da Virgem atribuídos a são Lucas (a tradição quis que Lucas esboçasse o desenho, e os anjos o completassem e colorissem durante a noite; ou, com maior freqüência, Lucas teria encontrado o desenho pronto ao acordar, limitando-se a colori-lo);

b) as imagens produzidas por contato direto com o corpo de Cristo, como um decalque ou uma fotografia; por exemplo, a Verônica e o Santo Sudário.

O segundo tipo é mais interessante, para a tese que pretendo defender, e vou me limitar a ele.

O mandylion (deformação grega do árabe mandil, pequeno pano ou toalha) talvez seja o mais antigo aqueiropita conhecido. As primeiras notícias remontam ao século V, e a relíquia adquiriu muita notoriedade na época das lutas iconoclastas, quando passou a ser utilizada em defesa das imagens. Segundo a lenda original, Abgar, rei de Edessa (na Mesopotâmia), teria enviado seu servo Anania para convidar Jesus a sua corte. Anania recebeu uma recusa, com a promessa porém de enviar um apóstolo. Anania então teria pintado um retrato de Cristo, que Abgar guardava como uma grande relíquia. Na época da disputa sobre os ícones, a lenda muda: Cristo teria se recusado a posar para o retrato, mas teria aplicado uma toalha de linho sobre o rosto, deixando nela sua imagem impressa. Conservada em Edessa, a imagem viria para Bizâncio em 944, e para o Ocidente (provavelmente Roma) em 1204.

Produzido por contato, o mandylion também se reproduzia por contato: segundo a lenda, Anania levou-o para Edessa envolto num vaso, no qual ficou impressa a mesma imagem, tornando o vaso outra relíquia, o kerámion, que também foi para Bizâncio e mais tarde se perdeu. A transmissão da imagem não era sempre necessária. Era suficiente aplicar um véu sobre a relíquia para que ele se tornasse, por sua vez, uma relíquia, mesmo que nenhum traço aparecesse nele (a mesma prática se aplica, mais tarde, à Verônica). Por outro lado, a imagem podia ser reproduzida mecanicamente, sempre por contato: aplicava-se ao ícone um tecido imbuído de azeite, e sobre este era copiado o desenho, segundo uma técnica recomendada por um tratado grego tardio, a Hermeneia, de Dioniso de Fourna.

A cópia, portanto, já não é produzida pelo olho e pela mente, mas pela pressão da mão que percorre as linhas da imagem sagrada. Teodoro de Studios, no século IX, estende esse conceito também às imagens criadas pelo artista: “A imagem artificial, plasmada a partir de seu arquétipo, traz a imagem do arquétipo na matéria graças ao pensamento do artista e à pressão de suas mãos. […] [os artistas,] observando um modelo, recebem a impressão do que contemplam e a imprimem como um selo na material”.[7]

O artista, portanto, já não é aquele que elabora cânones formais a partir de um sistema de proporções, mas um transmissor de imagens, do arquétipo para a mente e da mente para a matéria. Os paradigmas dessa operação, obviamente, são os aqueiropitas. Não por acaso, no prefácio da Hermeneia, o mandylion é citado como justificativa e patrono do ofício do pintor.

Há dois aspectos importantes nessa mudança de perspectiva. O primeiro é que as imagens são geradas por contato entre duas superfícies. Elas deixam de se situar no espaço e surgem diretamente do plano. Representar um rosto passa a significar decalcar sua epiderme. O outro aspecto importante nos aqueiropitas se tornará mais evidente em nosso segundo exemplo: sendo gerados por contato com um corpo sagrado, eles são, por sua vez, corpos sagrados.

