2011

Razão crítica, razão instrumental e crença

por Antonio Cicero

Resumo

Quando se fala de “razão e crença”, tende-se, espontaneamente, a pensar em termos opostos. Talvez essa tendência decorra de que, muitas vezes, a palavra “crença” remeta à “fé”.

Quanto à sinonímia, a verdade é que a semelhança entre fé e crença é tal que, em certas línguas, só há uma palavra para designar ambas as ideias, como acontece, em alemão, com “Glaube”.

Quanto à oposição, sua história é longa, sobretudo quando se considera a tradição cristã. Nesse particular, o que há é o enaltecimento da fé em detrimento da razão ou, segundo o apóstolo Paulo, a sabedoria mundana. Basta lembrar, nesse sentido, da qualificação da razão como “puta amaldiçoada” por Lutero.

Já do lado dos racionalistas, a convicção é de que a fé não passa, como afirma Bertrand Russell, de “uma firme crença em algo para o qual não há evidência”.

De todo modo, o fato de que inúmeras outras línguas indo-europeias diferenciem “fé” de “crença” indica o reconhecimento de uma diferença que convém precisar. Em português, a palavra “fé” adquiriu uma conotação religiosa que não se encontra, ou pelo menos não é tão forte, na palavra “crença”. “A fé é um hábito da mente pelo qual a vida eterna começa em nós e que faz nosso intelecto consentir com coisas que não aparecem” – define Tomás de Aquino.

Não decorre a aproximação entre crença e fé da oposição entre ambas e o conhecimento? Mais: até que ponto é real essa oposição? O que aproxima e o que distingue tais noções?

Em primeiro lugar, há a crítica: à fé, à crença, ao conhecimento e mesmo à própria razão, como se lê na “Crítica da razão pura” de Kant, para quem qualquer crença que tente se subtrair à crítica “provoca uma justa suspeição e não pode exigir o respeito sincero que a razão só concede àquilo que tenha sido capaz de sustentar a prova do exame livre e aberto”.

Acontece, porém, que a razão – e, na verdade, a própria crítica – pode também ser usada instrumentalmente, já que ela também gera crenças, além de poder servir para fundamentá-las e defendê-las.

A razão é, pois, capaz de desempenhar uma função apologética. Daí que, ao examinar a relação entre razão e crença, é preciso considerar tanto o aspecto negativo, crítico, da razão em relação à crença, quanto o positivo, construtivo.

A seguir por esse viés, é preciso também investigar se é correto tomar a crença como mero objeto passivo da atividade crítica ou construtiva da razão, e a razão como sujeito puramente ativo da crítica ou da construção. Afinal, a confiança nesta não será, ela mesma, uma crença?

Enfim, pode a razão fundamentar a si própria, sem que essa fundamentação seja circular (caso se origine na própria razão) ou irracional (caso não se origine na própria razão)?


A FÉ NO VELHO TESTAMENTO

Esta palestra se intitula “Razão crítica, razão instrumental e crença”. Por um lado ela pretende falar, portanto, da razão — seja crítica, seja instrumental — e, por outro, da crença, bem como da relação entre a razão (ou as razões) e a crença (ou as crenças).

Começo pelo último termo, “crença”. Espontaneamente, quando falamos da relação entre a razão e a crença, creio que tendemos a pensar numa oposição: razãoversus crença. Essa tendência se deve ao fato de que, em português, frequentemente consideramos “crença” como sinônimo de “fé”. Imediatamente relacionamos a fé com a religião. Esse sentido chegou a nós através do cristianismo e, em particular, através dos escritos do apóstolo Paulo.

A palavra “fé” se origina no vocábulo latino “fides”. Fides tendo, em primeiro lugar, um sentido ético, não gnosiológico. A fides era uma das virtudes mais cultivadas entre os romanos. Marco Túlio Cícero a considerava o próprio fundamento da justiça[1]. Os derivados portugueses de “fides”, tais como “fiel”, “fidelidade” e, sobretudo, “confiança”, assim como a expressão “boa-fé”, dão uma ideia do que essa palavra significava. “Habere fidem”, “ter fé”, era ter confiança em alguém.

No Antigo Testamento, principalmente no Pentateuco, que são os seus cinco primeiros e mais importantes livros, fala-se pouco em fé. Muito mais importantes são os pactos ou alianças que Deus faz com Noé, com Abraão, com Moisés.

A Noé, Deus diz em Gênese[2]

6:18 Contigo estabelecerei o meu pacto; entrarás na arca, tu e contigo teus filhos, tua mulher e as mulheres de teus filhos.

Naturalmente, os compactuantes devem confiar uns nos outros; cada qual deve contar com a boa-fé do outro; eles confiam que serão fiéis um ao outro. A fidelidade de um ao outro se dá na fidelidade de ambos ao pacto. É esse o primeiro sentido da “fides” ou “fé”. Lê-se em Gênese:

15:6 E creu Abrão no Senhor, e o Senhor imputou-lhe isto como justiça.

Aqui “creu” significa “teve fé”. Esse trecho é usado pelo apóstolo Paulo para mostrar que a justificação do homem se dá através da fé, que é uma graça concedida por Deus, e não através das obras ou de qualquer outra ação voluntária do ser humano.

Examinemos o contexto dessa citação (Gênese 15:I ss). Abrão, fiel servo de Deus, lamenta não ter filhos.

15:5 [Deus] Então o levou para fora e disse: Olha agora para o céu, e conta as estrelas, se as podes contar; e acrescentou-lhe: Assim será a tua descendência.

15:6 E creu Abrão no Senhor, e o Senhor imputou-lhe isto como justiça.

Abrão creu no que Deus the dizia, isto é, creu que Deus cumpriria a sua parte do pacto. Trata-se de crença em que Deus será fiel ao pacto e de fidelidade ao pacto proposto por Deus. Assim, no Velho Testamento, ter fé ou crer em Deus não é ter fé ou crer na existência de Deus (essa não é sequer questionável para Abrão), e sim ser fiel a um pacto feito com Deus e confiar em que também Deus cumprirá sua parte desse pacto.

Observe-se que podemos decidir ser, na medida da nossa possibilidade, fiéis a um pacto. Confiar que o nosso parceiro também lhe será fiel já não depende exclusivamente da nossa vontade, mas também da intuição, da impressão e do conhecimento pessoal que temos dessa pessoa. Podemos confiar nela em dois sentidos: primeiro, no sentido de acreditarmos na boa-fé dessa pessoa e, segundo, de acreditarmos na sua capacidade de cumprir o compromisso que assumiu conosco. Abrão crê — tem fé — em Deus nesses dois sentidos.

