2005

O invisível das imagens

por Jorge Coli

Resumo

No avesso do espetáculo, que magnetiza o olhar pelo exterior, há o perscrutar das essências invisíveis. Velho tema, de que dão testemunhos anseios, senão ancestrais, históricos, a exemplo do embate entre a iconolatria e a iconoclastia bizantinas nos séculos VIII e IX, que, no mais, remete-o ao plano das crenças, ainda em atividade, como o prova a destruição das imensas e antigas estátuas de Buda no Afeganistão por ordem do governo fundamentalista talibã, em 2001.

Etimologicamente, “imagem” associa-se a “imitação”, “cópia”. Com o objetivo de produzir identidade, a representação – ou seja: outra apresentação do mesmo – nunca é igual ao mesmo, ou seja, o objeto em questão. Surge, assim, uma ligação invisível entre retrato e retratado. Ela que remete a uma noção que, na estética, não é devidamente prestigiada. Trata-se da semelhança, que, por ora, dispensa definição formal; afinal, não é difícil saber se uma criança parece mais com o pai ou com a mãe, ou se uma nuvem parece com um camelo. Exemplos que incorporam à noção de semelhança o verbo “parecer”. Ele que se vincula a “aparência”. É então que se manifesta a fragilidade da semelhança, que passa a associar-se não à essência, mas a algo exterior a ela. De que ordem é, então, um retrato? Ele traz em si a substância do retratado ou um ser enfraquecido? De todo modo, o pintor responde ao desejo das imagens ao revelar o verdadeiro objeto deste. É a invisibilidade constitutiva do visível, cuja captura imagética vem suprir parte das expectativas do olhar.

A esta altura, difícil se esquivar da condenação platônica da imagem e, para o bem do esteta, da importância da semelhança – ou da instância “comum” entre as formas.

Mas o que exatamente significaria isso? Algo que vai além da relação entre uma imagem e outra, já que há uma espécie de terceira margem do rio, em que, invisíveis, imateriais, o semelhante funde-se ao semelhante ou a analogia metamorfoseia-se em fusão.

Se o filho está no pai e vice-versa porque se assemelham, o ponto de encontro está além dos dois, presidido pelo olhar que reconhece e junta.

Nesse sentido, assim escreveu Walter Benjamin sobre Proust: “Toda interpretação sintética deve partir necessariamente do sonho, pois é nele que se enraíza o culto apaixonado e frenético de Proust pela semelhança. Nas obras, fisionomias, maneiras de falar, a semelhança entre dois seres, a que estamos habituados e com que nos confrontamos em estado de vigília, é apenas reflexo impreciso da semelhança mais profunda que reina no mundo dos sonhos”.

Por isso Proust pressupõe um lugar para a obra de arte “de significado eterno” não só além do cotidiano, como além do que se considera real.

Em suma: na terceira margem do rio, o tempo não tem começo nem fim, já que ele se situa numa espécie de reserva estática, capaz de ressurgir quando menos se espera. No “Em busca do tempo perdido”, Sefora, pintada por Botticelli, surge em Odette como o gosto da “madeleine” experimentada na juventude se assemelha à da infância. É isso que presentifica o passado. Mais: que torna a obra de arte, em seu modo mais eterno e verdadeiro, algo a ser captado pela observação de forma mais involuntária do que voluntária e, assim, a integrar a memória. O rio da terceira margem atravessa esses campos que se ocultam e revelam. Semelhanças e analogias criam uma substância artística maior do que qualquer limite material, de modo a consolidar uma obra de arte única, a partir de uma infinidade de referências, ou, como no caso de Proust, da “realidade”, por meio de uma percepção que a transforma em arte. Enfim: não há originalidade total, pois, como marcas profundas, e não como sucedâneas desprovidas de alma, integram-na a reprodução, a memória, todas as formas de representação, ou, antes, de re-apresentação. A obra de arte é tudo isso. É feita de tudo isso.


No Avesso do espetáculo, que prende o olhar pelo exterior, encontra-se a busca de essências invisíveis. É um velho tema, o da natureza invisível das imagens. As questões históricas, ancestrais, da iconolatria e da iconoclastia testemunham quão dramáticas e nucleares essas relações mostraram-se, e mostram-se ainda, dentro das crenças humanas. Elas estão ativas: as destruições recentes das estátuas de Buda, imensas e antigas, no Afeganistão, assinalam o quanto a ambiguidade das imagens presentes no mundo pode ser perturbadora.

