O que é política?
por Marilena Chaui
Resumo
O helenista Moses Finley descreveu o nascimento da política como um acontecimento que distinguiu para sempre Grécia e Roma dos outros grandes impérios antigos. Por quê? Porque os gregos e romanos não dispunham de modelos políticos a seguir; ou seja: eles precisaram inventar maneiras de lidar com seus conflitos sociais. Para isso, fundaram o poder público, através de instituições como os tribunais, que regulavam o direito e as leis, e as assembleias ou os senados, que deliberavam e decidiam acerca dos bens e das questões comuns – o que só foi possível porque o poder político extrapolou as esferas privada, militar e religiosa. O governante não era, pois, pai, comandante ou sacerdote.
A democracia, por exemplo. Nela – invenção grega –, os homens adultos de determinada “pólis” eram tratados com isonomia (igualdade perante a lei) e isegoria (liberdade de opinião). Legislavam, pois. Já quanto ao princípio do governo da lei, se não vigia a anarquia tampouco o despotismo. E é essa a diferença entre Grécia e Roma, uma vez que nesta a “coisa pública” era comandada pelos membros das famílias fundadoras da “civitas”, ou seja, os “patres” ou cidadãos. Tratava-se, enfim, de uma república oligárquica.
Muitos séculos depois, Espinosa notaria que é da “natureza comum aos homens” que se devem deduzir os fundamentos do poder. Dos homens tais como são, não como deveriam ser – claro esteja. Coléricos, invejosos, ambiciosos, vingativos; desejosos, enfim, de mandar sem obedecer. Eis o núcleo mesmo do tema: uma vez que a sociedade é como é porque as paixões assim o desejam, pode a razão encontrar as causas disso? Sim. E tais causas são a esperança e o medo, paixões complementares. Nesse sentido, deve-se lembrar das teses espinosanas sobre a instituição política, como seguem: para cada coisa singular, haverá sempre outra capaz de destruí-la; as forças de potência e autoconservação na existência serão, no homem, sempre infinitamente ultrapassadas pelas causas externas; a alegria, responsável pelo aumento da potência de existir, e o medo, responsável pela diminuição desta, constituem todas as paixões; a razão, como conhecimento do bom e do mau, não suprime uma paixão (qualquer que seja ela), mas sim outra paixão, mais forte que a primeira e contrária a ela; uma paixão que se refira ao presente é mais forte do que uma que se refira ao passado ou ao futuro; cada pessoa esforça-se para conservar o que lhe é útil – bom – e para afastar ou destruir o que lhe é nocivo – mau; o que é de natureza muito diferente da natureza de uma pessoa não a afeta, ao passo que o que concorda com ela a fortalece; enquanto uma pessoa estiver submetida às paixões, ela é necessariamente contrária à vida em sociedade, e a potência de autoconservação é o “supremo direito da natureza”.
E hoje?
Hoje vige o esquecimento da política, por meio da destruição do espaço público. Para isso concorrem: os governos neoliberais, que suprimem direitos econômicos, sociais e políticos, em proveito dos interesses das classes dominantes e do capital; os grupos sociais que se beneficiam com a manipulação da opinião pública, cada dia mais voltada para gostos, preferências e sentimentos individuais; os programas de governo, não mais elaborados por ideólogos, mas por agentes de “marketing”; os conhecimentos científicos e técnicos, que segundo a ideologia vigente, dividem a sociedade entre “competentes” e “incompetentes”, de modo a reduzir a participação política ao direito ao voto e o saber ao discurso especializado, propagado pelos meios de comunicação de massa, que, então, transformam-se em imensos consultórios sentimentais, sexuais, gastronômicos, geriátricos, ginecológicos, narcísicos etc., nos quais as noções de verdade ou erro são substituídas pelas de credibilidade ou plausabilidade e confiabilidade – assim, para que algo seja aceito, basta que seja plausível, além, claro, de anunciado por uma “personalidade autorizada” ou um “formador de opinião”.
Ou seja: nada mais de política como forma superior de vida – seja pela justiça, segundo Platão; seja pela retidão e beleza, segundo Aristóteles.
Já na Idade Média, embora se mantenham tais ideias, elas são acrescidas da teologia cristã, fundada, sobretudo, no pensamento de São Paulo, para quem – com base na visão hebraica de mundo e no Antigo Testamento – “todo poder vem do alto”. Trata-se da ordem social em consonância com a vontade divina.
A partir disso, mede-se a ruptura que representou o pensamento de Maquiavel, para quem o poder político era soberano – ou do soberano, a quem cabia, segundo Jean Bodin, “decidir, agir, criar e suprimir leis; enfim, exercer o direito de vida ou morte sobre os oprimidos”.
É com Hobbes e os teóricos da Ilustração, da independência norte-americana e da Revolução Francesa que o poder soberano passa a caber ao Estado.
Dos contratualistas aos liberais, e destes aos marxistas, muito se escreveu sobre política; muito ela mudou – sem, contudo, jamais perder de vista a estratificação social, fosse diluindo-a nas ideias de Estado e Nação como agentes de uma unidade imaginária – à maneira dos liberais –, fosse reinventando a política contra ou sem Estado – à maneira revolucionária.
Mais recentemente, Hannah Arendt, Claude Lefort e Michel Foucault passaram a considerar o papel desempenhado pela ação política na criação das formações sociais, nas quais uma sociedade representa-se a si mesma, reconhecendo-se, ocultando-se, efetuando-se; enfim, transformando-se constantemente.
I
Muitos são os aspectos que determinam o esquecimento da política. Desses, gostaria de destacar aqueles que produzem a privatização o do espaço público e o destroem:
- o encolhimento do espaço público e o alargamento do espaço privado sob a ação da economia e dos governos chamados neoliberais, uma vez que se definem pela eliminação de direitos econômicos, sociais e políticos garantidos pelo poder público, em proveito dos interesses privados da classe dominante, ou seja, do capital;
- a destruição da esfera da opinião pública, que deixa de ser o campo onde se exprimem opiniões divergentes sobre a vida econômica, social, cultural e político. Opinião pública, na origem, era a manifestação em público da reflexão realizada por grupos e classes sociais na defesa de seus interesses, os quais, por sua vez, determinavam decisões e ações políticos, isto é, concernentes A coletividade. Hoje, a opinião pública tornou-se a manifestação pública de gostos, preferências e sentimentos individuais, que outrora pertenciam ao campo da vida privada;
- a destruição da discussão e do debate públicos sobre projetos e programas de governo e sobre as leis — destruição produzida pelo surgimento do marketing político, sob os efeitos da ideologia pós-moderna, que aceita a submissão da político aos procedimentos da sociedade de consumo e do espetáculo. O marketing político busca vender a imagem do político e reduzir o cidadão à figura privada do consumidor. Para obter a identificação do consumidor com o produto, o marketing produz a imagem do político como pessoa privada: características corporais, preferências sexuais, culinárias, literárias, esportivas, hábitos cotidianos, vida em família, bichos de estimação. A privatização das figuras do político e do cidadão privatiza o espaço público;
- a ideologia da competência, segundo a qual a sociedade se divide entre os competentes, que possuem conhecimentos científicos e técnicos e por isso têm o direito de mandar e comandar, e os demais, que, não tendo tais conhecimentos, são tidos como incompetentes e com a obrigação de obedecer. Sob o efeito da ideologia da competência, a política é considerada uma questão técnica que deve ficar nas mãos de especialistas competentes, cabendo aos cidadãos reconhecer a própria incompetência, confiar na competência dos técnicos e reduzir a participação política ao momento do voto nas eleições;
- a ação dos meios de comunicação de massa. Sob o impacto da ideologia da competência, as ondas sonoras do rádio e as transmissões televisivas tornam-se cada vez mais o campo dos discursos dos especialistas que nos ensinam como viver; imensos consultórios sentimental, sexual, gastronômico, geriátrico, ginecológico, culinário, de cuidados com o corpo (ginástica, cosméticos, vestuário, medicamentos), de jardinagem, carpintaria, bastidores da criação artística, literária e da vida doméstica. Como observa Christopher Lash, no livro A cultura do narcisismo, os mass media tornaram irrelevantes as categorias da verdade e da falsidade, substituindo-as pelas noções de credibilidade ou plausibilidade e confiabilidade — para que algo seja aceito como real basta que apareça como crível ou plausível, ou que seja oferecido por alguém confiável. Os fatos cedem lugar a declarações de “personalidades autorizadas” e de “formadores de opinião”, que não transmitem informações, mas preferências que se convertem imediatamente em propaganda. Qual a base de apoio da credibilidade e da confiabilidade? A resposta encontra-se no apelo intimidade, à personalidade, à vida privada como suporte e garantia da ordem pública.
