2014

O silêncio e a sombra

por Guilherme Wisnik

Resumo

A eclosão da modernidade, a partir da segunda metade do século XIX, é fortemente marcada pelo acelerado processo de urbanização e o correlato surgimento das grandes metrópoles. O espaço urbano moderno é o lugar da multidão, do encontro e do choque das massas humanas recém aglomeradas em um mesmo espaço físico. Lugar tanto do flâneur (Baudelaire, Walter Benjamin) quanto do indivíduo blasé (Georg Simmel), a grande cidade é confusa, agitada e ruidosa, tornando a turbulência sensorial uma espécie de signo da modernidade.

E se a agitação moderna fica normalmente associada ao impulso democratizante da grande cidade, de par com o ímpeto revolucionário das contestações políticas em espaço público, a imagem do silêncio, nesse contexto, acaba identificada à massificação alienada, como no caso da famosa frase do ex-presidente norte-americano Nixon agradecendo a “maioria silenciosa” que apoiava por omissão a Guerra no Vietnã. Contudo, à medida que o processo de modernização avança durante o século 20, reações à homogeneização ruidosa dos espaços da cidade se formam e amadurecem na produção de alguns notáveis arquitetos, tais como Lucio Costa no Brasil, Luis Barragán no México, e Tadao Ando no Japão.

Nos três casos, a criação de pátios internos e jardins silenciosos em casas e edifícios urbanos procura recriar a intimidade e o lugar mental da contemplação perdidos pelo processo de acelerado crescimento urbano, com as correlatas perda de vínculos familiares e desenraizamento em relação ao lugar em que se vive. E se Lucio Costa busca uma síntese paradoxal da vida bucólica colonial no ambiente pacato das superquadras de Brasília, os pátios metafísicos de Barragán multiplicam no espaço o “labirinto da solidão” de Octavio Paz, e o silêncio inquietante das  casas de concreto de Tadao Ando dão expressão visível à poética da sombra, que tanto marca a cultura oriental, por oposição ao nosso iluminismo panóptico. Assim, busca-se no livro “em louvor da sombra”, de Junichiro Tanizaki, uma reflexão sobre como o silêncio e a sombra são conceitos que definem matrizes de uma poderosa contraposição ao processo ocidental de desenvolvimento: a chamada modernidade.


Por que elogiar o silêncio, quando a grande força de transformação social do momento presente parece emanar do som ao redor, isto é, da ruidosa e rebelde voz das ruas, atravessando lugares como as periferias de Paris, o centro financeiro de Nova York, as várias “primaveras” árabes, uma praça em Istambul e inúmeras cidades brasileiras? Não há dúvida de que a imagem do silêncio na modernidade pode ser em grande medida associada ao impulso conservador de uma massificação alienada, tal como no caso do famoso pronunciamento do ex-presidente norte-americano Richard Nixon, em 1969, agradecendo à “maioria silenciosa” que apoiava por omissão a guerra no Vietnã. Pois a grande metrópole moderna, lugar da multidão, do encontro e do choque das massas humanas recémreunidas em um mesmo espaço físico, é por excelência um fenômeno de aglomeração fremente. Propiciando o nascimento histórico tanto do flâneur quanto do indivíduo blasé[1], a grande cidade é confusa, agitada e ruidosa. Nesse sentido, o pacífico silêncio em uníssono do mundo rural ou das pequenas comunidades é o antônimo da agitação dissonante, plural e contraditória da cidade moderna, cuja turbulência sensorial é normalmente associada ao impulso democratizante da disputa entre interesses diversos na arena dos espaços públicos.