A palavra imagem está ligada à imitação, à cópia: é mimogenética, ou seja, nasce da vontade de reproduzir. Entre a representação e o representado, ocorrem procedimentos de identidade, já que a identificação é o objetivo. Representação, isto é, apresentar de novo o mesmo. No entanto, nós sabemos que esse mesmo não é o mesmo. Creio que é Erwin Panofsky quem lembra, em algum lugar, esta evidência: diante do retrato fiel, nós reconhecemos quem conhecemos, mas ninguém confunde o retratado com o retrato.

A questão é a da ligação invisível que se encontra entre retrato e retratado. Ela repousa numa noção que, dentro da estética e da filosofia das artes, nunca teve um lugar tão importante quanto outros conceitos prestigiosos. Refiro-me à ideia de semelhança. Se ela não mereceu desenvolvimentos teóricos substanciais, constitui um dos eixos mais importantes, e indispensáveis, da prática própria aos historiadores da arte.

Não importa se sabemos ou não definir a semelhança: qualquer um pode dizer se a criança é mais parecida com o pai ou com a mãe, se o retrato se parece ou não com o modelo, que uma nuvem se parece com um camelo. Estes exemplos incorporam à noção de semelhança um outro verbo: parecer, que se vincula à ideia de aparência. Aqui se manifesta a fragilidade da semelhança: ela liga o visível entre si por modos exteriores, distantes da essência. O retrato não é o retratado; o retratado é, portanto, é ele quem comporta a essência que o define como ser. O que seria então o retrato? Um ser enfraquecido? De toda maneira, o pintor responde ao desejo das imagens ao desvelar qual é o verdadeiro objeto desse desejo, a saber, a invisibilidade constitutiva do visível, e, dessa forma, o pintor o apazigua muito melhor, pois entendemos, graças a ele, o motivo profundo de nossa frustração e a impossibilidade de preenchê-la.

Parece inevitável chegar seja à condenação platônica da imagem, como mera aparência de uma essência que lhe escapa, seja à condenação moral e religiosa, para quem a aparência é a representação ilusória de um vazio verdadeiro. Os historiadores da arte sabem, no entanto, que existe uma ligação forte entre coisas que se assemelham. A história da arte moderna afirmou-se com a fotografia, ou seja, com algo que reproduz um original. São as fotos de quadros, de estátuas, de edifícios que permitem aos historiadores os estudos comparativos. Eles trabalham com imagens de imagens. Os grandes centros internacionais de estudos em história das artes possuem grandes mesas. Grandes mesas são necessárias e indispensáveis: sobre elas podem-se dispor várias fotografias e comparar. Comparar é uma forma de compreensão silenciosa da relação entre as imagens. As palavras não conseguem apreendê-las: podem ser, no máximo, indicativas de intuições mudas. Num estudo de história da arte, as imagens nunca são secundárias, ilustrações destinadas a embelezar um texto. Elas são nucleares, porque carregam em si o próprio processo de raciocínio. Quando Roberto Longhi quer demonstrar que Piero di Cosimo viu a pintura dos mestres setentrionais, não perde tempo em expor argumentos: dispõe, numa página, detalhes de quadros que mostram a semelhança entre obras realizadas na Itália e na Alemanha no século XV Basta isso.

Dessa maneira, é possível estabelecer filiações, contatos, reconstituir a cultura visual de um pintor do passado. Essa prática demonstra, por sinal, que não existe tabula rasa em artes. Antes, por trás de um quadro ou de uma estátua, existe outro e mais outro.

Os historiadores da arte costumam dizer que é preciso treinar o olho. Isto significa incorporar um saber, sempre silencioso, sempre intuitivo, capaz de captar o que há de comum entre as formas. Mas que lugar é esse que a preposição “entre” indica? Não há apenas dois lugares, o lugar de uma imagem e de outra imagem, o lugar de uma aparência e de outra aparência. Há um terceiro lugar, uma terceira margem do rio, em que, invisíveis, imateriais, o semelhante funde-se no semelhante, em que a analogia se metamorfoseia em fusão.