Deus diz a Abrão em

17:9 Quanto a ti, guardarás o meu pacto, tu e a tua descendência depois de ti, nas suas gerações.

17:10 Este é o meu pacto, que guardarás entre mim e vós, e a tua descendência depois de ti: todo varão dentre vós será circuncidado. 17:11 Circundar-vos-ei na carne do prepúcio; e isto será por sinal de pacto entre mim e vós.

etc. e, em

17:14 Mas o incircunciso, que não se circuncidar na carne do prepúcio, essa alma será extirpada do seu povo; violou o meu pacto.

Deus quer, portanto, de Abrão e de sua descendência, a circuncisão como uma demonstração objetiva, na própria carne, de obediência.

Depois, há (em 22:1 SS) o episódio em que Deus ordena que Abrão sacrifique o seu único filho, Isaac; e Abrão chega a pegar no cutelo, para fazê-lo, quando o anjo do Senhor lhe brada desde o céu que não o faça:

22:12 Não estendas a mão sobre o mancebo, e não lhe faças nada; porquanto agora sei que temes a Deus, visto que não lhe negaste teu filho, o teu único filho.

O que Abrão provou claramente foi a sua obediência absoluta a Deus. Que ele acredite na existência de Deus nem entra em questão. O pacto é, portanto, que Deus lhe prometa algumas coisas, em troca da obediência absoluta. Essa obediência é o que Deus quer do povo com o qual faz o pacto.

Com Moisés e os filhos de Israel, Deus faz o famoso pacto do Monte Sinai, em Êxodo:

19.3 Então subiu Moisés a Deus, e do monte o Senhor o chamou, dizendo: Assim falarás à casa de Jacó, e anunciarás aos filhos de Israel: 19:4 Vós tendes visto o que fiz: aos egípcios, como vos levei sobre asas de águias, e vos trouxe a mim.

19:5 Agora, pois, se atentamente ouvirdes a minha voz e guardardes o meu pacto, então sereis a minha possessão peculiar dentre todos os povos, porque minha é toda a terra;

19:6 e vós sereis para mim reino sacerdotal e nação santa. São estas as palavras que falarás aos filhos de Israel.

19:7 Veio, pois, Moisés e, tendo convocado os anciãos do povo, expôs diante deles todas estas palavras, que o Senhor lhe tinha ordenado. 19:8 Ao que todo o povo respondeu a uma voz: Tudo o que o Senhor tem falado, faremos. E relatou Moisés ao Senhor as palavras do povo.

Deus diz então a Moisés as leis que o povo deverá seguir. De novo, não se trata de crer na existência de Deus, mas de obedecer a ele.

Em suma, a fé não tem, no Velho Testamento, caráter gnosiológico.

A fé no Novo Testamento

É somente no Novo Testamento, principalmente nos textos escritos pelo apóstolo Paulo, que a fé, como comprometimento subjetivo, se torna fundamental. Não é difícil perceber a razão disso. É que Paulo entendia que sua missão era evangelizar os gentios, os não judeus. Assim, ele diz em Gálatas:

1:15 aprouve a Deus, que desde o ventre de minha mãe me separou, e me chamou pela sua graça,

1:16 revelar seu Filho em mim, para que eu o pregasse entre os gentios.
E em Romanos:

1:5 recebemos a graça e o apostolado, por amor do seu nome, para a obediência da fé entre todos os gentios.

E em Romanos:

1:14 Eu sou devedor, tanto a gregos como a bárbaros, tanto a sábios como a ignorantes.

1:15 De modo que, quanto está em mim, estou pronto para anunciar o evangelho também a vós que estais em Roma.

1:16 Porque não me envergonho do evangelho, pois é o poder de Deus para salvação de todo aquele que crê; primeiro do judeu, e também do grego.

Mas se Paulo quer evangelizar a todos indiscriminadamente, se sua religião se quer universal ou católica, então não contam mais os pactos que o Deus do Antigo Testamento fizera com nenhum povo em particular. O que conta agora é o ingresso e a participação de cada um na comunidade religiosa aberta que, destarte, denomina-se “cristã”. É a isso que agora se dá o nome de “fé”. Em oposição ao pacto, que era algo objetivo, a ser cumprido ou violado, agora é a disposição individual de pertencer — de corpo e alma, em atos e em pensamentos — a essa comunidade religiosa que conta. Assim, Paulo diz, em Romanos:

2:25 Porque a circuncisão é, na verdade, proveitosa, se guardares a lei; mas se tu és transgressor da lei, tua circuncisão tem-se tornado em incircuncisão.

2:26 Se, pois, a incircuncisão guardar os preceitos da lei, porventura a incircuncisão não será reputada como circuncisão?

2:27 E a incircuncisão que por natureza o é, se cumpre a lei, julgará a ti, que com a letra e a circuncisão és transgressor da lei.

2:28 Porque não é judeu o que o é exteriormente, nem é circuncisão a que o é exteriormente na carne.

2:29 Mas é judeu aquele que o é interiormente, e circuncisão é a do coração, no espírito, e não na letra; cujo louvor não provém dos homens, mas de Deus.

Há, portanto, uma interiorização da fé. Entretanto, não é ainda a fé tal como hoje vulgarmente se entende. Assim, Paulo diz, em Romanos:

1:11 Porque desejo muito ver-vos, para vos comunicar algum dom espiritual, a fim de que sejais fortalecidos;

1:12 isto é, para que juntamente convosco eu seja consolado em vós pela fé mútua, vossa e minha.

A fé parece ser, em primeiro lugar, a confiança que tinham os membros da comunidade cristã uns nos outros. Essa confiança se estendia às demais comunidades cristãs e ao testemunho dos apóstolos, que aguardava a ocorrência iminente do dia do Juízo Final. A fé em Cristo era, em primeiro lugar, a confiança nessa promessa.

Em segundo lugar, porém, a fé é a crença, também no sentido gnosiológico, isto é, ligado ao conhecimento. Aqui, porém, surge um problema. É que, em grande parte, depende da vontade de cada pessoa ter ou não ter fé, no primeiro sentido. Tendo considerado os propósitos de uma comunidade e julgado a seriedade dos seus membros, eu posso decidir entrar nela a sério, de modo a ser fiel ao pacto que a constitui: ser fiel, digamos, a um tratado, a uma constituição, a um casamento etc. e, se tiver bastante força de vontade, conseguirei sê-lo.