Todavia, falar em esquecimento da política pressupõe que saibamos o que é esse objeto do esquecimento, ou seja, o que é a política.
II
Quando lemos os filósofos antigos, particularmente Platão e Aristóteles, podemos observar que a política é definida como uma forma superior de vida — a vida justa, segundo Platão; a vida boa e bela, segundo Aristóteles. Para ambos, a política se define pela justiça, ainda que cada um deles tome o justo de maneira diferente. Para Platão, uma política é verdadeira ou justa quando nela o sábio governa, o corajoso a protege e o concupiscente produz os meios materiais de conservação da comunidade. Em outras palavras, a política justa é aquela em que a razão comanda, subordinando ao seu comando a força militar e o poderio econômico. Aristóteles, porém, parte da existência de uma divisão social, qual seja, a existência de pobres e ricos, e considera justa a política que opera no sentido de diminuir tanto quanto possível essa desigualdade — ou, como diz o filósofo, a política é a arte de igualar os desiguais. Por esse motivo, Aristóteles distingue dois tipos de justiça: a justiça distributiva ou do partilhável, que se refere à distribuição pública dos bens para diminuir a distância entre pobres e ricos; e a justiça do participável, isto é, daquilo que não pode ser dividido, distribuído ou partilhado, mas apenas participado, isto é, o poder político, que deve ser exercido por todos os cidadãos.
Sabemos que, durante a Idade Média, a ideia da política como realização da justiça se manteve, numa curiosa mescla das concepções de Platão e Aristóteles, acrescidas da teologia cristã, particularmente o pensamento de Sao Paulo. Este, mantendo uma idéia hebraica que sustenta o Antigo Testamento, afirma que “Todo poder vem do Alto”, o que equivale a dizer que o poder político é uma graça ou um favor divino que se deposita na figura do governante. Representante de Deus na terra, o governante é consagrado e coroado pelo Papa, que confirma sua graça divina e assegura tratar-se do filho da justiça e pai da lei, aquele que tem a lei em seu peito. Aqui, a vontade do governante é a lei — o que apraz ao rei tem força de lei. Como representante de Deus na terra, o governante justo é aquele que possui todas as virtudes e deve servir de espelho aos governados, de maneira que uma política é justa quando o governante é moralmente virtuoso, e injusta quando moralmente vicioso. A Idade Média concebe a justiça sob duas formas: a da ordem do mundo, instituída por Deus — a ordem natural é uma ordem jurídica estabelecida pelos decretos divinos —, e a da ordem social, instituída pelo governante, em consonância com a vontade divina.
Podemos, assim, avaliar a imensa ruptura e subversão trazida pelo pensamento de Maquiavel. Distanciando-se dos filósofos antigos e da teologia política, Maquiavel afirma que a política não diz respeito à justiça nem à graça divina e sim ao exercício do poder. Toda sociedade, diz ele, é atravessada por uma divisão originária, pois se divide entre o desejo dos grandes de oprimir e comandar — movidos pelo desejo de bens — e o desejo do povo de não ser oprimido nem comandado — movido pelo desejo de liberdade e segurança. Em lugar de tomar como ponto de partida a ideia clássica da comunidade, Maquiavel parte da divisão social, e por isso, para ele, a política é o exercício do poder com o propósito de domar, refrear e conter o desejo dos grandes e concretizar o desejo do povo por liberdade e segurança. Mas a marca inovadora de Maquiavel não está só no abandono da figura da comunidade una e indivisa, nem apenas no deslocamento da política da justiça para o poder como garantia da liberdade e da segurança populares. Também é inovadora sua concepção da virtude do governante. Com efeito, longe de propor que o governante seja um espelho de virtudes morais, Maquiavel define o governante como grande dissimulador e paciente ouvinte do verdadeiro, e sua virtude consiste em estar atento à verità effetuale delle cose, ou melhor, aos acontecimentos. O príncipe virtuoso é aquele que muda de ideia, de sentimento e de ação segundo as exigências das circunstâncias, de maneira a não ser vitima delas e sim o seu senhor.
A concepção maquiaveliana da política como exercício do poder abre o campo para a concepção moderna do poder político como soberania. É Jean Bodin, no século XVI, quem, pela primeira vez, define a soberania: é soberano aquele que tem o poder de decisão, que faz, promulga e abole leis e tem o direito de vida e morte sobre os governados. Essa definição da soberania, que inicialmente se aplica à figura do rei absoluto, tornar-se-á a definição da soberania do Estado. Assim, a política se refere ao exercício do poder soberano pelo Estado, ideia que será amplamente desenvolvida por Hobbes e, depois dele, pelos teóricos da Ilustração, da Independência norte-americana e da Revolução francesa, que introduzem versões variadas da ideia de contrato social ou pacto social como momento de instituição da soberania, isto é, como um acordo de vontades para instituir um soberano e submeter-se a ele, desde que ele garanta a vida, a propriedade privada ou bens e a liberdade dos governados.
Ora, não é por acaso que Gramsci pensará a política a partir de Maquiavel, ou melhor, da divisão social, da liberdade e da segurança populares. Ele o faz porque seu ponto de partida é a critica de Marx à ideia do contrato ou do pacto social como fundamento da soberania. Como Maquiavel, Marx parte da divisão social — da divisão da sociedade em classes — e considera o Estado moderno o exercício da dominação, pois realiza, em linguagem maquiaveliana, o desejo dos grandes de oprimir e comandar, o que se dá através da propriedade privada dos meios sociais de produção e da repressão militar e policial. A revolução proletária é pensada por Gramsci como o renascimento da política, contra a dominação, ou do Principe Moderno.
Dos contratualistas aos liberais, dos liberais aos marxistas, muito foi escrito e feito na política, mas sem perder de vista a divisão social — seja à maneira liberal, para ocultá-la nas figuras do Estado e da Nação como unidade indivisa imaginária, seja à maneira revolucionária de reinvenção da política sem e contra o Estado. E, evidentemente, sem abandonar o núcleo da modernidade, configurado na afirmação de Maquiavel de que a política é o exercício do poder.
Todos sabem como Max Weber concebe o poder: o poder é a capacidade para obrigar à obediência por meio da lei e é o uso legal da violência, podendo realizar-se de maneira personalizada, quando carismático, ou de maneira impessoal, quando se efetua por meio do Estado e dos instrumentos jurídicos postos por ele.
