2006

O poder das palavras

por Michel Déguy

Resumo

O intelectual nada sabe fazer, se comparado às atividades técnicas dos outros, mas tem o poder das palavras (e o poder da persuasão, desde o socrático “saber que não se sabe” que impede a arrogância e a loucura). Esse poder sustentou no século XX o engajamento do intelectual na arena política. Mas hoje a nova cena é a mídia. Apagou-se a divisão (aristotélica) entre o privado e o público. A informação toma o lugar do saber. A imagem e a propaganda dizem: “Seja você mesmo fazendo como todo mundo”. Pede-se à gota d’água que se orgulhe de fazer a diferença na magia democrática. Nesse estado atual de complexidade, a tarefa do intelectual talvez seja obter uma espécie de transubstanciação entre os dois modos da substância humana, o ético e o político, a imaginação e o poder, retesando novamente o arco do pensamento, conciliando a arte do impossível com a do possível. Isso significa acreditar na possibilidade de transformar reformando, já que não se pode mudar tudo por revolução, já que não se pode organizar a multidão sem hierarquia. Importa mostrar que subsiste uma relação com o Outro, e que o objetivo tanto da arte quanto da política é buscar a pessoa “em seu melhor aspecto” e a multidão em sua dimensão “criadora” (e não apenas de produtos mercantis). Toda tentativa de reduzir o dois ao Um (um só mundo, uma só imaginação) é um engodo, é enganar-se sobre o duplo nos duplos (o indivíduo e a multidão). Trata-se de discernir os dois sem se equivocar com seus pseudo-aspectos e de compatibilizá-los nos fatos.


O INTELECTUAL

Quem é ele? Qual é esse modo de ser? Se eu não o mantiver na existência, ele não existe mais, e falamos apenas como historiadore. Quem, ou o que é UM intelectual? Definição (ou indefinido) mínima desse indivíduo: “prova ontológica”, essência que preside à existência — se ela ainda tem lugar.

Mais brevemente: Será que acredito nele? E de que maneira acredito?

Tomemos um cirurgião, um piloto de avião, um técnico de informática — nem é preciso que sejam “grandes”! Que saber! E que savoir-faire! Sem eles — e cruzamos ou “utilizamos” vinte deles durante o dia, condutor de ônibus, de avião ou de orquestra, técnicos do meu jornal, dentistas etc. — nada posso, sou nada.  O que é, pois, o intelectual, que nada sabe fazer, eu, por exemplo? Ou, se preferirem: Sócrates, já que é o protótipo, questionador de toda tékhnê. Ele tem, assim, uma responsabilidade proporcional à sua humildade, que é a consciência de sua impotência total: nada “funcionaria” se lhe confiassem as máquinas, os aparelhos. Será ele inteiramente supérfluo? Se nada tem a dizer aos técnicos que fazem as coisas funcionarem, se nada tem a lhes dar, ele não existe. Mas se pode existir (e ele pode), é que há alguma coisa nessas tecnias que é da ordem da intelectualidade, da inteligência humana em geral, que o intelectual não inventa para instituir-se o parasita delas, mas que está aí, de ordem epistemológica ou tecnológica, que pede para ser extraído, abstraído, superexposto por aquele que sabe que nada sabe (fazer), e articulado com seus homologa, eles próprios tomados de outras tecnias, reunidos, tratados etc. Em uma palavra, é a instância do julgamento, cuja operação consiste em discernir o mesmo do não-o-mesmo (“fazer a triagem do senso comum”), em distinguir para separar ou conjugar, em comparar ou aproximar-afastar (instância que chamarei mais adiante “poética”).Meu propósito não é — aqui — “tratar” do julgamento (Urthalskraft). Como acredito — com Hannah Arendt a partir de Kant — que essa é a ponta mesma do espírito, ou seja, o que há de mais importante, vou propor duas observações, dois axiomas (é o caso de dizer):

1) É evidente que nós (os humanos) não sabemos o que fazemos.

Mas convém saber pelo menos isso; logo, saber que não se sabe é o que faz toda a diferença. Saber que não se sabe o que se faz diminui o dano geral, a arrogância, a loucura; impede ou freia não poucos riscos.

O saber-do-não-saber é a sabedoria comum ao amor da sabedoria (Sócrates, a filosofia) e à sabedoria do amor ou Evangelho. Eles se apoiam mutuamente no “ponto de partida” desta civilização — que não era uma “cultura”.

2) Quem ou que outra coisa além da razão julga a razão? A “razão” se individe em dois, se ouso dizer (para evitar dizer “se divide”, como se houvesse duas partes, dois lados, uma cisão…). O julgamento último, sua alçada, é a instância do razoável, que se apoia no racional. A razão enquanto juiz de última instância (e, se quisermos outro termo para subsumir estes dois, o razoável e o racional, empregaremos espírito, como Arendt), o espírito enquanto juiz é a razão razoável que julga a razão racional (o racional). Enquanto vontade (vontade de vontade), o espírito de razão quer o racional: ir até o fim, ou: a busca como fatum! (Primo Lévi).

O “não é razoável” é obra do julgamento humano. Dito de outro modo (pela outra ponta): é a revogação de toda instância divina do “irracional” (irrazão, desrazão, instância transcendente do suprarrazoável, e não transcendental, da razão) que permite à razão reapropriar-se (Feuer Fach), compreender a distinção do razoável e do racional.

