2010

Um preâmbulo: O “raio visual”ou as memórias de infância

por Eugênio Bucci

Resumo

Olhar é trabalhar. Olhar é trabalhar no sentido social. No sentido cultural e econômico: o olhar constrói o sentido e o valor da imagem.

É preciso considerar que, desde o momento em que são confeccionadas, as imagens nascem segundo imperativos do olhar. Pintores, fotógrafos, operários e outros artesãos do imenso repertório visual que nos rodeia são portadores das demandas do olhar a que seus produtos serão dirigidos.

Em qualquer tempo, a exibição da imagem é parte constitutiva de seu processo de fabricação, mas isso é ainda mais verdadeiro em nosso tempo. O valor das imagens é gerado e realizado apenas no instante em que o suposto consumidor deita sobre ela o seu olhar. Ele trabalha a inserção da figura que vê na instância do imaginado. Consumir imagens é consolidar seu significado. Na mesma medida, consumir imagens é também fabricar seu valor.

Nós produzimos imagens industrialmente enquanto apenas olhamos. Fabricamos o valor das imagens enquanto as contemplamos. Com os nossos olhos fabricamos signos imagéticos, seu valor de uso e também seu valor de troca.

Na obra capital de Karl Marx, o conceito de mercadoria é essencialmente baseado no corpo físico, na dimensão material do bem. Mas Marx deixou, sem abrir mão da materialidade da coisa, uma abertura para a “fantasia” – e localizou a “fantasia” dentro do valor de uso.

A fabricação da imagem não é mais uma etapa acessória no processo produtivo: ela se converteu na etapa principal. Esse fenômeno não se reduz à esfera econômica da vida social, ele se verifica em outros domínios, como a política, a ciência ou a religião.

De que maneira o olhar, ordenado como trabalho, produz significação e valor? A questão se refere à significação e ao valor que as imagens carregam, o que implica novas complexidades. Os elementos constitutivos das imagens não guardam entre si o mesmo padrão normativo que ata os significantes de um idioma qualquer. Na supermodernidade, caracterizada pela superabundância factual e especial, o que equivale à superabundância das imagens, notaremos que elas assumem comportamentos de signos em diversas situações.

Teria havido, antes da nossa era, um reinado da palavra pura? É possível ter certeza de que esses períodos anteriores foram mais “dialógicos” do que as sociedades atuais, apenas por estarem menos conspurcados por fotografias, filmes, videogames e logotipos? Deveríamos então restaurar a ordem anterior?

É claro que não. Existe uma comunicação rotineira que já não tem como prescindir de signos visuais. E, dentro dela, há diálogo.

Não é a imagem, enfim, que bloqueia o diálogo, assim como não é a palavra, sozinha, que o impõe. As linguagens contemporâneas se complexificaram – e se miscigenaram: eis o desafio.


Alhazen (965-1039) ficou famoso, sobretudo, por seu Tesouro de óptica, em que descreve, pela primeira vez, a formação da imagem sobre o olho. Sua explicação inspirou Vitello (ou Witelo), filósofo do século XIII, que escreveu o melhor tratado de óptica da Idade Média e só foi sobrepujado por Kepler, autor dos Complementos a Vitello.

A geometria exposta no Tesouro de óptica impressionou bastante alguns historiadores das ciências. Além disso, desde as primeiras páginas, Alhazen refuta a teoria do raio visual: desde os gregos, acreditava-se que a luz é um “fogo” emitido pelo olho, permitindo que se enxerguem os objetos[1].

Pela teoria do raio visual, os gregos tinham como verdade que o olhar gerava luz, mais ou menos como se do olho emergisse a iluminação que iria clarear o objeto visto. Não que o olho fosse algo como uma lanterna, não era assim. Para os gregos, essa luz que as pupilas projetavam era personalíssima, relacionava-se ao modo de ver de cada um, tanto que não se podia assegurar que duas pessoas, olhando para a mesma coisa, vissem cenas idênticas. O olho de cada uma influenç:iaria, pelo menos em parte, a imagem vista.

Uma afirmação de Aristóteles ajuda a entender um pouco mais os efeitos dessa teoria no imaginário grego. Certa vez, ele escreveu que o “raio visual” das mulheres menstruadas deixava nos espelhos uma névoa cor de sangue[2]. Provavelmente, vem daí o fundamento da superstição que cultivamos até hoje, sobre o mau-olhado[3]. Para muitos, até nossos dias, a força do olhar não apenas molda o visível como afeta a natureza dos objetos e dos seres olhados. Desde logo, adianto que, como qualquer cidadão medianamente informado, não acredito nisso. Talvez já tenha acreditado, na infância. Quando criança, eu achava que não era a luz emitida ou refletida pela paisagem que me batia na visão, mas o contrário: ao descerrar as pálpebras, a gente liberava a torrente do olhar, como a água que jorra das turbinas quando se abrem as comportas, e essa torrente é que ia dar nas coisas vistas, tocando-as, por assim dizer, com o nosso sentido projetado lá adíante.

Tenho desse tempo uma lembrança familiar. Estávamos na estrada para Ribeirão Preto, no fusca azul, ano 1966, que meu pai tinha comprado de segunda mão. Íamos a não mais que oitenta quilômetros por hora. Durante a viagem, minha mãe contou sobre a velocidade do som. Ela explicou que os barulhos que escutávamos demoravam um pouquinho para chegar aos nossos tímpanos (foi com a minha mãe que eu aprendi o que era tímpano). Fiquei matutando. Enquanto contemplava o grande pontilhão da linha do trem, que ladeava a Via Anhanguera, à nossa esquerda, conjecturei sobre a rapidez com que o meu ouvido ia buscar um ruído qualquer pelo mundo. E então pensei que meu olho era mais rápido. Do banco de trás do Fusca, onde eu me acomodava em companhia dos meus três irmãos, devo ter dito algo sobre a velocidade da visão, mas meu comentário não há de ter sido levado a sério e, providencialmente, eu me esqueci dessa parte da conversa.

Naquele tempo, se alguém víesse me dizer da teoria do raio visual, eu a tomaria por bastante razoável. Hoje, embora eu não me sinta mais autorizado a crer em raios invisíveis que brotam da íris dos mortais, ando convencido de que o olhar tem o dom de moldar o que vemos. Não que eu queira combater o legado que Alhazen deixou à óptica moderna. Bem sei que parece uma barbaridade dizer a coisa assim desse modo, mas há um quê de verdade nisso que ora afirmo: o olhar entalha, como um escultor caprichoso, as cenas que se dão a ver. O olhar é autor do que vemos.

Olhar e trabalho: uma primeira aproximação

Olhar é trabalhar. Mais propriamente, o olhar, a instância que dá o tecido do “espetáculo do mundo”[4]é trabalho. Olhar é trabalhar, menos no sentido biológico ou fisiológico, e mais no sentido social. No sentido cultural e econômico: o olhar constrói o sentido e o valor da imagem.

Pensemos numa representação visual qualquer, que tenha sido fabricada para o mercado: uma foto publicitária de criança sorrindo, um outdoor ao lado do trevo de uma pequena cidade, a atriz que arqueja o corpo na tela do cinema. Postulo que essas imagens existem não a partir do instante em que foram fotografadas, pintadas, impressas, afixadas no painel ou filmadas, mas a partir do instante em que são olhadas. Só aí elas adquirem existência propriamente dita. Elas existem no olhar – ou não existem.

É preciso considerar que, desde o momento em que são confeccionadas – mesmo que num ambiente protegido, secreto, como um quarto fechado, isolado do mundo -, elas nascem segundo imperativos do olhar. Pintores, fotógrafos, operários e outros artesãos do imenso repertório visual que nos rodeia não são instâncias prévias ao olhar. São portadores das demandas do olhar a que seus produtos serão dirigidos. Artistas, nesse sentido, são agentes, funcionários pagos pelo olhar, titulares de mandatos outorgados pelo olhar, subordinados a ele. São os vetores iniciais da grande operação do olhar.