A imagem sagrada (santa icona) de são João em Latrão é paradigmática nesse sentido. É um retábulo representando Cristo de corpo inteiro, de pé. Não se conhece a origem, que certamente é milagrosa. As primeiras notícias remontam ao século VIII, quando a imagem foi levada em procissão para proteger as cidades da invasão dos lombardos. Mais tarde (século IX) tornou-se hábito, no dia de Nossa Senhora, que a imagem aqueiropita de Cristo saísse de Latrão em procissão para encontrar a imagem aqueiropita da Virgem (pintada por são Lucas), que saía da igreja de Santa Maria Maggiore. Durante o resto do ano, a santa icona é conservada no sancta sanctorum do papa, em San Giovanni. De fato, por ser “a verdadeira imagem” do corpo de Cristo, o retábulo possui uma força terrível. Diferentemente dos outros ícones romanos, o acesso a este é limitado quase exclusivamente ao papa — procissões à parte. Até meados do século XX, o ingresso à capela onde a imagem era conservada era proibido às mulheres. Alexandre III (1151-1181) mandou pregar véus de seda no retábulo para cobrir o vulto. O véu tinha função protetora não para a imagem, mas para os visitantes. O cronista inglês Gervásio de Tilbury explica: “O papa Alexandre III, de santa memória, mandou recobri-la de um grande corte de seda, porque ela espantava os que a olhassem por certo tempo, colocando-os até em perigo de vida”. Outro cronista da mesma época, Giraldus, escreve que um antecessor desse papa, não identificado, teria perdido a visão por ter olhado a imagem muito de perto. Inocêncio III (1198-1215) mandou cobrir o retábulo inteiro, menos o vulto, com um revestimento de prata. Nesse revestimento, ainda existente, há uma pequena porta embaixo, para que os pés de Cristo possam ser lavados com azeite e manjericão. Submetida a tantos tormentos, a pintura original foi desbotando. Uma foto recente, feita durante sua restauração, mostra o que resta dela: manchas incompreensíveis. Mas o importante é que, do ponto de vista religioso, o desaparecimento da imagem não retira o valor da relíquia, porque o que é sagrado não é a forma, mas o objeto em si, aquela madeira que carregou e carrega a verdadeira imagem de Cristo e que é, portanto, por contato e por analogia, o verdadeiro corpo de Cristo.

É evidente a importância da atitude cristã dos primeiros séculos para a concepção da arte das épocas posteriores. O ícone paleocristão é resultado de uma fusão entre os conceitos de obra de arte e de relíquia. Com isso, introduz na arte um valor que não existia antes: o valor do original em relação à cópia. O original não é superior à cópia por sua qualidade formal: ele pode ser repintado muitas vezes, como aconteceu com muitos ícones (inclusive o de Latrão), sem perder seu valor. O repinte, aliás, por ser simples recalque, costuma ser bastante tosco. O objeto é valioso não por sua proximidade de um modelo, mas pela proximidade de sua fonte, o corpo sagrado. Para um grego, uma solução formal pode ser reproduzida ao infinito: uma cópia do Discóbolo de Míron não é necessariamente inferior ao original. Para nós, ao contrário, uma obra não é apenas uma forma, mas uma forma encarnada, e a encarnação é algo único. O original é sempre superior à cópia, até mesmo se do original sobrar apenas uma sombra, e a cópia for uma reprodução perfeita. Na verdade, em ícones como o de Latrão, o valor da obra não está na imagem que vemos, mas em algo inefável que está atrás dela, e que a imagem visível apenas recobre e protege.

A maneira como esse novo conceito de autenticidade se incorpora à produção artística é especialmente clara nas reproduções do mais famoso dos aqueiropitas, a Verônica. Essa imagem foi transmitida por uma tradição que remonta ao século X e foi a mais reverenciada relíquia romana, o destino principal de peregrinações. Evidentemente, era uma variante mais dramática do mandylion, como testemunham algumas cópias (por exemplo, a assim chamada Verônica de ouro). Exposta num pilar da nave central de São Pedro (onde agora está uma escultura barroca de Giovan Battista Mochi, representando santa Verônica), perdeu-se durante o saque de Roma de 1527. Hoje a conhecemos apenas mediante reproduções dos mais diferentes estilos e épocas, que no entanto conservam traços comuns.

Muitos aristocratas europeus mandaram copiar a Verônica em seus livros de horas. Podemos escolher como ponto de partida a iluminura do saltério e o livro de horas de Iolanda de Soissons (fim do século XIII). O fundo vermelho alude a um tecido adamascado (versão nobre do lenço em que a Verônica original estava impressa) encaixado numa decoração arquitetônica que reproduz uma típica moldura gótica. Sobre esse fundo, o rosto de Cristo é envolto em um halo de luz, que aqui não é apenas um código convencional de santidade, mas a redução a signo do efeito iluminador, epifânico, que a relíquia exercia sobre o peregrino. O rosto em si é reduzido a uma figura achatada e simétrica, como se realmente fosse produzida pela pressão de um corpo contra uma superfície. A expressão é mais dramática do que no Mandylion, conforme uma progressiva dramatização da história sagrada, em detrimento de seu caráter hierático, tendência que Hans Belting identificou como característica dos primeiros séculos do segundo milênio.[8]

