Tempo, tempo, tempo
Resumo
É preciso distinguir dois tipos de futuro: o de caráter histórico e o de caráter sociológico. No âmbito histórico, trata-se de resumir o essencial da reflexão filosófica e científica sobre o tempo. Há, nesse sentido, duas posições antitéticas: a de Platão e a de Aristóteles. Platão postula uma divisão do ser em dois mundos, o sensível, das aparências e das opiniões ilusórias, submetido à influência corruptora do tempo e da mudança, e o mundo inteligível, das formas verdadeiras e eternas. Apesar de Aristóteles também tratar do sensível e do inteligível, este não está mais segregado no céu das essências, recebendo ao contrário uma função epistemológica bem mundana, a de proporcionar instrumentos lógicos de validade universal que permitam ordenar a diversidade empírica do real. Além do confronto entre o transcendentalismo platônico e o imanentismo aristotélico, é preciso abordar a dualidade que se estabeleceu entre os tempos “objetivo” e “subjetivo”. Para a corrente “objetivista”, a temporalidade natural é irredutível à esfera da consciência. Para a corrente “subjetivista”, o tempo se passa todo na esfera psíquica. Os cientistas são em geral partidários da tese objetivista. O tempo da natureza existe fora do homem, e é possível medi-lo. Os biólogos sabem há quantos bilhões de anos emergiram da “sopa primordial” os primeiros seres vivos. Os paleontólogos descobrem hominídeos cada vez mais antigos, perto dos quais Lucy, com seus modestos três milhões de anos, parece uma trêfega adolescente. Todos sabem hoje que os dinossauros se extinguiram há cerca de 60 milhões de anos. Os geólogos conhecem a idade da Terra: ela surgiu poucos bilhões de anos depois da criação do universo. Depois que Hubble descobriu que as galáxias estavam se afastando rapidamente umas das outras, foi possível não somente deduzir que o universo estava se expandindo, como recuar no passado até o momento do “big bang”, num estágio em que o universo era infinitesimalmente pequeno e infinitesimalmente denso. O tempo começou nesse momento, e pode-se até afirmar que foi entre dez a vinte bilhões de anos atrás. Para os subjetivistas, o tempo e a percepção do tempo são imanentes à consciência. É o caso exemplar de Santo Agostinho, para quem só na interioridade da alma é possível lidar com os paradoxos de um tempo em que o passado não existe mais, o futuro não existe ainda e o presente é um intervalo evanescente entre duas formas de não-ser. Daí, em Agostinho, uma radical interiorização psicológica do tempo. De certo modo, foi também o caso de Kant, cuja crítica da razão pura transforma o tempo numa forma a priori da sensibilidade, numa condição transcendental para que se possa perceber a realidade empírica. São apenas alguns marcos num percurso que passa por Schelling e Hegel, chegando a Bergson, Husserl, Heidegger e Lévinas.
No âmbito sociológico, há questões interessantes acerca da forma contemporânea de lidar com o tempo. Não é só o futuro que não é mais o que era, mas também o passado e o presente. O passado sucumbe à amnésia, uma vez que se vive em sociedades esvaziadas de experiência ou “Erfahrung”, no sentido que Walter Benjamin deu à palavra. Condenadas, pois, ao efêmero ou ao mero “Erlebnis”, tais sociedades organizam-se em torno da indústria cultural e da sociabilidade eletrônica do Facebook. É um mundo que substitui a conversa pela rede social, a fala pelo Twitter. Ora, “twitter” quer dizer “chilrear”, “gorjear”, forma de expressão ideal para os sabiás de Gonçalves Dias, mas imprópria para transmitir emoções e experiências. Não vejo, no momento, condições sociais para que um novo Proust possa salvar do esquecimento, graças à memória involuntária, fragmentos perdidos de uma biografia individual ou coletiva. O presente está sujeito a um conceito de tempo que reforça essa dificuldade de lembrar.
Hoje, a destruição sistemática do tempo é alcançada por meios indiretos, enfraquecendo o substrato psicológico de cada uma delas. Para Agostinho, a atitude psíquica correspondente ao passado era a memória; a correspondente ao presente a atenção; e a correspondente ao futuro a espera. É de temer que, no mundo pós-moderno, a amnésia se generalize, a capacidade de ficar atento ao instante significativo perca-se e toda espera acabe sendo uma espera por Godot. Seria o fim de toda relação autêntica do homem com o tempo.
