Tudo é corpo ou vazio [Lucrécio]
por Francis Wolff
Resumo
Poeta romano do século I a.C., Lucrécio deixou inacabado um poema de mais de sete mil versos, De natura rerum (Da natureza), que é um imenso hino materialista à vida mortal. Acusado de loucura pelos cristãos, que dizem que ele teria se suicidado por paixão, Lucrécio retoma a doutrina de Epicuro que modifica os critérios do ser da filosofia grega. Existem somente corpos e vazio no universo. Átomos se combinam e se entrechocam para fazer e desfazer as coisas numa infinidade de mundos mortais e finitos, sem origem, repouso ou finalidade. A aparente ordem do mundo não é senão uma pequena ilha num oceano de desordem, à imagem das letras do alfabeto que, numa espécie de biblioteca infinita, se combinariam em alguns raros livros que fazem sentido. Mas o poema de Lucrécio não é só uma visão do mundo, é um remédio para acalmar os desejos e os temores vãos dos homens, como a morte e os deuses. E o que a poesia tem a ver com essa função terapêutica? Cabe-lhe suavizar o remédio amargo da filosofia, oferecendo prazer e alívio enquanto o espírito se impregna da verdade. Ao mesmo tempo ela faz perceber a materialidade da linguagem, transformando a relação arbitrária entre som e sentido, que serve à comunicação humana, numa relação sutil e necessária. Há dois modos de criar essa relação: há os poetas líricos que se ocupam do singular, e há os poetas filósofos que se ocupam do mais amplo e geral, poetas que, como o próprio Lucrécio, conseguem fazer sentir o pensamento.
DE NATURA RERUM
Ergo praeter inane et corpora tertia per se nulla potest rerum in numero natura relinqui, nec quae sub sensus cadat ullo tempore nostros nec ratione animi quam quisquam possit apisci. Nam quae cumque cluent, aut his coniuncta duabus rebus ea invenies aut horum eventa videbis. coniunctum est id quod nusquam sine permitiali discidio potis est seiungi seque gregari, pondus uti saxis, calor ignis, liquor aquai, tactus corporibus cunctis, intactus inani. Servitium contra paupertas divitiaeque, libertas bellum concordia cetera quorum adventu manet incolumis natura abituque, haec soliti sumus, ut par est, eventa vocare.
Lucrécio,
De natura rerum, livro I, 445-448
DA NATUREZA
Portanto, além dos corpos e do vazio, não fica, no número das coisas, nada que caia em qualquer momento na denúncia dos nossos sentidos ou que possa ser percebido pelo raciocínio do espírito. Tudo aquilo que tem um nome, encontrá-lo-ás ou inerente a uma destas coisas ou como acidental. É inerente tudo o que não se pode separar ou abstrair do corpo sem a destruição deste, como, por exemplo, o peso da pedra, o calor do fogo, o fluido da água, a tangibilidade de todos os corpos, a intangibilidade do vazio. Mas a escuridão, a pobreza e a riqueza, a liberdade, a guerra, a paz, tudo aquilo que, por chegar ou partir, não modifica a natureza dos corpos, tem, segundo o nosso costume e como é justo, o nome de acidental.
Lucrécio,
Da natureza das coisas, livro I, 445-448
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Quase nada sabemos de Lucrécio (Titus Lucretius Carus), poeta romano do século I a. C., contemporâneo de Cícero, e que, segundo uma lenda tardia, provavelmente uma calúnia de origem cristã (ela se encontra na Crônica de são Jerônimo), suicidou-se por amor e deixou assim seu gigantesco poema Da natureza (De natura rerum) inacabado.
Era fatal que a tradição cristã se vingasse daquele que nos deixou a mais longa obra materialista da Antiguidade, o mais importante poema filosófico de todos os tempos, o principal testemunho que nos resta da doutrina epicuriana. Sim, era fatal que o acusassem de se ter oferecido a morte o autor desse imenso hino à vida mortal. Era fatal que o acusassem de ter morrido de paixão amorosa, a ele que condenava vivamente toda paixão e concebia o amor apenas como erótica dos corpos, era fatal que o acusassem de loucura, a ele, o filósofo poeta para quem a filosofia e a poesia só têm no fundo um único objetivo: livrar-nos de nossas loucuras, curar-nos de nossas paixões…
O que resta de Lucrécio em nada pertence a ele, e melhor assim! Pois, segundo ele, tudo é corpo ou vazio. Eis, portanto, que há mais de dois mil anos seu corpo se dissolveu para sempre, seus átomos se dispersaram no vazio, sua matéria regenerou outros corpos, nesta terra ou noutra parte, em outro mundo, e reanimou para sempre outros corpos vivos. O corpo de Lucrécio não existe mais, mas sua obra, mais de 7 mil versos, não deixa de viver…
Parece-me justo que Lucrécio seja incluído entre os poetas que pensaram o mundo, por ser um dos poetas que, mais e melhor, pensaram o mundo, o mundo como um todo — ou melhor, precisamente, os mundos, isto é, o universo, todos esses mundos que jamais formam um todo. Com efeito, Lucrécio é antes de tudo o pensador, e o poeta, da pluralidade dos mundos, e mesmo da infinidade dos mundos.[1]
Lucrécio pensador dos mundos
Como Lucrécio vê então este mundo, estes mundos? Digo exatamente “ver”, pois o poeta, nele, “vê” e mostra, enquanto o filósofo, que ele é também, pensa e demonstra. Lucrécio vê e pensa, seu pensamento é iluminado por suas visões.