O Cristo coroado de espinhos, de Fra Angelico (c. 1450), é evidentemente uma Verônica. Não apenas os traços físicos do rosto (a testa, a boca, o nariz, o ataque dos bigodes) remetem a um original comum ao livro de horas de Soissons; é igualmente comum, entre as duas obras, a escolha do plano aproximado, que comprime a figura entre duas superfícies, a tela e o fundo, sem deixar que o ar circule em volta do corpo. É bom lembrar que Fra Angelico, naquela época, trabalhava em Roma como orador oficial do papa, e que a Verônica supostamente original ainda estava exposta em São Pedro. Certamente, em Fra Angelico, a cabeça está plantada de maneira realista num corpo, e percebe-se a intenção de criar volume mediante o claro-escuro. Mas é interessante notar como esse recurso, se obtém êxito no pescoço, se choca no rosto com o aspecto achatado do modelo, criando uma sensação de inchaço e até de deformação da figura. O pintor acentua essa deformação, salientando o caráter dramático, e até macabro, da imagem. Durante a vida inteira Angelico esforçou-se por transferir o racionalismo espacial da perspectiva florentina para o território da piedade e da mística religiosa. Aqui é obrigado a renunciar a um dos polos de seu paradigma — o espaço racional — e não parece à vontade. Em vez de união entre fé e razão, seu Cristo coroado de espinhos mostra a união entre fé e oratória. Talvez seja a obra mais “medieval” de Angelico. Certamente, uma das menos convincentes.

Muito mais interessante é a solução de Andrea Mantegna, em seu Cristo doloroso (1493), conservado no Museu Cívico de Correggio. É uma tela pequena, destinada provavelmente à devoção privada. Mantegna utiliza aqui uma pintura a guazzo, executada diretamente sobre a tela crua. O pintor recorreu à mesma técnica em outras obras tardias, mas aqui ela parece ter um significado particular: a textura da tela, aparecendo através da tinta rala, remete ao lenço da Verônica, em que essa imagem evidentemente se inspira. Repare-se que as características fisionômicas do rosto — a testa, o arco das sobrancelhas, o nariz, a boca, a disposição dos cabelos — descendem evidentemente da linhagem Soissons-Fra Angélico. O halo de luz é realizado de maneira muito sutil, deixando uma zona indefinida atrás da cabeça, em que a pintura se desfaz, deixando apenas um tom amarelado sobre a tela. Contra essa área clara, o perfil da cabeça é acentuado por uma coloração mais escura nas bordas, que achata o volume contra o fundo e impede que a figura “gire” no espaço. A partir desse contorno achatado, Mantegna constrói com muito cuidado a impressão volumétrica. O rosto sofre uma pequena rotação, a que se opõe, no entanto, a posição claramente frontal dos olhos, do nariz e da boca, como se o autor se esforçasse por encontrar um meio-termo entre a tridimensionalidade do real e a bidimensionalidade do ícone. É apenas no pescoço e, sobretudo, no torso que a figura se torna plenamente volumétrica.

O plano do quadro é percorrido por escritas. Na margem esquerda: momordite vos metipsos ante efigiem vultus mei (mortificais a vós mesmos, perante a imagem do meu rosto); no livro que Cristo segura nas mãos: Ego sum. Nolite timere (sou eu. Não tenham medo). O livro com capa de couro é um símbolo tradicional de Cristo, como Verbo encarnado. Mantendo o livro diante do corpo, e marcando o lugar nas páginas com o indicador da mão direita, como se estivesse prestes a retomar a leitura, o Cristo morto promete a ressurreição futura (no evangelho de Mateus, Nolite timere são as primeiras palavras que Cristo dirige aos apóstolos, após a ressurreição). Mas é interessante salientar, por outro lado, o tratamento linear, quase botticelliano, do movimento das mãos, que é pouco usual em Mantegna. De fato, o pintor é obrigado a concentrar os volumes das mãos, do livro e do tronco em um espaço muito reduzido, para fazer jus à posição do rosto, que, conforme o modelo da Verônica, deve ser colocado rente à superfície do quadro. Mantegna não parece preocupado em resolver plenamente a contradição entre a reprodução do ícone e a reconstrução, abaixo dele, de um busto clássico. Os dois registros permanecem levemente defasados, até na coloração, como se a cabeça pudesse a qualquer momento ser separada do resto. Uma coisa é a relíquia (o rosto da Verônica), outra, sua interpretação atual, que a recoloca no mundo. A escrita na margem da tela remete ao impacto emocional do rosto morto de Cristo, assim como conservado na Verônica; mas a escrita no livro restabelece, para além do horror, o diálogo.