Em qualquer tempo, a exibição da imagem é parte constitutiva de seu processo de fabricação, mas isso é ainda mais verdadeiro em nosso tempo. Assim como o artista ou o fotógrafo não constituem uma instância prévia à instância do olhar, a exposição não se põe como uma etapa posterior à fabricação da representação visual em questão. A exposição não é uma fase, como se pensa, de mero consume ou de mera “fruição”. Ela integra a fase de produção social da imagem, pois só no olhar a imagem se realiza como signo. Ver a imagem é fabricá-la. Como signo e também como mercadoria.

O valor das imagens é gerado e realizado apenas no instante em que o suposto consumidor deita sobre ela o seu olhar. O consumidor que olha é, nessa perspectiva, um operário da figura que vê. Ele trabalha (opera, produz, fabrica) a inserção da figura que vê na instância do imaginado. A síntese final do significado das imagens, que pertence ao imaginário, vai se concluir apenas no instante em que o suposto consumidor olha para ela, autorizando o encadeamento de significantes visuais que ela se propõe a (re)combinar. Consumir imagens é consolidar seu significado. Na mesma medida, consumir imagens é também fabricar seu valor[5].

Assim é que o olhar vai moldando o mundo visível: pelo que fabrica e pelo que nomeia. Por certo, não é o olhar que fabrica os objetos supostamente dados pela natureza, como as árvores, as minhocas, o pôr do sol, a fuligem vomitada pelos vulcões – mas a tudo isso ele assimila mediante nomeações, fabricando, portanto, a representação visual desses objetos.

Voltemos às coisas fabricadas. Um rabo de baleia saindo do mar, na linha do horizonte, não é coisa fabricada, mas a foto do rabo de baleia saindo do mar, na linha do horizonte, isto sim é coisa fabricada. Como coisa fabricada e como coisa significante, essa foto participa do processo histórico e linguístico pelo qual o olhar como trabalho vai imprimindo no imaginário um lugar reconhecível para qualquer rabo de baleia saindo do mar, de tal modo que um rabo de baleia aflorando das águas, na linha do horizonte, passa a ser um fenômeno impregnado de significações, mesmo quando não há fotógrafos por perto.

Quase todas as coisas fabricadas circulam antes como imagens – só depois circulam como coisas propriamente ditas, uma vez que a imagem da coisa vai antes da coisa, onde quer que seja. Digo quase todas, e não todas, porque há exceções, embora raríssimas. A bomba de um terrorista, que é uma exceção (e apenas às vezes ela é uma exceção), pode apenas se dar a ver depois de realizar seu valor – seu valor se realiza no momento em que ela explode. Na sua constituição, o terrorismo se caracteriza por se dar a ver depois de acontecer. É assim que ele cria seu potencial de terror (seu valor): uma vez tendo sido experimentado, passa a poder aterrorizar mesmo quando não está em parte alguma que se veja. A sua imagem, nesse caso, tem a ver com a sua invisibilidade: seria algo como uma “imagem negativa”.

O terrorismo, sendo uma exceção, realimenta a regra principal. Depois de identificado, ou seja, depois de inscrever seu sentido no imaginário, o terrorismo, como as outras coisas todas, passa a circular antes como imagem (a imagem da ameaça constante, ou a imagem do invisível que ameaça). Também por essas raras exceções, a economia do nosso tempo produz imagens industrialmente para fazer circular as mercadorias, as ideias e demais “conteúdos” (como as bombas).

Nesta conferência, não pretendo propriamente discutir a natureza de trabalho do olhar (já publiquei, há poucos anos, um texto dedicado a esse tema específico)[6], mas o modo pelo qual a imagem acabou se convertendo num signo, que só pode ser tecido pelo “suor dos nossos olhos”, suor que não é lágrima e sim esforço, labuta, entrega e desejo. (Alerta ao consumidor dotado de retinas: um pouco do seu olho fica na coisa olhada, assim como, da coisa, um resíduo vivo permanecerá em seu olho – nunca saciado.) Essa natureza de signo que a imagem alcança exigirá de nós um esforço na direção de relacioná-la com procedimentos linguísticos – e esse será o eixo estruturante da minha contribuição a este ciclo.

Nós produzimos imagens industrialmente enquanto, inocentemente, apenas olhamos. Fabricamos o valor das imagens enquanto as contemplamos. Para girar a engrenagem do imaginário, o olhar entra como trabalho. Como matéria-prima entram os significantes visuais, extraídos da natureza da cultura industrializada. Com os nossos olhos, como se fossem mãos e braços, fabricamos signos imagéticos, seu valor de uso e também seu valor de troca. Tudo isso durante aquelas horas que imaginávamos gastar com o lazer.

PARTE 1 (EM QUE SOU MATERIALISTA)

Mercadoria: de coisa corpórea a coisa visível, imperiosamente visível

O emprego do olhar como força de trabalho do imaginário já foi anotado por alguns autores[7], mas o fenômeno está longe de ter sido absorvido pelo senso comum, que ainda classifica a imagem como adereço ou como um expediente acessório da comunicação. Não é tão usual que se pense nela como linguagem e menos ainda como suporte central do valor da mercadoria – suporte por meio do qual ela circula e pode ser trocada no mercado. A mercadoria é imagem muito mais que coisa corpórea, mas a nossa tradição ainda a enxerga como uma coisa corpórea que adquire depois uma representação visual. O centro da coisa-mercadoria seria o seu corpo físico. Na obra capital de Karl Marx, o conceito de mercadoria é essencialmente baseado no corpo físico, na dimensão material do bem. Mas, ali mesmo, por capricho ou prudência, Marx deixou uma abertura para algo que escapa à utilidade imediata da coisa corpórea: a “fantasia” – o que, como veremos, se relaciona à imagem da mercadoria perante o sujeito cujo desejo ela promete atender. Também ali, portanto, nas primeiras linhas de O capital, a dimensão da imagem da mercadoria já se fazia pressentir.

Vale recuperar um pouco da conceituação materialista de O capital. Já insisti nela em um dos ciclos anteriores de Adauto Novaes[8], e, por isso, não vou me demorar sobre o tema. Diz Marx: “A mercadoria é, antes de tudo, um objeto-externo, uma coisa, a qual, pelas suas propriedades satisfaz necessidades humanas de qualquer espécie. A natureza dessas necessidades, se ela se origina do estômago ou da fantasia, não altera nada na coisa”.[9]

Temos aí uma passagem luminosa. Digo luminosa porque, sem prejuízo da materialidade da coisa fabricada pelo trabalho, Marx admitiu nesse trecho um pequeno espaço para o que chamou de “fantasia” – e localizou a “fantasia” dentro do valor de uso. Isso significa que, na mercadoria, já era possível antever – ainda que não fosse tão fácil ver – a dimensão de imagem (que é algo sutilmente distinto do corpo da mercadoria, pois uma coisa é a coisa – e outra coisa, distinta da coisa primeira, é a imagem da coisa). Mas, sendo assim, há que perguntar: o que era – ou é – a “fantasia”?

Olhemos à nossa volta. Olhemos o mundo “olhável”. Quero dizer: olhemos para o olhar que olha o mundo e assim constitui o espetáculo do mundo. Alguns dos aspectos que pretendo destacar se tornaram bem mais nítidos que nos tempos de O capital. São facilmente visíveis, se não a olho nu, ao olho crítico. O que nos basta.

A fabricação da imagem não é mais uma etapa acessória no processo produtivo: ela se converteu na etapa principal[10]. A coisa corpórea (o chamado “objeto externo” da frase de Marx), ela, sim, é que se tornou periférica. O que era um detalhe na teoria do século XIX ganhou o estatuto de substância central no século XXI, lembrando que consumir é fabricar imagem com valor de troca, incessantemente.

Tomemos um objeto qualquer desses que nos assediam e nos circundam, dentro do que pode haver de mais prosaico ao nosso alcance. Uma garrafa de água mineral, por exemplo, das que ficam em mesas de palestrantes. O que é que ela é? É uma mercadoria, por certo. Mas a coisa, a água supostamente potável dentro do recipiente, não é o seu “conteúdo” principal. O núcleo do valor dessa mercadoria, a garrafa cheia de água supostamente potável, mora no rótulo, não no interior do vasilhame. O estômago recebe a água, daí o seu valor de uso mais óbvio, mas a cabeça do sujeito – onde mora sua “fantasia” – só é satisfeita quando ele “bebe” com os olhos o rótulo que atesta a marca da água. É preciso que a marca ali exposta atenda antes a exigência imaginária para que a água então possa saciar-lhe a sede – ou o paladar. O paladar (que é um atributo do imaginário, não nos esqueçamos, antes de ser uma propriedade de um órgão do corpo) há de confirmar, ou não, o que a verificação prévia informou – o sujeito degusta o líquido como seus olhos “degustam” o rótulo. É assim que uma garrafa de água mineral de 2009 dialoga com o autor que falava em “fantasia” há coisa de um século e meio.