No entanto, todos também conhecem a distinção feita por Hannah Arendt entre força, autoridade e poder. A força, diz ela, é o exercício direto e imediato da coerção e da repressão, e seu fundamento é o medo. A autoridade é a coerção pela tradição interiorizada e rememorada pela sociedade por meio de símbolos; seu fundamento é a obediência e o respeito pela hierarquia. O poder é a coerção mediada pela lei, a qual pode ser tanto fonte de liberdade como de dominação, e seu fundamento é o consentimento — quando o consentimento é voluntário, o poder propicia a liberdade, quando o consentimento é forçado, torna-se dominação e opressão. Para Arendt, a força opera por meio da violência com a finalidade de eliminar diferenças, a autoridade opera pela formação do sentimento comunitário, considerando as diferenças como secundárias. O poder, quando não se transforma em dominação, opera no sentido de legitimar as diferenças.
Todavia, não são menos conhecidas de todos as análises de Michel Foucault. Contrapondo-se à ideia weberiana e marxista de que o poder é essencialmente repressivo, Foucault prefere tomá-lo sob outro ângulo. Em Vigiar e punir, analisando as mudanças no sistema penal e no sistema carcerário, refere-se ao poder como produtor de corpos dóceis — o poder se torna disciplina e como tal espalha-se pelo todo da sociedade, penetrando em todas as instituições sociais. Mais tarde, em cursos ministrados no Collège de France, Foucault recorda a diferença estabelecida por Aristóteles entre a vida natural e a vida boa (ou vida ético-política) e analisa o interesse do poder, desde o século XIX, pelo controle sobre a vida natural dos homens, interesse atestado pelo surgimento da demografia e das questões de higiene e saúde pública — o que define como biopoder, isto é, um poder que se exerce sobre a vida dos indivíduos e das sociedades. Em sua opinião, o racismo, a ideia nazista de eugenia racial e o campo de concentração como “solução final” seriam as expressões mais claras dessa mudança sofrida pelo poder. De fato, Foucault se dedica a análises sobre o fim da ideia de soberania como definição do poder, mas salienta um aspecto da soberania que desembocará no biopoder. Desde o século XVI, com Jean Bodin, a soberania se define pelo poder de fazer, promulgar e executar a lei e o poder de vida e morte sobre os cidadãos — é essa ideia da soberania que reaparece na definição weberiana do poder. Ora, diz Foucault, é evidente que o poder soberano não tem o poder de dar a vida, mas apenas de tirá-la. Em outras palavras, a soberania é o poder de fazer morrer ou deixar viver. A peculiaridade do biopoder está em ultrapassar o limite imposto à soberania, pois, por meio da demografia, da higiene e saúde públicas, da identidade individual definida pela nacionalidade e naturalidade, o poder se exerce sobre a vida e sobre o dar à vida. Foucault fala, então, em biopolítica ou sobre as implicações crescentes da vida natural do homem nos cálculos e mecanismos do poder, implicações expressas na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, que não por acaso começa pela afirmação da vida como direito.
O problema das ricas e instigantes análises de Foucault está na ausência de referência às condições materiais destas duas formas de poder, o disciplinar e o biopolítico. De fato, em Vigiar e punir nunca é mencionado o momento em que o modo de produção capitalista necessita da força de trabalho assalariada e, portanto, requer os corpos dóceis, a disciplina. Mas, uma vez que, em seus inícios, o capitalismo se exprime ideologicamente na ética protestante do trabalho como vocação e dever, a economia e a ideologia instituem o dever de trabalhar e a repressão do desejo e da fruição, impondo férrea disciplina aos corpos. Da mesma maneira, no caso dos cursos do Collège de France, nunca é mencionado o advento da sociedade industrial e de massa nem é feita menção à presença assustadora da numerosa classe trabalhadora, vivendo em condições miseráveis nos centros urbanos — classe cuja reprodução como força de trabalho impõe as políticas de higiene e saúde públicas e, hoje, as políticas de estimulo à fruição, ao gozo, ao desejo, isto é, o consumo de massa, que demoliu a moral repressiva dos inícios do capitalismo.
De toda maneira, independentemente dos reparos que se possa fazer às análises foucaultianas, sob um aspecto elas retomam uma perspectiva clássica a respeito da política, qual seja, a não-identificação da política com o aparelho estatal. Ao pensar o poder como uma ação e uma operação que se espalham capilarmente por todas as instituições sociais, Foucault reencontra, surpreendentemente, Hannah Arendt e Claude Lefort e, como eles, se opõe ao ponto de vista da ciência política.
De fato, esses filósofos consideram a política como o espaço público no qual são deliberadas e decididas as ações concernentes à coletividade, de maneira que a política determina as formas da sociabilidade e das sociedades, segundo nelas se definam a forma do poder e o exercício do governo. Essa perspectiva se opõe à da ciência política. Esta admite a existência de uma esfera política e de fatos políticos que se distinguem de todas as outras esferas e fatos sociais, ou seja, concebe a política a partir do Estado ou das instituições estatais, da forma dos governos, da existência de partidos políticos e da presença ou ausência de eleições. Em resumo, toma a política como um fato circunscrito e não como modo da existência sócio-histórica.
Ao contrário, à maneira dos clássicos, Arendt, Lefort e Foucault consideram as formações sociais como instituídas pela ação política. Assim, a política é a criação de instituições sociais múltiplas nas quais uma sociedade se representa a si mesma, se reconhece e se oculta de si mesma, se efetua e trabalha sobre si mesma, transformando-se temporalmente. Ou seja, a política não só é instituição do social, mas é também ação histórica.
Todavia, a concordância entre Arendt, Foucault e Lefort termina neste ponto. Com efeito, para Arendt, o poder político resulta de um consenso público, para Foucault, o poder é um conjunto de operações, mecanismos e instituições que se espalha por toda a sociedade. Para Lefort, o poder político é simbólico, é o polo de referência no qual uma sociedade dividida em classes busca unificar-se, realizando o trabalho dos conflitos que a dividem. Em outras palavras, acompanhando Maquiavel e Marx, Lefort pensa o poder a partir da divisão social e, portanto, a partir do conflito e não do consenso.
III
“Cidadãos de Atenas! Como ireis agora julgar pela primeira vez um crime sangrento, ouvi a lei de vosso tribunal. Sobre este Rochedo de Ares, doravante, sentar-se-á perpetuamente o tribunal que fará a raça toda dos Egeus ouvir o julgamento de todo homicídio.(…). Este rochedo é chamado de Areópago. Aqui, Respeito e seu irmão Temor, noite e dia igualmente, manterão meus cidadãos longe do crime, enquanto conservarem inalteradas as leis (…). Não mancheis a pureza das leis com a impureza de estratagemas (…). Guardai bem e com reverência vossa forma de governo. Nem anarquia nem despotismo, eis a regra que aconselho a cidade a observar com respeito. E não expulseis todo temor para fora das muralhas de vossa cidade (…). Aqui, fundo um tribunal inviolável, sagrado, mantendo uma fiel observância para que os homens possam dormir em paz.”
Estas palavras são pronunciadas pela deusa Atena no final da Oréstia (Esquilo, 525 a.C. — 456 a.C.), e com elas, simbolicamente, afirma-se a invenção da política, obra dos gregos.
No mesmo espirito, nas Suplicantes, Eurípides (485 a.C. — 406 a.C.) coloca na boca dos atenienses a afirmação:
O que conserva a cidade dos homens é o nobre respeito às leis.
E também no mesmo espirito, em Da República, o romano Cicero escreve (63 a.C.):
A coisa pública — a res publica — é a coisa do povo; e por povo deve-se entender não um agrupamento de homem como um rebanho, mais uma assembleia numerosa de homens associados uns aos outros por sua adesão a uma mesma lei e por uma certa comunidade de interesses.