O leigo Mantegna lida com a tradição religiosa dos aqueiropitas melhor do que Fra Angelico, porque sua atitude, digamos assim, historicista o aparelha melhor para isso.

Para Angelico, o mundo é uma forma racional, que reflete uma ideia divina atemporal. Para Mantegna, ao contrário, o mundo é um repertório de imagens, que são monumentos, ou seja, testemunhas de fatos históricos, e estes devem ser interpretados, para que seu sentido volte à tona. Em outras palavras, para Mantegna as imagens são atos espirituais encarnados: têm valor pelo fato de terem sido produzidas num determinado momento histórico, podendo ser constantemente atualizadas na medida ern que são constantemente reproduzidas. Recriar uma imagem, então, não significa apenas decifrar seu conteúdo simbólico e desenvolvê-lo retoricamente, mas reconstituir em nova chave toda sua aparência sensível — nesse caso: a textura do lenço, a linearidade da figura, a opacidade do olhar —, já que todo seu aspecto diz algo sobre seu conteúdo. Nesse sentido, a relíquia não é diferente de um objeto antigo, ao qual se deve restituir toda sua plenitude de “fato” historicamente determinado, e não apenas de modelo formal. De fato, Mantegna não se comporta diversamente quando se trata de recuperar formas clássicas, como demonstra, por exemplo, sua série dos Triunfos.

A psicologia de Agostinho baseia-se na unidade de alma e corpo, tomando como modelo a encarnação do Verbo divino. Da mesma maneira, a obra de arte cristã, a partir das imagens aqueiropitas, se baseia na ideia de uma impressão do espírito divino na matéria ou, em outros termos, da encarnação de uma forma em um corpo. A diferença em relação à concepção antiga é que, nesse processo, o significado da forma não se mantém separado do valor da matéria. A matéria, em contato com o divino, torna-se sagrada, vira relíquia. Por sua vez, a forma, encarnando-se na matéria, se singulariza, e não pode ser repetida sem se tornar cópia, perdendo parte de seu valor sagrado. A Renascença reconduz a ideia de espírito encarnado à ideia de forma racional, mas não a abole. Ao contrário, é a forma racional que se singulariza, tornando-se ato individual de uma razão subjetiva. Alma e corpo, universal e singular, já formaram uma unidade inseparável.

Notas

[1] Porfírio, Vida de Plotino, 1, 1. As questões relativas à alma são tratadas especificamente por Plotino na quarta Enéada, mas a união de alma e corpo já é abordada brevemente em Enéada 1, 2-5. A metáfora da alma universal como esfera de luz está presente em muitos textos, mas é desenvolvida especificamente em Enéada VI, 4, 7-9.

[2] Essas teses surgem a partir dos evangelhos apócrifos e dos escritos da seita judaica dos ebionitas, e são desenvolvidas sobretudo em ambiente gnóstico. Ver a introdução de Antonio Orbe à antologia Il Cristo. Milão: Valla/Mondadori, 2000, vol. I.

[3] Entre os numerosos textos de Agostinho que tratam desse tema, destacamos: De civitate Dei, X, 24, 26 e 28; XX, 28; Comentário ao salmo CXLI, 17-19; Soliloquia, 1, 14.

[4] No uso desse termo, Agostinho se apoia evidentemente nas epístolas de Paulo, mas se distancia bastante de seu modelo. Ver o verbete “carne” de L. Coenen-C. Brown, Dicionário internacional do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2000, pp. 274-84.

[5] Ver também En. In Ps. 141; Ep. 137 a Volusiano.

[6] História eclesiástica de Teodoro Lettore, citado em Il volto di Cristo (vários autores). Milão: Electa, 2000, p. 33. Il volto di Cristo é o catálogo de uma exposição organizada em Roma por ocasião do jubileu (9/12/2000-16/4/2001), do qual retiramos grande parte das informações e da iconografia que utilizamos daqui em diante.

[7] Citado em Il volto di Cristo, op. cit., p. 72.

[8] Hans Belting, Likeness and presence. Chicago; Londres: Chicago University Press, 1994, cap. 16, pp. 330-48.

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