As imagens – ícones, símbolos, retratos, estampas, signos, marcas – são investidas, pelo olhar social, de um valor. E tanto é verdade que se trata de um valor, que esse valor flutua. Ele não flutua de acordo com a oferta e a procura (não flutua como preço ordinário), e sim conforme as oscilações da carga de olhar que as imagens são capazes de imantar. O que quero dizer é que o valor gerado pelo olhar admite flutuações análogas àquelas do valor atribuído à mercadoria pelo trabalho.

A carga do olhar não é constante invariável, nem teria como ser. Daí as flutuações principais do valor que ele gera. Suas variações se devem a alterações de quantidade (quantos olhos olham, por quanto tempo olham) e de qualidade (o olhar tem níveis distintos de intensidade, de concentração, e também de eficácia; há extrações de olhares que geram mais sentido e mais valor do que outras, pois o olhar de quem mais consome vale mais que o olhar de quem consome menos, ou, em outras palavras, o olhar de quem tem mais poder vale mais que o olhar de quem tem menos poder, e assim por diante). Tudo isso se refere à carga do olhar, que pode tecer significados mais ou menos perenes, mais ou menos específicos, mais ou menos universais. É essa carga do olhar que será incorporada à imagem da mercadoria – e ela, por sua vez, vai dirigir-se à “fantasia” do sujeito que compra, consome e usa a mercadoria – lembrando, sempre, que consumir a imagem da mercadoria é uma forma de fazer retornar para a mercadoria mais valor gerado pelo olhar.

Os calçados esportivos constituem uma ilustração providencial para o que descrevo aqui. A Nike, uma das marcas mais famosas que aí estão, mais que uma fabricante de calçados, é fabricante da imagem associada aos calçados. Ela pode terceirizar tranquilamente a fabricação dos pares de tênis, mas não a fabricação de sua própria marca e das mensagens a ela associadas. O seu negócio é fabricar o significado daqueles sapatos emborrachados, bem como o significado de outras peças da indumentária esportiva. Ao terceirizar a produção de qualquer objeto, uma sola, um revestimento ou um simples cadarço, ela vai impor padrões técnicos ao fornecedor (suas referências industriais, que determinam a substância da imagem). Vai impor igualmente a identidade publicitária que vai “vestir” a coisa como se fosse (e é) uma “fantasia”.

Um sapato é um sapato, por certo, assim como uma rosa é uma rosa, mas, antes de ser um sapato, um sapato é uma imagem. Ele é uma imagem de sapato e também uma imagem de significados que não são apenas um sapato, mas atributos incorporados ao sapato. Exatamente isso é o que a Nike fabrica.

O mesmo com a política, a religião e a ciência

Esse fenômeno não se reduz à esfera econômica da vida social. Ele se verifica em outros domínios, como a política, a ciência ou a religião. A fabricação social da imagem – fabricação conduzida pelo olhar – e a fabricação do significado (e do valor) associado a essa imagem são processos que acontecem em todas as esferas da cultura. O significado e o valor de candidatos ou partidos (na política), de linhas de pesquisa (na ciência) e de igrejas (na religião) resultam do mesmo mecanismo: fabricação social da imagem, o que só se sintetiza no olhar.

Em política, já se tornou chavão a queixa saudosista de que os marqueteiros substituíram os ideólogos. A queixa tem razão de ser, embora não se possa assegurar que os senhores do marketing sejam mais nocivos do que os velhos ideólogos em matéria de deteriorar o repertório político. O que temos de indiscutível é que o acoplamento do discurso partidário aos registros e às frequências da fala publicitária, em nossos dias, pesa mais que o fundamento doutrinário das políticas apresentadas. Ou a mensagem partidária cabe em quinze segundos de inserção comercial na TV ou ela será descartada, como se padecesse de defeito congênito.

Quanto aos eleitores, parece que não rejeitam as campanhas eleitorais de tom publicitário. Ao contrário, há indícios de que gostam delas. Não deixa de ser irônico – e deveras revelador – que uma palestra como esta minha, de cadência monótona, não caia bem na TV. A tentativa de reflexão, esse engenho que vive de fracassar, que nos consome as energias em abstrações labirínticas, não tem os atrativos do entretenimento. A prosa ensaística exige do público e também de seu autor uma paciência que o telespectador não entrega nem por um segundo. O pensamento nos cobra voltas vãs, giros em falso; teima em ser avesso às certezas da publicidade. Para quem se diverte com programas de auditório, com melodramas, com gente seminua em reality shows – e devo confessar que, ocasionalmente, eu bem que me divirto -, o pensamento é um itinerário inóspito, que não encontra conciliação com o gozo escópico. Portanto, não cabe na TV.

No transcorrer do século XX, o divórcio entre pensamento e divertimento só fez se aprofundar. O idioma da propaganda política se afastou, em alta velocidade, do idioma da política que conhecíamos no século XIX. A imagem e sua “ontologia”, assentada nas identificações imaginárias, sobrepujaram a palavra e sua retórica. A palavra imagem acabou por virar sinônimo de reputação, de conceito. Diz-se, não acidentalmente, que os políticos que desfrutam de alta popularidade têm uma imagem positiva. Até mesmo as palavras, o que se fala dos políticos, concorre para compor sua imagem. A imagem – aquela da qual dizemos que “vale mais do que mil palavras” – aprende a se apoiar também sobre palavras. Como legendas embaixo de fotografias em revistas, as palavras ajudam a cimentar a significação da imagem. As palavras servem de legendas ao vivo para as imagens fabricadas. Estão a serviço da imagem.

No campo da religião, nenhuma diferença. Proliferaram furiosamente as doutrinas que aprenderam a se comunicar pelo vídeo. Entraram em baixa o recolhimento, a transcendência pelo silêncio, os estudos teológicos. Até mesmo as experiências místicas – que antes eram invisíveis, intraduzíveis, ou não seriam místicas, e por isso eram únicas – vivem hoje sob a obsessão de se converterem em carros alegóricos bufantes, com flashes estroboscópicos. Nada mais obsceno que uma pregadora lacrimejante, a plenos pulmões, teatralizando a fé em uma apoteose que é um misto estético de comício, rito e carnaval. Nada, nem mesmo o sexo explícito, é mais obsceno que a experiência mística, originalmente além do alcance da linguagem, confeccionada em escancaramentos destinados a ser reproduzidos pelos consumidores.

E quanto à ciência? Falemos da Nasa. A face pública da agência espacial americana virou um parque temático na órbita de Orlando, Flórida, perto da Disney. As pessoas vão até lá em procissões inesgotáveis, como aquelas que afluem para Meca ou para Fátima. Ou ainda, é bom não esquecer, como aquelas que rumavam para a Praça Vermelha, em Moscou, onde se demoravam ao lado da múmia de Lênin. Cada um faz a peregrinação que é de seu agrado, seja ela religiosa, política ou científica. Presentemente, todas têm em comum o culto da imagem, que, com pequenas variações, preenche uma função estética, mesmo quando barateada. Assim como preside a produção e a circulação das mercadorias, a imagem conduz também a circulação das ideias, causas, doutrinas ou conhecimento – tudo mercadoria, por certo. Na sede da Nasa, aberta à visitação dos peregrinos do entretenimento, exibem-se filmes. Eu vi um deles. O tema era um cometa hediondo que se aproximava perigosamente do planeta. Ele rugia, deitando labaredas prateadas pelo espaço sideral. Os espectadores transpiravam de medo de ser alcançados pela esfera de fogo. Se ela nos abatesse, adeus, teríamos o mesmo fim dos dinossauros. Para alívio dos presentes, porém, o filme não levou seu sadismo às consequências extremas. Com seu enredo de ficção científica edificante, abortou a tragédia graças às traquitanas que a Nasa desenvolveu (no filme) para interceptar corpos celestes indesejáveis. A audiência relaxada saiu da sala para comer cachorro-quente.