Toda a natureza, segundo ele, consiste fundamentalmente apenas em corpo e vazio. Somente os corpos e o vazio existem. E o resto? E tudo o que nos cerca? Os homens, os cavalos, as montanhas, a lua, e também o azul do céu, a suavidade do ar, o pôr do sol, e a beleza, o amor, a tristeza, será que isso não existe? Sim, isso existe, mas não verdadeiramente, não absolutamente. São apenas propriedades (conjuncta) ou ainda acidentes (eventa) dos corpos e do vazio…
Toda a natureza é constituída por duas coisas: existem os corpos e existe o vácuo em que se acham colocados e em que se movem em diferentes direções. (I, 419-421)[2]
[…]Portanto, além dos corpos e do vazio, não fica, no número das coisas, nada que caia em qualquer momento na denúncia dos nossos sentidos ou que possa ser percebido pelo raciocínio do espírito. Tudo aquilo que tem um nome, encontra-lo-ás ou inerente a uma destas coisas ou como acidental. (I, 445-450)
Por essa tese, Lucrécio resolve à sua maneira, retomada de Epicuro, o problema mais constante e mais fundamental de toda a filosofia antiga: a questão do ser… Trata-se de responder à questão: o que é que é? o que é que é realmente? — ou seja, duplamente, o que existe verdadeiramente por trás das aparências? e o que existe fundamentalmente por trás do fluxo das mudanças permanentes? A resposta varia, é claro, segundo os filósofos, desde o início da reflexão grega. Para uns, físicos, a questão resume-se em saber de que, no fundo, o mundo é feito; para Parmênides, o primeiro a abordar de frente a questão do ser, a resposta só pode ser esta: somente o ser, entendido como o que é sempre, e que portanto é sempre o mesmo, é sem poder não ser, e portanto é sem jamais vir a ser (o que implicaria que ele não era, portanto que não é sempre), é sem devir (o que implicaria que ele não é mais o que é, portanto que não é sempre), somente isso é verdadeira e fundamentalmente. Platão, Aristóteles, todos os outros filósofos da Antiguidade tentaram achar uma resposta à questão do ser que concordasse com essas exigências lógicas, ao mesmo tempo em que explicasse o próprio mundo: descobrir o que é verdadeiramente a partir do mundo.
Mas, no fundo, embora diferentes e opostas as respostas que os filósofos deram a essa questão, eles concordavam com os critérios do ser. Ser, ser verdadeiramente, é em primeiro lugar ser de modo independente. Se uma coisa X existe, mas se sua existência depende da de outro ser Y, cuja existência não depende de nada mais, então X “existe menos” que Y, já que a existência de X depende da de Y, enquanto a de Y não depende da de X. (Pedro “existe mais” que seus cabelos, pois pode perfeitamente continuar a viver tendo se tornado careca, enquanto seus cabelos, uma vez cortados, rapidamente definham; mas seus cabelos “existem mais” que a cor deles, por exemplo, porque podem continuar a existir perdendo a cor, enquanto sua cor não pode existir sem eles!) Segundo critério: a eternidade. Ser, ser verdadeiramente, é ser sempre, portanto ser sempre o mesmo — não mudar, pois isso seria devir outro diferente de si, e portanto não ser mais o que se é. Se um ser não é eterno, é que ou ele vem a desaparecer, ou que ele “vem a ser”: no primeiro caso, ele passa do ser ao não-ser; no segundo, do não-ser ao ser; em todo caso, ele não é verdadeiramente já que não é necessariamente; ele pode passar a ser ou cessar de ser por razões que não se devem ao que ele é, a seu ser; em troca, um ser que é verdadeira e completamente, existe sempre e é sempre o mesmo. Esses dois critérios são aplicados diferentemente — e implicitamente — por Platão e Aristóteles, por exemplo, e conduzem o primeiro à chamada “teoria das formas separadas” (somente elas “são”, nesses dois sentidos fortes do verbo “ser”) e o segundo à sua teoria da substância e das formas encarnadas na matéria. Mas esses dois mesmos critérios, sobretudo, conduzem Lucrécio (como haviam conduzido seu mestre Epicuro)… aos corpos e ao vazio. “Tudo é corpo e vazio” significa, em primeiro lugar, que somente os corpos e o vazio satisfazem aos dois critérios do ser: eles existem independentemente de todo o resto e existem eternamente. Os outros seres — supondo que existam — dependem deles para existir, seja enquanto propriedades do vazio ou dos corpos (são atributos essenciais, como o peso para os corpos de pedra, ou o calor para o fogo, ou ainda a vida para um corpo de planta, ou a sensibilidade para um corpo de animal), seja enquanto acidentes dos corpos ou do vazio — são atributos passageiros, cuja presença ou ausência não afetam a existência das coisas das quais dependem: por exemplo, a cor para os cabelos ou a juventude para um homem.