Já ter fé ou crença no segundo sentido — no sentido gnosiológico — não depende em tão alto grau da vontade de cada pessoa. Creio, por exemplo, que sou brasileiro, que é noite, que estou em Brasília. Não Posso decidir não crer mais nessas coisas. Não depende de mim mudar de opinião, por exemplo, sobre ser brasileiro ou estar neste momento em Brasília. Há várias razões que me levam a pensar essas coisas, assim como há várias razões, de outra natureza, que me levam a pensar que dois mais dois são quatro. Que razões poderia haver, porém, para acreditar que Cristo havia sido Delis, ou o filho de Deus e, ao mesmo tempo, Deus que, no entanto, teria sido um só e, tendo sido crucificado e morto, ressuscitou?

Assim, segundo Paulo, não depende da vontade de cada pessoa ter fé na existência de Deus ou na divindade de Jesus, ou nas palavras dos profetas como revelações divinas. Assim, ele diz em Efésios:

2:8 Porque pela graça sois salvos, por meio da fé, e isto não vem de vós, é dom de Deus;

2:9 não vem das obras, para que ninguém se glorie.

Deus concede ou nega a fé, sem explicação. E é essa fé que justifica o ser humano. Mas se a graça não vem das obras, não pode vir das obras do intelecto. Se viesse, os pagãos, que dispunham de sofisticados sistemas filosóficos e lógicos, ter-se-iam todos convertidos. Assim, Paulo defende a fé contra o intelecto e a sabedoria, em Coríntios:

1:17 Porque Cristo não me enviou para batizar, mas para pregar o evangelho; não em sabedoria de palavras, para não se tornar vã a cruz de Cristo. EI8 Porque a palavra da cruz é deveras loucura para os que perecern, mas para nós, que somos salvos, é o poder de Deus.

1:19 porque está escrito: Destruirei a sabedoria dos sábios, e aniquilarei a sabedoria e o entendimento dos entendidos.

1:20 Onde está o sábio? Onde o escriba? Onde o questionador deste século? Porventura não tornou Deus louca a sabedoria deste mundo? 1:21 Visto como na sabedoria de Deus o mundo pela sua sabedoria não conheceu a Deus, aprouve a Deus salvar pela loucura da pregação os que creem.

1:22 Pois, enquanto os judeus pedem sinal, e os gregos buscam sabedoria,

1:23 nós pregamos a Cristo crucificado, que é escândalo para os judeus, e loucura para os gregos,

1:24 mas para os que são chamados, tanto judeus como gregos, Cristo é poder de Deus e sabedoria de Deus.

1:25 Porque a loucura de Deus é mais sábia que os homens; e a fraqueza de Deus é mais forte que os homens.

1:26 Ora, vede, irmãos, a vossa vocação, que não são muitos os sábios segundo a carne, nem muitos os poderosos, nem muitos os nobres que são chamados.

1:27 Pelo contrário, Deus escolheu as coisas loucas do mundo para confundir os sábios; e Deus escolheu as coisas fracas do mundo para confundir os fortes.

A fé vem, portanto, contra a sabedoria dos sábios, isto é, contra o entendimento — a inteligência —, a filosofia e a lógica dos gregos, que eram a máxima inteligência, filosofia e lógica da Antiguidade. Aqui sobressai outra diferença entre a fé e a crença: a fé é uma firme crença em algo que não pode ser provado. Com efeito, em Tertuliano, no século II, a fé passa a ser não apenas uma firme crença em algo apesar do fato de que ela não possa ser provada, mas justamente porque ela não pode ser provada: mais ainda, porque é absurda: credo quia absurdum est. Na verdade, parece que Tertuliano jamais disse isso ipsis litteris. O que ele realmente disse foi, referindo-se ao nascimento e à morte do filho de Deus, que “credibile est, guia ineptum” , ou seja, “é crível porque é tolice”, e “certum est, guia impossibile” , ou seja, “é certo porque é impossível[3], o que certamente equivale a “creio porque é impossível”. Ora, o impossível e o absurdo não estão muito distantes.

Penso que aqui se entende a oposição entre fé e razão e, portanto, entre a crença no sentido de fé e a razão que se manifestará, no século XVI, com a imprecação de Martinho Lutero, segundo a qual die Vernunft […] ist die hõchste Hur, die der Teufel hat” (“a razão (…) é a maior puta que o diabo possui”)[4].

Assim a fé, no sentido do apóstolo Paulo no Novo Testamento, tem caráter gnosiológico, mas, nesse caso, ela se opõe à razão, de modo que sua pretensão a ser verdadeira não é racionalmente comunicável.

Não admira que um não religioso como Bertrand Russell tenha podido definir a fé como “uma firme crença em algo para o qual não há evidência”[5].

A fé, nesse sentido, consiste naquilo que Kant chama de persuasão (Überredung). Ela se fundamenta unicamente na propriedade peculiar do sujeito. “A persuasão é uma mera aparência”, explica Kant,

pois o fundamento do juízo, que se encontra meramente no sujeito, é considerado como objetivo. Por isso tal juízo tem validade apenas subjetiva e a pretensão de que seja verdadeiro (das Fürwahrhalten) é incomunicável.[6]

CRENÇA

Kant tem razão de opor à persuasão, entendida nesse sentido, a convicção (Überzeugung). “A pedra de toque”, diz ele,

pela qual decidimos se a pretensão à verdade é convicção e não mera persuasão é, portanto, externa, isto é, a possibilidade de comunicar e de considerar a pretensão à verdade válida para toda razão humana[7].

Pois bem, embora a lingua alemã use a mesma palavra para crença e fé (Glaube), é evidente que, para Kant, enquanto a fé no sentido paulino se enquadra na definição da persuasão, ele concebe também outro significado para Glaube, que corresponde ao sentido mais amplo da nossa palavra “crença”. “A pretensão à verdade ou a validade subjetiva do juízo”, diz ele,

tem, em sua relação com a convicção (que ao mesmo tempo é objetivamente válida), os seguintes três níveis: opinar, crer (Glauben) e saber. Opinar é ter uma pretensão à verdade com a consciência de ser tanto subjetivamente quanto objetivamente insuficiente. Quando a pretensão à verdade é considerada subjetivamente suficiente mas objetivamente insuficiente, chama-se crer. Finalmente, a pretensão à verdade tanto subjetivamente quanto objetivamente suficiente chama-se conhecer[8].