O juiz com uma “visão” é o poeta, ou “escritor”, sem o qual o intelectual não pode passar.

O PESO DAS PALAVRAS

Nenhuma “fórmula mágica” opera à distância naquilo que chamamos a realidade. As palavras não têm poder direto sobre as coisas. A fé não move imediatamente montanhas; um poema não é um abracadabra que faz cair as muralhas de pedra.

As palavras (isto é, as frases, o discurso, a linguagem) têm poder sobre os homens, podem mudar as convicções, e assim os objetivos e as maneiras de agir. Uma “conversão” pode transformar a vontade e provocar ações que terão efeito. A retórica foi por muito tempo chamada a arte de persuadir. Minhas crenças modificadas buscam meios de agir eficazmente para “realizar” meus objetivos: o método é a grande preocupação da inteligência.

Nessa perspectiva, o poder é sempre poder das palavras. Ter o poder (entendido agora como questão e esfera do político) consiste, em última análise, em ser obedecido. O centurião do Evangelho o sabe e lembra: quando digo a meu servidor “Vai!”, ele vai; quando digo “Vem!”, ele vem. Étienne de la Boétie espantou-se com isso para sempre, em seu famoso tratado da servidão voluntária: como se pode ser obedecido a tal ponto? A ordem (a paz civil) repousa sobre a ordem (o comando).

Eis por que a eloqüência, de Demóstenes a Lenin, de Cícero a Zola ou Jaurès, sempre foi admirada, analisada, cultivada, como um dos ingredientes fundamentais da tomada do poder e da manutenção do poder.

Duas figuras, dois tipos, ao mesmo tempo arcaicos e modernos — como uma constante através das variações da história —, apresentam suas duas modalidades principais: o conselheiro do príncipe, sábio ou louco, e o “intelectual”, advogado de uma causa capaz de empolgar uma multidão. Aquele, “esclarecendo o déspota”, a sós com ele no segredo do gabinete; este, dirigindo-se não apenas ao chefe, mas a uma coletividade, uma multidão. Talvez a diferença entre Platão e Demóstenes marque, na história, a fisionomia desse par prototípico. Quanto ao chefe supremo, sua pretensão, seu delírio é assumir sozinho os três papéis de príncipe, filósofo, orador, titular do poder, do saber, da persuasão (Hitler, Mao, Castro…).

O “poder das palavras”, em sua força tradicional, sustentava a coragem do que se chamava o engajamento (século XX). O engajamento do intelectual pressupunha a existência e a energia (a capacidade) da persuasão loquaz. À era do “engajamento” (Sartre) sucedeu a do testemunho, a nossa. Pede-se às palavras a “força” de atestar o que houve, de mostrá-lo: isto é, as catástrofes daqui e dali. Mas o testemunho, verbal ou documental, livro ou filme, tem ainda a força de persuadir a renunciar ao horrível? É duvidoso. Há cada vez mais testemunhos, cada vez mais infelicidades e mortes. De certa maneira, as palavras — e mesmo as imagens – se esgotam em testemunhar. Tomando emprestado a Georges Braque o ritmo de uma de suas fórmulas (“as provas fatigam a verdade”), eu diria: as imagens fatigam a verdade.

RETORNO A SARTRE

É comum falarem dos “erros” de Sartre. “Sartre se enganou” é um lugar-comum. Cassandra não se enganava e não era ouvida; Sartre se enganava e era ouvido por todos. Em vez de falar de enganos ou desenganos — o que, de resto, suporia um entendimento geral sobre o que devia ser visto e não se podia deixar de ver —, acho que se trata do que ele não podia ver (“desde sua geração”). Gostaria de propor um exemplo — talvez digressivo ou excursivo em relação ao que supostamente diz respeito a minha exposição, mas que me parece bastante eloquente. Ei-lo.

Quando Sartre foi ao Brasil — no começo dos anos 1960 —, ele recebeu, como em toda parte, uma acolhida fantástica. De seus pronunciamentos, temos um vestígio no tomo 8 de Situations, volume que compreende também as conferências do Japão sobre os intelectuais e a relação do intelectual com o escritor. No Brasil, Sartre, adversário do regime gaullista, contestou Malraux. Ele disse esta frase, mais ou menos literal aqui: “A cultura não tem necessidade de ministério”. Dificilmente se podia prever tão mal o “fenômeno futuro”. Mas, com certeza, não se podia ver — antecipar — a passagem de Malraux a Lang.*

Sartre não viu — mas como poderia ter visto? — que entrávamos na era do cultural e que a cultura, agora cultural (o cultural), e a política, isto é, o ministério, seriam uma coisa só a serviço de uma economia dita geral do consumo, absorvendo e arrastando a arte e a “cultura”. Foi Malraux, neto de Hugo, o inventor ao mesmo tempo do cultural e do pré-cultural (pré-“langiano”), esperando que a arte, ao entrar no museu imaginário (noção de imagem agora tecnologicamente “ultrapassada”), mostrasse a todos a relação com a dimensão ou grandeza, com o sublime etc.; mas o páthos do sublime e do tremor dos deuses desencoraja “o povo”: que o não-sentido siga o sentido é algo que não agrada ao “público” (a “gente”)

É o não-poder-ver de Sartre, sua não-vidência e não sua mal-vidência, que nos permite avaliar retroativamente essa grande mudança, essa mutação de que somos contemporâneos, que passa através de nós, passivos e ativos, vampirizando-nos.