O tema do tempo é tão complexo que nos sentimos tentados a terminar a palestra antes de começá-la, invocando para isso a autoridade de Santo Agostinho, que, apesar de Doutor da Igreja e portanto sapientíssimo, admitia ser mais fácil compreender o tempo que dissertar sobre ele. Com efeito, é assim que o bispo de Hipona começa a seção XIV do livro XI de As confissões: “O que é o tempo? Se ninguém me fizer essa pergunta, eu sei; mas se eu quisesse esclarecer o que ele é para alguém que desejasse uma explicação, não sei”.
Minha atitude é nesse ponto puramente agostiniana, mas um primeiro passo para sairmos desse terreno perigoso é distinguir entre o tempo da natureza e o humano, tanto o psicológico como o social.
O tempo da natureza é o que se enraíza na realidade objetiva, independentemente do psiquismo ou da vida social dos homens. Para os antigos, a própria noção de tempo tinha sua origem no movimento dos astros. As unidades básicas para medir o tempo – dia, ano, estações – tinham caráter astronômico, quer o tempo fosse visto como linear, quer como cíclico, segundo a concepção grega do “grande ano”. Esse tempo cósmico proporcionava as unidades de medida para determinar a cronologia das coisas e a historicidade dos acontecimentos sublunares. É o que continua acontecendo até hoje. À luz da ciência moderna, como da aristotélica, a natureza pode ser medida de modo não arbitrário, segundo critérios intersubjetivos, através de cálculos e experimentos que podem ser confirmados ou refutados por observadores independentes. Os biólogos sabem há quantos bilhões de anos emergiram da “sopa primordial” os primeiros seres vivos. Os paleontólogos descobrem hominídeos cada vez mais antigos, perto dos quais Lucy, com seus modestos três milhões de anos, parece uma trêfega adolescente. Todos sabem hoje que os dinossauros se extinguiram há cerca de sessenta milhões de anos. Os geólogos conhecem a idade da Terra: ela surgiu poucos bilhões de anos depois da criação do universo. Depois que Hubble descobriu que as galáxias estavam se afastando rapidamente de nós, foi possível não somente deduzir que o universo estava se expandindo, como recuar no passado até o momento do Big Bang. Um trilionésimo de segundo depois da explosão, ocorrida há cerca de 13,7 bilhões de anos, surgia o bóson de Higgs, gerando um campo eletromagnético que deu massa às outras partículas e engendrou o universo – e o tempo.
O tempo psicológico tem a ver com a percepção individual. Recorramos mais uma vez a Santo Agostinho. Depois de dizer que não sabia explicar o tempo, ele acrescenta:
Apesar disso, atrevo-me a dizer que sei pelo menos isto, que se nada passasse, não haveria passado, que se nada estivesse por vir, não haveria futuro, e que se nada existisse, não haveria presente. Esses dois tempos, o passado e o porvir, o que são eles, quando o pretérito já não é, e o futuro ainda não é? Quanto ao presente, se fosse sempre presente e não transitasse para o passado, não seria tempo, mas eternidade. Se então o presente, para ser tempo, só existe para que venha a ser passado, como podemos dizer que aquilo que só é para que não seja mais tem existência, afirmando, portanto, que o tempo só é porque tende a não ser?
Essas observações são parcialmente relevantes para nosso tema. Parcialmente, porque a intenção do autor era teológica, e não psicológica. Agostinho estava mais interessado em contrapor a temporalidade puramente humana ao tempo divino, ao tempo da eternidade, e a defender a necessidade para o espírito humano de optar pela eternidade, sem sacrificar com isso seu livre-arbítrio. Além disso, por seu caráter paradoxal, a teoria agostiniana podia prestar-se a uma interpretação cética, negando a própria existência do tempo, a exemplo das “refutações do tempo” efetuadas por Sextus Empiricus no século II a.C., parodiadas por Borges. Com efeito, como afirmar que o tempo tem uma existência real fora de nós, quando ele é constituído por um passado que não existe mais, por um futuro que não existe ainda, e por um presente que nada mais é que um intervalo evanescente entre duas formas de não ser? Mas há em Agostinho elementos para uma fascinante teoria psicológica da percepção temporal, sem vestígios de relativismo. Entre eles está a concepção do tríplice presente – o presente em que se dá a rememoração, o presente em que se formulam projetos para o futuro, e o presente em que se dá a tomada de consciência do próprio tempo presente.