Assim o vazio existe… O vazio é a imensidão infinita do espaço, sempre igual e em toda parte idêntico, a extensão ilimitada e eterna em que os corpos podem estar situados e se mover. Ele existe plenamente, jamais veio a ser e jamais poderá deixar de ser.
E os corpos? Certamente os corpos existem, basta olhar ao redor de nós. Mas basta também olhar para ver que, aparentemente, nenhum corpo possui essa existência absoluta, plena e inteira. Ao contrário: os corpos vivos nascem e morrem, passam a existir e deixam de existir; os corpos naturais se transformam uns nos outros, ciclicamente, a chuva cai na terra, evapora-se no ar, tudo se transforma, nada é fixo, permanente, eterno. E no entanto… Suponhamos que, por trás de todos esses nascimentos e mortes, por trás de todas essas transformações, a matéria, uma matéria única e homogênea, permanece, matéria comum a tudo o que existe, a despeito das diferenças aparentes entre corpos, homens, cavalos, montanhas, astros — mas também água, ar, fogo, terra, mas também cores, odores, sabores etc. —, a mesma para todos os corpos. Suponhamos que tudo o que existe, de forma transitória, precária, diferenciada, repouse sobre uma mesma base material, nem transitória (ela é eterna), nem precária (ela é absolutamente firme e sólida), nem diferente (ela é a mesma para todas as coisas). Todos os corpos, embora sua aparência seja diferente, suas qualidades opostas, fixas ou transitórias, são feitos de uma mesma matéria, e esta, por sua vez, existe sob a forma de uma infinidade de partículas minúsculas, fisicamente indivisíveis (em grego: atomoi), que, sendo absolutamente sólidas, são portanto indestrutíveis e portanto eternas, de diferentes formas e dimensões, o que permitiria explicar o conjunto das diferenças aparentes dos corpos que nos cercam.
Ou seja: há o vazio e há corpos, os átomos, situados nesse espaço vazio. Tudo está aí, não há nada mais. Esses corpos no vazio, o que fazem? Eles são móveis, submetidos a seu peso e aos choques incessantes que recebem da parte dos outros átomos. Esse movimento constante dos átomos que se entrechocam ao infinito no vazio infinito nunca começou e nunca terá fim. Eis aí nosso mundo — ou melhor, o universo em sua realidade — tal como se ofereceria ao olhar penetrante da razão; este não veria homens, animais, água ou fogo, vivos ou mortos, cores ou formas, mas apenas uma infinidade de corpos atômicos em movimento eterno no vazio infinito. E nós mesmos, a olho nu, conseguimos às vezes, num raio de sol que atravessa a obscuridade de um quarto, perceber essa realidade:
Do que acabo de dizer temos nós sempre presente, ante os olhos, o traslado e a imagem. Observa os raios do Sol que entram dando sua luz na obscuridade de uma casa: verás que na própria luz dos raios se misturam, de modos vários, numerosos corpos diminutos, e, como se fosse em eterna luta, combatem, dão batalhas, por grupos certos se guerreiam e não há pausa, agitados como estão pelos encontros e pelas separações frequentes. Podes imaginar por isto o que será a perpétua agitação no vago espaço dos elementos das coisas, na medida em que um pequeno fato pode dar ideia de grandes coisas, e elementos para seu conhecimento. (II, 112-124)
Eis como o poeta Lucrécio vê o mundo. Pode-se no entanto ser mais preciso e passar do mundo aos mundos. Pois, desses movimentos atômicos sempiternos no vazio imenso formam-se ao acaso, aqui ou acolá, por agregação, corpos compostos, eles próprios provisoriamente estáveis, pois o que choques puderam fazer outros choques podem desfazer; corpos compostos que, eles próprios, aqui ou acolá, ao acaso, podem se agregar entre si, formando amontoados maiores, imensos, mundos eles próprios provisoriamente estáveis, submetidos ao nascimento, ao desenvolvimento, à morte, mundos infinitos no universo infinito, alguns deles semelhantes ao nosso, outros diferentes do nosso. Em alguns desses mundos, provisórios, precários, formam-se também, ao acaso, corpos, alguns dos quais são vivos; entenda-se com isso que eles, e somente eles, têm a possibilidade de se perpetuar por um certo tempo, seja em sua individualidade corporal (regeneração pelo alimento), seja na identidade de sua espécie (geração pela reprodução).