Com efeito, esse esquema teórico tão tipicamente moderno não permanece inteiramente válido ao longo do século XX, e em especial em sua segunda metade. Em linhas gerais, é plausível afirmar que a hipertrofia da sociedade de consumo, de par com a transformação da metrópole moderna em cidade genérica[2], vai colocando em xeque o poder emancipatório do choque entre as diferenças na cidade – tão bem interpretado por Baudelaire e Walter Benjamin-, e, com ele, o próprio poder e significado do espaço público em si. Em vez de representar o lugar do conflito libertador, o ruidoso espaço urbano cada vez mais desenhado e regrado pelas leis niveladoras do capital financeiro global e da especulação imobiliária passa também a significar homogeneidade e segregação, lugar da perda tanto de vínculos sociais, familiares e étnicos, como de tradições culturais longamente estabelecidas. Nesse sentido, o silêncio pode aparecer como contraponto crítico ao embotamento dos sentidos e à falta de profundidade nas relações humanas, tanto no plano individual quanto no plano coletivo. Em um mundo tomado pelo excesso de informação e autoexposição, o silêncio é uma categoria simbólica caracterizada pela recusa a essa saturação de palavras, imagens e produtos. Aqui, interessa-me não tanto o silêncio niilista provindo de uma vontade de alheamento do mundo, mas o silêncio como reação crítica a esse mesmo mundo desde o seu interior. O silêncio eloquente de quem acusa a vacuidade circular e tautológica dessa comunicação surda e sem fim, em que a linguagem se esteriliza na hipertrofia da sua função fática.

Mas que silêncio é esse a que estou me referindo? Um caso paradigmático, a meu ver, é o de Marcel Duchamp, que, depois de inventar o ready-made e minar o fundamento histórico da arte ocidental, criando as bases do conceito de antiarte, fez uma retirada precoce da cena artística e passou o restante da vida enigmaticamente jogando xadrez. Portanto, o que nos diz o silêncio irônico e acusativo de Duchamp? Talvez as performances mais conscientemente midiáticas de Marina Abramovic, tais como a do MOMA de Nova York em 2011, The artistis present, em que ficou sentada durante meses a fio em silêncio “sagrado” diante de um público ávido por encará-la, representem o ponto de paroxismo dessa mesma

No campo da arquitetura, é possível contrapor a silenciosa economia de meios moderna, claramente sintetizada na máxima minimalista de Mies van der Rohe, less is more, ao excesso formal inaugurado pelo pós-modernismo e hoje emblema da “arquitetura espetacular” de figuras como Frank Gehry, Santiago Calatrava e Zaha Hadid, entre outros. Trata-se de entender o silêncio, portanto, não apenas como uma ausência de ruído sonoro, mas, de uma maneira mais ampla, como uma contra posição à retórica da linguagem, aos maneirismos formais. Reforçando a argumentação anterior, um silêncio entendido como discurso, que se mostra através de diferentes formas de recusa, de distanciamento ou de redução de linguagem, onde a mensagem passa por um processo de condensação e depuração máximas.

À medida que o processo de urbanização e verticalização das cidades avançou após a Segunda Guerra Mundial, reações à homogeneização ruidosa e impessoal dos seus espaços se formaram e amadureceram na produção de alguns notáveis arquitetos, tais como Luis Barragán, no México, e Tadao Ando, no Japão. Nos dois casos, a criação de pátios internos e jardins silenciosos em casas e edifícios urbanos procura recriar a intimidade e o lugar mental da contemplação perdidos na aceleração alienante da vida moderna. E se os pátios metafísicos de Barragán multiplicaram no espaço o labirinto da solidão com que Octavio Paz definiu o ser mexicano, a austeridade silenciosa das obras de concreto de Tadao Ando deram expressão visível à poética da sombra e do vazio, que tanto marca a cultura oriental por oposição ao nosso Iluminismo panóptico.

Luis Barragán e Tadao Ando criam ambiências espaciais tão sutis e complexas que podemos qualificar suas obras como mais táteis do que visuais, sendo passíveis de apreensão verdadeira apenas através das experiências cambiantes de luz, de temperatura, de sons e dos percursos variados que podem ser traçados em seus espaços enclausurados e dinâmicos.

Experiências fenomenológicas vividas pelo corpo de quem percorre os seus ambientes, que não se deixam reduzir à condição de imagem através da qual a arquitetura vem sendo progressivamente consumida na chamada sodedade do espetáculo[3]. Por isso, as obras de Ando e Barragán são emblemáticas de uma produção que o eminente crítico inglês Kenneth Frampton veio a qualificar de regionalismo crítico, procurando nomear uma corrente arquitetônica anticentrista que se opõe à tabula rasa da globalização conduzida pela técnica. Apoiado em Paul Ricoeur, Frampton define a atitude do regionalismo crítico como a tentativa paradoxal de criar uma cultura internacional com bases regionalistas, buscando “manifestações localmente moduladas da cultura mundial” através de fertilizações cruzadas[4]. Não por acaso, a abordagem claramente moderna dos arquitetos citados aqui surgiu em países fortemente marcados por culturas ancestrais – o Japão e o México -, em que tradições construtivas marcadamente tectônicas estão ameaçadas de desaparecimento pelo nivelamento cultural posto em marcha pela globalização e pela sociedade de consumo. Assim, a defesa do vernáculo, nesses casos, não é uma atitude romântica ou regressiva, mas uma tomada de posição política perante a adoção acrítica da tecnologia e do consumo estridente como valores soberanos.