Também nas interseções da ciência com a sociedade, as leis do entretenimento – e não as leis da ciência – assumem a mediação. Disfarçado de diversão, o filme apocalíptico é propaganda para angariar popularidade (boa imagem) para a Nasa. Depois, a popularidade será convertida em apoio no Congresso e, finalmente, em dinheiro público para foguetes, que matam cometas. Também a ciência se explica e se sustenta por meio da oferta de emoções. Ela precisa se vender bem, como se fosse um sabonete, um game, um candidato ou um pastor televisivo.

A “aura” da mercadoria e o olhar como gêmeo do imaginário

Voltemos então à mercadoria. Eu disse há pouco que ela circula antes como imagem – e só depois como objeto útil. É preciso dizer, agora, que a imagem – qualquer imagem, sem exceção – é consumida como mercadoria. Qualquer imagem, inclusive aquela que foi apropriada pelo léxico visual da religião, da ciência ou da política. Ou pela arte: mesmo as obras de arte próprias da visualidade – as pinturas, as esculturas, os vídeos, as instalações -, boas ou más, não importa, são mercadorias.

No centro de gravidade da constelação formada por todos os tipos de imagem pulsa, invariavelmente, a imagem da mercadoria, que constitui um tipo particular de imagem e também logo ficará claro, um tipo particular de mercadoria. É por meio dela que as marcas atingem preços exponenciais. Definamos, então, preliminarmente, de que modo essa expressão, imagem da mercadoria, é empregada aqui. Por imagem da mercadoria eu entendo esse aspecto vívido que a coisa fabricada adquire na instância do olhar, a sua identidade como signo: é por força dessa marcação que ela se diferencia de todos os outros signos e de todas as outras mercadorias. A imagem da mercadoria é o fator que atrai e seduz o sujeito. Mas a imagem da mercadoria – descolada da coisa a que se refere – é também um objeto autônomo. Por isso digo que ela mesma é também mercadoria, separada da coisa a que se refere. A forma mais perceptível dessa autonomização da imagem da mercadoria, com significado e valor (de troca) próprios, talvez sejam as marcas. Mas, mesmo para além das marcas, a imagem da mercadoria – que pode vir de um atributo que ela representa ou mesmo de sua aparência fisica ou sensorial – é sempre, e em qualquer sentido, uma mercadoria. Mesmo como coisa corpórea, a mercadoria se oferece ao consumo como imagem, ou seja, o corpo da mercadoria é o suporte que transporta sua própria imagem. A mercadoria “de corpo presente” também é imagem: a imagem de si mesma. Ela entra em cena para estimular os sentidos, apresentando-se como objeto estético que interpela o sujeito. Diante do sujeito, enfim, a imagem da mercadoria simula o efeito produzido pela obra de arte. Efetivamente, ela é uma obra de arte falsificada, com uma aura artificial que gera efeitos verdadeiros. A imagem da mercadoria deseja ser arte.

Façamos agora uma pausa para mais uma dessas descrições da vida cotidiana. Convido o leitor a um passeio memorialístico pelo Salão do Automóvel, em São Paulo. Eu o visitei um par de vezes. Nessas ocasiões, observei nos olhos dos passantes a chama de interesse que supostamente deveria luzir diante da revelação proporcionada pela arte. Eu comparava a reação dos visitantes do Salão com a postura dos turistas que trafegam pelos grandes museus. O olhar voltado aos carros me parecia mais ardente e mais ardoroso. Nas vitrines, qualquer vitrine, a gente nota a mesma excitação. Os mais ortodoxos que me perdoem, mas insisto: o aspecto físico da mercadoria emula artificialmente, e às vezes com vantagem, a aura da obra de arte. O próprio corpo físico da mercadoria, como já adverti, põe-se antes como imagem que como coisa útil. Um carro vermelho cercado de admiradores parece ter acesso à alma dos passantes, como se a razão de ser do sujeito só se completasse quando conectada àquele artefato metálico sobre quatro rodas de borracha. A identidade do sujeito busca seu sentido maior na “aura” artificial da imagem da mercadoria. Seu olhar enlanguescido parece suspirar: “Foi para encontrar-te que nasci”.

É evidente que as anotações que faço aqui se distanciam consideravemente dos marcos postos em O Capital. Ao mesmo tempo, as sementes da economia das imagens que hoje nos sombreia, como os arranha-céus que crescem como florestas desgovernadas, já estavam ali. Não esqueçamos que, ainda no século XIX, Marx julgou por bem deixar registrado que no âmago da mercadoria repousava um fator qualquer que tinha um quê de mágica, de feitiço.

Os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas físicas, metafísicas ou sociais. Assim, a impressão luminosa de uma coisa sobre o nervo óptico não se apresenta como uma excitação subjetiva do próprio nervo, mas como forma objetiva de uma coisa fora do olho. Mas; no ato de ver, a luz se projeta realmente a partir de uma coisa, o objeto externo, para outra, o olho. É uma relação fisica entre coisas fisicas. Porém, a forma mercadoria e a relação de valor dos produtos de trabalho, na qual ele se representa, não têm que ver absolutamente nada com sua natureza fisica e com as relações materiais que daí se originam. Não é mais nada que determina a relação social entre os próprios homens que para eles aqui a assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Por isso, para encontrar uma analogia, temos de nos deslocar à região nebulosa do mundo da religião. Aqui, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, figuras autônomas, que mantêm relações entre si e com os homens. Assim, no mundo das mercadorias, acontece com os produtos da mão humana. Isso eu chamo o fetichismo que adere aos produtos de trabalho, tão logo são produzidos como mercadorias, e que, por isso, é inseparável da produção de mercadorias[11].

Slavoj Zizek comenta essa parte de O Capital trazendo o seu sentido para os nossos dias. Ele se pergunta: “Por que Marx escolhe justamente o termo fetichismo para designar a “fantasia teológica” do universo da mercadoria?”.[12]

E então prossegue:

O que se deve ter em mente, aqui, é que “fetichismo” é um termo religioso para designar a idolatria “falsa” (anterior), em contraste com a crença verdadeira (atual):

para os judeus, o fetiche é o Bezerro de Ouro; para um partidário do espiritualismo puro, fetichismo designa a superstição “primitiva”, o medo de fantasmas e outras aparições espectrais etc. E a questão, em Marx, é que o universo da mercadoria proporciona o elemento fetichista necessário à espiritualidade “oficial”: é bem possível que a ideologia “oficial” de nossa sociedade seja o espiritualismo cristão, mas sua base real não é outra senão a idolatria do Bezerro de Ouro, o dinheiro.

À medida que aparentemente se diverte – na Nasa, no cinema, nas casas de bingo, nos bares, nos salões de automóveis ou nos templos religiosos onde se desenvolve aquela modalidade desmesuradamente pop de cultos espetaculares-, o sujeito derrama olhar sobre os signos e, assim, reveste-os de significado, de valor de uso (de um valor de uso atípico, dedicado à fantasia) e principalmente de valor de troca. Um signo tem valor ao ser reconhecido – e seu potencial de reconhecimento passa pela exposição ao olhar social. Adorar a mercadoria equivale a fabricar sua imagem da mercadoria com os próprios olhos.