A interpretação psicológica mais convincente do fenômeno temporal está em Freud. O tempo aparece na psicanálise no processo de maturação ontogenética, pela qual o indivíduo vai atravessando os estágios correspondentes à sua faixa etária, da fase oral e anal à fálica e genital, mas não é facilmente perceptível nos processos psíquicos que constituem a esfera própria da psicanálise, o inconsciente. Pois o inconsciente não conhece o tempo, é Zeitlos. Daí, nos sonhos, a inversão das sequências cronológicas, em que cenas logicamente posteriores aparecem em primeiro lugar. Daí, também, a importância nos sonhos do mecanismo da regressão, em sua tríplice manifestação: regressão tópica (em vez de mover-se do polo da percepção para o da motilidade, como acontece nos processos psíquicos diurnos, a excitação se move em direção ao polo da percepção, o que dá aos sonhos seu caráter alucinatório); regressão temporal (retorno a fases psíquicas ultrapassadas, como os estágios pré-genitais); e regressão formal (uso de modos primitivos de expressão, como as imagens, em vez de pensamentos). Todas essas variedades de regressão se reduzem em última análise à regressão temporal, porque o que é mais antigo no tempo é mais primitivo na forma e, em sua localização tópica, está mais próximo do polo da percepção.
A capacidade de mobilizar reminiscências é indispensável à vida psíquica normal. O esquecimento pode ser um mero ato falho que se passa no consciente e no pré-consciente. Mas há uma amnésia mais profunda, que resulta do recalque, como reação a uma experiência traumática. A tarefa do analista é facilitar a rememoração do material esquecido, para que o paciente possa libertar-se dos seus demônios. Foi assim desde a pré-história da psicanálise, quando Freud e Breuer recorreram ao hipnotismo para curar Anna O. dos seus sintomas. Com o advento da psicanálise, mudou o método, que deixou de ser “catártico”, para se tornar verdadeiramente a talking cure descrita por Anna O., mas não mudou o fim terapêutico: eliminar todo o inconsciente patogênico, preencher todas as lacunas da memória. É óbvio que a amnésia neurótica não é total. O material recalcado retorna nos sintomas e nos lapsos, formações de compromisso entre os conteúdos esquecidos e a instância recalcante. O recalcado retorna, também, em certos comportamentos típicos do paciente durante o tratamento, como no tipo de resistência em que ele substitui a rememoração, de que ele não é capaz, pela repetição dos materiais esquecidos. Não podendo se lembrar, o paciente age. Assim, ele diz não se lembrar de ter sido insubmisso à autoridade paterna, mas comporta-se dessa forma com relação ao analista. Do mesmo modo, não se lembra de ter sentido medo de ser surpreendido praticando atos sexuais autoeróticos, mas tem vergonha de estar fazendo análise e mantém esse fato em segredo.
Normalmente a psicanálise é determinista, procedendo do passado para o presente: ela quer compreender uma situação presente à luz de uma causa que vem do passado – por exemplo, um trauma infantil resultante de uma tentativa de sedução por parte de um adulto. Mas às vezes ele inverte a flecha do tempo, e procede do presente para o passado. Em certas ocasiões, um acontecimento ocorrido no passado não tem, na época em que ocorreu, nenhum efeito traumático. Mas adquire uma eficácia traumática retroativa quando entra numa relação associativa com uma cena adulta. É o fenômeno do Nachträgliche, do après-coup, ou do a posteriori. Diagnósticos desse tipo eram mais comuns antes da descoberta da sexualidade infantil, na época em que Freud acreditava na realidade das cenas de sedução relatadas por seus pacientes. Como as crianças eram para ele biologicamente imaturas, incapazes de sentir qualquer desejo sexual, a sedução não podia ter exercido efeitos traumáticos na ocasião em que ocorreu, deixando, entretanto, traços mnêmicos inconscientes que se tornariam ativos na vida adulta. Mas mesmo depois da descoberta da sexualidade infantil, o conceito de après-coup permanece útil, adquirindo maior generalidade. Passa a designar a relação entre qualquer acontecimento passado e sua ressignificação ou ressemantização ulterior, que lhe confere uma nova eficácia. Pensem na importância desse conceito, se o transpusermos para a história, caminhando do presente para o passado. A Revolução Francesa e o Caso Dreyfus não seriam mais acontecimentos discretos, compreensíveis dentro dos seus próprios limites temporais, pois só receberiam sua plena inteligibilidade après-coup, depois de ressignificados, entrando em conjunção com acontecimentos do nosso presente, como a revolução bolchevista e Auschwitz, respectivamente. É em parte o que diz Walter Benjamin, quando criou o conceito de “índice de legibilidade”, designando fatos históricos que só se tornam legíveis no futuro do qual são contemporâneos. É esse futuro específico – no caso, o nosso presente – que dá seu sentido ao passado, e não o contrário.