Tal é a natureza das coisas (natura rerum) segundo Lucrécio, sua visão dos mundos. O essencial consiste no seguinte: o universo se mantém “sozinho”! Não há senão corpos e vazio. Nós mesmos, nossos pensamentos, nossas almas, os deuses, tudo isso é corpo e vazio. Não há sequer unidade do mundo, há uma infinidade de mundos mortais e finitos. Não há nada fora do universo, nenhum espírito criador ou deus salvador, não há origem do universo, nenhuma inteligência o fez ou o quis, não há um fim do universo, ele é sem repouso nem objetivo. A natureza é só e é livre, absolutamente livre. Não há espírito puro, não há finalidade nem sentido. O universo existe. Desde sempre e para sempre. Não há que se perguntar por quê nem em vista de quê. Ele é, eis tudo.
Se retiveres tudo isso, já bem conhecido, logo a natureza te aparece como livre, isenta de senhores soberbos e realizando tudo espontaneamente, sem qualquer participação dos deuses. (II, 1090-1092)
Resta, evidentemente, uma questão: se não há deuses no mundo, ou melhor, se os deuses que existem fora dos mundos não são nem criadores nem providenciais, como se explicam a ordem do mundo, o belo arranjo da natureza, a regularidade dos movimentos do céu, das leis da vida? Esse problema é certamente o mais difícil.
Aqui é preciso abrir parênteses. Se acreditarmos num Deus criador e providencial, teremos um problema que muitos consideram insolúvel, o problema do mal (dito, desde Leibniz, da “teodiceia”). A questão é: como se explica o mal do mundo se sua causa (Deus) é boa? Como se explicam os males, os sofrimentos, mas também as imperfeições do mundo, em suma, a desordem?
Para um materialista, como Lucrécio, o problema é inverso: se tudo é corpo e vazio, isto é, se tudo obedece a um acaso cego, como se explica que nem tudo seja simples caos, que haja uma natureza, movimentos regulares, em suma, uma ordem natural, certamente imperfeita, instável, mas nem por isso o puro caos da agitação desordenada dos grãos de poeira num raio de sol? Há, de fato, um mundo, há mundos (“mundo” traduz nas línguas latinas a palavra grega cosmos, que significa “ordem”).
Lucrécio responde a esse problema pelo poder do infinito.
Foi por eles próprios, espontaneamente, batendo ao acaso, que os elementos, depois de se terem unido de mil modos, mas em vão e inutilmente, formaram por fim as bases de que sairiam os princípios das grandes coisas, da terra, do mar, do céu, das espécies de seres vivos. (II, 1058-1063)
Não é por certo em virtude de um plano determinado nem por um espírito sagaz que os átomos se juntaram por uma certa ordem; também não combinaram entre si com exatidão os movimentos que teriam; mas, depois de terem sido mudados de mil modos diferentes através de toda a imensidade, depois de terem sofrido pelos tempos eternos toda espécie de choques, depois de terem experimentado todos os movimentos e combinações possíveis, chegaram finalmente a disposições tais que foi possível o constituir-se tudo o que existe. (I, 1021-1030)
O que isso significa? Significa que, quando buscamos uma causa à ordem que vemos, isto é, a este mundo, confundimos essa ordem com o todo do universo. E nos perguntamos: por que esse todo é ordenado? Como no homem a ordem vem de uma inteligência ordenadora, imaginamos — por antropomorfismo — uma inteligência na origem da ordem. Mas essa ordem que vemos, esse mundo finito (que teve um começo e que terá um fim, que tem limites no espaço) não é senão uma pequena ilha ordenada em meio a um oceano de desordem. Ao acaso, no infinito do tempo e do espaço, um mundo ordenado se forma. Raramente, muito raramente, mas que importa? Se o tempo é infinito e o espaço é infinito, então o que tem muito poucas chances de acontecer acontece necessariamente uma vez de tempo em tempo na eternidade. Para ilustrar esse ponto, pode-se utilizar o modelo a que Lucrécio recorre com muita frequência: o das letras do alfabeto — comparação tanto mais fácil para ele quanto em grego, por exemplo, stoicheion designa ao mesmo tempo o elemento físico (o átomo) e a letra, um pouco como a palavra latina elementa. Para fazer compreender a teoria atomística, ele compara todos os elementos indivisíveis que compõem todos os corpos reais ou possíveis dos mundos, às letras do alfabeto que compõem todas as palavras da linguagem. Com cerca de 25 letras, pode-se escrever as milhares de palavras de uma língua, e mesmo todas as palavras de todas as línguas possíveis. Com apenas algumas dezenas de espécies de átomos diferentes (isto é, de formas e de tamanhos diferentes), pode-se, por simples