O helenista Moses Finley descreveu o nascimento da política — a “invenção da política”, segundo ele — como um acontecimento que distinguiu para sempre a Grécia e Roma em face dos grandes impérios antigos. Por que invenção? Porque gregos e romanos não dispunham de modelos, mas tiveram que inventar sua própria maneira de lidar com os conflitos e divisões sociais.
A política foi inventada quando surgiu a figura do poder público, por meio da invenção do direito e da lei (isto é, a instituição dos tribunais) e da criação de instituições públicas de deliberação e decisão (isto é, as assembleias e os senados). Esse surgimento só foi possível porque o poder político foi separado de três autoridades tradicionais que anteriormente definiam o exercício do poder: a autoridade do poder privado ou econômico do chefe de família, de cuja vontade dependiam a vida e a morte dos membros da família, a do chefe militar e a do chefe religioso, figuras que, nos impérios antigos, estavam unificadas numa chefia única, a do rei. A política nasceu, portanto, quando a esfera privada da economia e da vontade pessoal, a esfera da guerra e a esfera do sagrado ou do saber foram separadas e o poder político deixou de identificar-se com o corpo místico do governante como pai, comandante e sacerdote, representante humano de poderes divinos transcendentes.
Nas Suplicantes, um mensageiro chega a Atenas e pergunta: quem é o tyrannós desta cidade? E Teseu lhe responde:
Teu discurso, estrangeiro, começa com um erro, pois procuras um tyrannós nesta cidade que não está sob o poder de um só: Atenas é livre. O démos aqui governa, os cidadãos administram o Estado por rodízio. Nenhum privilégio é dado às fortunas, pois o pobre e o rico têm direitos iguais.
A Grécia inventou a democracia: todos os homens adultos nascidos na pólis eram cidadãos com isonomia e isegoria (respectivamente, a igualdade de todos perante a lei e a igualdade de todos para emitir as suas opiniões, debatê-las e votá-las), membros natos das assembleias e tribunais, e participantes da força militar, que se realizava sob a forma de milícia popular, isto é, dos cidadãos armados.
Ainda nas Suplicantes, depois da fala de Teseu, o estrangeiro, surpreso, indaga:
Como o démos, incapaz de raciocínio correto, poderia conduzir a cidade no caminho certo?
Podemos observar que o estrangeiro, embora questione a capacidade do povo para legislar, não contesta de maneira nenhuma o princípio do governo da lei — “nem despotismo nem anarquia”, como dissera Atena. Sem dúvida, houve debates sobre quem tinha o direito de formular e promulgar as leis, e a diferença na resposta explica não só a diferença entre cidades gregas, mas também entre a Grécia e Roma.
Roma inventou a república. A res publica ou a coisa pública era o solo de Roma, distribuído entre as famílias fundadoras da civitas, os pais fundadores ou Patres de onde vinham os patrícios, únicos a possuir cidadania. A república era oligárquica: os homens adultos membros das famílias patrícias eram os cidadãos, aqueles que eram membros do senado, das magistraturas e comandantes militares, a plebe, excluída da cidadania ou da participação direta no governo, fazia-se representar pelo tribuno da plebe — um patrício eleito por ela — e, por meio do plebiscito, manifestava-se diretamente a favor ou contra uma decisão do senado ou lhe fazia propostas, além de participar da força militar na qualidade de comandada.
Resta, porém, compreendermos o enigmático final da fala de Atena, que citamos há pouco:
Aqui, fundo um tribunal inviolável, sagrado, mantendo uma fiel observância para que os homens possam dormir em paz.
Trabalho sobre e dos conflitos, a política nasce articulada à ideia da paz. Recordemos, então, um filósofo moderno para quem a paz é o núcleo da invenção da política: Espinosa (1632 — 1677).
IV
Somente na Cidade vivemos uma vida propriamente humana, para além da mera circulação do sangue, da respiração e da alimentação, escreve Espinosa no Tratado político:
todos o homens, sejam bárbaros ou cultivados, estabelecem em toda parte costume e se dão um estatuto civil, e não é dos ensinamentos da razão, mas da natureza comum dos homens, isto é, de ,sua condição que se devem deduzir os fundamentos naturais do poder.
“Da natureza comum dos homens” devem ser deduzidos os fundamentos naturais do poder (fundamenta naturalia imperii) ou dos homens tais como realmente são e não como gostaríamos que eles fossem. Por natureza, dizem a Ethica (1677), o TTP (Tratado teológico-político — 1670 e o TP (Tratado político), os homens não são contrários às lutas, ao ódio, à cólera, à inveja, à ambição ou à vingança. Nada do que lhes aconselha o desejo é contrário à sua natureza, e, por natureza, “todos os homens desejam governar e nenhum deseja ser governado”. Donde a questão: a experiência mostra que todos os homens, “sejam bárbaros ou cultivados”, estabelecem costumes e se dão um estatuto civil, e não o fazem porque a razão assim o determina, mas porque a cupiditas assim o deseja, mas pode a razão encontrar as causas e os fundamentos do que lhe mostra a experiência? A resposta é afirmativa: a razão encontra em duas paixões a mola propulsora para a instituição da política: a esperança e o medo.
A esperança (spes) é uma alegria inconstante nascida da ideia de uma coisa futura ou passada de cujo desenlace duvidamos em certa medida.
O medo (metus) é uma tristeza inconstante nascida da ideia de uma coisa futura ou passada de cujo desenlace duvidamos em certa medida.
Segue dessas definições que não há esperança sem medo, nem medo sem esperança. Aquele que está suspenso na esperança e duvida que advenha algo esperado começou a imaginar algo que exclua a existência do esperado e, por conseguinte, passa da alegria instável à tristeza. Quem está suspenso na esperança tem medo de vê-la frustrada. Aquele, ao contrário, que é vitima do medo, isto é, duvida que advenha algo odiado, imagina alguma coisa que exclua a existência do temido e, por conseguinte, alegra-se na esperança de que não ocorrerá.
Podemos falar num sistema medo-esperança porque tristeza e alegria instáveis, medo e esperança são paixões inseparáveis, expresso máxima de nossa finitude e de nossa relação com a contingência, isto é, com a imagem de uma temporalidade descontinua, imprevisível e incerta, pois, escreve Espinosa, jamais podemos estar certos do curso das coisas singulares e de seu desenlace. Viver sob o medo e a esperança é viver na dúvida quanto ao porvir. A experiência da contingência e da dúvida torna o medo e a esperança inconstantes e intercambiáveis não apenas em momentos sucessivos, mas também na simultaneidade: numa metamorfose interminável, cada uma dessas paixões habita e perpassa a outra. Ou, como escreve Espinosa, quem está suspenso na esperança e duvida do desenlace teme enquanto espera, e quem está suspenso no medo e duvida do que possa acontecer espera enquanto teme.
Medo e esperança não se separam sendo quando suprimida a dúvida, ainda que permaneça insuperável a incerteza quanto ao curso das coisas singulares. Com a ausência de dúvida, passamos do medo ao desespero e da esperança à segurança:
A segurança (securitas) é a alegria nascida de uma coisa passada ou futura sobre a qual já não existe dúvida.
O desespero (desperatio) é a tristeza nascida de uma coisa passada ou futura sobre a qual já não existe dúvida.
A segurança, portanto, nasce da esperança e o desespero, do medo, quando já não existem dúvidas sobre a ocorrência de algo. Isso decorre de que o homem imagina algo passado como estando presente ou imagina a existência daquilo que o fazia duvidar do desenlace. Assim, mesmo sem ter certeza sobre as coisas singulares, podemos não duvidar que ocorram ou deixem de ocorrer, e essa ausência de dúvida é a causa da segurança ou do desespero.