O que tem a psicanálise a dizer, em resumo, sobre o tempo psicológico, em suas três articulações? A resposta está no final de A interpretação dos sonhos.
Qual o valor dos sonhos para dar-nos conhecimento sobre o futuro? Nenhum, é claro. Seria mais correto dizer que eles nos dão conhecimento sobre nosso passado. Porque os sonhos derivam do passado, de todos os pontos de vista. Entretanto, a velha crença de que os sonhos predizem o futuro não é de todo falsa. Ao descrever nossos desejos como realizados, os sonhos estão, afinal de contas, levando-nos para o futuro. Mas esse futuro, que para o sonhador são presentes, foi moldado por seu desejo indestrutível à imagem e semelhança do seu passado.
O tempo social tem a ver com a forma de temporalidade própria a uma sociedade, num momento específico de sua história. Vejamos uma vez mais como se dão as três articulações temporais, agora em escala coletiva: o passado, esfera da vida já vivida, em que se depositam as experiências históricas significativas; o futuro, esfera da vida ainda não vivida, terra prometida em que moram as utopias; e o presente, o que sobrou daqueles dois territórios temporais, o de ontem, em que o tempo é memória, e o de amanhã, em que o tempo é esperança.
Quanto ao passado, vale a pena recapitular, de início, o que Walter Benjamin diz sobre o tempo da modernidade, que segundo ele se caracteriza pela perda da experiência – a Erfahrung -, substituída pela mera vivência – o Erlebnis. Pertencem à esfera da experiência as impressões que o psiquismo acumula na memória, e que transmitidas ao inconsciente deixam nele traços mnêmicos duráveis. Pertencem à esfera da vivência aquelas impressões que se esgotam no momento em que são percebidas e que jamais atingem o inconsciente, não deixando, por isso, traços mnêmicos. Ora, a modernidade inaugura um tipo de vida social caracterizada pela atrofia da experiência, substituída, como forma de sensibilidade coletiva, pela vivência. Isso ocorre porque o mundo moderno está exposto a múltiplas situações de choque, em todos os domínios – na esfera econômica (o operário reage aos estímulos da máquina como um autômato, que lhe impõe uma resposta semelhante a um choque elétrico); na esfera política, cuja forma de atuação típica é o golpe de Estado, tentativa voluntarista de intervir no processo histórico, em contraste com a revolução, que implica o lento amadurecimento das condições objetivas; e na esfera da vida cotidiana, em que o passante está exposto diariamente aos choques da multidão. A onipresença das situações de choque implica que as instâncias psíquicas encarregadas de captar e absorver o choque passam a predominar sobre as instâncias encarregadas de armazenar reminiscências significativas na memória. O homem moderno, inteiramente voltado para a interceptação do choque, é portanto um amnésico, porque o que ele recorda é um simples agregado descontínuo de vivências superficiais, enquanto os conteúdos psíquicos capazes de incorporar-se à sua experiência não deixaram rastros mnêmicos.
Essa dicotomia corresponde de modo geral à distinção proustiana entre memórias voluntária e involuntária. A primeira, acionada pela inteligência, não consegue captar as dimensões essenciais do passado. Somente a memória involuntária consegue extrair do reservatório do inconsciente as impressões realmente significativas. Só ela tem o poder de retrouver le temps, pois só ela mergulha suas raízes na experiência.
Nas sociedades tradicionais, os dois tipos de memória se fundiam. Elas se fundiam, em primeira instância, através da festa, em que episódios marcantes do passado coletivo eram rememorados, permitindo a cada indivíduo incorporar essas memórias à sua própria experiência e recordar-se delas, recordando ao mesmo tempo seu próprio passado. Os dias festivos se destinavam a provocar tais rememorações. Tanto os dias rememorados como os dias rememoradores eram dias de festa, que se destacavam do calendário por serem dias extraordinários. A memória voluntária e a involuntária deixavam de ser mutuamente excludentes.
A mesma fusão entre o passado individual e o coletivo ocorria no tipo de comunicação fundado na narrativa. O narrador comunicava a seus ouvintes histórias baseadas na tradição oral, que se repetiam de geração em geração e constituíam uma ponte entre o passado e o presente, e entre indivíduo e comunidade. O narrador contava a partir de sua experiência, e dirigia-se à experiência dos seus ouvintes.
A importância da obra de Proust vem da sua tentativa de refazer, por meios individuais, o que a coletividade não podia mais oferecer. Ele reproduz, de certo modo, a categoria da festa, em que o tempo perdido é salvo no momento em que está sendo evocado. E assume o papel do narrador, extraindo, do fundo de sua experiência, uma narrativa que tem como destinatários leitores experientes.