combinação, formar milhares, milhões de corpos diferentes do mundo, ou mesmo de todos os mundos possíveis. A que se assemelharia então o universo lucreciano, segundo essa comparação? A uma espécie de biblioteca de Babel, segundo o modelo da célebre novela de J. L. Borges. Todos lembram que este imagina homens vagando numa imensa biblioteca, na qual todos os livros têm uma aparência idêntica: mesmo número de páginas, de linhas por página, de caracteres por linha, cada caractere sendo uma letra do alfabeto ou um sinal de pontuação. Essa biblioteca contém todos os livros possíveis que obedecem a essa simples combinatória. Nessa biblioteca, muito grande, imensamente grande (no entanto finita, ao contrário do universo lucreciano!), um viajante pode passar horas, dias, semanas a folhear milhares e milhares de livros antes de achar simplesmente uma frase coerente escrita numa língua por ele conhecida. Mesmo assim sabemos a priori que essa biblioteca contém livros inteiramente escritos ecoerentes, e inclusive todos os livros já escritos ou por escrever em todas as línguas do mundo, até mesmo os livros que poderiam ter sido escritos, todas as suas variantes, em todas as línguas, e as peças que Shakespeare jamais escreveu, e uma continuação inédita das Flores do mal de Baudelaire, e um De natura rerum de Lucrécio em versão cristã etc. É sem dúvida algo vertiginoso. O universo lucreciano é ainda mais rico, infinitamente mais rico que o de Borges, por ser infinito? Mas a imensidão do “universo” borgiano é suficiente para perceber a infinidade da “biblioteca” lucreciana: os átomos são as letras, o espaço vazio é o espaço branco da página ou o espaço no teclado da máquina de escrever. Um corpo composto é como uma palavra que tem sentido. Mas ela só pode ter sentido se respeitar as regras de combinação das palavras entre si, no interior de uma dada língua. O mesmo acontece com um corpo, que só pode subsistir, “ter um sentido”, segundo as leis naturais de composição, de produção, de subsistência e de compatibilidade dos corpos entre si, ou seja, segundo as leis naturais de um mundo. Um mundo é uma língua. Mas é claro que uma língua, um mundo, são raros, muito raros, em relação a tudo o que é matematicamente, estatisticamente possível.
Eis portanto a que se assemelha o universo lucreciano: a uma biblioteca de Babel vista, ou melhor, lida a partir de um de seus livros. Imaginemos, pois, um homem que, ao acaso, no primeiro dia, na primeira hora, abre um livro e topa ao acaso com um livro qualquer mais ou menos coerente, escrito em português, apesar de alguns erros e imperfeições (nem precisa ser A Ilíada ou a Bíblia): esse homem acharia necessariamente esse livro maravilhoso, em todo caso suficientemente bem-feito para que ele queira saber quem é o autor e mesmo prestar um culto a um gênio capaz de inventar tal livro. Não pode ser fruto do acaso, ele diria a si mesmo, deve existir um espírito ordenador que combinou essas palavras, inventou essa história, criou esses personagens etc. E a essa inteligência suprema ele não deixaria de prestar um culto e de esperar outros milagres similares. No entanto ele não sabe (por não ver o conjunto da Biblioteca) que esse livro é apenas um livro perdido em meio a um oceano de contrassenso, e que ele deve apenas a seu próprio espírito (nascido, ele também, ao acaso de uma composição de átomos no espaço infinito) o fato de atribuir-lhe um sentido e de julgá-lo extraordinário. E no entanto esse livro é apenas um pobre livro, tão fortuito quanto os demais, nem bons nem maus, puros frutos dos jogos da combinação com a eternidade. E no entanto tudo é somente corpos cegos e vazio infinito.
Da utilidade de pensar poeticamente o mundo
Mas o poema de Lucrécio não é uma simples visão do mundo dos mundos. O poema não é somente a exposição de uma física materialista, a mais poderosa, sem dúvida, de toda a Antiguidade. É antes de tudo um remédio aos males de que padecem os homens. Expliquemo-nos.
Lucrécio é poeta e filósofo. Mas há várias maneiras de ser filósofo e várias maneiras de ser poeta. Do filósofo, a Antiguidade nos legou, basicamente, três modelos.
O filósofo interrogador, à Sócrates: aquele que nos interpela, que questiona nossas certezas, provoca a dúvida, o questionamento das evidências mais enraizadas, que nos leva a interrogar-nos sobre o que nunca havíamos interrogado, sobre o que nos parecia liso, sem problema, que nos leva a perguntar o que somos e o que devemos fazer, quando agimos maquinalmente, com nossos pressupostos, nossos preconceitos, nossas opiniões simples e aceitas.