No início desta conferência, registrei que o olhar é o tecido do “espetáculo do mundo”, pois é nesse tecido que se inscrevem os signos que compõem o imaginário. Nessa acepção, olhar e imaginário são categorias contíguas, que se aderem. Podem ser tomadas como categorias intercambiáveis. O olhar é uma instância na qual os fenômenos dados a ver têm seu lugar. Ao mesmo tempo, é possível dizer que o olhar se apresenta como força que tece os signos, uma força que antecede os objetos visíveis, mais ou menos como a força de trabalho antecede à coisa fabricada. É assim que ele, o olhar, pode ser pensado como trabalho abstrato. De outro lado, o olhar só pode orientar-se, localizar-se, quando balizado por objetos – como as estrelas guiam o navegante. Não há olhar no vazio e na escuridão. Nessa perspectiva, os objetos catalisam as cargas de olhar sobre o mundo e apontam direções para o olhar. É nesse sentido que, assim como são constituídos no olhar, os signos são também constituídos pelo olhar – e, quando constitui o mundo para o qual olhamos, o olhar é sinônimo de trabalho.[13]

Tal formulação não fica longe da síntese adorniana, exaustivamente citada entre nós, segundo a qual “a diversão é o prolongamento do trabalho no capitalismo tardio”[14]. Ao imaginar que se diverte, o humano trabalha – pelo seu olhar e também no olhar, no qual entra em cena o “espetáculo do mundo”. A crença de que se diverte éessencial a essa forma avançada de trabalho na indústria do imaginário. Ao mesmo tempo, a formulação que aqui apresento não foi desenvolvida por Adorno, que não identificou – nem poderia identificar, dado o período histórico que lhe coube observar – o olhar como forma plena de trabalho.

PARTE lI (EM QUE SOU FORMALISTA)

Uma língua feita de figuras

A partir do que foi exposto até aqui, abre-se uma interrogação: de que maneira o olhar, ordenado como trabalho, produz significação e valor?

A resposta começa pela constatação de que o olhar arranja os signos mais ou menos como os funcionários de um clube ajeitam os enfeites no salão, antes de um baile de gala. O olhar desenha os planos urbanísticos, a fuselagem dos aviões, a disposição dos canteiros ornamentais pelos parques ou as arestas angulosas na tampa de um vidro de perfume. Nisso não há novidade. A nossa questão, no entanto, apenas começa a ser respondida por aí, mas não se resolve aí. Ela se refere à significação e ao valor que as imagens carregam, o que implica novas complexidades.

Para que possamos aprofundar a hipótese de que as imagens produzem efeitos de significação, mais ou menos como ocorre com os signos da linguagem, é preciso admitir a possibilidade de que elas se articulem como linguagem, ainda que de modo mais rudimentar. A discussão é intrincada e de modo algum poderia ser resolvida nos marcos desta conferência. Um aspecto ou outro, no entanto, podem ser considerados. Sigamos, de início, pelo que é indiscutível.

Em nossos dias, o “ronco” das imagens ultrapassa o rumor das línguas compostas apenas de palavras, escritas ou faladas. Isso, porém, não basta para atestar que os incontáveis apelos visuais que nos cercam possam se ordenar como um discurso verbal ou escrito. Os elementos constitutivos das imagens não guardam entre si o mesmo padrão normativo que ata os significantes de um idioma qualquer. Não obstante, na profusão das imagens, há encadeamentos lógicos que não são de todo estranhos aos encadeamentos próprios da linguagem: há uma ordem incipiente no caos que elas ensejam. Se enxergarmos ao menos a franja dessa ordem incipiente, poderemos supor, nas imagens, o estatuto de alguma linguagem. Ao menos inicialmente. Na supermodernidade, caracterizada pela superabundância factual e especial[15], o que equivale à superabundância das imagens, notaremos que elas assumem comportamentos de signos em diversas situações. Mais ainda: como acontece com as palavras, os significantes visuais podem deslizar de uma representação a outra, compondo “vocábulos visuais” diferentes, “frases visuais” mutantes, “narrativas visuais” em permanente evolução. Nisso, principalmente nisso, as leis internas do significante visual se assemelham àquelas das palavras.

Na terceira parte desta conferência, comentarei exatamente o deslizamento dos significantes visuais. Antes disso, porém, é necessário que nos fixemos um pouco mais sobre as implicações nada desprezíveis do passo que estamos prestes a dar, qual seja, o de supor um mínimo estatuto linguístico nas imagens.

A gritaria selvagem das visualidades

Inicialmente, parece não haver problema nesse passo. Afinal, não fosse um mínimo arcabouço de regras de linguagem para que os significantes visuais se articulassem e se rearticulassem, em cadeias de significações e ressignificações, simplesmente não teríamos a comunicação ancorada em visualidades, uma comunicação bastante vasta, por sinal, que vai dos sinais de trânsito aos ícones do computador. Não teríamos, tampouco, as marcas das mercadorias transitando com a mesma significação de um continente a outro, assim como não teríamos a decupagem clássica dos filmes de Hollywood, compreendida por espectadores de todos os idiomas. É indiscutível que, nem que seja num nível rudimentar, os elementos da visualidade intensa e vibrante que nos envolve se juntam e se divorciam mais ou menos como significantes de uma linguagem.

Mas, a despeito dessas evidências superficiais, o passo requer cuidado. Seria precipitado postular que uma “linguagem das imagens” fosse capaz de enunciados equivalentes àqueles formados de palavras. As duas formas de expressão não são intercambiáveis, não cumprem as mesmas funções. Talvez por isso – por não traduzirem à perfeição as mensagens encerradas em palavras – as imagens são liminarmente recusadas como linguagem por vários estudiosos. Não apenas por não configurarem sozinhas uma “gramática” própria, mas também e principalmente porque, na comunicação da era do entretenimento, elas abrem vazios na malha das palavras, como se rasgassem, às vezes com um grau de violência, o tecido do simbólico. Elas se instauram como forças primitivas, instintivas, pulsionais, que até parecem prescindir de qualquer linguagem[16].

Por exemplo: a figura de um corpo nu não precisa de palavras para mobilizar o sujeito que a contempla. Por isso, alguns relacionam a força das imagens a pulsões que podem mesmo se voltar contra a mediação das palavras, contra o entendimento e contra os próprios princípios da civilização.

Sob tal perspectiva, não é dificil verificar que a imagem desordena brutalmente o fluxo da palavra. Ela surge como uma manifestação direta da natureza – como um “carimbo”, um decalque do gesto humano sobre a pedra, a madeira ou o couro, que guarda o rastro ainda quente do que é mais primário. A expressividade dessa figuração, portanto, se aproxima de um mundo menos racional, que nos remete a adereços mágicos ancestrais. Desse vínculo com o primevo, elas extraem sua potência extralinguística.

Não raro, essa potência se presta a propagandas das mais diversas formas de tirania. A propósito, não há tirania no século XX que não tenha invocado alegorias imagéticas – como cruzes, invertidas ou não, estrelas, vermelhas ou não – por meio de verdadeiras escolas estéticas especializadas em incendiar o ódio, a intolerância e o preconceito. As imagens, enfim, acabam sendo associadas por vários estudos às forças primitivas do passado e às forças opressivas do presente.

Quanto a isso, Daniel Boorstin, em The Image – livro que lança uma crítica pioneira à supremacia que a cultura americana exerce sobre o planeta, supremacia erguida pela imagem -, é enfático: “Imagens são os pseudoeventos do mundo ético. Na melhor das hipóteses, são pseudoideais. São criadas e difundidas para serem reportadas, para produzir uma ‘impressão favorável’. Não porque sejam boas, mas porque são atraentes”.[17]

Penso que não podemos dizer de modo conclusivo, categórico, que Boorstin esteja enganado. Na imagem persiste, sim, uma força que desorganiza a argumentação. Mas, outra vez, é preciso verificar se essa constatação, quando adotada em termos inflexíveis, não poderia nos levar ao extremo oposto – que seria igualmente problemático. Pode haver, nesse tipo de discurso, uma condenação moral de qualquer representação pictórica ou filmíca, como se todas elas fossem o túmulo do pensamento. É quase como se tivéssemos que voltar a declarar guerra santa aos cultos profanos: assim como o Bezerro de Ouro foi varrido do deserto por Moisés, cujo Deus era não representável, teríamos agora que declarar guerra à imagem eletrônica, pagã e irracionalista.

Figuras impedem o entendimento?

Outros críticos alegam que as imagens inviabilizam o diálogo. Ainda que possamos nos valer de figuras como códigos precários (como no caso dos sinais de trânsito), não podemos nos entender por meio delas. Um dos que pensam nessa linha é Giles Achache. “Uma imagem não é dialógica”, ele escreve[18]. Não que Achache seja adepto de uma cruzada contra qualquer código visual – ele não é. Ao contrário, seu discurso prima pela sensatez. Poucos como ele, no entanto, alcançam tal nível de precisão ao formular as razões para a recusa sistemática da imagem como signo voltado para o diálogo e, por isso, pelos seus méritos, seu texto nos ajuda nessa discussão.