Assim, nesse segundo sentido, o crer (Glauben) não se opõe à razão. Trata-se de um nível de convicção mais alto do que o opinar, e mais baixo do que o saber. É só quando o crer é tomado no sentido paulino, como fé, que ele se opõe à razão.

Pois bem, em defesa da fé no sentido paulino, Lutero, como vimos, descreve a razão como uma prostituta. Para ele, o que isso significa é, evidentemente, que a razão é indiferente a quem a usa ou aos fins para os quais é usada. Ela pode ser igualmente instrumentalizada tanto pelo homem bom quanto pelo homem mau; tanto pelo cristão quanto pelo pagão ou pelo ateu; tanto por quem pretenda servir a Deus quanto a quem pretenda servir ao Diabo. Com efeito, a razão não passa, para ele, de um instrumento.

RAZÃO INSTRUMENTAL

Ora, isso nos traz de volta ao título desta palestra: “Razão crítica, razão instrumental e crença”. A noção de “razão instrumental” remete à teoria crítica da Escola de Frankfurt e evoca a obra Dialética do Iluminismo (Dialektik der Aufklitrung), de Theodor Adorno e Max Horkheimer, publicada em 1947. A expressão mesma parece haver sido cunhada por Horkheimer quando fez, em 1944, na Universidade de Columbia, a série de palestras em que baseou o livro Eclipse da razão (Eclipse of reason).

Contudo, é preciso lembrar que, em 1943, em carta a seu colega Friedrich Pollock, Horkheimer afirmara que tencionava fazer dessas palestras uma versão mais ou menos popular da filosofia do Iluminismo, na medida em que ela tomara forma nos capítulos do livro que escrevia com Adorno[9]; e que em 1946, no Prefácio ao Eclipse da razão, ele conta que a apresentação das palestras em livro tencionava “resumir alguns aspectos da teoria filosófica abrangente que o autor desenvolveu, junto com Theodor W. Adorno, nos últimos anos da guerra. Seria difícil dizer quais dos pensamentos remetem a ele, e quais a mim; nossa filosofia é uma”[10].

De todo modo, embora constitua uma das noções fundamentais do Dialética do Iluminismo, a noção de “razão instrumental” é mais explicitamente tematizada, definida e discutida em Eclipse da razão. Nesse livro, Horkheimer observa que a tradição europeia inclui, por um lado, uma razão compreensiva e, por outro, uma razão formal. A razão compreensiva, segundo ele, concebe a filosofia “como a imagem da essência racional do mundo, algo assim como a linguagem ou o eco da essência eterna das coisas”[11]. Para ela, a percepção da verdade pelos homens é “uma só coisa com a manifestação da verdade mesma”, e a capacidade para semelhante percepção “inclui todas as operações do pensamento”[12].

Ainda segundo Horkheimer,

os grandes sistemas filosóficos, tais como os de Platão e Aristóteles, o escolasticismo, e o idealismo alemão, todos foram fundados sobre uma teoria objetiva da razão. Esses filósofos objetivavam desenvolver um sistema abrangente, ou uma hierarquia, de todos os seres, incluindo o homem e seus fins. O grau de racionalidade de uma vida humana podia ser determinado segundo sua harmonização com essa totalidade. Sua estrutura objetiva, e não apenas o homem e seus propósitos, era o que determinava a avaliação dos pensamentos e das ações individuais[13].

Tal razão objetiva não excluía a razão subjetiva, mas a considerava

como uma expressão parcial e limitada da racionalidade abrangente, da qual eram derivados os critérios de todos os seres vivos e coisas. A ênfase ficava mais nos fins do que nos meios. O esforço supremo dessa espécie de pensamento era conciliar a ordem objetiva do “racional”, tal como a filosofia a concebia, com a existência humana, incluindo o interesse próprio e a autoconservação. Assim, Platão em sua República quer mostrar que aquele que vive à luz da razão objetiva vive também uma vida boa e feliz[14].

Horkheimer opõe essa concepção objetiva da razão a outra, que seria a razão subjetiva, isto é, “a capacidade de calcular probabilidades e desse modo coordenar determinado fim com os meios corretos”[15].

Em suma, temos, de um lado, uma razão compreensiva ou substantiva, objetiva e ligada afins, isto é, teleológica e, por outro lado, uma razão formal, subjetiva e ligada aos meios, isto é, instrumental. Horkheimer pensa que a predominância desta última no mundo moderno se deu no decorrer de um longo processo. “No final”, afirma ele, tendo em vista, sem dúvida, o mundo moderno, “nenhuma realidade particular aparece per se como racional, esvaziados de seus conteúdos, todos os conceitos fundamentais tornam-se meros invólucros formais. Na medida em que a razão é subjetivada, torna-se também formalizada”[16].

Segundo Horkheimer, o resultado dessa predominância é o que considera ser a atual crise da razão, que consistiria basicamente no fato de que, até certo ponto, o pensamento ter-se-ia tornado incapaz de conceber a objetividade da razão, ou então teria começado a negá-la como uma ilusão. Para ele, o fato de que hoje, para o homem comum, vigore a ideia superficial de que não é racional o que não se refira a alguma espécie de lucro ou vantagem para o sujeito representa “um importante sintoma de que ocorreu uma profunda modificação no modo de apreensão do mundo que teve lugar no pensamento ocidental, nos últimos séculos”.

De todo modo, tanto Adorno quanto Horkheimer acreditam que, nos tempos modernos,

a própria razão tornou-se um mero subsídio da aparelhagem econômica que abarca tudo. Ela é empregada como um instrumento universal que serve para a preparação de todos os outros instrumentos: rigidamente funcionalizada, fatal como o engajamento precisamente calculado na produção material, cujo resultado foge a todo cálculo para os homens[17].

Pode-se dizer que, para Adorno e Horkheimer, o Iluminismo desemboca, entre outras coisas, numa concepção superficial da razão (que se encarna filosoficamente no pragmatismo e no positivismo lógico, por exemplo), numa redução da mesma à instrumentalidade e, em consequência disso, no terror do controle ou da administração total da vida. A verdade do Iluminismo é, por essa última razão, simbolizada por Auschwitz.