O segundo modelo é o de Aristóteles, o filósofo erudito: aquele que busca, ao contrário do primeiro, com um rigor de argumentação, de experiência fora do comum, responder a todas as nossas questões, totalizar e unificar todo o saber possível, apresentá-lo de uma maneira ao mesmo tempo completa e coerente, a partir dos primeiros princípios até as últimas consequências.
Há um terceiro modelo, do qual Epicuro é o representante por excelência: o filósofo médico. E Lucrécio é um desses. Epicuro é um desses. Ele dizia: “Vazio é o discurso do filósofo pelo qual o homem não é curado de algum sofrimento”. O filósofo epicuriano é médico, dirige-se a um doente particular e tenta administrar-lhe o remédio que lhe convém. Eis por que, assim como Epicuro se dirige sempre, nos textos que chegaram até nós, a um “discípulo”, destinatário singular — também enfermo, Heródoto, Meneceu —, Lucrécio dirige-se a Mêmio, doente crônico e discípulo indócil, a fim de convertê-lo definitivamente à “verdadeira doutrina” (ele parece ainda preso à religião oficial, a da mitologia, religião oficial que Lucrécio condena com uma violência inédita), mas também a fim de curá-lo de seus males, aliás ligados a suas crenças religiosas. Pois, para um epicuriano, não se trata de transmitir verdades gratuitas, por verdadeiras que sejam. Trata-se de modificar, por essas verdades, a vida daqueles a quem se dirige: transformar as convicções, dissipar as ilusões, mudar seus hábitos, exortar a novos princípios de existência — e sobretudo acalmar os desejos vazios e os temores vãos.
Quais desejos e quais temores? Segundo os epicurianos, todos os homens são infelizes porque padecem de quatro males fundamentais: o desejo vazio, isto é, o desejo de desejar sempre mais, sem limite, sem nunca poder ser satisfeito e três temores: temor da dor (convém não esquecer o que representava a dor no mundo antigo, sem anestesia, sem calmante analgésico eficaz) e sobretudo dois grandes temores que são o obstáculo supremo à felicidade: temor da morte e temor dos deuses. É a esses dois temores que responde o conhecimento da natureza das coisas (isto é, a física), é a eles portanto que Lucrécio pretende responder escrevendo seu poema Denatura rerum.
No início do poema, Lucrécio explica esses dois objetivos.
Começando pelo primeiro, combater o medo da morte:
[É preciso] sobretudo ver, com sagaz inteligência, donde provém a alma e qual é sua natureza e quais são essas coisas que, vindo ao encontro da gente acordada, mas abalada pela doença ou mergulhada no sono, aterrorizam os espíritos, dando-nos a ilusão de que estão diante de nós e os podemos ouvir, aqueles cujos ossos tocados pela morte se encontram recobertos de terra. (I, 130-135)
Depois, o segundo objetivo, combater o medo dos deuses:
O terror oprime todos os mortais, apenas porque veem operar-se no céu e na terra muitas coisas de que não podem de nenhum modo perceber as causas, e cuja origem atribuem a um poder dos deuses. (I, 151154)
Compreende-se por que Lucrécio faz da religião seu inimigo principal — para não dizer único. Pois a religião repousa, segundo ele, sobre a exploração desses dois temores humanos.
[…] se os homens vissem termo certo às suas dores, de qualquer modo ganhariam valor e resistiriam à religião e à ameaça dos vates; mas não há, agora, nenhuma razão nem possibilidade alguma de se resistir, visto que são penas eternas as que se têm de temer depois da morte. (I, 107-111)
A religião explora esse duplo temor ao inventar uma alma imortal sujeita às penas infernais dos deuses após a morte. Vê-se inclusive que, desse modo, ela explora os três temores dos homens: temor da morte, temor dos deuses, temor da dor ilimitada causada pelos deuses após a morte.
Mas se tudo é corpo e vazio, então nada há a temer da morte nem a temer dos deuses. E a filosofia (epicuriana) é a verdadeira alternativa à religião.
Percebe-se o que é a verdadeira filosofia: é a filosofia plena, não vazia, é a filosofia que medica. Certo. Mas, e a poesia? Por que a poesia? Em quê ela é concernida pela função terapêutica? Por que escrever em versos quando alguém se pensa médico das almas?