A essência do argumento de Achache reside numa virtual – e não declarada – incompatibilidade entre a imagem e aquilo que Jürgen Habermas chamou de “ação comunicativa”[19]. Por isso ele nos interessa de perto. É como se a impregnância do entretenimento sabotasse de modo irrevogável a própria democracia.

Embora o risco efetivamente exista, posto que a lógica espetacular do entretenimento não é o ambiente mais adequado ao debate de argumentos mais ou menos racionais do jogo político, a democracia tem dado provas de que inventa novos canais para manter abertas as pontes dialógicas. Na verdade, o maior risco, aqui, não está no plano dos fatos ou da vida prática. É um risco teórico, isto sim: o risco de que uma concepção ultrarracionalista de comunicação, que não reserva nenhum lugar para o que não seja palavra, resulte numa intolerância metódica e militante em relação às visualidades contemporâneas.

Em resumo, essa atitude teórica é apenas conservadora e moralista, como se pode demonstrar por meio de três interrogações elementares. Em primeiro lugar: por acaso teria havido, antes da nossa era, um reinado da palavra pura? Em caso afirmativo, passemos à segunda pergunta. É possível ter certeza de que esses períodos anteriores foram mais “dialógicos” do que as sociedades atuais, apenas por estarem menos conspurcados por fotografias, filmes, videogames e logotipos? Por fim, caso a resposta para a pergunta an­ terior seja “sim”, iríamos à terceira indagação: deveríamos então restaurar a ordem anterior?

É claro que não.

E, mais que isso, é claro que tal restauração não seria possível. Nem necessária. O grau de democracia numa sociedade não é dado pela predominância estrita das palavras na mediação dos debates públicos, mas por uma práxis comunicativa capaz de estruturar uma rede complexa de garantias formais e materiais, dando suporte à efetividade dos direitos, à dinâmica participativa das decisões de interesse público e ao bom nível de negociação de sentidos nos mais diversos níveis. Por incrível que pareça (a alguns), tudo isso pode conviver de modo mais ou menos pacífico com a pujança da indústria do entretenimento. Há contradições, vale deixar claro, e algumas de extrema gravidade (como o fetiche das imagens na política, que pode conduzir ao esvaziamento da crítica e, portanto, do próprio ideal de emancipação do cidadão), mas o cotidiano vem mostrando que há alguma vida dialógica num mundo mediado por imagens. Portanto, não sejamos tão peremptórios. Nem trágicos[20].

A comunicação do nosso tempo logrou forjar tantas interpenetrações entre códigos imagéticos e códigos vocabulares que não há mais possibilidade teórica – nem mesmo prática – de que o fluxo das imagens, seja quando visto como processo autônomo, puro, seja quando visto como uma enunciação combinada com o fluxo das palavras, não mais compareça à rotina da democracia e do consumo. E não há de ser isso – ou apenas isso – que tornará a sociedade “menos dialógica”.

Podemos ir ainda mais longe e admitir que existe uma comunicação rotineira que já não tem como prescindir de signos visuais. E, dentro dela, há diálogo. Tanto isso é verdade, que a comunicação social e as relações de produção tornaram possível para a indústria do entretenimento – e para seus desdobramentos em outros campos, como o da política, o da ciência e o da religião – fixar sentidos nos signos visuais e atribuir a eles um valor de troca de notável impacto econômico e cultural.

Não é a imagem, enfim, que bloqueia o diálogo, assim como não é a palavra, sozinha, que o impõe. As linguagens contemporâneas se complexificaram – e se miscigenaram: eis o desafio. O desafio não está em restaurar um passado idealizado, mas em ver como o hibridismo das linguagens do presente se insinua no futuro.

Frases híbridas, cada vez mais híbridas

Tomemos por exemplo o valor das marcas que se baseiam em visibilidade, reconhecimento e identificação. Uma marca tem valor quando incorpora e irradia os atributos associados a ela. Uma marca vale quando infande valor naquilo sobre o que se inscreve. Esse valor, que é imaginário, não é diferente do valor habitual de uso traduzido em valor de troca. Ele também é um valor fabricado, e fabricado com trabalho – mas, aqui, trabalho do olhar. Não por acaso, há formas gráficas que ganharam até mesmo função sintática em frases corriqueiras. É o caso do coração vermelho no lugar da palavra”amor”, que se popularizou na frase “I Love New York”, ou “I NY”, no achado genial do designer nova-iorquino Milton Glaser. Essas figuras, como o coraçãozinho, carregam em si um conteúdo semântico equivalente a um verbo. Eis aqui mais um sinal de que a interpenetração entre ícones e palavras, num ordenamento instintivo de léxicos, sintaxes e gramáticas que conjugam visualidades entre o simbólico e o imaginário, vai se firmando como tendência irresistível. Algumas das marcas mais famosas são verdadeiras frases que ecoam no imaginário, incessantemente. E, outra vez, é preciso ter em mente a função de linguagem dos ícones de computador e, principalmente, da infografia, que promoveu uma espécie de conciliação lubrida entre imagens e palavras[21].

Portanto, a qualificação condenatória e conservadora não nos resolve o impasse teórico. Longe disso, apenas o agrava. Quanto a isso, outra vertente de pensamento deve ser recuperada aqui. Bem sei que, entre nós, se verifica uma epidemia de citações de Walter Benjamin, mas é a ele mesmo que devemos recorrer. Benjamin reconhece que “a produção artística começa com imagens a serviço da magia[22] e abre “uma passagem entre o visível e o invisível, o temível e o tranquilizador”[23]. Não obstante, ele vai redimi-la. Tornada arte religiosa sob o catolicismo, à imagem coube revelar a face do Deus que não se dava a ver. A partir daí, ela se emancipou como arte independente e, quanto mais livre, mais perseguida foi. E também mais amaldiçoada, banida, recusada pela autoridade. Da nudez que Michelangelo estampou no teto da Capela Sistina aos carros alegóricos das escolas de samba no Rio deJaneiro, que o cardeal manda cobrir, ela tem sido sistematicamente (sistemicamente) vigiada (e censurada) pela autoridade. Curiosamente, tem sido também perseguida pelos teóricos bem-pensantes[24].

Tem razão Arlindo Machado, quando afirma que “O intelectual do nosso tempo concorre diretamente com a religião na tarefa de preservar os valores canônicos contra o rolo compressor da civilização tecnológica ou da sociedade de massas”[25].

Lutar obstinadamente contra as visualidades significantes, como se isso não passasse de uma hecatombe ou de barbarismos, não é uma defesa da razão e do pensamento, mas o oposto. Fechar os olhos às transformações da linguagem que redundam em imagens não faz viver, mas faz morrer a função de pensar. Banir da reflexão o que é visual equivale comodamente a não pensar sobre o que é visual. De outro lado, pensar sobre o visual é, de saída, um modo de alterar seu estatuto: se o visual é pensável, ele é um discurso.

É nesse sentido que argumento, ciente das limitações que me sitiam. Não há como, racionalmente, postular a irracionalidade como única dimensão da imagem. Não há como postular que toda imagem é um catalisador da tirania. Menos pela generalização e mais pela recusa da complexidade de significações que há na imagem, que se estende do “primitivo” ao abstrato, identifico, na recusa, um desvio – e um desvão – da razão. A imagem está no coração do “rolo compressor” que estabelece o espaço público do mundo contemporâneo – o que é positivo e negativo, ao mesmo tempo. A imagem não é hoje apenas uma brecha para o invisível, não é apenas religião (ou principalmente religião), nem apenas arte (ou principalmente arte), mas é o logradouro virtual do espaço público. Daí os riscos que ela nos traz – e o medo que inspira.

Para o bem e para o mal, ela não é mais apenas um apelo atraente, mas um assunto, ela mesma, de interesse público. Suas leis – e os esboços de leis linguísticas que ela comporta – são leis que disciplinam, em parte, o ambiente em que nos comunicamos (ou não).