O filho está no pai e o pai está no filho porque eles se assemelham, o ponto de encontro está fora dos dois, presidido pelo olhar que reconhece e que junta.

O pintor Jean-Dominique Ingres, do século XIX (1780-1867), acreditava que a perfeição do todo originava-se na perfeição das partes. Ele trabalhava elementos que deviam compor uma pintura de maneira obsessiva, fazendo e refazendo cada um. Com eles, montava a figura repetidamente, até chegar à convicção de que ela se tornara perfeita. A forma obtida então viajava de quadro em quadro, reaparecendo nas telas sucessivas que pintava. O caso mais evidente é o dos nus femininos, que constituem uma longa sequência em sua obra. O desfile termina na apoteose do Banho turco, quadro que reúne nus numerosos, concebidos e retomados anteriormente, ao longo de sua carreira. Formou-se, deste modo, uma galeria constituída por eclosões que manifestam o princípio de uma imagem acima das imagens, obtida pelo pintor e fortalecida a cada nova aparição.

O processo singular, próprio ao artista, reitera-se no conjunto coletivo das produções artísticas. Um dos grandes prazeres dos historiadores das artes é descobrir as imagens renascendo dentro de outras imagens, tomando novos sentidos, ressuscitando o mesmo para se transformar em outro.

A exploração mais sutil dessa terceira margem do rio foi, estou convencido, feita por Marcel Proust em sua obra literária. Proust era fascinado pelas artes e pela ressurreição das imagens.

Walter Benjamin assinalou, numa passagem breve, a importância da noção de semelhança no universo de Proust.

Toda interpretação sintética de Proust deve partir necessariamente do sonho. Portas imperceptíveis a ele conduzem. É nele que se enraíza o culto frenético de Proust, seu culto apaixonado da semelhança. Os verdadeiros signos em que se descobre, de modo sempre desconcertante e inesperado, nas obras, nas fisionomias, nas maneiras de falar. A semelhança entre dois seres, a que estamos habituados e com que nos confrontamos em estado de vigília, é apenas um reflexo impreciso da semelhança mais profunda que reina no mundo dos sonhos, em que os acontecimentos nunca são idênticos, mas semelhantes, impenetravelmente semelhantes entre si.[1]

Ocorre que Walter Benjamin pressupõe À la recherche du temps perdu como uma obra autobiográfica,[2] que seria o sonho lembrado de um vivido pessoal. Essa relação direta entre autor e narrador foi sempre feita pela grande maioria dos especialistas em Proust, o que confere uma percepção em inteireza de seus processos genéticos. No entanto, é legítimo — e eu seria tentado a dizer, é a única legitimidade possível — tomar À la recherche du temps perdu pelo que ela de fato é: uma obra de ficção da qual o narrador não é o autor. Assim, aquilo que é chamado por Benjamin de “mundo dos sonhos”, considerado a partir de uma vigília “real”, é, na verdade, o lugar de experiências imaginárias (pouco importa se inspiradas ou não na realidade vivida) em que, como veremos, se situa a obra de arte.[3]

Proust frequentou o Louvre em sua juventude e fez viagens a Veneza, Pádua, Holanda e Bélgica. Essas atividades são testemunhos de um contato intenso com as obras reais que descobria, mas não significam uma presença reiterada diante dessas mesmas obras. O essencial de sua familiaridade com a arte vinha de um outro modo: vinha por meio de reproduções fotográficas. O que importa ao narrador de À la recherche é tecer as relações entre essas réplicas, a obra, e o lugar delas, a terceira margem do rio.

Proust assinala: essa relação entre as obras e suas reproduções não é simples, nem mecânica. Nem as reproduções são apenas veículos que transmitem, como podem, a essência do original.