Penso que esse modo de conceber o Iluminismo deve muito a três teses de Hegel sobre o Iluminismo. Refiro-me, em primeiro lugar, à tese de que o Iluminismo consiste no período de domínio do entendimento (Verstand) que, sendo unilateral, no fundo, não alcança — antes rejeita — a especulação[18]. Relaciona-se com isso, para Hegel, o fato de que o entendimento rechaça a religião. Não chegando a ser o que se chama de razão (Vernunft), no sentido pleno da palavra, o entendimento não passa de uma razão abstrata: e é exatamente por essa limitação que lhe resulta fácil “expor as contradições que se encontram nos fundamentos últimos daquilo que somente pode ser compreendido através da especulação. A razão submeteu a seu critério o conteúdo religioso, nele encontrou contradições e o declarou inconsistente. O entendimento procede do mesmo modo contra qualquer filosofia concreta”[19].

Nesse sentido, o pensamento do Iluminismo, tendo descartado o transcendente, é por Hegel tido como superficial.

A segunda tese a que me refiro é a de que o conceito fundamental do Iluminismo é o de utilidade. Hegel se pergunta: “Se todo preconceito e superstição foram banidos, entra a questão: O que resta? Qual é a verdade que o Iluminismo divulga em seu lugar?”[20]. Em última análise, como o Iluminismo dissolveu tanto a abstração do être suprême quanto a ordem do mundo, ficam apenas o sujeito da percepção e da crítica, por um lado, e seus objetos, por outro, ou seja, “as abstrações puras do ser-em-si e do ser-para-outro”[21]“Tudo é tanto em-si quanto para outro, ou seja, tudo é útil”[22]. Charles Taylor, comentando a concepção hegeliana do Iluminismo, observa, com razão, que, de fato, “o modo instrumental de avaliação é endêmico às instituições de uma economia industrial moderna. As atividades que definem essas instituições as relacionam a um propósito externo como lucro, produção eficiente ou crescimento”[23].

Hegel caricatura com indisfarçado desprezo o que considera ser esse mundo utilitário:

Como tudo é útil ao homem, ele também o é, e sua destinação é igualmente tornar-se um membro da tropa útil e universalmente serviçal. Tanto ele cuida de si quanto deve ser prestável aos outros, e tanto ele é prestável aos outros quanto cuida de si mesmo: uma mão lava a outra. Onde quer que se encontre, ele está no lugar certo: usa os outros e é usado[24].

Finalmente, a terceira tese é a de que o Iluminismo desemboca no terror. Já no mundo da utilidade, o que está presente à consciência “não é de fato mais que uma pura aparência de objetividade dada, que separa a autoconsciência, por um lado, e a posse, por outro”[25]. É verdade que num primeiro momento, segundo Hegel, “a utilidade é ainda um predicado do objeto; não é ela mesma sujeito ou a imediata e única realidade dele”[26]; entretanto, “essa retomada da forma da objetividade do útil já aconteceu em si, e a partir dessa revolução interior vem à tona a verdadeira revolução da realidade, a nova forma da consciência, a liberdade absoluta”[27]. A realidade passa, então, a ser concebida como efeito da vontade geral. Segundo Hegel, a consciência

torna-se consciente de sua personalidade pura e com isso de toda realidade espiritual, e toda realidade é apenas espiritual; o mundo é para ele simplesmente sua vontade, e esta é a vontade geral. E não se trata do puro pensamento da vontade, manifesta no consentimento silencioso ou através da representação, mas da efetiva vontade geral, da vontade de todo ser singular enquanto tal[28].

Assim, “a substância indivisível da liberdade absoluta se eleva ao trono do mundo”[29]. Mas a sociedade não pode ser fundada na pura liberdade formal, pois esta resulta na destruição das formas estabelecidas, da divisão de poderes, das ordens estamentais, da família, da comunidade e do Estado. “A liberdade universal”, afirma Hegel, “não pode produzir nenhuma obra ou ação positiva; resta-lhe somente a ação negativa; ela é apenas a fúria da aniquilação”[30]. O resultado é a anarquia e / ou a ditadura totalitária.

Cabe aqui lembrar a singularidade da situação de Hegel na história da filosofia. Por um lado, ele — como todo o idealismo alemão — parte da filosofia crítica do iluminista Kant. Por outro lado, a filosofia de Hegel foi o ponto de partida do pensamento de Marx. E, como ninguém ignora, ele declarou e repetiu que “o que é racional é real; e o que é real é racional”[31].

A partir de semelhantes considerações, seria ridicularizado quem quer que acusasse de “irracionalistas” as críticas que Hegel faz ao racionalismo “unilateral” do Iluminismo. Longe disso: o idealismo de Hegel podia ser criticado, mas sua racionalidade dialética parecia superior à racionalidade formal dos iluministas. Com efeito, empregando uma dicotomia kantiana, Hegel era capaz de acusar os iluministas — inclusive o próprio Kant — de reduzirem a razão (Vernunft) ao entendimento (Verstand).

Penso que esse ataque deve ser contextualizado, ou melhor, recon-textualizado. Parece-me que desde a Revolução Russa e, principalmente, em consequência dela, prevaleceu, de maneira geral, no século XX, uma avaliação errônea da importância relativa dos diferentes conflitos ideológicos anteriores à Primeira Guerra Mundial. Pela enorme influência do determinismo histórico marxista, os intelectuais de esquerda julgaram que o principal conflito ideológico europeu, a partir da Revolução Francesa, era aquele em que se enfrentavam a ideologia proletária, socialista e revolucionária, por um lado, e as várias versões da ideologia burguesa, por outro.

Isso causou, como mostrou o historiador Arno Meyer, “uma clara tendência a subestimar e mesmo desvalorizar a capacidade de resistência das velhas forças e das velhas ideias, e sua habilidade em assimilar, retardar, neutralizar e subjugar a modernização capitalista, inclusive a industrialização”.

O resultado foi que não se percebeu a persistência ideológica do ancien regime. O magistral exame da formação conceitual da sociologia empreendido por Robert Nisbet demonstra cabalmente que, como ele mesmo afirma em seu livro de 1966, “os conflitos ideológicos fundamentais dos últimos 150 anos deram-se entre, por um lado, os valores de comunidade, autoridade moral, hierarquia, e o sagrado e, por outro lado, individualismo, igualdade, liberação moral, técnicas racionalistas de organização e poder[32].

Pois bem, Nisbet comenta, com razão, que

em Hegel, a influência da ideia de comunidade é mais impressionantemente visível em sua Filosofia do direito, obra que, mais do que qualquer outro escrito de filosofia alemã do início do século XIX, criou o ambiente efetivo em que a sociologia alemã mais tarde surgiria. […] Hegel era um conservador, e o molde conservador do seu pensamento social formou-se em grande parte a partir do papel dominante que a imagem da comunidade exercia sobre ele[33].