Lucrécio explica:
Primeiro, porque te ensino importantes assuntos e procuro libertar-te o espírito dos apertados nós religiosos; depois, porque sobre um tema obscuro vou compondo tão luminosos versos, a tudo tocando com a graça das Musas. Isto mesmo parece perfeitamente justificado; assim como os médicos, quando tentam dar às crianças o repugnante absinto, primeiro põem, no bordo da taça, loiro, fluido e doce mel, de modo que, pela idade imprevidente e pelo engano dos lábios, tomem a amarga infusão do absinto e, não significando este engano prejuízo, possam deste modo readquirir a saúde, assim também eu, como esta doutrina parece muito desagradável a quem a não tratou, e foge diante dela, horrorizado, o vulgo, quis, em verso eloquente e harmonioso, expor-te as minhas ideias, e ungi-las, por assim dizer, do doce mel das Musas; a ver se por acaso posso manter o teu espírito encantado com meus versos, enquanto penetras toda a natureza e as leis de sua formação. (I, 931-950)
Nesse trecho, vê-se que Lucrécio se fixa três objetivos ao compor seu poema. Primeiro objetivo: a divulgação. Trata-se de traduzir uma doutrina grega libertadora em latim, e conferir-lhe assim um valor universal. Já que ela se destina a todo homem e pode trazer-lhe alívio de seus sofrimentos, é preciso traduzi-la em todas as línguas ou na língua universal da época, o latim, a fim de fazer que o mundo inteiro a conheça.
Segundo objetivo: esclarecer — isto é, desenvolver, fazer ver, mostrar. O conceito dirige-se ao raciocínio, ele é difícil, obscuro; as imagens dirigem-se aos sentidos, à imaginação. Elas provocam a emoção, ilustram o conceito por meio de exemplos.
Terceiro objetivo: encantar. É a célebre imagem do mel. A filosofia, a verdadeira filosofia, como vimos, a que não é nem vazia nem vã, deve medicar: cuidar dos homens para que eles sejam felizes. A poesia, a verdadeira, a que não é nem vazia nem vã, é auxílio médico. Ela é o mel que permite engolir o remédio amargo da doutrina filosófica. Ela dá prazer enquanto a filosofia exige esforço. A criança degusta o mel e ingere o remédio. O discípulo saboreia a poesia e é tratado pela filosofia, que ele ingere ao mesmo tempo sem perceber. Ele sente prazer em vez de sentir o esforço. Duplo benefício: ele tem o prazer imediato do mel e o alívio a longo prazo propiciado pelo remédio. Usufrui da poesia e ao mesmo tempo impregna-se da verdade. Lê, relê, aprende de cor, assimila a doutrina graças aos versos, a seu ritmo, à sua musicalidade, assimila-os no sentido mais biológico do termo, os faz seus, eles se tornam uma parte dele mesmo, de sua própria substância e de seu pensamento. As letras do De natura rerum tornam-se, aos poucos, átomos de seu próprio espírito, elementos que compõem seu pensamento, isto é, de seu corpo, já que tudo é corpo ou vazio.
Nada está mais distante da poesia gratuita do que Lucrécio. Mas nada está mais distante dele, também, como vimos, que a ideia de filosofia gratuita. Uma filosofia gratuita não seria apenas uma filosofia falsa ou ilusória. Seria uma filosofia vazia que alimenta o desejo vão de saber mais e nunca satisfaz esse desejo, não acalmando nenhum sofrimento. Do mesmo modo, uma poesia gratuita seria uma poesia vazia, isto é, sem pensamento. Uma poesia bonita, estética, puramente formal.
Pois, o que é a poesia? Não é difícil responder em poucas palavras a que gênero ela pertence: à arte da linguagem. Mas há muitas delas: a retórica é arte da linguagem (arte de convencer), o romance é arte da linguagem (arte da narrativa), o teatro é arte da linguagem (arte da representação dialogada) etc. O que faz a especificidade da poesia? A poesia é uma arte da linguagem que toma por material, não essa ou aquela função da linguagem (convencer, narrar, dialogar etc.), mas, aquém de todas essas funções, a própria matéria da linguagem, aquilo de que ela é necessariamente feita: o som das palavras. As palavras têm um ou vários sentidos, convencionais, mas não há relação, na língua comum, entre o som das palavras e seu sentido. São signos ditos “arbitrários”, nada liga logicamente “a natureza” ao som “natureza”. De maneira mais geral, no uso habitual da linguagem, tudo o que faz a matéria mesma da linguagem — isto é, no primeiro nível, os sons (ou ainda os “significantes”, distintos dos “significados”), mas também, no segundo nível, as regras semânticas que relacionam o sentido das palavras entre si (homonímia, sinonímia, proximidade, níveis de sentido, conotações, evocação, “sabores”), e ainda, no terceiro nível, as regras sintáticas que relacionam as palavras entre si no eixo horizontal da frase (ordem das palavras, proposições bem ou mal formadas etc.) —, tudo isso deve ficar despercebido, desaparecer por trás de sua função principal: comunicar.