Mas eu não quis mais pensar a não ser na significação eterna das esculturas, quando reconheci os apóstolos, dos quais eu havia visto as estátuas moldadas no Museu do Trocadéro, e que, dos dois lados da virgem, diante do vão profundo do pórtico, esperavam-me como para me prestar honras. O rosto benévolo, achatado e suave, o dorso arqueado pareciam avançar com um ar de boas-vindas, cantando a Aleluia de um belo dia. Mas percebia-se que suas expressões eram imutáveis como a de um morto, e só se modificavam quando se girava à volta deles. Dizia para mim mesmo: É aqui, é a igreja de Balbec. Essa praça que parece saber sua glória é o único lugar no mundo que possui a igreja de Balbec. O que vi, até agora, eram fotografias dessa igreja e, desses apóstolos, dessa virgem do pórtico, tão célebres, apenas as moldagens. Agora, é a própria igreja, é a própria estátua, elas, as únicas: é muito mais.

Era menos, também, talvez. Como um jovem, em dia de exame ou de duelo, encontra o fato sobre o qual o interrogaram, a bala que atirou, pouca coisa quando pensa no acúmulo de saber ou de coragem que ele gostaria de ter demonstrado, da mesma maneira meu espírito, que tinha elevado a virgem do pórtico fora das reproduções que eu tivera sob os olhos, inacessível às vicissitudes que poderiam ameaçá-las, intactas, se fossem destruídas, ideal, tendo um valor universal, espantava-se por ver a estátua, que ele havia esculpido mil vezes, reduzida agora à sua própria aparência de pedra, ocupando, em relação ao alcance de meu braço, um lugar onde tinha por rivais um cartaz eleitoral e a ponta de minha bengala, prisioneira da praça, inseparável do desembocar da rua principal, não podendo escapar aos olhares do café e do escritório de ônibus, recebendo em seu rosto a metade do sol poente — e logo, dentro de algumas horas, a claridade do lampião — do qual o escritório do Banco de Descontos recebia a outra metade; banhada, ao mesmo tempo que essa sucursal de um estabelecimento de crédito, pelo ranço da cozinha da doceria; submetida à tirania do particular a tal ponto que, se eu quisesse traçar minha assinatura sobre essa pedra, é ela, a virgem ilustre que até então eu tinha dotado de uma existência geral e de uma intangível beleza, a virgem de Balbec, a única (o que, por infelicidade, queria dizer a única), que, sobre seu corpo encardida pela mesma fuligem que as casas vizinhas, teria, sem poder apagá-lo, o traço de meu pedaço de giz e as letras de meu nome, e era ela, enfim, a obra de arte imortal e tão longamente desejada, que eu encontrava metamorfoseada, assim como a própria pequena igreja, numa velhinha de pedra que eu podia medir a altura e contar as rugas.[4]

Nessa passagem crucial, Proust pressupõe um lugar para as obras “de significado eterno”, como diz, que deve se encontrar não apenas fora do quotidiano, mas fora daquilo que seria o “real”, levando em conta que, em meio a tantas citações de obras existentes que percorrem À la recherche, a estátua da Virgem encontra-se na igreja de uma cidade que não existe (Balbec), mas que não deixa de ser o “real” paradigmático. A obra não existe nesse real, nesse concreto, concreto e real que podem, graças à expectativa de um certo fetichismo do original, ser agentes destrutores de alguma essência própria atribuída às virtudes aparentemente irredutíveis do concreto. “Elas, as únicas: é muito mais” cria uma expectativa provocada pelo privilégio absoluto do singular. Mas logo depois, a sequência, desencantada, demonstra como o real encontra-se aquém da obra.

A estátua real é menos verdadeira que a estátua construída pelo espírito. Inserida na banalidade do quotidiano, é a escultura autêntica, a obra de arte única, que perde sua aura. Esse quotidiano significa uma imersão no “real”.

Até certo ponto, é uma questão de museologia.[5] Proust não propõe a troca de um universo contemporâneo por um outro “contextualizado”, em que os objetos adquirissem sentido inseridos numa reconstrução astuciosa:

Mas em todos os gêneros, nosso tempo tem a mania de só querer mostrar as coisas com aquilo que as cerca na realidade e, desse modo, suprimir o essencial, o ato do espírito que as isolou dela. “Apresenta-se” um quadro em meio a móveis, bibelôs, tapeçarias da mesma época, insípido cenário que se esmera em compor a dona da casa mais ignorante na véspera, que passa agora seus dias nos arquivos e nas bibliotecas, e no meio do qual a obra-prima vista enquanto se janta não nos dá a mesma alegria embriagadora que só lhe pode ser pedida numa sala de museu, a qual simboliza bem melhor, por sua nudez e despojamento de todas as particularidades, os espaços interiores onde o artista se abstraiu para criar.[6]