A exigência da comunidade se manifesta em Hegel no conceito de Sittlichkeit, em oposição ao de Moralität[34]Este termo, normalmente traduzido por “moralidade”, significa a obrigação moral que cabe a cada ser humano — a cada indivíduo —, simplesmente em virtude de ser racional, independentemente da cultura ou da comunidade em que viva. Da moralidade provêm, por exemplo, os direitos universais do homem. Já a Sittlichkeit, termo muitas vezes traduzido (a meu ver, equivocadamente) por “eticidade”, significa as obrigações morais que Hegel considera que os membros de uma comunidade têm, com base na cultura, nas normas e nos costumes estabelecidos.

Naturalmente, a comunidade que interessa à Sittlichkeit remete-nos à dicotomia estabelecida por Tönnies, entre comunidade (Gemeinschaft) e sociedade (Gesellschaft). Para Tõnnies, os seres humanos que vivem na Gesellschaft, em geral agregados de modo mecânico e arbitrário, tendem a se relacionar de maneira formal e contratual uns com os outros, e suas relações, regulamentadas em última instância pela lei impessoal e universal, têm por horizonte o princípio racional, formal e negativo segundo o qual a limitação da liberdade de uma pessoa não é licita senão enquanto necessária para garantir a compatibilidade da maximização da sua liberdade com a maximização da liberdade de cada uma das demais.

Gemeinschaft, ao contrário, supõe encontrar sua origem na grande família e tem por horizonte a religião positiva cultivada por seus membros; estes, articulados do ponto de vista hierárquico de modo pretensamente orgânico e natural, creem cultivar entre si relações pessoais, complementares e cooperativas, baseadas em comunidades de “sangue”, “terra” e “tradição”.

Tem razão Nisbet, ao afirmar que Hegel contemplava uma comunidade — uma Gemeinschaft — que, como a medieval, era “concêntrica, composta de círculos entrelaçados de associações — família, profissão, comunidade local, classe social, Igreja —, cada uma das quais é autônoma até o limite de sua importância funcional”, e que “o verdadeiro Estado, para Hegel, é uma communitas communitatum, e não a agregação de indivíduos que fora para o Iluminismo”[35].

De todo modo, voltando a Horkheimer, o que a concepção de uma razão compreensiva ou substantiva, objetiva e ligada a fins, isto é, teleológica, permite é exatamente criticar a razão instrumental como incompleta, deficiente e distorcida, pois meramente formal, subjetiva e ligada aos meios. Esta última é por ele associada ao positivismo de sua época. Tal crítica quer dizer que uma outra razão, uma razão integral, objetiva e ligada aos fins, seria possível. Sergio Paulo Rouanet comenta que há aqui um paradoxo que “consiste no impasse de uma crítica da razão subjetiva feita na perspectiva de uma razão objetiva que o próprio Horkheimer considera extinta”[36].

De fato, Horkheimer sabe que

a transição da razão objetiva para a razão subjetiva não foi um acaso, e o processo do desenvolvimento de ideias não pode ser arbitrariamente revertido num momento dado. Se a razão subjetiva na forma do Iluminismo dissolveu a base filosófica das convicções baseadas em fé (Glaubensüberzeugungen), que foram um componente essencial da cultura ocidental, ela conseguiu fazê-lo porque essas bases se revelaram demasiado frágeis[37].

Em relação a Adorno, porém, a aporia talvez seja ainda mais grave. Como a distinção entre a razão objetiva e a razão subjetiva não é tematizada nos livros assinados ou coassinados por Adorno, Rouanet faz a suposição — extremamente plausível — de que Adorno não postula nenhum

conflito entre uma boa razão e uma razão perversa, pois desde o início ela foi a mesma: uma faculdade voltada para a dominação da natureza, e através dela para a dominação sobre os homens, movimento ambivalente que pressupõe o sacrifício e a renúncia à felicidade[38].

Desse modo, conclui Rouanet que, como para Adorno “a razão é única, ele é obrigado a opor a razão a si mesma, desqualificando com isso sua própria crítica”[39]. É a contradição performativa que Habermas identifica no autor da Dialética negativa[40].

Concretamente, na conjuntura em que escreveram, o que Adorno e Horkheimer atacavam, em matéria de filosofia, era em primeiro lugar o positivismo lógico. O que podemos nos perguntar é se, ao fazê-lo, eles não acabaram jogando fora o bebê — a razão —junto com a água suja.

RAZÃO CRÍTICA

Mas voltemos à afirmação de Horkheimer de que “a razão subjetiva na forma do Iluminismo dissolveu a base filosófica das convicções baseadas na fé […] porque essas bases se revelaram demasiado frágeis”. O que isso quer dizer é que a razão subjetiva dissolveu as bases filosóficas das crenças que constituíam a razão objetiva. Ora, se é assim, então a razão objetiva não passava de um conjunto de crenças. Em determinado momento, essas crenças foram submetidas à crítica da razão subjetiva, isto é, da razão crítica, e caíram por terra: mas se caíram por terra é porque mereciam cair por terra. Se a razão objetiva caiu por terra é porque não era sequer razão. Era crença, e, no final das contas, falsa crença.

Horkheimer sabe que nada poderia ter sido mais irracional do que impedir que as pretensões da “razão objetiva” mesma fossem postas em questão, examinadas e criticadas pela própria razão. Tal crítica foi o feito da filosofia moderna, de Descartes a Kant. Como diz o iluminista Kant, num trecho que nunca é demais citar do Prefácio à Crítica da razão pura (título em que o genitivo “da razão pura” deve ser entendido tanto no sentido subjetivo, de crítica exercida pela razão, quanto no sentido objetivo, de crítica exercida à razão),

[…] nossa época é a época da crítica, à qual tudo deve submeter-se. A religião, através de sua santidade, e a legislação, através de sua majestade, querem mancomunadamente a ela se subtrair. Mas então suscitam uma justa suspeição contra si e não podem aspirar ao respeito irrestrito que a razão somente concede ao que consegue suportar o seu exame franco e público[41].

Explicitamente em relação à razão, Kant afirma que ela

em todos os seus empreendimentos deve submeter-se à crítica e não pode, sem se prejudicar e atrair contra si uma suspeição nociva, cercear sua liberdade [da crítica] através de proibição nenhuma. Nada é tão importante em vista de sua utilidade, nada tão sagrado que deva ser subtraído a esse escrutínio minucioso, que desconhece qualquer autoridade pessoal. Sobre essa liberdade repousa a própria existência da razão, que não possui autoridade ditatorial e cujo veredicto a cada instante nada mais é que o consentimento de cidadãos livres, cada um dos quais deve poder exprimir sem impedimento suas dúvidas ou mesmo seu veto[42].