Mas essas tentativas individuais são insuficientes. Na sociedade contemporânea, o homem parece estar condenado à amnésia, ao esqueci mento do passado. Esse esquecimento pode assumir a forma de uma hipomnese, olvido total ou parcial de fatos e relações entre fatos. Ou pode, pelo contrário, assumir o aspecto de uma hipermnese, que os neurologistas e psiquiatras definem como capacidade anormal de lembrar-se. Era o caso de Punes, o Memorioso, personagem de Borges cujo triste destino era não poder se esquecer de nada. “Eu sozinho,” dizia ele, “tenho mais lembranças que terão tido todos os homens desde que o mundo é mundo.” Mas Punes era incapaz de ideias gerais. Não conseguia entender que o mesmo símbolo genérico para cachorro abrangesse cachorros de forma e tamanho diferentes, nem que o cachorro de 3h14 (visto de perfil) fosse o mesmo de 3h15 (visto de frente). Ora, pensar é esquecer diferenças, generalizar, abstrair. Portanto, ele não podia pensar. Nem se lembrar, porque quem só pode se lembrar de detalhes desconexos, sem perceber o vínculo que os une, é incapaz de verdadeiras recordações.
O mundo contemporâneo está cheio de amnésicos assim: os desmemoriados, que não se lembram de nada, e os memoriosos, que se lembram de tudo, exceto do essencial. O que Engels chamava de “falsa consciência” tem como ingrediente principal o esquecimento. Há várias formas de esquecimento. O esquecimento originário, o fetichismo da mercadoria, que nos faz esquecer que o valor não é uma relação entre coisas, e sim entre classes. O esquecimento histórico, que faz os alemães se esquecerem da ignomínia do nazismo, e os brasileiros se esquecerem de quatro séculos de escravidão. O esquecimento político, que nos faz esquecer os mortos e os torturados pelo regime militar. O esquecimento moral, que levou os que arriscaram a vida num combate heroico contra a ditadura a desonrarem sua biografia, praticando a corrupção como receita de governabilidade.
E há o esquecimento sectário dos que querem obliterar o caminho percorrido pela humanidade, destruindo todas as ideologias e substituindo a treva da ignorância pelo fulgor da verdade. Como diz a Internacional, eles querem “du passé faire table rase”. É preciso, nisso, dar razão a Adorno e Horkheimer: o que é falso na ideologia não é seu conteúdo, e sim a pretensão de que ele já seja real. Não é a trindade revolucionária francesa que é fraudulenta, e sim a tentativa retórica de persuadir os cidadãos de que a liberdade, a igualdade e a fraternidade já se realizaram. Como escreveu Horkheimer,
As ideologias do passado não serão simplesmente identificadas com a estupidez e a impostura, como fazia o Iluminismo francês com relação ao pensamento medieval… Embora privadas, no contexto contemporâneo, do poder que originalmente tinham, servirão para iluminar o caminho da humanidade. Nessa função, a filosofia se tornará a memória e a consciência humana, e contribuirá para impedir que o caminho do homem se assemelhe aos cegos rodopios de um louco na hora da recreação.
Quanto ao futuro, ele era um tema fundamental durante a vigência da doutrina do progresso linear da humanidade. O futuro era o horizonte para o qual tendia o gênero humano. Era a fase das grandes narrativas, na terminologia de Lyotard, como a narrativa da revolução mundial, ou a do saber enciclopédico. Como todas as narrativas, elas tinham um começo, um meio e um fim, e o fim (não necessariamente no sentido de final) era o futuro. Mas o futuro está bloqueado por um sistema social em que o novo aparece sob a forma do sempre igual, e o sempre igual sob a forma do novo. É o tempo do inferno, para citar Benjamin. Tudo muda: os smartphones de 2012 são diferentes dos de 2011 e isso é essencial para que nada mude. No fundo, o futuro tornou-se um termo técnico da Bolsa. As pessoas não especulam mais sobre o futuro, e sim no futuro – no mercado de futuros. A consequência mais grave da crise do futuro é que ela resultou no assassinato da utopia. E para autores sérios como Ernst Bloch, Theodor Adorno, Herbert Marcuse e Jürgen Habermas, toda sociedade e todo pensamento que não se deixem guiar pela perspectiva do futuro utópico estão condenados à irrelevância.