A comparação das duas passagens mostra que a banalização do quotidiano é semelhante à banalização determinada pelo que se chama hoje de “contextualização”. Proust sabe que as obras de arte não são como os outros objetos, por mais belos e elegantes que sejam. Nesses pontos, suas concepções não são muito originais. O que é mais complexo e menos banal é a ideia de que a obra de arte não se reduz à sua materialidade. Essa materialidade tornou-se uma espécie de lastro que pode ser substituído, com vantagens, pelas representações materiais — a fotografia, a moldagem — e pelas representações do espírito, pela memória. Entende-se que o caráter abstrato do museu, isolando a obra em si mesma, acentue a força espiritual que dela emana. A pedra, ou qualquer outra matéria, captou as intuições criadoras do artista, o espectador proustiano termina por intuir essas intuições, que brotam na matéria, mas existem fora dela. Na verdade, a obra encontra-se nesses “espaços interiores”, em que se constrói uma verdade superior à da experiência, embora seja alimentada por ela:

O médico que me tratava — aquele que me tinha proibido qualquer viagem — desaconselhou a meus pais que permitissem minha ida ao teatro, eu voltaria doente de lá, por muito tempo, talvez, e eu teria, no final das contas, mais sofrimento que prazer. Esse temor poderia deter-me se o que eu esperasse de uma tal representação fosse somente um prazer que, em suma, um sofrimento exterior pudesse anular por compensação. Mas — da mesma forma que à viagem para Balbec, à viagem para Veneza, que eu havia desejado tanto — o que eu pedia a essa matinê era outra coisa, inteiramente diversa de um prazer: verdades pertencentes a um mundo mais real do que aquele onde eu vivia, e as quais, uma vez feita a aquisição, não me poderiam mais retiradas por incidentes insignificantes, fossem eles dolorosos a meu corpo, de minha existência ociosa.[7]

Não se trata de um “mundo das ideias”, perfeito e preexistente, nem a memória de Proust compara-se à reminiscência platônica. Trata-se de um lugar de encontros, em que a obra, e sua visão, e suas imagens unem-se para além da materialidade. Isto nos traz um primeiro ensinamento: a obra nunca existe num em si, definido pela materialidade. A obra encontra-se, portanto, aquém e além da visão: aquém, na sua autonomia de objeto; além, na sua existência que se situa paralela ao mundo da experiência.

A fotografia traz a semelhança da obra; não é a obra, mas faz parte dela. Proust nos leva para um caminho reflexivo diverso do que Walter Benjamin toma em seu conhecido texto “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” — antes, na primeira versão desse texto.[8] O conflito entre valor de culto e valor de exposição, que interessa a Benjamin, é dissolvido por Proust numa síntese que, primeiro, não se importa com a ideia de exposição enquanto “exposição às massas”, e que, em seguida, trata o objeto artístico em sua substância de cultura, que encarna uma espécie de “essência real”.

No caso de Proust não existe aura perdida pela reprodução técnica da fotografia, nem culto do original, nem cuidado com o que seria uma divulgação em ampla escala da imagem. Num certo sentido, a reprodução torna-se única, pois foi ela (neste ela incorporando-se um “aquela” específico), “aquela que eu vi e vejo, que se encontra em minha mesa, ou em minha parede”. Não existe condenação alguma das reproduções mecânicas, mas a constituição de uma verdade surgida da obra, capaz de fecundar as experiências (incluindo aqui a experiência fotográfica), que terminam por conduzir à verdade da obra.