O pensamento é um gênero que inclui não só a razão, mas o entendimento, a imaginação, a vontade, o sentimento, a sensação, a emoção etc. O uso filosófico da palavra “razão”, entretanto, distingue-a de todas essas outras faculdades. Só ela é crítica, tanto em relação às demais, quanto em relação a si própria, como na “crítica da razão pura”, que consiste numa crítica exercida pela razão à própria razão. Todas as outras faculdades são positivas, só a razão consiste numa negatividade ativa ou negação negan-te (em oposição a negações negadas). No momento em que se exerce a crítica, portanto, exerce-se a razão.

A verdadeira razão liberada pela modernidade filosófica é exatamente a crítica que derruba a ilusão da razão substantiva, objetiva e teleológica. “Crítica”, não nos esqueçamos, vem do grego Kprrucil, que vem do verbo Kpívetv, isto é, “separar”, “distinguir”, “decidir” etc. Criticar é separar ou distinguir. A crítica põe de um lado o que passa pelo seu crivo e de outro lado o que não passa por ele. Já que dar nome às coisas, defini-las, classificá-las etc. são modos de distingui-las umas das outras, essas atividades representam manifestações da crítica. Assim, a razão crítica constitui uma condição da própria linguagem que, por sua vez, a potencializa.

Vê-se que a razão crítica se manifesta em primeiro lugar como um instrumento. Ela é instrumentalizada pelo seres humanos em vista do conhecimento, do controle e da utilização da natureza e dos demais seres humanos. Ela serve aos seres humanos para esses fins práticos.

Assim, a razão crítica é instrumentalizável, por exemplo, para a produção do conhecimento científico. Contudo, ela é instrumentalizável também para a construção de obras de arte, bem como para a elaboração de construções ideológicas — emprego aqui esta palavra no sentido amplo de sistemas de ideias —, como religiões e sistemas filosóficos. Na verdade, as diferentes manifestações do que Horkheimer considerava a razão objetiva não passam de produtos que não poderiam ter sido elaborados sem a instrumentalização da razão subjetiva ou crítica. Nem mesmo a própria oposição entre fé e razão poderia ter sido elaborada por Paulo sem que ele instrumentalizasse a razão para tal.

Como as diversas construções ideológicas contradizem umas às outras, e todas são construídas mediante a instrumentalização da razão crítica, é evidente que esta não se reduz a nenhuma delas. Ao contrário: a própria razão crítica — e só ela — pode ser usada para criticar qualquer um dos sistemas que se construíram mediante sua utilização. A razão, como um martelo, por exemplo, é capaz de ser instrumentalizada tanto para a construção quanto para a destruição daquilo mesmo que serviu para construir.

Quando maximamente ambiciosa e radical, portanto, a razão crítica é libertariamente niilista: ela mostra o caráter arbitrário, contingente, acidental das construções religiosas ou ideológicas que se pretendem absolutamente verdadeiras.

Haverá algo epistemologicamente absoluto? “Absoluto”, de ab solu-tum, isto é, ab alio solutum, significa em primeiro lugar o que é solto, livre, desligado e independente de outra coisa: o que é por si[43]. O relativismo vulgar simplesmente abre mão de buscar o absoluto e declara, como uma verdade absoluta, que nada é absoluto. Isso, porém, não passa de uma autocontradição performativa.

Na metafísica clássica, o conceito do absoluto é obtido por diversos caminhos. No fundo, porém, eles não passam de diferentes versões de uma teologia negativa. O conceito do absoluto, consistindo no conceito do não relativo, é obtido exatamente através da abstração de todo o relativo. Não é necessário fazer um grande esforço analítico para compreender que, necessariamente, tudo o que é particular, tudo o que é contingente, tudo o que é temporal, tudo o que é empírico, tudo o que é finito, tudo o que é definido, tudo o que é determinado é relativo a outras coisas particulares, contingentes, temporais, empíricas, finitas, definidas, determinadas; e, uma vez que comumente chama-se de “positivo” precisamente aquilo que é definido, determinado etc., segue-se que tudo o que é positivo — e, assim, todas as crenças que dizem respeito ao positivo — é relativo.

Se todo positivo é relativo, então o absoluto é negativo, ou, em outras palavras, a negatividade é absoluta. Não tendo nada de particular, acidental, contingente, temporal, empírico, finito, definido, determinado, positivo, o absoluto é universal, necessário, atemporal, transcendental, infinito, indefinido, indeterminado — e negativo. Trata-se do absoluto negativo ou da negatividade absoluta que se identifica precisamente com a negação negante da crítica ou da razão. Ser cético em relação à razão seria uma autocontradição performativa, pois o ápice do ceticismo é precisamente o racional. Se houvesse a possibilidade de uma posição mais cética ainda, isso significaria que ainda não se havia chegado ao fundo do ceticismo, ao fundo da dúvida, ao fundo da crítica, ao fundo da racionalidade. Do mesmo modo, só a razão é afirmada no momento mesmo em que é criticada ou questionada, pois toda crítica ou questionamento é feito por ela mesma. Ora, a afirmação do caráter negativo do absoluto e a identidade deste com a razão é o que permite, sem autocontradição performativa, a afirmação do caráter relativo de tudo o que é positivo: de todas as crenças positivas.

Entretanto, é preciso ter em mente que é somente no nível extremo de radicalidade analítica que todas as crenças positivas são relativas. No nível dos conhecimentos práticos, usamos as palavras de outro modo.

Isso é um pouco como o que ocorre com a física relativista. A dilatação do tempo, por exemplo, segundo a qual o tempo varia segundo a velocidade em que um objeto se mova, é algo que somente se observa a velocidades próximas da luz. Como tais velocidades jamais são alcançadas pelos objetos cotidianos, os efeitos da relatividade não são observáveis na vida corrente. Assim, no dia a dia, devemos nos comportar e falar como se o tempo fosse o mesmo para todos os objetos, embora saibamos que, em última análise, não é assim.