Eis então que a imagem, do fundo de seu animismo, ressurge para organizar o espaço comum. Foi por meio dela que a indústria cultural forjou, nos meados do século xx, a imensa massa – noção que por décadas substituiu a noção de público. Foi também a partir de negociações de sentido às quais compareceram as imagens que, ao lado da massa, eclodiram os públicos múltiplos dispostos em redes, compondo o grande mosaico que, virtualmente, engloba a humanidade inteira[26].

Antes empregada nos meios de massa como recurso para ilustrar – ou esvaziar – a retórica política e as narrativas melodramáticas cheias de propósitos doutrinários, a imagem passou por um processo que poderíamos chamar de uma segunda emancipação – depois daquela, a primeira, que, séculos atrás, libertou-a da condição de expressão religiosa. A segunda emancipação veio no fim da segunda metade do século XX. Como boa parte da cultura, a imagem se emancipou dos meios da indústria cultural e se lançou naquilo que depois passaria a ser designado como “sociedade em rede” (como quer Manuel Castels[27]) ou como “redes interconectadas” (como prefere Yochai Benkle[28]). A imagem, agora, pesa no discurso que oprime, como de costume, mas reluz também na interlocução que liberta. E ela mesma se libertou. Há conflitos que se realizam por imagens, como quando o Greenpeace (uma imagem, um logotipo) mancha de tinta um baleeiro, ou quando os protestos contra a globalização quebram o vidro de uma lanchonete do McDonald’s (outro logotipo): são enfrentamentos que têm lugar no olhar, engendrados pelo olhar, destinados ao olhar. A imagem se presta ao teatro da guerra – como no terrorismo – e também ao teatro da luta de classes. São sintomas desse tempo os muros pichados. Diferentemente das paredes da Roma dos Césares, que acolhiam termos chulos como expressão do cidadão anônimo, as pichações atuais fazem dos muros do espaço público o suporte material para a disputa de sentido. Na pichação, a letra vira imagem e, como tal, disputa o espaço público para nele inscrever um sentido alternativo ao que é oficial. Outro sintoma surge com os corpos humanos que se dão às tatuagens, em massa: no corpo, esse buraco na linguagem, arde o desejo de ser mídia. O mais incrível de tudo é que, até mesmo aí, nos muros pichados ou nos corpos tatuados, até mesmo aí existem ações comunicativas dialógicas (disputa de sentido). A palavra vira imagem (nos corpos tatuados ou nos muros pichados) e a imagem vira letra (como a frase “I ♥ NY”, de Milton Glaser).

Essas operações invertem a carga de sentido de significantes visuais. O baleeiro, quando surpreendido em alto-mar por um frágil barco inflável pilotado por ecologistas, ganha o aspecto de monstro impiedoso. O muro pichado parece mudar de dono – um cachorro visual passou por ali e “urinou” com seu spray, demarcando seu território. O corpo humano passa a significar a mensagem que traz na pele, exercendo a função de meio de comunicação. As representações visuais têm a força de mercadorias em oferta permanente – e também de discurso político. Ambas as categorias, discurso e mercadoria, passam a ser manifestações equivalentes.

Para que o olhar possa trabalhar a esse nível o mundo que se dá a ver, é preciso que os elementos do discurso visual, os significantes, estejam disponíveis e, verdadeiramente, deslizem de um sentido a outro. E isso de fato ocorre. Como as palavras, as frases, como os fragmentos das palavras e das frases, como as letras e pedaços de letras, as unidades ou subunidades do discurso visual deslizam livremente como significantes vivos.

Observemos a paisagem para verificar esses deslizamentos.

PARTE IlI (EM QUE SOU DELIRANTE)

Figuras que deslizam e se transformam como se fossem palavras

O olhar “pega” a expressão de um óleo sobre tela e vai colá-la numa cena de filme, onde ela adquire sentido renovado. O pintor anglo-irlandês Francis Bacon morreu em 1992, aos 82 anos. Tinha um rosto impressionante. Vi poucas fotos em que ele aparece. Das que pude observar, guardei a sensação de um semblante atormentado, quase contorcido. A minha sensação se fortalece à luz de um autorretrato que ele pintou em 1971. Embora eu não seja crítico de arte e meu objeto não seja a pintura (meu objeto é a fabricação do valor da imagem na indústria do imaginário), penso que, a serviço de realçar os fragmentos do visível (fragmentos significantes) em seu deslocamento pelo olhar, posso comentar rapidamente os traços que definem sua obra.

Bacon, parece, via sob o véu das normalidades cotidianas uma explosão de deformidades. Assim também, com deformidades, ele se autorretratou. Sobre fundo totalmente preto, inscreveu o retrato de sua pele facial com um borrão violento: uma mancha em tons de ocre plúmbeo. Os cabelos, como as sombras que sulcam seu rosto, produzidas pela pouca luz que o alcança, desaparecem contra o fundo escuro. A pintura retalha a fisionomia do pintor, isto é, sua fisionomia está ali, como se ela fosse o escalpo não de uma cabeleira, mas de uma face, estirada sobre a tela: um pedaço de couro estendido não ao sol, mas às trevas. Há pinceladas brancas sobre o nariz, no meio da testa e no queixo: são navalhadas de luz. O rosto de Francis Bacon é uma personalidade mutilada. Ao redor do lugar onde teriam estado os olhos, o buraco que restou deles nesse “escalpo” estirado sobre a tela, alongam-se contornos que poderiam ser óculos ou molduras fúnebres. Quanto aos olhos, eles não estão mais lá. Deles, só nos resta a cavidade negra e vazia.

Há uma presença irresistível da morte nas figuras de Bacon. Seus modelos posam em feridas, quebraduras, atropelados por golpes de luz e outros de escuridão.

Não há de ser totalmente original essa maneira de traduzir a condição humana. Não foi Bacon que inventou os seres desfigurados sobre tela. Podemos encontrar traços genéticos de Hieronymus Bosch (pintor holandês do século XVI) na obra de Bacon. A imagem, sendo linguagem, está em movimento. Ela não se perde nem se cria totalmente: ela se transforma e, na transformação, vive de reinventar-se. Caminha mais por mutações que por invenções. Todo artista recombina o conhecido para vislumbrar o desconhecido – ou não operaria com signos. Pode-se mesmo dizer que todo artista é um artesão do reprocessamento de signos, seja ele pintor, bailarino ou escritor. Só por aí ele consegue algum nível de criação minimamente inscrita na linguagem e, dentro disso, Bacon engendra sua identidade no olhar. Depois, essa identidade se põe a migrar para dentro de outros discursos. O que é inevitável.

Dá-se por aí o deslizar dos significantes visuais. O deslizamento é estrutural, sempre esteve aí, mas, hoje, ele segue padrões tipicamente industriais. Assim, Bacon é mastigado pelo cinema. O filme de que falo foi dirigido por Adrian Lyne e lançado em 1990: Jacob’s Ladder[29]Nele, pulsa a herança desse idioma visual das deformidades brutais e soturnas. As figuras geradas pelo pintor – aquelas caras de quem viu o que não tinha licença para ver e, por isso, teve de arder no inferno em vida – revivem no filme.

Jacob’s Ladder – a escada de Jacó, na Bíblia, era aquela que conduziria as almas para o céu – retrata a agonia de um combatente do Vietnã, assaltado por almas penadas. De início, o espectador tem a impressão de que as alucinações horrorosas são lembranças da guerra. Ao fim do filme, descobre-se que as dilacerações de corpo e de espírito que atormentam o soldado não são lembranças, mas o seu presente exato. O protagonista agoniza sem saber que está morrendo e, em seu fim cheio de dor, gritos e sofrimento, é soterrado por seres malignos que parecem ter saltado das telas de Francis Bacon, banidos da morte, dos subterrâneos e dos desvãos da alma.

Para a indústria do entretenimento, o vocabulário visual do horror precisa ser arrancado da linguagem retrabalhada por Bacon. Esse repertório sígnico, à medida que desliza, ganha existência e consistência na instância do olhar, em que as telas dos museus rodopiam de mãos dadas com fotogramas em decomposição.