A avó do narrador de À la recherche gostava de lhe oferecer, quando ele era criança, reproduções de obras de arte. Eis como isso é contado:

Ela gostaria que eu tivesse, no meu quarto, fotografias dos monumentos ou paisagens mais belos. Mas, no momento da compra, embora a coisa representada tivesse um valor estético, ela achava que a vulgaridade, a utilidade retomavam, rapidamente demais, seus lugares no modo mecânico da representação, a fotografia. Tentava uma astúcia e, se não eliminar inteiramente a banalidade comercial, pelo menos reduzi-la, de substituí-la, em sua maior parte, por arte, ainda, introduzindo nela como que várias “espessuras” de arte: ao invés de fotografias da Catedral de Chartres, dos grandes repuxos de Saint-Cloud, do Vesúvio, ela se informava junto a Swann se algum grande pintor não os tinha representado, e preferia me dar fotografias da Catedral de Chartres, por Corot, dos grandes repuxos de Saint-Cloud por Hubert Robert, do Vesúvio por Turner, o que subia um grau a mais de arte. Mas, se o fotógrafo havia sido afastado da representação da obra-prima ou da natureza, e substituído por um grande artista, ele retomava seus direitos ao reproduzir a própria interpretação. Tendo chegado à última etapa da vulgaridade, minha avó tentava fazê-la recuar ainda. Ela perguntava a Swann se a obra não havia sido gravada, preferindo, quando era possível, gravuras antigas […] [9]

Brassaï escreveu um livro de grande importância: Marcel Proust sous l’emprise de la photographie. Sendo, porém, ele próprio fotógrafo, busca, na obra de Proust o que significa fotografia enquanto fotografia, e não como reprodução. Este último papel, por sinal, não despertou muito o interesse da crítica.[10] Aquilo que para o colecionador, para o amador esclarecido, é o núcleo — ou seja, o que poderíamos chamar de o fetichismo do original — não o é de modo algum para Proust, para quem o núcleo acha-se fora do material, formado por jogos de fusão.

Nesse campo de fusões, uma prática frequente que se encontra na obra de Proust é a relação de semelhança entre os seres existentes e as obras de arte. De todas, a mais conhecida é a da semelhança que Swann estabelece entre Odette de Crécy e uma figura de Botticelli, Séfora, a filha de Jetro, no afresco da Capela Sistina. Proust, ele próprio, conhecia essa imagem não por tê-la visto de fato, pois nunca estivera em Roma, mas por uma reprodução de uma cópia que dela fizera Ruskin.

Swann, vendo Odette, em peignoir, debruçada sobre uma gravura, percebe o quanto ela é parecida com a figura de Botticelli. O narrador explica-nos que Swann gostava de descobrir semelhanças entre pessoas personagens pintados pelos grandes artistas. O narrador supõe três hipóteses para essa prática:

1a Swann teria remorsos por limitar sua vida a mundanidades: sentia-se perdoado pelos grandes artistas por eles terem incorporado em suas obras esses rostos que traziam com eles um sabor moderno.

2a a Swann, tomado pela frivolidade das altas rodas, poderia gostar de encontrar numa obra antiga alusões antecipadas a indivíduos contemporâneos, como se fossem antecedentes aristocráticos.

3a Talvez Swann tivesse guardado uma natureza de artista, e essas características individuais, que adquiriam uma significação mais geral, porque ele as percebia “desenraizadas, libertadas na semelhança de um retrato mais antigo com um original que não o representava”. Esta última, por sinal, garante o encontro na terceira margem do rio,[11] em que o individual passa a pertencer a um lugar: ele continua sendo um individual, mas um individual reconstruído, como a estátua de Balbec, que o espírito do narrador havia “esculpido mil vezes”.

Odette e a figura de Botticelli se superpõem, e

[…] essa semelhança conferia a ela também uma beleza, tornava-a mais preciosa. Swann se acusou de ter desconhecido o valor de um ser que teria parecido adorável ao grande Sandro, e felicitou-se pelo fato de que o prazer que ele tinha ao ver Odette encontrasse uma justificação na sua própria cultura estética. […] A palavra de “obra florentina” trouxe um grande serviço a Swann. Permitiu-lhe, como um título, fazer adentrar a imagem de Odette num mundo de sonhos aonde, até então, ela não tinha acesso, e onde ela se impregnou de nobreza.[12]

Swann põe, sobre sua mesa de trabalho, “como uma fotografia de Odette, uma reprodução da filha de Jetro”.

Tal semelhança enobrecia Odette. No romance, ela é uma espécie de prostituta de luxo, que, se descobre à leitura da obra, esteve na cama de um grande número de personagens de À la recherche, e entre os mais imprevistos. Essa semelhança previne também, como diz o narrador, os desgastes possíveis dos afetos. Odette incorporara-se à eternidade de uma obra de arte.