QUANDO SOMOS NÓS?

Um século depois e alguns cataclismos mais tarde, onde estamos? Resposta: depois da revolução. E, depois da revolução, que fazer?

Se é o caso de lembrar que o sentido da utopia (a utopia do sentido), junto com a ambição e a habilidade estratégica e tática, são ingredientes e disposições (entre outros) indispensáveis ao poder — particularmente quando se trata de tomá-lo e de conservá-lo —, muitos lugares-comuns nos esperam e poderíamos nos estender em reflexões muito consensuais. Parece mais interessante, mais de acordo com a urgência de nossos “dark times” (Hannah Arendt), buscar por onde (em grego: poros [passagem]) imaginar alguma via auxiliar (transversais? saídas?) na aporia geral. Caracterizar um pouco mais a “obscuridade” de nossos “tempos sombrios” na perspectiva que nos ocupa.

Não existe mais a arena. O lugar do político (ágora ou recinto, reunião ou assembleia para a deliberação, ocasião de discursos, comícios, saída de fábrica, greve, manifestação, circulação de jornais inteligentes…) metamorfoseou-se. Chamemos mídia a nova cena, a nova “causa materialis” do político: lugar utópico, ubíquo, “imaterial”, a tela de vídeo é que é a cena. Ora, a tela de vídeo é doméstica, ou privada! A divisão fundamental (Aristóteles) entre o privado (o idiotikós grego) e o público (o espaço do comum) apagou-se. O povo foi substituído pela “gente” (a “gente verdadeira”, como diz às vezes estupidamente a televisão francesa). O sistema midiático, ou star system — aquele para o qual e pelo qual people significa VIP, e que portanto separa a humanidade em importantes e anônimos —, aniquilou os intelectuais ao fazer existir (sic) apenas um punhado de “intelectuais midiáticos”. Por um lado, a instrução (formidavelmente desenvolvida nas sociedades da abundância) produz aos milhões inteligências “informadas” — a informação tendo tomado o lugar do saber —, enquanto, por outro lado, a destruição das condições de existência política dos intelectuais se consuma: o sistema só pode exibir, fazer ver e ouvir, algumas vedetes, logo convertidas em histriões pelo espetáculo (Debord), retirando o crédito da intelectualidade aos olhos dos telespectadores, agora os novos cidadãos. O silêncio se estende no alarido.

O verbo (sim, as linguagens das línguas maternas, ou logos: o elemento da eloquência no saber-se-falar uns aos outros) cedeu o lugar comunicação. Para resumir brutalmente a situação, invertamos uma linha famosa de Hölderlin, dizendo: “Não somos mais um diálogo”. A imagem, no sentido atual, icônica, fílmica, televisiva, tomou o lugar de tudo.

Dois fatos enormes — “fenômenos sociais totais”, eu diria com as palavras de Marcel Mauss — mudaram em profundidade o regime das coisas sociopolíticas que a relação dos intelectuais com a democracia assegurava, mesmo se a remanência homonímica desses grandes termos favorece a ilusão da permanência desse “regime”. A propaganda (datemo-la da superpotência moderna do Terceiro Reich e do império soviético), ao transformar os meios em fins, o meio em mensagem (MacLuhan), ou vice-versa, tornou possível (isto é, real) a síntese do poder absoluto e do delírio: Hitler (o mágico Adolfo, eu diria, para evocar Thomas Mann) “persuadiu” os alemães e os transformou em servidores de “(sua) luta”. Qualquer proposição (“Os judeus são subhomens” ou, como diz Benigni em seu filme, “Os judeus e os dromedários não são admitidos nesta loja”) pode tomar o poder, fazer-se verdade condutora para uma sociedade humana. Ao mesmo tempo (é o mesmo fenômeno sob outro ângulo), a publicidade transformou o espaço público, isto é, transformou o espaço público em éter publicitário. I shop, therefore I am. O regime da verdade ocidental extenuou-se em proveito de um regime de enunciados nem verdadeiros-nem-falsos, ou seja, de uma falsidade abissal: própria da charlatanice, diria o filósofo Michel Serres. Do tipo: “Seja você mesmo fazendo como todo mundo. Seja diferente comprando o mesmo produto etc.”. Esses maldosos “duplos vínculos (double-bind)” tornam a “multidão” (termo de Antonio Negri) insensível aos paradoxos fundamentais da lucidez humana. É possível até que esse caráter mentiroso fabrique a multidão. Ora, o que é feito da mediação da intelectualidade na república? (Ou da crítica, da vulgarização ensaística ou “filosófica” em geral, do grande jornalismo?)

A ESTUPIDEZ

O intelectual tinha de se ocupar (é seu nome) com a inteligência. A questão, portanto, era a estupidez: o que é a estupidez? Que fazer dela? A estupidez são os outros? Certamente, mas isso não basta. A estupidez é a opinião, a doxa, isto é, a surdez ao paradoxo, ou sua recusa. É o que atormentava Pascal, Flaubert, Valéry, Roland Barthes e alguns outros. A estupidez (esse regime de verdades em que a doxa não é mais o moï-dokeï dos gregos, não é mais o julgamento do cidadão no dissentimento geral – Arendt –, mas a opinião estatística produzida pela sondagem), a estupidez, portanto, incapaz do paradoxo, insensível à resistência da aporia, inimiga do curso contraditor da verdade intrinsecamente paradoxal, oximórica, domina. O slogan publicitário, verdade de massa unilateral, imposto como gosto majoritário da existência em massa consumidora, ou “imagem de marca” na concorrência dos mercados do mercado, cultural, tende a extinguir as “luzes” da inteligência democrática. A correção política /opção: o politicamente correto/, ou midiatização, pode acabar com a democracia? As convicções, agora mortíferas, e as cobiças reguladoras da economia geral (produção/consumo) levam “o modo”… para onde?