O LABIRINTO DA SOLIDÃO

A experiência de se visitar a casa-estúdio de Luis Barragán (1947) no bairro de Tacubaya, Cidade do México, é particularmente elucidativa quanto aos princípios enunciados acima. Vista em planta, a construção parece um agregado mal composto de recintos e corredores de dimensões variadas e sem ordem aparente. Quando adentramos o espaço, no entanto, vamos percebendo no corpo as razões ocultas daquele desenho estranho. No estreito hall de entrada, ocupado apenas por uma cadeira, uma pequena mesa e um telefone, uma pintura dourada postada na parede de pé-direito duplo no alto da escada propaga uma luz diáfana no ambiente escuro, dando-lhe um aspecto sagrado.

Figura 1. Luis Barragan, Casa e estúdio Barragán (1947). Cidade do México

E, uma vez galgados os degraus que nos levam até o piso de cima, demoramos até atingir a sala de estar, atravessando pacientemente uma série de cômodos fechados e devotados a usos exclusivos da vida doméstica, tais como salas para o café da manhã, o almoço e o jantar, em um percurso com transições finamente estudadas. Quando, ao final desse percurso fenomenológico e processional, atingimos finalmente a sala de estar, um biombo nos impede a vista direta do espaço, fazendo-nos girar o corpo e atingir a sala apenas lateralmente, tendo a surpresa de sentir aos poucos, em nossas costas, a presença de uma ampla abertura envidraçada comunicando-se com o verdejante jardim dos fundos, para o qual a casa finalmente se abre.

Figura 2. Luis Barragán, Casa e estúdio Barragán (1947), Cidade do México

Sentimentalmente ligado às vivências de infância no interior do México em estancias e ranchos, Barragán conservou uma sensibilidade extremamente apurada para a relação sensual entre construção e natureza, envolvendo tanto uma espécie de mimetismo do solo ocre e avermelhado daquelas paisagens em planos contínuos e quase abstratos de paredes de cores rosa, roxa e laranja, quanto um uso sistemático da água como delicado elemento de fluxo temporal que atravessa e conecta os vários espaços construídos, em leitura acurada da tradição arquitetônica muçulmana herdada através da colonização espanhola. Descrevendo o rancho que sua família tinha perto do vilarejo de Mazamitla, o arquiteto recorda:

Nessa cidadezinha, o sistema de distribuição de água consistia em grandes troncos ocos, em forma de calhas, que corriam sobre uma estrutura de apoio de forquilhas de árvore, a cinco metros de altura, acima dos telhados. Este aqueduto atravessava a cidade toda, chegando aos pátios, onde havia grandes fontes de pedra para armazenar a água. Os pátios abrigavam os estábulos, com vacas e galinhas misturadas. Do lado de fora, na rua, havia argolas de ferro nas quais se amarravam os cavalos. As calhas de troncos, cobertas de limo, pingavam água sobre toda a cidade, é claro, o que lhe dava um ambiente de conto de fadas. Não, não existem fotografias. Resta-me apenas a lembrança[5].

Assim, ao mesmo tempo que reinterpretou modernamente o vernáculo e a paisagem do México nas magníficas estancias que construiu, como Las Arboledas (1958) e Los Clubes (1963), Luis Barragán encontrou nos pátios residenciais a quintessência da sua poética tectônica, contemplativa e solitária, especialmente potente na laje de cobertura da sua própria casaestúdio. Construída inicialmente corno um misto de pátio e terraço-jardim, combinando muros e parapeitos mais baixos que permitiam vistas parciais da paisagem circundante, essa cobertura foi sendo progressivamente fechada por muros altos à medida que Barragán se desencantava com a urbanização desordenada do bairro à sua volta, isolando-se cada vez mais em seu claustro pessoal, simbolizado por um singelo banco de madeira rodeado por muros caiados e encimado pela abóbada celeste.