O amálgama entre a arte e a vida demonstra que o princípio de semelhança opera como fulcro da percepção, mas, ainda, a erige como processo primeiro da compreensão. No universo proustiano não há essências platônicas, estáveis, inteiramente fora do mundo, mas um contaminar-se contínuo dentro do qual assemelhar é conhecer e reconhecer. São processos que escapam da solidez “real” do mundo para alcançar uma intensidade etérea:

E meu pensamento não era também como um outro ninho no fundo do qual eu sentia permanecer enfiado, mesmo para olhar o que se passava lá fora? Quando eu via um objeto exterior, a consciência de que eu o via permanecia entre mim e ele, bordava-o de uma fina orla espiritual que me impedia de nunca tocar diretamente sua matéria; ela, de algum modo, se volatilizava antes que eu tomasse contato com ela, como um corpo incandescente que se aproxima de um objeto molhado não toca sua umidade porque se faz preceder sempre de uma zona de evaporação.[13]

Na terceira margem do rio, o tempo não tem começo nem fim, já que ele se situa numa espécie de reserva estática, capaz de ressurgir quando menos se espera. A filha de Jetro surge em Odette como o gosto da madeleine experimentada agora se assemelha àquela da infância: é isto que faz do passado o presente, graças à memória. Uma obra de arte torna-se, em seu modo mais eterno e verdadeiro, algo que é captado pela observação, em forma mais involuntária que voluntária, e que termina armazenado, à nossa revelia, dentro da memória. O rio da terceira margem atravessa esses campos que se ocultam e se revelam.

Semelhanças e analogias criam uma substância artística maior do que seus limites materiais. As obras são únicas, sem dúvida, mas como pontos num tecido amplo de outras obras, ou, como no caso de Proust, da “realidade”, por meio de uma percepção que a transforma em arte. Essas obras não são feitas apenas de um original. Delas fazem parte, como elemento constitutivo profundo, e não como sucedâneos desprovidos de alma, a reprodução, a marca deixada na memória, todas as formas de representação, ou, antes, de re-apresentação. A obra é tudo isso, é feita de tudo isso.

Notas

[1] Walter Benjamin, “A imagem de Proust”, em Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura, trad. Sergio Paulo Rouanet, vol. 1 (São Paulo: Brasiliense, 1985), p. 39.

[2] Ibid., p. 36.

[3] Proust, ele próprio, propõe uma analogia da literatura com o sonho, para, aos poucos, substituir a ideia de sonho por uma ideia de realidade acelerada; “seu livro [do romancista hipotético] vai nos perturbar à maneira de um sonho, mas de um sonho mais claro do que aqueles que temos dormindo e cuja lembrança durará mais, então, eis que ele desencadeia em nós durante uma hora todas as felicidades e todas as infelicidades possíveis que nós levaríamos, na vida, anos para conhecer alguns, e dos quais os mais intensos não nos seriam nunca revelados porque a lentidão com a qual eles se produzem em nós descarta a percepção […]”. Marcel Proust, Du côté de chez Swann (Paris: Gallimard/Livre de Poche, 1970), p. 103.

[4] Marcel Proust, À l’ombre des jeunes filles en fleur (Paris: Gallimard/Livre de Poche, 1971), pp. 245-246.