Assim, no uso cotidiano, trivial, da linguagem, quando as pessoas se compreendem mutuamente, não se ouve mais o som das próprias palavras, mas apenas seu sentido. Inversamente, a partir do momento em que se ouve o som delas, não se é mais capaz de compreendê-las. É o que ocorre quando somos confrontados a uma língua estrangeira que não nos é familiar: ouvimos apenas uma estranha música. Ora, a poesia toma justamente por objeto essa matéria sonora, isto é, joga com as sonoridades (as assonâncias, as aliterações, as rimas etc.), os ritmos (por exemplo, os diversos modos de versificação, a contagem regular das sílabas, a acentuação das palavras, a alternância regular das sílabas breves e das longas etc.), em suma, faz de uma matéria sonora bruta e insignificante uma forma ordenada e significante, pois toda arte poética consiste não em fazer música pela música (como aquele “que faz versos” contando nos dedos!), mas em construir uma relação engenhosa, sutil, eloquente, entre essa matéria posta em forma (o som) e o próprio discurso (o sentido). Ao contrário da língua comum, fundada sobre a convenção de uma relação arbitrária significante/significado, que permite a comunicação, a língua poética se funda na invenção de uma relação necessária significante/significado, que acrescenta a expressão de um sentido, dado pela matéria sonora, à comunicação do sentido veiculado pelas palavras. De modo que há três maneiras de fazer má poesia:
– porque não se sabe pôr os sons da linguagem em música;
– porque não se sabe dar sentido ao discurso (diz-se estar fazendo “poesia pura”, quando na verdade nada se tem a dizer);
– porque não se sabe construir uma relação, tão essencial quanto secreta, entre a forma sonora e o discurso, como se houvesse de um lado uma bela música, bem-feita, e de outro palavras interessantes, justas, profundas, mas sem nenhuma relação entre as duas, cada qual cantando para si, a música nada dizendo que se acrescente ao sentido, que se case com ele e forme com ele uma terceira forma, unida, única, inusitada, singular. Essa é a condição das mais profundas emoções poéticas.
Dito isto, talvez haja também dois modelos de poeta, dois modelos de bons poetas, conforme a maneira pela qual conseguem ser bem-sucedidos nesse terceiro nível, o da imbricação da arte e do pensamento. Sim, há duas maneiras de conseguir casar bem o som e o sentido numa forma única, ou seja, de unir “arte” e “pensamento” num só conceito portador de emoção: “artepensamento”.
De um lado, há os poetas do singular, os que procuram dizer o único: seja isso a disposição de sua subjetividade individual (seu “estado de alma”), seja, mais objetivamente, a visão única oferecida por um lugar (paisagem, bairro, casa etc.), a emoção particular de um momento particular, ou a soma de afetos em que é apreendido um objeto determinado e familiar; enfim, poetas que buscam encerrar em palavras e por palavras que, por definição, são comuns e gerais, o que justamente escapa ao comum e ao geral, o que depende da singularidade pura. Sua arte permite pensar (isto é, apreender) o que ordinariamente escapa ao pensamento, isto é, ao conceito. Para eles, a poesia é a arte de pensar pela linguagem o que é rebelde à linguagem — e portanto ao pensamento. É a arte de apreender pelas palavras aquilo que — dificilmente — é apreendido pelos sentidos: o único. É a arte de dizer o puramente sensível.
Em oposição a esses poetas líricos, haveria os poetas filósofos, “à Lucrécio”, os que permitem pensar o mundo e não a singularidade das coisas. Do mesmo modo que a filosofia está a serviço da felicidade (ela deve acalmar as perturbações), essa poesia está a serviço da filosofia (ela deve tornar o remédio agradável). De maneira mais geral, a poesia é então a arte que permite tornar o pensamento suportável. Não é a arte de pensar pela linguagem a individualidade nua e única, mas, ao contrário, uma arte que toma por objeto o conceito mais geral e mais amplo (o mundo, a infinidade dos mundos), o conceito mais universal, porque se dirige a todos os homens sem exceção, à condição humana em geral, e quer tornar esse conceito sensível, visível, palpável.
Há os poetas que conseguem pensar o sensível e há os poetas que conseguem fazer sentir o pensamento. Lucrécio é, certamente, um destes. E talvez o maior de todos que tentaram pensar o mundo. Dito em outras palavras: há poetas que povoam o vazio de corpos singulares, há outros, como Lúcrecio, que abarcam num só olhar os mundos infinitos dos corpos no vazio. Pois, finalmente, tudo é corpo ou vazio.
Notas
[1] Lucrécio distingue o mundo (mundus, haec summa rerum, essa suma das coisas) do universo (summa summarum, a suma das sumas), formado de uma infinidade de mundos.
[2] Todos os trechos de Da natureza citados neste artigo foram extraídos da tradução de Lucrécio da coleção “Os pensadores” (2a ed., São Paulo, Abril Cultural, 1980). (N. do Tradutor)