TERROR E SEGURANÇA. UMA  OBSERVAÇÃO

O terror e a segurança são como o verso e o reverso das páginas de nossa história; como o crime e a ciência se tornaram o par principal dos filmes americanos. O terrorismo em todas as suas formas, do mais terrível ao mais banal, é como se, em escala mundial, a delinquência, o nível de delinquência geral, subisse inexoravelmente. A segurança, portanto: todas as formas de delinquência (comunitárias, mafiosas, político-insurrecionais, terroristas, estatais) têm o seguinte efeito global: o nível de coerção (ou “resposta” dos defensores da ordem-lei, em toda parte, polícia, exército, com as “armas de dissuasão” em massa, da vídeo-vigilância ao helicóptero de combate) ultrapassará sempre (tendência incontrolável) o nível de agressão-transgressão. Fazem explodir bombas?… Haverá tanques em toda parte. Atingido o nível “Vigiar pirata vermelho”?… Somos todos piratas.

OS DOIS ESTADOS DA HUMANIDADE (GENERALIDADE)

O homem existe de duas maneiras (matéria em dois “estados”?; substância sob dois “modos”?). Por um lado, no singular, um-por-um, como indivíduo (ousia protê kaï deutera), aqui na terminologia categorial de Aristóteles, apta a distinguir em cada homem este homem (“Sócrates”) sua humanidade (a “forma inteira da humana condição”, diria Montaigne). E, por outro lado, no plural, em Grande-Número, em multidão, no léxico de Negri: “gregariamente”, como se dizia pouco tempo atrás. Ora, esse gregarismo do oi polloï não é a soma, um-mais-um-mais-um de um pequeno “gregarismo” que seria o “caráter” comum a cada-um, adicionado de modo que houvesse mais em um grupo de mil do que em um grupo de dez. Esse gregarismo é o múltiplo em ato, ou “massa”.

Parece-me que não distinguir primeiro eideticamente esses dois estados da humanidade, para depois tomá-los juntos, isto é, manobrar toda operação de inteligência articulando os dois, conjugando sua contrariedade, é correr o risco de não compreender as coisas. Operação: distinção analítica dos inteligíveis “que são os ingredientes” (Whitehead) de uma situação, a fim de pensar (e organizar) uma (re)composição por contrariedade paradoxal, conjugação dos contrários maiores ou “extremos”, ou “polos”, e não como mistura, mixagem, “mestiçagem sincrética”.

Claro que a complexidade — talvez intratável, ou “infinita”, na falta de uma análise que decompusesse os dois “termos” polarmente associados, o indivíduo e a multidão, em todos os aspectos e até os últimos requisitos ou ingredientes (ou “partes integrantes”) — nos espera. Pois cada modo ou estado se multiplica: o eu em nós que são outros tantos coletivos (ou múltiplos) distinguíveis, passando da família, do clã, da “pessoa moral”, às associações e reagrupamentos individualizáveis, à sociedade etc., enquanto a multidão (e será que ela não existe apenas no plural, perguntaríamos a Negri, apenas em justaposição e confronto de multidões, etnias, nações… ou mesmo em guerra entre si desde sempre, se não para sempre?), a multidão, eu dizia, não pode ser tomada simplesmente pelo positivo (a totalidade boa idolatrada por Negri, frente ao império, totalidade má), mas sim tomada ela própria (em conceito) ora pelo demiúrgico (pois, de fato, tudo nasce do trabalho da multidão humana),ora pelo negativo (o mau do negativo, não a negatividade hegeliana), já que a multidão é tanto linchadora (René Girard) em sua relação com o indivíduo, quanto hominicida (genocida) de uma multidão a outra. A “banalidade do mal” é, se posso dizer, a recaída, à escala do indivíduo, no gregarismo assim considerado.

O enigma — há um, e tive vontade de escrever: o mistério — jaz assim na passagem entre os dois estados, os dois modos, na relação de um a outro: enigma que, se eu falar em termos de mistério e de substâncias[1] (substância I: individual; substância II: multitudinária), chamaremos o da transubstanciação: ao mesmo tempo reverenciada (mitificada ou teologizada) na figura e no acontecimento do voto — pois a regra democrática é: uma pessoa, um voto —, e vivida e difamada como uma espécie de prestidigitação, uma ilusão que a abstenção exprime: meu voto não conta.

A gota d’água torna-se rio, mas o rio a dispensa. Pede-se a ela, à saída da cabine de votação, em seu estado de gota d’água esvaziada de sua pequena substância eletiva, quase nula, porém comparável ao diferencial kepleriano, ou ao catalisador químico, ou à solução homeopática, pede-se a ela que se orgulhe de ter feito a diferença, de ser rio: consciência cívica. É a magia democrática. A representação é um dos nomes da passagem, da “transubstanciação”. A abstenção significa o descrédito ou a negligência em relação ao dispositivo, ou “eleição”. Badiou é a favor da abstenção. E todos sabem que todo poder é oligárquico. Mas o que é oligoï, ou “elite”, eis a questão.