Recordemos brevemente algumas teses espinosianas fundamentais para seu pensamento sobre a instituição da política:
- para cada coisa singular, haverá sempre outra mais forte capaz de destruí-la;
- a força de nossa potência de autoconservação na existência (que define a essência de um ser singular) é limitada e infinitamente ultrapassada pela força das causas externas, que produzem em cada indivíduo paixões. Ou seja, somos passivos enquanto somos uma parte finita da Natureza que não pode ser concebida por si sem as outras;
- a alegria é o afeto que nos faz sentir que nossa potência de existir aumenta — a alegria nos fortalece; a tristeza, ao contrário, é o afeto que nos faz sentir que nossa potência de existir diminui — a tristeza nos enfraquece. Todos os nossos afetos são formas de alegria ou de tristeza; a esperança é uma alegria; o medo, uma tristeza; a segurança é uma alegria; o desespero, uma tristeza;
- a força de uma paixão e seu aumento não dependem da nossa potência, mas da potência de suas causas externas;
- a razão, como conhecimento verdadeiro do bom e do mau, não tem qualquer poder sobre as paixões, e uma paixão não pode ser suprimida por um conhecimento racional e sim por uma outra paixão mais forte e contraria,
- as paixões que se referem ao tempo presente são mais fortes do que as que se referem ao futuro e ao passado; as paixões por uma coisa imaginada como necessária são mais intensas do que aquelas por uma coisa imaginada como possível ou contingente; e mais fortes pela coisa imaginada possível do que pela imaginada contingente;
- cada um se esforça para conservar o que lhe é útil — bom — e para afastar e destruir o que lhe é nocivo — mau —, e a potência para fazê-lo é maior naquele que é virtuoso, uma vez que o fundamento primeiro e único da virtude não é outro sendo a potência de existir e agir, definidora de nossa essência singular;
- aquilo que é de natureza completamente diversa da nossa não pode favorecer nem entravar nossa potência de agir, e, em absoluto, nenhuma coisa pode ser boa ou má para nós se não tiver algo em comum conosco; por isso é má a coisa contrária à nossa natureza e necessariamente boa a coisa que concorda com nossa natureza;
- enquanto os homens estão submetidos às paixões não se pode dizer que concordam por natureza e, inversamente, pode-se dizer que são contrários uns aos outros;
- os homens concordam necessariamente quando vivem guiados pela razão porque esta lhes mostra que possuem qualidades, propriedades, traços comuns pelos quais podem viver em concórdia,
- a potência de autoconservação é o “supremo direito de natureza”, isto é, a identidade entre direito e potência ou entre direito e poder.
Espinosa invoca “o eloquente testemunho da experiência cotidiana” para confirmar que nada é mais útil a um homem do que um outro homem — “anda na boca de quase toda gente o provérbio: o homem é um deus para o homem” —, pois os homens percebem “que, com a ajuda mútua, podem conseguir muito mais facilmente aquilo de que têm necessidade e que somente unindo suas forças podem evitar os perigos que os ameaçam de todos os lados”. Se a experiência mostra a utilidade da vida em comum, a razão, por seu turno, demonstra que “as coisas que conduzem à sociedade dos homens ou as que fazem com que os homens vivam em concórdia são úteis, ao contrário, são más as que induzem à discórdia na Cidade”.
Por que a identidade entre direito e potência ou entre direito e poder? A potência do universo não é sendo a potência da substância absolutamente infinita, imanente às suas expressões finitas, e por isso o direito de natureza não é sendo a potência natural de todo ser singular, que lhe assegura fazer apenas o que segue da necessidade de sua natureza e julgar, segundo seu próprio temperamento, o bom e o mau (ou, como diz Espinosa no Teológico-político — visto que o direito de natureza coincide com a potência e o desejo de cada um —, tudo o que cada um deseja é -lhe permitido por natureza e nada lhe é proibido por natureza sendo o que ninguém deseja ou pode). Ora, se os homens vivessem guiados pela razão — cujas regras visam ao que é verdadeiramente útil para cada um e para todos —, seriam virtuosos e cada um exerceria esse direito sem dano para os demais, mas como são naturalmente atravessados pelas paixões, que ultrapassam em muito a potência de sua virtude, são contrários uns aos outros mesmo quando precisariam de auxilio mútuo. Em outras palavras, se vivessem guiados pela razão, suas naturezas concordariam, pois, possuindo qualidades e propriedades comuns que os tornam semelhantes, sua concórdia seria imediata e espontânea, e, sendo todos virtuosos, cada um desejaria para os outros o mesmo bem a que aspira (visto que, como lembramos acima, o que é natureza completamente diversa da nossa não pode favorecer nem prejudicar nossa potência de agir, e, em absoluto, nenhuma coisa pode ser para nós boa ou má se não tiver algo em comum conosco). Todavia, é também por natureza que os homens são contrários uns aos outros, e, habitados pelas paixões, a discórdia lhes é natural, imediata e espontânea. A única maneira de passar da contrariedade à concordância, da discórdia à concórdia, é renunciar ao desejo natural de prejudicar os outros.
Essa mudança se realiza em dois níveis. O primeiro, cujo efeito sendo desejo de não prejudicar os outros, é uma passagem: da discórdia à concórdia, passa-se de uma paixão ontologicamente fraca — o medo que todos têm de todos — a uma outra, ontologicamente forte — a esperança dos benefícios decorrentes da utilidade recíproca. O segundo nível, porém, cuja causa é a renúncia ao desejo natural de posse e destruição dos outros, é uma ruptura.
Visto que Espinosa afirma que a política deve ser deduzida da condição natural dos homens, que estes são naturalmente passionais e racionais, e que a paixão pode dividi-los enquanto a razão necessariamente os une, para chegar à instituição da política é preciso encontrar um ponto de interseção entre a razão e a paixão. Esse ponto de interseção é exatamente o que Espinosa designa com o nome de lei, igualmente válida para ambas. No que concerne à paixão, trata-se da lei natural segundo a qual um afeto só pode ser vencido por um outro afeto mais forte e contrário ao que deve ser vencido e do fato de nos abstermos de causar um dano por medo de receber um dano maior. No que concerne à razão, exatamente a mesma lei é demonstrada, pois “sob a condução da razão, escolhemos de dois bens o maior e de dois males o menor” e “sob a condução da razão desejamos um bem maior futuro de preferência a um bem menor presente, e um mal menor presente de preferência a um mal maior futuro”. Graças a essa lei natural, que a um só tempo rege a paixão e a razão, a vida social, por meio da cooperação (ou da divisão social do trabalho e de seus produtos) e das regras tácitas da vida em comum, poderá ser estabelecida como alicerce da instituição da civitas ou das leis civis, que serão mantidas pelos cidadãos, não pela força da razão (que não tem poder sobre os afetos), e sim pelas ameaças de punição.
O campo aberto pela dinâmica afetiva funda-se na demonstração da força de um afeto para vencer um outro mais fraco e contrário, a partir da definição da força de um afeto segundo a diferença entre alegria e tristeza e conforme as circunstâncias, de tal maneira que um afeto é mais forte quando voltado para algo presente e imaginado como necessário, e mais fraco quando voltado para algo passado ou futuro e imaginado como possível ou contingente. A dinâmica da contrariedade e força dos afetos indica que a esperança — paixão derivada da alegria — é mais forte do que o medo — derivado da tristeza, e, no nível das circunstâncias, a dinâmica afetiva da maior força do presente diante do passado e do futuro, e do necessário diante do possível e do contingente, explica por que a segurança é mais forte do que a esperança e o medo, e por que dela provém o verdadeiro poder das leis civis sobre nós.