Para Bloch, todas as filosofias do passado foram incapazes de apreender o real, pois ele foi sempre visto como sob a espécie da anamnese, isto é, o Ser é correlato de uma consciência retrospectiva, voltada para a origem, e não de uma consciência antecipante, voltada para o ainda não existente. O pensamento verdadeiramente dialético é vinculado ao desejo, à esperança, ao sonho para a frente. Seu protótipo intrapsíquico é a fantasia – o sonho diurno – que edifica castelos no ar, mas com materiais extraídos do futuro, que se limita a reproduzir infinitamente conteúdos arcaicos. O inconsciente da fantasia é distinto do inconsciente do sonho. Enquanto este se enraíza no passado, aquele está voltado para o futuro. O conteúdo do inconsciente onírico é o material recalcado, o já vivido que se perpetua subterraneamente. O conteúdo do inconsciente da fantasia é o ainda não vivido. A consciência tem assim dois limites: um limite inferior, que é o não mais consciente, e um limite superior, que é o ainda não consciente. O inconsciente é uma amnésia com relação ao velho, e um não saber com relação ao novo. A consciência voltada para o ainda não consciente é a consciência antecipante, que constitui o órganon da esperança utópica. Mas essa consciência antecipante pode decifrar o passado, vendo nele futuros não realizados, esperanças truncadas. Nessa perspectiva, a cultura é a sedimentação histórica da esperança. Uma historiografia do projeto utópico teria condições, assim, de percorrer todas as produções da cultura, a fim de desprender, nela, o “excedente utópico”, tudo o que ultrapasse conteúdos imediatos. O “princípio Esperança” é um colossal afresco da história da cultura, em seus momentos grandiosos e medíocres, na grande arte e no kitsch, no romance popular e na epopeia, na Flauta mágica e no jazz, na arquitetura barroca e no Bauhaus, na pantomima e no cinema, na utopia geográfica do Eldorado e na utopia política da Cidade do Sol, em todos os ideais com que o homem sonhou transcender-se, e em todos os paradigmas em que projetou seu desejo de perfeição: Ulisses e Fausto, Don Juan e Dom Quixote.
Para Adorno, o capitalismo de hoje eliminou completamente a dimensão da transcendência, reduzindo o ideal ao real, e expulsou a utopia, na medida em que se apresenta como a utopia realizada. Por isso Adorno vê, na tentativa, mesmo desesperada, de manter a estrutura contraditória do real, a tarefa e a dignidade do pensamento crítico. Daí a concepção de uma utopia negativa, que não pode nem deixar de ser visada, nem se realizar sem trair a radicalidade de seu projeto. O homem está condenado ao mal-estar, ao Unbehagen, e nesse sentido a utopia é impossível; mas também está condenado à liberdade, ao incessante caminhar em direção ao ponto de fuga em que se anulam todos os determinismos – e, nesse sentido, a utopia é necessária. É nessa tensão, nessa impossibilidade, nessa necessidade, que se aninha a utopia. Qualquer tentativa de pensar, nas condições atuais, o reino da liberdade redunda em eliminar, no pensamento critico, aquela mesma contradição que o capitalismo tardio já eliminou na realidade.
A crítica cultural de Marcuse é semelhante à de Adorno. Também para ele a sociedade atual desemboca no fim da transcendência, processo que ele chama de unidimensionalização, absorção da esfera do virtual pela esfera do existente. E também ele tem uma reflexão sobre a utopia. Mas aqui cessam as semelhanças. Enquanto a utopia de Adorno é negativa, quase o reverso de sua própria impossibilidade, Marcuse a pensa como figura positiva. Ele distingue no princípio da realidade um componente invariante, que impõe à estrutura pulsional limites justificáveis do ponto de vista da sobrevivência do indivíduo e da espécie, e um componente histórico – a sobrerrepressão – que impõe restrições biologicamente supérfluas, em função das exigências do sistema de poder. A sobrerrepressão assumiu formas varáveis em diferentes períodos históricos, sendo o princípio do rendimento sua forma contemporânea. Em vista do desenvolvimento atingido pelas forças produtivas, o fim da sobrerrepressão, com a instauração de um princípio da realidade qualitativamente novo, permitiria o ingresso numa ordem pacificada, além da escassez e além da dominação, num mundo órfico-narcisista em que a liberação da libido permitiria ressexualizar os seres e as coisas, sem consequências negativas para a vida social, e em que a pulsão da morte não mais se oporia à pulsão do amor, mas significaria repouso, ausência de tensão numa ordem não antagonística.