A tarefa do intelectual é, por um lado, teorizar (pensar) esses dois modos da substância humana, distintos e interdependentes, como a ética e a política. Perguntar quais são os transformadores, os conectores entre as duas substâncias, os fatores da transubstanciação. Em Tarde (Gabriel Tarde), a imitação. Em Girard, a violência… Por outro lado, praticar (é a ação engajada) as passagens de uma a outra.

A identidade é precisamente a identidade de uma “multidão” (Negri), da coletividade a cada vez em questão. Quem somos nós? tornou-se a questão através de cuja resposta o quem-sou-eu se busca, se inquieta consigo, disposto a se assumir. A determinação da especificidade (a singularidade) do múltiplo de pertença, a etnia, por exemplo, em termos antropológicos, me identifica. “Sou francês.” O nós é a totalidade finita relativa (uma infinidade em si preocupada com sua indefinibilidade) que só se fecha (se nivela, se apazigua) no e pelo reconhecimento dos outros: esquema hegeliano, mas em escala do múltiplo, do nós. “Todos eles”, os “outros”, são intimados a reconhecer quem somos, para que estejamos seguros de ser alguma coisa e assim sejamos. É a reivindicação de igualdade em termos de dignidade que repercute por toda a Terra. E como todo “finito” — no caso, toda raça, todo povo, toda sociedade humana, toda “cultura” — eleva essa queixa tanto contra o esquecimento, que o sepulta (dever de memória), quanto diante do “tribunal da história”, o que vemos é o passado inteiro erguer-se ao chamado, milhões de vítimas se apresentarem: houve “erro judiciário”, desconhecimento e injúria nos julgamentos pronunciados pelos vencedores “históricos”. É sintomático, hoje, ver na mesma semana “as mais altas autoridades do Estado” reconhecerem o “erro” de Outreau,** desculparem-se, começarem a reparação e “omitirem” celebrar Napoleão, o chefe de Estado começar a “reconhecer” o crime da escravidão, batendo no peito, em nome da França, pela vergonha (horror e erro) da colonização… Toda a história passará por isso. O dano, causado pelo desconhecimento e pela presunção, é infinito; o pedido de perdão e o reconhecimento da dívida não podem reparar. Somente a pena de morte estaria à altura, no espírito das vítimas. Ela é impossível, em princípio e de fato. Quem poderia perdoar? Desvalidas, vítimas para sempre, elas estão mortas.

DA UTOPIA

A imaginação pode estar no poder? Ou: qual é a relação entre democracia e poesia?

Em 1968, entre as causas defendidas pelos estudantes em revolta, podia-se ouvir esta injunção: “a imaginação no poder!”. Uma palavra de ordem — ou de desordem — que buscava assim aproximar — por conciliação ou síntese? — duas esferas ou regimes que o “bom senso” mantém separados, heterogêneos: de um lado, o poder com seus atributos pesados (que o sintagma Law & Order resumiria) e seus depositários realistas, dispostos à injustiça para evitar uma desordem, segundo a fórmula goethiana, ou até mesmo maquiavélicos, cínicos, sonolentos. De outro lado, a imaginativa, potência dantesca; o “esquematismo transcendental”, no núcleo do conhecimento segundo Kant; o livre gênio artístico capaz de inventar, isto é, de inovar; a “fantasia” que engendra quimeras inviáveis — ou abre saídas “revolucionárias”.

Um sinal, entre outros, da incompatibilidade entre essas duas figuras (do homem político e do poeta) podemos encontrar na referência frequente ao “surrealismo”: para os artistas e os historiadores, uma grande sublevação das artes, o esplendor dos artefatos, o último movimento (escola) europeu e cosmopolita; para os demais (quase todo mundo, enquanto “público”), o emprego de surrealista a todo instante (isto é, na mídia) equivale ao de contrassenso ou estupidez. Um dos grandes debates do século XX terá sido este: se é o caso de mudar a vida mudando o mundo (e reciprocamente), cabe a uma revolução política ou a uma  revolução poética empreendê-lo?

Um século depois e alguns cataclismos mais tarde, onde estamos? Resposta: depois da revolução. E, depois da revolução, que fazer? Pode a democracia ser esclarecida pelos escritores e pelos artistas?

Parece mais interessante, mais de acordo com a urgência destes tempos sombrios cada vez mais “sombrios”, buscar compreender por onde os avatares da imaginação e o devir efetivo de nossas democracias fabricam uma aporia aparentemente insuperável — e “imaginar” uma via auxiliar.

  1. A imaginação é “imagética”. Ora, a imagem tornou-se hoje (é aceita como) quase exclusivamente objeto icônico-fotogênico (televisivo etc.). Nosso tempo é o das imagens; é o tempo cultural do consumo das “imagens de marca”. A essência do cultural deve ser buscada como fenômeno social total e mundial, ou de “mercado”.
  2. A democracia (considerada o regime moderno, presente e vindouro) é de massa, de opinião, de meios de comunicação, de sondagem. O espaço público do bem comum e o espaço nacional e mundial da publicidade se confundem (“frases” de homens políticos, slogans e mensagens publicitárias se confundem…).