[5] Proust achava que o museu do século XIX — onde os quadros eram reunidos em meio a uma decoração de falso mármore, de pereira disfarçada em ébano e de tecido escarlate ou violeta — favorecia melhor o acesso à ideia do que um salão burguês, que reconstituía um cenário histórico de acordo com cada quadro. Sua desconfiança em relação ao novo Louvre se devia ao fato de que não se contentaram com expor cada tela da galeria italiana num painel isolado de seus vizinhos por pilastras de estuque cor-de-rosa, mas ainda acharam de bom tom acrescentar bustos de mármore e estátuas de bronze diante dessas pilastras. O responsável pela conservação das obras pretendera mesmo colocar, “à direita e à esquerda da Mona Lisa, os escravos de Michelangelo” e “no meio da Galeria, diante de um cortinado, a Vênus de Milo”(Christiane Aulanier, Histoire du palais e du musée du Louvre, vol. 1, La Grande Galerie au bord de l’eau (Paris: Edition des Musées Nationaux, 1948), p. 37, figuras 59 e 60). Mas as tentativas foram decepcionantes, e a obra-prima de Da Vinci ocupou definitivamente o lugar de honra, acima de um baú renascentista, ladeada por dois bustos, numa encenação burguesa que lembrava a Proust o Hotel Porgès. Esse cenário de época lhe parecia de mau gosto e ainda mais incômodo que o abarrotamento do antigo Salão quadrado para se poder apreciar uma obra em sua singularidade, identificar seu “espaço interior”, compreender a visão do artista. Proust teria evidentemente preferido a parede “nua” e “despojada”, que só irá aparecer após a Segunda Guerra Mundial [“Proust jugeait que le musée du XIXe siècle, où les tableaux s’agglutinaient dans une ornamentation de faux marbre, de poirier déguisé en ébène et de tissu écarlate ou violet, favorisait mieux l’accès à l’idée qu’un salon bourgeois reconstituant un décor historique approprié à chaque tableau. Se méfiance à l’égard du nouveau Louvre tenait au fait qu’on ne s’était contenté d’exposer chaque tableau de la tribune italienne sur un panneau isolé de ses voisins par des pilastres de stuc rose, mais qu’on avait encore trouvé bon d’ajouter des bustes de marbre et des statues de bronze devant ces pilastres. Le conservateur des peintures avait même rêvé de placer, ‘à droite et à gauche de La Joconde les esclaves de Michel-Ange’ et ‘au milieu de la Tribune, devant une draperie, la Venus de Milo'”(Christiane Aulanier, Histoire du pa/ais et du Musée du Louvre, t. 1, La Grande Galerie au bord de l’eau, Paris: Ed. des Musées Nationaux, 1948, p. 37, figs. 59 e 60). Mais les essais furent décevants, et le chef-d’ceuvre de Vinci trôna en définitive audessus d’un coffre Renaissance, entouré de deux bustes, dans une mise en scene bourgeoise qui rappelait à Proust l’hôtel Porgès. Ce décor d’époque lui semblait de mauvais goût et plus gênant encore que l’encombrement de l’ancien Salon carré pour percevoir une ceuvre dans sa singularité, identifier son ‘espace intérieur’, comprendre la vision de l’artiste. Proust aurait évidemment préféré le mur ‘nu’ et ‘dépouillé’ qui n’apparaîtra qu’au lendemain de la Seconde Guerre Mondiale” (Antoine Compagnon, “Proust au musée”, em Jean-Yves Tadié, Marcel Proust: l’écriture et les arts, catálogo da exposição na Bibliothèque Nationale de France (Paris: Gallimard/BNF/RIVIN, 1999), p. 75), trad. Assef Kfouri.)

[6] Marcel Proust, À l’ombre des jeunes filles en fleur, cit., p. 230.

[7] Marcel Proust, À l’ombre des jeunes filles en fleur, cit., p. 17.

[8] Walter Benjamin, “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica — primeira versão”, em Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura, cit. Essa primeira versão data de 1935/1936. Os editores da seleção explicam: “O ensaio traduzido em português por José Lino Grünewald e publicado em A ideia de cinema (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969) e na Coleção Os Pensadores, da Abril Cultural, é a segunda versão alemã, que Benjamin começou a escrever cm 1936 e só foi publicada em 1955″. Na segunda versão, a ideia que me interessa aqui é exposta de maneira menos densa e mais desenvolvida.

[9] Marcel Proust, Do côté de chez Swann, cit., p. 51.

[10] Salvo no estudo “Impressions et réimpressions: Proust et l’image multiple”, escrito por Valerie Sueur, que sublinha o papel essencial das reproduções em À la recherche, catálogo da exposição na Bibliothèque Nationale de France (Paris: Gallimard/BNF/RIVIN, 1999).

[11] Se este terceiro ponto explicita aquilo que chamei “a terceira margem do rio”, os dois primeiros pressupõem-na. Talvez não seja inútil lembrar que a imagem — terceira margem do rio — é o título dado a um de seus contos por Guimarães Rosa.

[12] Marcel Proust, Du côté de chez Swann, cit., p. 268.

[13] Ibid., p. 101.

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