Enfim Habermas, o último representante da Escola de Frankfurt, descreve as condições normais sob as quais se dá a comunicação. A comunicação deixa de ser normal quando há bloqueios sistemáticos no processo comunicativo, ou de origem externa (relações de poder que impedem os interessados de participarem de forma livre e igualitária) ou interna (falsa consciência), que impedem o sujeito de distinguir entre verdade e aparência, entre motivação autêntica e racionalização. Entre veracidade e mentira. A utopia é concebida como o reverso da comunicação deformada: a situação comunicativa ideal, em que cessaram todos os bloqueios, internos ou externos, ao processo comunicativo.
Todas essas utopias estão fora de moda. Os autores bem-pensantes acham que a humanidade deixou para trás suas fantasias pubertárias e se reconciliou com o princípio da realidade, provando sua condição adulta ao reconhecer a inevitabilidade do capitalismo globalizado. O homem compreendeu enfim que a utopia era um passatempo perigoso, porque toda utopia é potencialmente totalitária, e inútil, porque a economia global já é a utopia realizada.
Chegamos, enfim, ao presente. Ele é intransponível nas duas direções, pois o acesso está barrado tanto para o passado como para o futuro. Estamos enclausurados num único tempo, o do eterno presente. A unitemporalidade é a expressão temporal da unidimensionalidade, no sentido de Marcuse. Assim como não podemos transcender-nos em direção ao virtual, estamos proibidos de ultrapassar nosso presente em direção às duas transcendências temporais, a do passado e a do futuro. Marc Augé chamou de “presentismo” a ideologia que consagra a hegemonia absoluta do presente. Nosso presente não se origina mais da lenta maturação do passado, nem deixa transparecer os lineamentos de possíveis futuros, mas se impõe como fato universal, esmagador, cuja onipotência expulsa o não mais e o ainda não.
O presentismo não exclui de todo as “viagens no tempo”, mas as torna inofensivas. O passado aparece na indústria cultural, mas sob a forma de revistas de história destinadas ao grande público, e num canal de TV, o canal History, que ultimamente tem se especializado em caçar extraterrestres e em provar a existência do Abominável Homem das Neves. O futuro se mantém vivo, mas limitado ao curto intervalo de tempo entre duas linhagens de tablets. Essa expectativa pressupõe certa crença no progresso, e portanto no futuro, mas é um progresso relativo, que aponta não para a comunicação universal de Habermas, mas para a sociabilidade eletrônica do Facebook. É um mundo que substitui a conversa pela rede social, a fala pelo Twitter. Ora, em inglês twitter quer dizer “chilrear”, “gorjear”, forma de expressão ideal para os sabiás de Gonçalves Dias, mas imprópria para transmitir emoções e experiências humanas.
Por tudo isso não vejo, no momento, condições sociais para que um novo Proust possa salvar do esquecimento, graças à memória involuntária, fragmentos perdidos de uma biografia individual ou coletiva. Nem para que uma nova geração de videntes possa apontar um dedo profético para coisas vindouras, como a sibila do Morro do Castelo, em Esaú e Jacó, de Machado de Assis.
Mas nem tudo está perdido. O tempo não é apenas algo que devemos sofrer passivamente, como quando dizemos que o tempo passa, ou quando Ovídio dizia que o tempo era devorador de todas as coisas, tempus edax rerum, ou quando nos limitávamos a suplicar, impotentes, que os momentos felizes se eternizassem, como Lamartine, em versos como Ô temps, suspends ton vol, ou Goethe, em Verweile doch, du Augenblick, du bist so schön. Nessa época, o tempo era uma simples alegoria, representando um velho com asas negras, segurando uma foice, com uma ampulheta ao lado. Hoje o velho deixou de ser uma abstração solitária, e multiplicou-se em classes e sindicatos com os quais podemos negociar, em torno do controle da ampulheta. Trata-se, em outras palavras, de engajar-nos numa política do tempo, com vistas a uma nova distribuição entre o tempo de trabalho e o tempo livre, e a uma redefinição do conteúdo do tempo livre, para homens e mulheres.
O tempo de trabalho continua excessivo, apesar dos teóricos do ócio, que confundem a possibilidade técnica de produzir mais bens em menos tempo com a redução efetiva das horas de trabalho, esquecendo-se de que nem sempre o que é tecnologicamente possível é socialmente posto em prática.
E o ócio, além de decrescente em nossa “overworked society”, transforma-se numa simples extensão da esfera do trabalho. O sistema capitalista confisca o tempo livre. Trata-se de um território só formalmente autônomo, pois está cada vez mais colonizado pela indústria do turismo, pela indústria cultural e pelo fetichismo da mercadoria. Não é uma invenção recente: a Alemanha nazista tinha um programa chamado Kraft durch Freude, “Força através da alegria”, destinado a proporcionar aos operários férias e excursões tuteladas pelo Partido, para que nem sequer esses últimos redutos de liberdade escapassem às malhas do sistema totalitário. Felizmente, não chegamos a esse ponto nas democracias capitalistas.