O regime da doxa não é mais (apesar da homonímia) aquele em que dissensão dos julgamentos numa “arena” política regulava, ou permitia compor, as relações do deliberativo com o executivo. Ao paradoxo, que é cada vez mais, se ouso dizer, o porte (forma e conteúdo) da verdade, o modo de formulação do “impossível” com o qual tudo se depara, todo tratamento e gerenciamento, as doxas modernas, obstinadas e mortíferas, se tornaram surdas e cegas. A síncrise do cultural e da gestão da felicidade de massa (welfare e suplemento de alma) ameaça cobrir e aniquilar os “valores” da tradição, que os programas políticos afirmam continuar defendendo: o “humanismo” corre perigo sob as denegações ideológicas de toda espécie.

Pode-se dizer o mesmo desta maneira: há incomensurabilidade, e portanto uma espécie de incompossibilidade e incompatibilidade crescente, entre as duas ordens (expressão pascaliana), entre os dois modos, na escala diferente dos quais se desdobra o fenômeno “humanidade”: escala da existência individual (pessoal, privada, existencial) e a da existência em multidões (Negri), escala dos grandes números (demografia planetária, identidade das etnias, comunitarismos etc.).

  1. Ora, a poesia, entendida não tanto como um “gênero” entre outros, a poesia, em simbiose no seio da literatura em geral, como experiência e promessa do pensamento humano vernacular, como “escrita parabólica” de porvir, a poesia, se puder fazer-se ouvir através dos compartimentos da mídia, tem recursos. Seus “paradoxos sublimes” podem retesar novamente o arco do pensamento. As contrariedades invencíveis que ela avalia e junta com seus oxímoros, seu “preciosismo”, estimulam-na, habilitam-na a “aconselhar” a vigilância política. Se todo ser se depara com o impossível, ela é a arte do impossível. E como também a política, “arte do possível”, requer uma experiência meditativa do impossível… poesia e política, em “democracia” moderna, onde a liberdade subsiste, possuem afinidade e poderiam acasalar-se.

Uma democracia esclarecida, isto é, uma oligarquia razoável, é possível? Certamente, em princípio. É realizável, portanto boa de empreender? Isto é mais do que improvável.

POLÍTICA E POESIA, OU: O PRESIDENTE DOS ESTADOS UNIDOS NÃO É UM FILÓSOFO, MAS O MUNDO É INFINITO PARA ELE (INTERLÚDIO)

A religião, a cultura de americano médio do presidente, sua segurança, sua arrogância americana “natural”, ou, em termos aproximados: a presteza de seu porte, seu andar atravessando a relva até o púlpito da Casa Branca, os braços oscilantes um pouco afastados do tórax bem desenvolvido — tudo aquilo de que Schwarzenegger é a caricatura em enésimo grau, ou seja, nosso futuro —, fazem que um presidente dos Estados Unidos (… da América?), e este de forma especial, tome por tema de suas frases, ou objeto de seus discursos sobre o estado de coisas, e por destinatário de sua advertência, o mundo. Ele se dirige ao mundo. O mundo é aquilo a que (a quem) ele se dirige; que ele admoesta, previne, encoraja… O mundo é o que seus performativos vão modificar, modelar, democratizar, americanizar. É preciso que isso mude, e depressa! Ele acha que acabou, como havia sugerido Valéry (que ele não conhece), e mesmo que o tempo do mundo finito acabou. O mundo tem lugar, mundializado. É preciso achar um jeito.

O nacional-socialismo, inventado pelo século XX, não é tão fácil de recuperar em seus elementos constituintes: se a definição articula a superioridade de uma raça ou de um tipo, a crença em Deus-conosco, a servidão voluntária ao chefe, a preferência nacional chauvinista, o ideal social da segurança e do melhoramento do biótipo, o devir-propaganda “correta” da verdade (ao que acrescentaríamos ainda a hegemonia do dólar e da língua, pátria, família, trabalho, em suma), muitos desses elementos se acham associados nessa espécie de pré-fascismo estadunidense de hoje. Em todo caso, se for lembrada uma imagem forte, a saber, a da sequência de O ditador em que Chaplin dança com a bola do mundo, o mapa-múndi como brinquedo em seus braços, pode-se arriscar, com frieza (sem ódio, sem provocação, sem bafo de hostilidade esquerdista), que a América está ameaçada de assemelhar-se a ele: visão do marechal da OTAN, ou Comando-Aéreo-Estratégico, diante de seus mapas na sala de controle onde piscam os submarinos e as armas atômicas, cada uma capaz de “destruir a Terra”, onde todo ator está ao mesmo tempo interpretando seu papel no filme dos acontecimentos, papel de “homem do presidente” com as mímicas dos astros do remake, cerrando os maxilares sob a escovinha prateada da cabeleira de combate.

O mundo é o parceiro do chefe, que dança com ele, na Sala Oval, ou então refaz seu patchwork, sempre com peças fora de lugar, para encaixar o Irã com a China, a Coréia com a Índia, a Ucrânia, a Venezuela… Os parâmetros quantitativos finitos (quantas divisões, reserva de hidrocarboneto, PIB etc.) regulam um jogo do mundo que não é mais o jogo do mundo na cosmologia meditativa e poética de Heráclito a /Costas?/ Axelos.