A experiência imaginária da finitude se realiza como dependência de algo outro e, simultaneamente, como desejo de consumir essa alteridade, absorvê-la e aniquilá-la; e a discórdia passional entre os homens nasce do desejo de cada um de ter a posse e a fruição exclusiva de um bem. Dos bens desejados pela imaginação/paixão, o maior é a posse de um outro ser humano para fazê-lo desejar nosso desejo; e, para a imaginação coletiva, o bem supremo é julgar-se escolhido por Deus com exclusão de todos os outros (ser o povo eleito). Nessa dependência do outro, seja como desejo de possuí-lo com exclusividade, absorvê-lo e consumi-lo, seja como desejo de impedi-lo de alcançar um bem que lhe poderia pertencer, emerge pela primeira vez o medo da solidão, cujo aparecimento é necessariamente ambíguo, pois exprime a um só tempo nossa carência do outro e nossa recusa do outro como separado e estranho. Todavia, o “eloquente testemunho da experiência” nos força a reconhecer a impossibilidade de efetivar o desejo de total consumação e aniquilamento do outro, pois esse desejo se volta contra nós, seja porque, no confronto conosco, o outro experimenta esse mesmo desejo em relação a nós, seja porque a destruição do outro nos lança no desamparo. Assim, o medo da solidão pode transformar-se em desespero, cuja causa somos nós mesmos. É aqui, entretanto, que intervém a lei natural do mal menor e do bem maior sob a forma de um afeto mais forte do que o medo produzido pelo desejo de aniquilamento do outro, isto é, sob a forma da esperança, operando a passagem da destruição ou discórdia à cooperação ou concórdia. O que permite essa passagem de uma paixão à sua contrária e, de um lado, sob a lei do mal menor e do bem maior, a vitória afetiva da esperança, paixão de alegria, cuja força é superior e contrária à do medo, paixão da tristeza; e, de outro, o fato de que o que reforça a esperança, mesmo que ela não o saiba, é que a concordância possui fundamento ontológico, ou seja, o fato de que os homens possuem características, qualidades e propriedades comuns, conhecidas pela razão. Poderíamos ate mesmo falar numa “astúcia da razão”, que se serve de uma paixão, a esperança, para dar força operante e potência racional dos elementos ontologicamente comuns aos homens e que fundam a possibilidade da cooperação entre eles. De fato, é preciso observar que Espinosa distingue entre as relações fundadas na paixão e aquelas fundadas na razão, afirmando que as primeiras podem tornar os homens contrários uns aos outros, enquanto as segundas os tornam necessariamente concordantes. Em outras palavras, sob as paixões, a discórdia é uma possibilidade que não exclui a da concórdia, ainda que ambas sejam necessariamente instáveis e inconstantes; sob a razão, porém, a concórdia é necessária, pois inscrita na natureza dos homens. A “astúcia da razão” consiste em se valer de uma paixão alegre, propensa à concórdia, para nela introduzir estabilidade e constância ao lhe dar os meios para transformar-se em segurança.
Se, agora, quisermos compreender por que, para além dessa passagem, é também possível falar em uma ruptura no advento do político, será preciso examinar um outro aspecto da experiência imaginária da finitude: nossa relação com a contingência, ou seja, a forma extrema da insecuritas, que Espinosa designa com a expressão maximo omnium metu.
A experiência da contingência é irredutível, pois nunca poderemos ter a certeza quanto ao desenlace do curso das coisas singulares. No entanto, há duas maneiras distintas de enfrentar a contingência.
Numa delas, dominados pelo medo, cremos no poder da sorte e nos submetemos a ela, visto que, não podendo dominar todas as circunstâncias de nossas vidas, concluímos que não temos poder nenhum sobre algumas. Disso nascem a superstição, a crença na transcendência da potência divina, no poder divinatório de magos e sacerdotes, em suma, o poder teológico e o poder monárquico. De fato, o desejo de vencer a dispersão e fragmentação temporais dos eventos produz concatenationes arbitrárias entre as coisas e entre os acontecimentos cuja estabilidade e permanência dependem de sua unificação imaginária na figura da unidade do poder encarnado em um rei. Em suma, o poder nascido apenas do medo é sempre imaginado como transcendente e separado dos homens (poder de Deus), dos crentes (poder teológico) e dos cidadãos (poder monárquico).
Há, porém, outra maneira de enfrentar a contingência. Agora, distinguimos entre o que está completamente submetido ao poder das causas externas (ou o que está fora de nosso poder) e o que está em nosso poder, segundo as circunstâncias. Dirigimos nosso esforço e nossa potência à conservação dessas circunstâncias e sobretudo à ampliação de sua presença e de seu campo, ou, em outras palavras, buscamos reforçar o presente para que seja capaz de determinar o futuro, de tal maneira que, graças a nós, as circunstâncias recebam uma espécie de necessidade. Aqui também há “astúcia da razão”, pois a imaginação é levada a produzir concatenationes, que dependem de nossa potência e que, por isso mesmo, se apoiam tacitamente em connexiones necessárias, ainda que explicitamente ignoradas por nós. Nesse caso, passamos da esperança à segurança, e para conservá-la precisamos manter as circunstâncias de seu advento. Ora, a ampliação das circunstâncias em nosso poder não muda a esperança em segurança sendo quando estabelecemos os instrumentos de estabilização da temporalidade, ou seja, instituições políticas que estão e permanecem em nosso poder. Em outras palavras, dado que essa instituição decorre da percepção do que está em nosso poder, a potência coletiva assim instituída não se separa dos cidadãos. Isso significa que a política assim instituída lhes é imanente, ou seja, democrática.
Vejamos, então, como Espinosa concebe a instituição da política.
O filósofo considera que algo é um indivíduo (humano ou não) quando as partes que o compõem se tornam constituintes de um todo unificado e a passagem dos componentes a constituintes decorre de todos eles conjuntamente operarem como causa única de produção de efeitos determinados. Graças à ideia do indivíduo como integração e diferenciação interna dos constituintes (ou das partes constituintes do indivíduo, que podem ser fortes ou fracas) e do principio de aumento e diminuição da potência ou intensidade da força pelas relações com as potências externas — os constituintes fracos submetendo-se às pressões externas, os constituintes fortes não só resistindo a elas, mas sobretudo as vencendo —, Espinosa pode conceber o conflito como interno ao indivíduo, tanto quanto externo a ele. Trata-se de um conflito de forças contrárias e de intensidade variável que dependem dos objetos desejados e da intensidade do desejo. Cada potência individual é constituída por intensidades de forças concordantes ou conflitantes e se relaciona com uma totalidade cujas forças podem concordar ou conflitar com a sua, podendo fortalecer-se ou enfraquecer-se nessa relação.
A ideia do indivíduo como integração interna operada pela potência como causa comum para obter um efeito único leva à ideia do indivíduo complexo como multitudo, e, por outro lado, a ideia do indivíduo como diferenciação interna dos constituintes pela diferente intensidade da força dos componentes permite compreender que a multitudo é constituída por diferentes intensidades internas de forças e tanto pela concordância como pelo conflito entre elas. Podemos, então, nos acercar de três temas constantes no discurso político espinosiano: o primeiro refere-se à ideia de que o corpo político visa ao equilíbrio interno das potências por uma ordenação institucional (res ordinandas) das forças determinado pelo instante inicial de constituído do próprio corpo político, quando a forma política é definida pela decisão quanto a quem tem o direito ao poder e pelo estabelecimento da proporcionalidade geométrica entre as potências individuais, as da multitudo e as da soberania, isto é, entre o direito natural e o direito civil. O segundo refere-se à ideia de que o inimigo principal do corpo político nunca lhe é exterior, mas interno, qual seja, o particular que enquanto particular movido por interesses privados arroga-se o direito de promulgar ou abolir as leis. E o terceiro, o de que o equilíbrio das forças é continuamente rompido pela diminuição ou pelo aumento da intensidade das forças internas (tanto as dos indivíduos como as da, multitudo e as do imperium), de sorte que a dinâmica das forças permite pensar a duração do imperium — tanto os meios de sua conservação como as causas de sua destruição ou, ainda, de sua mudança.