É preciso, também, renegociar o papel de homens e mulheres na esfera pública e na esfera privada, recorrendo ao que Rosiska Darcy de Oliveira chama “reengenharia do tempo”. É importante reivindicar tempo para que homens e mulheres possam se dedicar em igualdade de condições tanto ao espaço público como ao privado, e não apenas flexibilizar o horário das mulheres na fábrica ou no escritório, pois com isso elas teriam simplesmente mais tempo para fazerem o que sempre fizeram. Muitas empresas já aceitam hoje que a mulher trabalhe em tempo parcial para poder dedicar-se aos filhos, mas não compreenderiam que o homem fizesse igual reivindicação. É preciso entender que as duas esferas, a pública e a privada, são interdependentes e igualmente valiosas, e que impedir que as mulheres se dediquem a atividades profissionais ou políticas seria tão monstruoso, do ponto de vista ético e afetivo, e tão catastrófico, do ponto do interesse coletivo, quanto impedir os homens de se dedicarem à família ou ao convívio com os filhos.
Gostaria ainda de fazer ainda algumas reflexões finais sobre o vínculo entre o tempo da natureza e o tempo humano em geral. O tempo da natureza parece preeminente com relação ao tempo humano, pois é naquele que se funda a consciência do envelhecimento biológico e da passagem objetiva do tempo, originariamente definida pelo movimento dos astros. Mas, por outro lado, esses dados permaneceriam mudos sem a mente humana. O homem é o único ser capaz de medir um passado incomensuravelmente distante, um passado em que a humanidade não existia, em que nenhum ser vivo existia, em que o sistema solar não existia, em que nenhuma galáxia existia, em que o próprio universo não existia, um passado ao qual podemos recuar até o primeiro minuto após o Big Bang, antes do qual não existia o tempo, coerentemente aliás com a teologia cristã, segundo a qual Deus criou o tempo ao criar o mundo. O Homem é aquele ser que mede tudo aquilo que veio antes que houvesse alguém para medir o que quer que fosse. Essa mente que dá coordenadas temporais ao universo recebeu também de Deus, segundo o pensamento judeo-cristão, o dom não somente de nomear as coisas e os seres com os nomes que eles verdadeiramente têm – os da língua edênica, anterior a Babel -, mas de datar esses seres com sua verdadeira idade, o que tiraria dessa datação qualquer suspeita de antropocentrismo. Por exemplo, apesar da mecânica quântica e da utilização de aparelhos cada vez mais sofisticados, a ciência moderna não refutou ainda a assertiva de que a flecha do tempo se move do passado ao futuro, num trajeto que não depende do nosso capricho. Essa direção é confirmada tanto pela segunda lei da termodinâmica, pela qual tudo caminha de um estado mais ordenado em direção a graus crescentes de desorganização e de entropia, como pela cosmologia, que descobriu que o universo está se expandindo, e não se contraindo.
Quero concluir, como comecei, com Santo Agostinho. Para ele, cada um dos três momentos temporais exige uma atitude mental correspondente. A correspondente ao passado é a reminiscência, a correspondente ao futuro é a espera, e a correspondente ao presente é a atenção. Vejamos como essa divisão se aplica aos três tempos.
Começando com o tempo natural, há margem para um modesto otimismo. O passado, o presente e o futuro do planeta estão sendo investigados com relativa seriedade, na perspectiva da sustentabilidade. Os cientistas e a opinião pública “lembram-se” de uma época relativamente intocada pela poluição, “esperam” um futuro em que o planeta seja menos exposto ao aquecimento global e ficam “atentos” aos riscos do presente, preconizando, para esse fim, metas para reduzir as emissões de CO2 e a introdução de fontes alternativas de energia.
Quanto ao tempo humano – o psicológico e o social -, é evidente que num indivíduo e numa sociedade “normais” as três funções são indispensáveis. Nem indivíduos nem sociedades podem viver plenamente o presente sem a capacidade de rememorar ou de fantasiar. Mas é de temer que em nosso mundo pós-moderno, em que a amnésia se generaliza, em que o futuro não oferece mais nenhuma esperança utópica nem justifica nenhuma espera messiânica, e em que toda vinculação real com o presente se degrada na ideologia do presentismo, estejamos na véspera de perder para sempre uma relação autêntica com o tempo.