No tempo do mundo infinito, como reiniciar o jogo? Como transportar o mundo ao infinito? Reinfinitizar o mundo seria, sobre o fundo de alarme filosofante, uma tarefa poética — artística e poética. Volto a ouvir Leopardi:

O INFINITO

Sempre amei esta colina isolada

E esta sebe que veda ao olhar

Todo um trecho do horizonte extremo.

Imóvel, contemplativo, concebo mais além

Espaços ilimitados, sobre-humanos

Silêncios, uma paz muito profunda

Onde por pouco o coração

Não se apavora. E enquanto ouço

O vento sussurrar nas folhas,

Vou comparando o silêncio infinito

A essa voz: e voltam-me o eterno,

As mortas estações e a que vive,

Presente, e seu rumor. Assim,

Na imensidão se afunda meu pensamento

E o naufrágio é doce nesse mar.*

Se a filosofia tivesse educado  presidente, ela lhe teria ensinado a suspender nos braços essa tese do mundo; a não devorar — mas sugar, suspeitar “infinitamente” — essa tese, essa posição positiva, ou, como se diz hoje, esse posicionamento; ela teria problematizado essa relação de domínio, essa imediatez brutal e supersticiosa, em que Deus, de fato (o God de que nós[2] somos os trustees [provedores]), é ao mesmo tempo instrumentalizado e manipulador (“mediador” seria aqui teológico demais, filosófico demais), e cuja vontade ventríloqua nos autoriza, nos delega, a tratar o mundo como um dado, um objeto acabado; a propor e a impor nossa vontade a algo como “o mundo”: idolatria de um deus omnipotens,de um demiurgo ou de um Criador que teria feito sua obra e instalado um preposto à testa da Criação: seu “eleito”.

Os cristãos invocam “o Senhor”. O Senhor é o deus dos exércitos, em última instância o deus da tribo, da minha tribo. Qual a diferença entre Gott mit uns e God save America? Como se explica que estejamos ainda aqui depois de tanta carnificina? É disso que precisamos sair.

Quem é o testa-de-ferro, homem ou Deus? “À imagem” um do outro: desdobramento especular; como se, de tanto se olhar nos vazios reluzentes e nos espelhos vazios, nas cem mil fases e artifícios do autorretrato (do qual o ícone de Cristo não é o menor), operadores narcísicos do antropomorfismo, “o homem”, como ele se chama, manejasse e organizasse sua apoteose. Armadilha que se fecha: o homem é um deus para o homem, e esse deus tem sede.

A FELICIDADE É POSSÍVEL?

Annie Ernaux, celebrando Bourdieu, lembra que a sociedade é a dominação, a partilha dos dominadores e dos dominados. Ela tem razão.

Mas ela parece acreditar em uma transformação do mundo e no fim da dominação. No entanto, se a realidade social é a dominação, acreditar que a sociedade não mais consistirá na relação entre dominadores e dominados é acreditar no desaparecimento da sociedade.

A crença num outro mundo diferente deste é ou uma quimera “religiosa” tão inconsistente quanto inconsequente, ou uma convicção carregada de “ressentimento” (Nietzsche), que não precisa de muito para se transformar em utopia mortífera. Sobretudo quando “o outro mundo” não visa mais ao “além”, mas a outro mundo neste mundo; por exemplo, um mundo possível e iminente, isento de “dominação”. Certamente não quero impedir a priori todo projeto altermundialista, ainda mais que creio na possibilidade de transformar reformando, já que não se pode mudar tudo e o todo por revolução. Mas, por respeito e admiração à obra de Annie Ernaux e aos trabalhos hercúleos de Pierre Bourdieu (a quem, há tempos, fiz objeções),[3] gostaria de esboçar uma crítica e apenas sobre o uso negativo da “dominação” (ou seja, da ideologia da antidominação), fazendo duas observações simples: uma sobre a estabilidade estrutural do par dominador/dominado, a outra sobre a felicidade humana.

  1. a) A relação de dominação é geral, e sob esse aspecto é da competência de uma sociologia específica. Trata-se do fenômeno da exterioridade dita “social”. A organização da multidão, necessária para que a pura multiplicidade polivalente se transforme em composição, e assim em “causa produtiva”, não pode se realizar sem hierarquia: hierarquia que pode ser “enredada” (Louis Dumont), mas que não deixa de ser hierarquia. “Prova de orquestra”, dizia Fellini. A começar por esta lei da distribuição: o face-a-face (na bilheteria) de um contador de multidão, que deixa passar um por um (se “o homem” não é um rebanho).
  2. b) Há uma relação com o Outro, com o que é outro que não os outros: com aquilo que não é transpassado pela dominação e mantém os seres juntos, em convivência, quando se retemperam em sua possibilidade: a possibilidade de felicidade. É isso que a arte pode produzir; ou que a arte pode mostrar, indicar, lembrar. Tomo o exemplo de uma obra, o caso um filme — ou, se preferirem, o que vejo nesse filme: Central do Brasil. Filme que nos avisa, sem formular expressamente, e sem outra prova que sua qualidade de obra bela, que a miséria humana nunca vai acabar. Que nos mostra a humanidade, inumerável, infinita em diversidade, pobre, laboriosa, errante, feliz na Terra, sem recursos no imenso recurso; e também que não haverá outra história senão a de amor entre alguns, em “família”, se quiserem, perdidos na multidão incessantemente aumentada; “como se a servidão nunca devesse acabar”, e que na melhor das hipóteses, isto é, a mais comum, “o homem” viverá em casebres de alvenaria, as cabanas de Hölderlin, mas com eletricidade, cujo limiar é o da pobreza, órfão, duro e compassivo; indiferente à política m(na abstenção geral?), infinita e narrável: cuja vida pode produzir uma história — um filme.