Para Espinosa, existem normas universais para a instituição do poder político: 1) a necessidade de que a potência soberana seja inversamente proporcional à potência dos indivíduos tomados um a um ou somados, isto é, a potência soberana — o direito civil — deve ser incomensurável ao poder dos cidadãos — direito natural — tomados um a um ou somados, pois o direito civil é potência da multitudo corporificada no direito civil; 2) a necessidade de que a potência dos governantes seja inversamente proporcional à dos cidadãos, mas agora em sentido inverso ao anterior, isto é, tomados coletivamente, devem ter mais potência do que o governante, pois o poder coletivo ou potência e direito da multitudo não se identifica com ninguém. Em outras palavras, o governante não se identifica com o poder soberano. Há distância necessária entre a potência do governante e o imperium. Ou seja, o governante não é o soberano, pois este é sempre a multitudo. E porque a figura do governante não se confunde com a do poder soberano, os detentores do poder soberano, isto é, os cidadãos enquanto multitudo, têm o poder para depor o governante, se tiverem forças para isso. A soberania é, portanto, intransferível. O que se distribui não é a soberania — pois esta permanece com a multitudo —, e sim o direito de participação no poder. O que distingue os regimes políticos não é, portanto, a origem do poder (a origem é sempre a mesma, a massa como corpo único e causa única) nem o número de governantes (pois o governante não é idêntico à soberania), mas a definição do direito de exercer o poder. Percebe-se, então, que nem o número de governantes nem o caráter eletivo ou representativo dos governos determinam a forma do corpo político.
Uma vez que o direito é medido pelo poder, que ser livre é ser senhor de si e que o direito político é o poder da multitudo reunida numa só ação, a medida do direito, do poder e da liberdade exige a compreensão de cada forma política a partir da distribuição proporcional das potências que a constituem e, portanto, do lugar que a multitudo ocupa em cada uma delas. Por essa medida saberemos qual estado é melhor, qual é superior e qual é livre. Cada forma política é melhor quanto menor o risco de tirania, isto é, de passagem do direito soberano ao direito natural de um só homem ou de um punhado de homens. Cada regime político é superior a outro quanto menor for o número de disposições institucionais necessárias para impedir o risco da tirania. E, enfim, um corpo político é mais livre do que outro quando nele os cidadãos correm o menor risco da opressão porque sua autonomia é tanto maior quanto maior o poder da Cidade. Consequentemente, quanto mais livre for uma Cidade, menor será seu risco de ser oprimida por outras. Isso significa, por exemplo, que um corpo político monárquico é um dos mais sujeitos a ser dominado por outro, pois seus súditos já se habituaram de tal maneira a ser dominados por um só homem, que passar da submissão a um dominante e obediência a um outro lhes é indiferente. Ao contrário, na democracia, a autonomia individual estando claramente firmada na autonomia coletiva, cada um e todos estão dispostos a lutar até à morte para impedir tanto o risco da usurpação interna como o da invasão externa. Apesar de o filósofo demonstrar que todo e qualquer corpo político pode apresentar o melhor, o superior e o livre em graus variáveis, torna-se claro que o parâmetro subjacente a esses critérios é a política democrática.
A estrutura do campo político se oferece originariamente diferenciada: há o sujeito político soberano — a multitudo, que constitui o imperium, há o cidadão, que participa do exército do poder conforme sua distribuição decidida no momento da instituição — participação que é seu poder para fazer as leis e participar do governo; há o governante, que executa o que soberania decide, dando às decisões a forma da lei positiva ou direito civil; e, finalmente, há o súdito, que está obrigado a obedecer às decisões do sujeito político, a respeitar as leis postas pelos cidadãos e a submeter-se aos decretos do governante. Na democracia, todas essas figuras políticas coincidem, e também coincidem sua existência empírica e sua existência política. Nos demais regimes, essa coincidência desaparece, uma vez que nem todos são cidadãos, embora todos sejam súditos e, no momento da instituição, todos sejam sujeito político. Mas, porque o sujeito político nunca se torna virtual, as instituições das sociedades divididas em classes devem contemplar mecanismos pelos quais os excluídos do governo e da cidadania possam satisfazer o direito natural, através do direito civil — lembrando que são as divisões sociais que determinam a forma da participação no poder. Finalmente, as diferenças internas que estruturam todo e qualquer corpo político deixam entrever todos os conflitos possíveis entre seus componentes e constituintes.
Os indivíduos não formam uma coletividade apenas pondo o direito civil, mas também dando-se costumes comuns. A articulação entre costumes e direito civil concerne aos sujeitos sociais. Quando, pois, Espinosa afirma que a potência soberana tem direito a tudo a que tiver poder, mas que esse poder possui limites, estes são duplos: o primeiro deles é social, isto é, diz respeito aos costumes ou ao ingenium gentis; o segundo diz respeito às medidas que não podem provocar “furor e indignação da multitudo” porque isso acarreta ódio aos governantes — ou o desejo de transgredir as leis para repor as leis originárias, e ambos são ocasião para que a Cidade produza a sedição. Institucionalizar é dispor as coisas de tal maneira que estejam de acordo com a natureza dos lugares, as circunstâncias e o ingenium gentis, pois “é preciso conduzir os homens de tal maneira que não acreditem estar sendo conduzidos, mas vivendo sob seu livre decreto e conforme ao seu próprio feitio”.
Espinosa afirma que vícios e virtudes dos cidadãos não são deles, mas da Cidade, e o são pela fraqueza e pela fortaleza. Portanto, os costumes dependem da qualidade das instituições. E estas são postas pela lei. Dessa maneira, a relação lei-costume, costume-regime político, costume-mudança revela-se múltipla e polissêmica, pois o costume determina o que a lei não pode impor, enquanto a lei determina o que o costume deve fazer. O conflito entre a força do costume e a força da lei determina o desejo de mudança. Ora, Espinosa não diz que a mudança é desaconselhada pelo costume e sim que a mudança deve submeter-se à nova lei e não à força do costume, pois submetendo-se a essa última o corpo político não dará força à lei nova.
Até onde vai o poder da Cidade?
Em um primeiro momento, Espinosa deduz a potência da Cidade pela designação de seu limite, isto é, daquilo que escapa necessariamente ao seu poder, ou seja, tudo aquilo a que a natureza humana tem horror e que, se lhe fosse imposto, desencadearia a fúria e a indignação popular. Em suma, escapa ao poder da Cidade tudo o que a faça odiada pelos cidadãos. Se a Cidade deve temer seus inimigos, precisa instituir-se de maneira a impedir que encontrem meios para surgir e para justificar-se. Isso significa, por um lado, que a Cidade deve ser respeitada e temida pelos cidadãos, mas que só pode sê-lo na medida em que suas exigências forem proporcionais ao que a multitudo pode respeitar e temer sem se enfurecer. A soberania só pode existir sob a condição expressa de não ser odiada porque não é odiosa. Se a Cidade exigir mais, ou se exigir menos, deixará de ser um corpo político. Ou, como escreve Espinosa: “o poder que temos em vista exercer não deve ser medido apenas pela potência do agente, mas também pela aptidão que o paciente oferece”.