Do mesmo modo, no nível da vida corrente, considero ter certeza absoluta de estar sentado em frente a vocês, fazendo uma conferência sobre a crença, a razão instrumental e a razão crítica. Se amanhã alguém me perguntar se tenho certeza de que fiz tal conferência, responderei que tenho certeza absoluta de que a fiz. É claro que, em última análise, tratar-se-á de uma certeza relativa. Entretanto, se eu responder a meu amigo que tenho certeza relativa de ter feito essa conferência, estarei sendo menos veraz do que se disser que tenho certeza absoluta disso, pois passarei a impressão de que, na verdade, talvez não a tenha feito.

Mas por que, então, não abandonar a “última análise” e ficar restrito ao plano das certezas práticas? Porque o reconhecimento da possibilidade de que esteja errado qualquer um dos nossos pretensos conhecimentos empíricos, bem como qualquer um dos nossos sistemas de ideias, tanto laicos quanto religiosos, é importante, tanto politicamente, como fundamento absoluto da rejeição a toda pretensão totalitária, quanto para, entre outras coisas, a constituição da ciência. Chamamos esse reconhecimento de “falibilismo”.

Eis como, no que diz respeito ao conhecimento, a modernidade filosófica se opõe ao relativismo vulgar. Este nivela todos os pretensos conhecimentos, considerando-os como igualmente verdadeiros e / ou igualmente falsos. A modernidade filosófica, ao contrário, permite hierarquizar os conhecimentos.

A partir do falibilismo, ela determina a produção do conhecimento científico como um processo em princípio aberto à razão crítica, público, baseado em premissas imanentes, e cujos resultados são — em última análise — sujeitos a serem revistos ou refutados. A certeza que posso ter da verdade do conhecimento produzido nessas condições não é menor do que a certeza prática que tenho de estar aqui, sentado em frente a vocês, e terminando de pronunciar esta palestra.

Por outro lado, o falibilismo revela o caráter fictício de todo pretenso conhecimento que se subtraia à razão crítica ou à inspeção pública, que se baseie em premissas transcendentes, ou cujas doutrinas sejam impermeáveis a revisões ou refutações.

Notas

  1. Marcus Tullius Cicero, “De officiis”. In: C. Atzert (org.), Scripta quae manserunt omnia, fasc. 48, Leipzig: Teubner, 1982, I.23. 
  2. Exceto quando explicitado, cito a Bíblia pela seguinte edição: Bíblia de estudo NVI. Organizador geral: Kenneth Barker. Co-organizadores: Donald Burdick et al. Coordenador da tradução: Luiz Sayão. São Paulo: Vida, 2003. 
  3. Quinto Septimio Florente Tertuliano, De carne Christi, cap.v.4. 
  4. Martin Luther [Martinho Lutero], Kritische Gesamtausgabe, Weimar: Böhlhau, 1883-2009, Bd.51, p. 126. 
  5. Bertrand Russell, Human knowledge, its scope and limits, Nova York: Simon and Schuster, 1948, p. 215. 
  6. Immanuel Kant, Kritik der reinen Vernunft, Frankfurt: Suhrkamp, 1968, Bd.2, A 820. 
  7. Idem, ibidem, A 821. 
  8. Idem, ibidem, A 823. 
  9. Rolf Wiggershaus, Die Frankfuter Schule, Munique: ply, 2001, p. 384. 
  10. Max Horkheimer, Zur Kritik der instrumentellen Vernunft, Frankfurt am Main: Fisher, 1967, p. 15. 
  11. Max Horkheimer, “Zum Begriff der Vernunft”, Sozialphilosophische Studien. Frankfurt: Fischer, 1972, p. 47. 
  12. Idem, ibidem. 
  13. Idem, ibidem, p. 48. 
  14. Max Horkheimer, Zur Kritik der instrumentellen Vernunft, op. cit., pp. 17-18. 
  15. Idem, ibidem, p. 18. 
  16. Idem, ibidem, p. 20. 
  17. Max Horkheimer e Theodor Adorno, Dialektik der Aufkleirung. Philosophische Fragmente, Frankfurt: Fischer, 1988, p. 36. 
  18. Georg W F. Hegel, “Vorlesungen über die Geschichte der Philosophic”, Werke, Bd. XX, Frankfurt: Suhrkamp, 1979, pp. 292-293. 
  19. Idem, ibidem, p. 293. 
  20. Georg W E Hegel, “Phãnomenologie des Geistes”, Werke, Bd. III, Frankfurt: Suhrkamp, 1979, p. 413. 
  21. Ibidem, p. 415. 
  22. Idem, ibidem. 
  23. Charles Taylor, Hegel and modern society, Cambridge: Cambridge University Press, 1979, p. 70. 
  24. Georg W. F. Hegel, “Phänomenologie des Geistes”, op. cit., p. 416. 
  25. Idem, ibidem, p. 431. 
  26. Idem, ibidem. 
  27. Idem, ibidem. 
  28. Idem, ibidem, p. 432. 
  29. Idem, ibidem, p. 433. 
  30. Idem, ibidem, pp. 435-436. 
  31. Georg W E Hegel, “Grundlinien der Philosophic des Rechts”, Werke, Bd. VII, Frankfurt: Suhrkamp, 1979, p. 24; “Enzyklopädie der phiosophischen Wissenschaften”, Werke, Bd. VIII, op. cit., § 6, p. 47. 
  32. Robert A. Niset, The sociological tradition, Londres: Heinemann, 1967, p. IX. 
  33. Idem, ibidem, p. 55. 
  34. Georg W E Hegel, “Gundlinien der Philosophic des Rechts”, op. cit., § 142 a § 360. 
  35. Robert A. Nisbet, op. cit., p. 54. 
  36. Sergio Paulo Rouanet, “Razão negativa e razão comunicativa”, As razões do Iluminismo, São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 333. 
  37. Max Horkheimer, Zur Kritik der instrumentellen Vernunft, op. cit., p. 77. 
  38. Idem, ibidem. 
  39. Idem, ibidem, p. 334. 
  40. Jürgen Habermas, “Die Verschlingung von Mythos und Aufklärung: Horkheimer und Adorno”, Der philosophische Diskurs der Moderne, Frankfurt: Suhrkamp, 1985, p. 144. 
  41. Immanuel Kant, Kritik der reinen Vernunft, Frankfurt: Suhrkamp, 1956, A XI. 
  42. Idem, ibidem, B 766. 
  43. Os gregos não tinham nenhuma palavra para a latina absolutum. O mais próximo talvez seja a palavra algo como “anipotético”, “a-hipotético”, “não hipotético”, incondicionado. Foi Nicolau de Cusa, já no século XV, o primeiro filósofo que tornou o adjetivo “absoluto”, substantivado, uma das categorias fundamentais da metafísica. 

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