O convite à viagem, baudelairiano, nos convida sempre. Que viagem? Aquela em que “tudo fala à alma sua língua natal”. Douceur [doçura, suavidade] é um termo de Baudelaire, repetido duas vezes por Rimbaud: “Douceur, douceur…”. Nem o poema nem o mundo são doces.

Trata-se de outra coisa: da língua natal da afeição terrestre — daquilo que Heidegger, num contexto bem diferente, chamará distância, boa distância da proximidade/afastamento das coisas.

A viagem não convida a um mais-além fora deste mundo, nem a um mais-além nos antípodas, nas Ilhas Afortunadas. Mesmo se o final do século XIX sonhou que o outro lado da Terra era habitável — “poeticamente”. A literalidade do exótico serve de comparação ao esquema de um tal transporte “sob céus mais doces”. O convite é também convite a acompanhar um “pintor da vida moderna” pelos Grands Boulevards [de Paris].

Todos se lembram das páginas famosas em que Baudelaire caracteriza “o despertar” de Constantin Guys como entrando “esta manhã” num mundo mais ele mesmo: “le monde même à même le monde”.****

Não se trata de um mundo “reservado” aos ricos, nem ao grande artista, nem aos “dominadores”. A dimensão de sua abertura e de seu aparecimento ocupa a filosofia do século XXI, quer a chamemos aperitiva, desbastada ou “de tamanho real” — e cito o título do recente livro de Jean-Luc Nancy, La déclosion [O descercamento], que é também uma outra maneira de traduzir “alétheia”. Essa dimensão não foi expulsa de nosso mundo.

Ou foi? Nesse caso, somente a “aventura espacial”, tecnocientífica, levando consigo o heroísmo e a beleza funcional, arquitetônica, dos grandes observatórios de astrofísica, levará a humanidade a um novo outro mundo. E a política?

A política tem em vista “diplopicamente”, se posso dizer, os dois estados — ou modos — da substância “humanidade”, cada um considerado sob seu melhor aspecto por obrigação de não-cinismo. Quais modos? O um-por-um e a pluralidade; o indivíduo e a multidão; a pessoa e o gregarismo — que formam dois temas da história distintos. A pessoa “sob seu melhor aspecto”, que não é apenas o da conservação e do enriquecimento, e a multidão, em e por sua capacidade demiúrgica (não sacrificial), “criadora” — e não apenas de produtos mercantis. É possível até, se essa dualidade compõe de fato a realidade do “fenômeno humano” e se apresenta, portanto, como uma determinação antro-pológica constitutiva e não superficial, é possível que a política, distinta da preocupação ética, diferente da “educação do gênero humano” (e, obviamente, do “melhoramento da raça”, assim como do sagrado religioso da “salvação”), que a política, repito, tenha — ou deva ter — por finalidade essencial a boa relação em geral de um dos modos com o outro, o modo I, do indivíduo, com o modo II, da multidão; a passagem ou comunicação (num sentido não comercial, pré-moderno, portanto, do comunicativo ou “comunicacional”), a anastomose em geral do estado I (individual) com o estado II (multitudinário), e nos dois sentidos: operador da  “transubstanciação” social (pois falei de substância) que implica a representação (por exemplo, parlamentar), isto é, a relação como “feito para”. E, lembrando-me do sentido técnico, neutro, de oligarquia em Rancière, e, por outro lado, da velha locução de “despotismo esclarecido”, eu diria: para a melhor oligarquia em uma democracia esclarecida.

Acredito que reduzir o dois ao Um é a pretensão e o engodo da “revolução”: uma humanidade, um só mundo, uma só imaginação. Que o depois-da-revolução, na medida em que não renuncie nem à emancipação (que interessa o coletivo) nem à liberação (que interessa o sujeito), é reforma, a qual se restringe, portanto, a manejar o dois e a organizá-lo (como “arbitragem”?). Esforço mais ulissiano que ciclópico, que é de diplopia (“politrópico” — polimétrico… com risco de duplicidade), pois trata-se primeiro de não simplificar, nem de confundir, nem de se enganar sobre o duplo nos duplos; em outras palavras, trata-se de discernir os dois realmente distintos da díade, sem se equivocar com os pseudoaspectos dos dois, com os “maus dois”, por exemplo as “contradições secundárias” que ocultam a contrariedade estruturadora; e, a seguir, de conjugar na prática, na práxis (por exemplo, politicamente) os dois reais, e de “compatibilizá-los” nos fatos.

Tradução de Paulo Neves

Notas

* Jack Lang, recente ex-ministro da Cultura da França. (N. T.)

** Referência a um erro judiciário de grande repercussão na França, relacionado a um caso de pedofilia na cidade de Outreau. (N. T.)

*** Conforme a tradução francesa de Michel Orcel. (N. T.)

****Em uma tradução literal estrita: “o mundo mesmo diretamente sobre o mundo”. (N. T.)

[1] Cf. Tricot, termos que traduzem, às vezes, a ousia

[2] Nós, aqui, quer dizer: “somos todos americanos”, queiramos ou não.

[3] De la distinction”, Le Temps de la Réflexion 1, Paris, Gallimard, 1980.

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