Também é decisivo para determinar até onde vai o poder da Cidade compreender que a Cidade não poderá tornar-se inimiga de si mesma e que, portanto, os conflitos que a habitam só podem ser conflitos dos cidadãos sob a lei e não dos cidadãos contra a lei. Se a Cidade for capaz de impedir a usurpação da lei por particulares, sem que isso signifique supressão dos conflitos sociais, tendo determinado sua autonomia e seu poder. Dessa maneira, podemos compreender que a obediência exprime apenas a recriação ininterrupta da Cidade, pois nela se obedece a uma lei que, no momento de sua instauração, foi posta pela multitudo, de sorte que, ao obedecê-la, obedecem a si próprios como cidadãos. A obediência é apenas a repetição ou reiteração, na dimensão do imaginário, do ato fundador da Cidade, pois nesse ato a criação da potência da multitudo engendra a incomensurabilidade entre a soberania e os particulares que vivem sob ela. A obediência é um ato segundo ou derivado e, por isso mesmo, exprime muito mais a virtude da Cidade do que a dos cidadãos, pois a Cidade obedecida só pode ser aquela cuja instauração cumpre o desejo do agente e a aptidão do paciente. Se, numa Cidade, o princípio instituinte é impotente para suprimir a sedição, visto não ser essa um conflito entre os cidadãos, mas entre eles e a lei da Cidade, então, esta ainda não foi verdadeiramente instituída, pois falta-lhe aquilo que a constitui como tal: o poder da potência soberana para ser reconhecida como soberana. A guerra civil assinala, portanto, a injustiça da Cidade e a necessidade de destruí-la para que tenha lugar uma nova e verdadeira instituição, em suma, aponta a necessidade da revolução.
V
Essas considerações nos permitem entender por que Espinosa julga a democracia a forma superior da vida social e política.
Estamos acostumados a aceitar a definição liberal da democracia como regime da lei e da ordem para a garantia das liberdades individuais. Visto que o pensamento e a prática liberais identificam liberdade e competição, essa definição da democracia significa, em primeiro lugar, que a liberdade se reduz à competição econômica da chamada “livre iniciativa” e a competição política entre partidos que disputam eleições; em segundo, que há uma redução da lei a potência judiciária para limitar o poder político, defendendo a sociedade contra a tirania, pois a lei garante os governos escolhidos pela vontade da maioria; em terceiro, que há uma identificação entre a ordem e a potência dos poderes executivo e judiciário para conter os conflitos sociais, impedindo sua explicitação e desenvolvimento por meio da repressão; e, em quarto lugar, que, embora a democracia apareça justificada como “valor” ou como “bem”, é encarada, de fato, pelo critério da eficácia, medida, no plano legislativo, pela ação dos representantes, entendidos como políticos profissionais, e, no plano do poder executivo, pela atividade de uma elite de técnicos competentes aos quais cabe a direção do Estado.
A democracia é, assim, reduzida a um regime político eficaz, baseado na ideia de cidadania organizada em partidos políticos, e se manifesta no processo eleitoral de escolha dos representantes, na rotatividade dos governantes e nas soluções técnicas para os problemas econômicos e sociais.
Ora, há, na prática democrática e nas ideias democráticas, uma profundidade e uma verdade muito maiores e superiores ao que o liberalismo percebe e deixa perceber.
Podemos, em traços breves e gerais, caracterizar a democracia como ultrapassando a simples ideia de um regime político identificado forma do governo, tomando-a como forma geral de uma sociedade e, assim, considerá-la como:
- forma sociopolítica definida pelo principio da isonomia (igualdade dos cidadãos perante a lei) e da isegoria (direito de todos para expor em público suas opiniões, vê-las discutidas, aceitas ou recusadas em público), tendo como base a afirmação de que todos são iguais porque livres, isto é, ninguém está sob o poder de um outro porque todos obedecem às mesmas leis das quais todos são autores (autores diretos, no caso de uma democracia participativa; e indiretos, em uma democracia representativa). Dal o maior problema da democracia numa sociedade de classes ser o da manutenção de seus princípios — igualdade e liberdade — sob os efeitos da desigualdade real;
- forma política na qual, ao contrário de todas as outras, o conflito é considerado legítimo e necessário, buscando mediações institucionais para que possa exprimir-se. A democracia não é o regime do consenso, mas do trabalho dos e sobre os conflitos. Donde uma outra dificuldade democrática nas sociedades de classes: como operar com os conflitos quando esses possuem a forma da contradição e não a da mera oposição?
- forma sociopolítica que busca enfrentar as dificuldades acima apontadas conciliando o principio da igualdade e da liberdade e a existência real das desigualdades, bem como o principio da legitimidade do conflito e a existência de contradições materiais introduzindo, para isso, a ideia dos direitos (econômicos, sociais, políticos e culturais). Graças aos direitos, os desiguais conquistam a igualdade, entrando no espaço político para reivindicar a participação nos direitos existentes e, especialmente, para criar novos direitos. Esses são novos não simplesmente porque não existiam anteriormente, mas porque são diferentes daqueles que existem, uma vez que fazem surgir, como cidadãos, novos sujeitos políticos que os afirmaram e os fizeram ser reconhecidos por toda a sociedade;
- o único regime político realmente aberto às mudanças temporais, uma vez que, pela criação dos direitos, a democracia faz surgir o novo como parte de sua existência e, conseqüentemente, a temporalidade como constitutiva de seu modo de ser;
- única forma sociopolítica na qual o caráter popular do poder e das lutas tende a evidenciar-se nas sociedades de classes, na medida em que os direitos só ampliam seu alcance ou só surgem como novos pela ação das classes populares contra a cristalização jurídico-política que favorece a classe dominante. Em outras palavras, a marca da democracia moderna, permitindo sua passagem de democracia liberal a democracia social, encontra-se no fato de que somente as classes populares e os excluídos (as “minorias”) sentem a exigência de reivindicar direitos e criar novos direitos;
- forma política na qual a distinção entre o poder e o governante é garantida não só pela presença de leis e pela divisão de várias esferas de autoridade, mas também pela existência das eleições, pois essas (contrariamente do que afirma a ciência política) não significam mera “alternância no poder”, mas assinalam que o poder está sempre vazio, que seu detentor é a sociedade e que o governante apenas o ocupa por haver recebido um mandato temporário para isso. Em outras palavras, os sujeitos políticos não são simples votantes, mas eleitores. Eleger significa não só exercer o poder, mas manifestar a origem do poder, repondo o principio afirmado pelos romanos quando inventaram a política: eleger é “dar a alguém aquilo que se possui, porque ninguém pode dar o que não tem”, o que significa que eleger é afirmar-se soberano para escolher ocupantes temporários do governo.
Dizemos, então, que uma sociedade — e não um simples regime de governo — é democrática quando, além de eleições, partidos políticos, divisão dos três poderes da república, respeito à vontade da maioria e das minorias, institui algo mais profundo, que é condição do próprio regime político, ou seja, quando institui direitos e essa instituição é uma criação social, de tal maneira que a atividade democrática social realiza-se como um contrapoder social que determina, dirige, controla e modifica a ação estatal e o poder dos governantes.
A sociedade democrática institui direitos pela abertura do campo social à criação de direitos reais, à ampliação de direitos existentes e à criação de novos direitos. Eis por que podemos afirmar que a democracia é a sociedade verdadeiramente histórica, isto é, aberta ao tempo, ao possível, às transformações e ao novo. Com efeito, pela criação de novos direitos e pela existência dos contrapoderes sociais, a sociedade democrática não está fixada numa forma para sempre determinada, ou seja, não cessa de trabalhar suas divisões e diferenças internas, de orientar-se pela possibilidade objetiva (a liberdade) e de alterar-se pela própria práxis.
A sociedade democrática é, pois, aquela que não esconde suas divisões, mas procura trabalhá-las pelas instituições e pelas leis. É ela que pode responder à pergunta que nos foi colocada: o que é a política?