Da tragédia à comédia – e outra vez a tragédia

O pintor George Condo (norte-americano, nascido em 1957) não me comove, mas me interessa. Eu nem mesmo diria que o vejo como pintor, mas como ilustrador. Aliás, cada vez mais tenho a impressão de que os pintores interessantes da atualidade pintam como cartunistas e de que os cartunistas de jornal, como Angeli, os que brincam de humor diariamente, ocupam o lugar de pintores maiores dos nossos dias – são eles que deveriam expor em museus. Dito isso, fico mesmo com George Condo.

Nele também aparecem as faces desfiguradas como em Bacon, mas com toques cômicos, não trágicos nem funéreos. Já não temos o humano esquartejado pelo “cosmos sangrento”, para usar aqui a expressão de Mário Faustino, mas ctiretamente fatiado pelo ridículo do espctáculo. Na tela de Jecan Louis’ Mind, de 2005, algo como cinco olhos e três ou quatro sorrisos se distribuem por uma face meio caleidoscópica, meio mutante, que parece estar explodindo de ansiedade, com estados de alma conflitantes e simultâneos.

Nesse caso, os olhos são janelas para almas diversas e inconstantes, volúveis, vendáveis. Além de olhos, a mesma face é uma colagem de múltiplos sorrisos em dentaduras abertas, com arcadas que se desencontram, que se projetam em buracos medonhos onde deveriam estar as maçãs do rosto, o pescoço, até mesmo a boca. O esquartejamento, agora, é produzido diretamente pela demanda de quem olha, pela indústria do olhar: o humano se retalha ou se deixa retalhar para se refestelar na ilusão de que oferece prazer àquele que o contempla.

Os visitantes do museu se perguntam, fazendo pose a possíveis obser­ vadores que os espreitam (estamos costumeiramente em pose para um observador invisível que supomos logo ali), por que aquelas fisionomias carregam tantas cicatrizes. Num dos quadros, The Return of Client Nº 9, de 2008, vemos corpos nus, um homem e uma mulher, com espadas e tesouras que os transpassam, fazendo um amor meio carnívoro sobre um sofá. Olham em dentes para o espectador. E este se pergunta de novo: Por quê? O que há de tão perturbador nessas figuras? O desejo da cirurgia plástica, quem sabe. A tara por cirurgia plástica distingue o humano dos animais. Viver é submeter-se a uma plástica interminável. Viver, para os personagens de Condo, é estirar-se ao bisturi do olhar sem freios. O olhar do público é uma motosserra a estraçalhar tudo o que vê. Isso mesmo: em Condo, o olho trabalha como lâmina. O seu modelo é o sujeito escravizado pelas promessas da plástica. No afã de ser bonito, ele se converte numa criatura de Frankenstein remixada. O modelo de Condo é Michael Jackson pelo avesso. Sorridente em seu ar ausente. Olhar é lancetar e matar.

Na cena mais citada de O cão andaluz, o curta-metragem de 17 minutos que Salvador Dali e Luis Buñuel rodaram em 1928, um bisturi rasga um olho humano. Quem move o bisturi? Quem o manipula? Não há dúvida: quem o conduz é a imagem de cinema que se lança contra a pupila do freguês, em voracidade cortante. Aquele bisturi é o olhar sangrando o próprio olhar. O olhar em retorno. Navalha vidente. Navalha cega: cega porque já não vê e cega também porque, ao não ver mais, nada mais tem que cortar, como a faca que é cega porque não tem mais fio. Em O cão andaluz, o olho vaza o olho.

Pode-se dizer que a imagem que se impõe é também uma força que cega, mas desconfio que isso seria uma frase fácil e estéril. Mais que isso, a cena de O cão andaluz mostra a força da imagem que rasga o organismo para se instalar como sistema, como ordem, como lógica que vai esculpindo, entalhando o que encontra pela frente – inclusive o próprio olho.

Por que todos se entregam a esse bisturi? Para se dar a ver e para gozar no olhar. Para morrer no olhar. Depois de ver tudo, depois da total transparência, depois da luz total que ofusca, a cegueira definitiva. Melhor cegar-se do que não mais poder fechar os olhos para descansar. Melhor cegar-se a ter de ficar de olhos abertos o tempo todo, sem dormir, num regime de superexploração do olhar.[30]

O noticiário político sob olhos calcinantes

Mas há mais nessas telas de George Condo. Intuímos sob seu efeito que o olhar tem peso quase físico e queima como fogo e como ácido. Digo isso não apenas porque os apresentadores de televisão reagem de modo diferente quando acreditam que estão ao vivo. Se estão apenas gravando um quadro que sera exibido mais tarde, relaxam. Se se imaginam ao vivo – vistos naquele instante preciso -, deixam-se invadir pela tensão. “O efeito é psicológico”, alguém dirá. Eu diria que não é apenas psicológico, embora não haja, ainda, como provar. As telas de George Condo querem nos demonstrar que o olhar tem peso – além do peso a ele atribuído pelo apresentador que se sabe visto ao vivo. Esse peso é mais pesado que o peso da consciência. O olhar ininterrupto e inclemente, como o sol, calcina a superfície da matéria. Ao tocar com seu “raio visual”, deixa naquilo a sua marca de morte. Ser visto custa vida. Lembremo-nos de que o panóptico lembrado por Foucault acabou virando realidade, mas não como ele previra. O panóptico se firmou sem um centro fixo. Em vez da autoridade central que vigiaria a intimidade dos governados, estes, os governados, é que se bisbilhotam alegremente. O ponto do olho que vigia é todos os pontos. O panóptico fez de suas vítimas seus autores e seus agentes. Todos os olhos se monitoram a si e aos outros, gerando registros imagéticos por celulares e por toda espécie de minicâmeras (micropanópticos indiscriminados, anônimos, difusos), registros que imediatamente fluem, por teias eletrônicas, em direção a centros eles mesmos deslizantes. Também esses centros vagueiam, mudam de lugar conforme o volume do olhar. O centro nômade, às vezes se dispersa e depois se reaglutina novamente. Sim, o centro está em toda parte, como sempre se afirmou, mas ele muda de endereço conforme o olhar industrial ordena. O centro de gravidade transita.

O panóptico se realizou para além da autoridade, para além da necessidade da autoridade, virou algo assim como um totalitarismo devasso e inebriante, feérico, exatamente como o capital, que nunca adormece. O olhar molha tudo, molha o que está mais longe e também o que está próximo demais, dentro do corpo. O olhar mostra a radiografia do meu dedo, no hospital, e me expõe à mais deslumbrante foto do Hubble, de uma estrela que nasce de uma nuvem em néon. Ele pesa na forma do raio X – que só o chumbo (imagina que) barra – e pesa também no cotidiano das fotografias, das reportagens de televisão.

Ele pesa de modo mais impiedoso sobre o semblante dos homens públicos (e também das mulheres públicas, mas dizer mulheres públicas pode soar ofensivo, donde digo apenas mulheres-que-se-consagram-à-carreira-de-homens-públicos). O olhar tem peso físico na face de alguém que, durante uma entrevista coletiva, sob holofotes, objetivas e microfones, é pego no contrapé de uma mentira com implicações genitais. A mentira que esgarça o sujeito sob o peso do olhar expõe mais que a nudez – e a nudez é uma roupa que vestimos a golpes de bisturi para nos deleitarmos sob os raios do olhar.

E do olhar sobra. Do olhar escapa. Fica um pouco mais em um paradeiro um pouco além. Penso na fotografia de um homem público, Eliot Spitzer, então governador de Nova York. Encantoado, sem alternativa que não fosse a renúncia, em março de 2008, quando seu envolvimento com uma agência de prostituição de luxo virou notícia de jornal, ele entrou numa entrevista coletiva como o romano condenado aos leões. A fotografia de Spitzer, aquela que quem viu não esquece, mostra-o nessa hora dura. Seu rosto revela o peso físico do olhar que o deforma como um soco transparente. Ele contrai os lábios, como se estivesse assoprando um trompete imaginário. A rigidez nas maçãs de sua face trinca-lhe a pele. Toneladas de pressão paralisam seus músculos. A boca faz um arco extenso no sentido inverso ao de um sorriso, com as extremidades apontando para os infernos. Os seus lábios somem, mordidos por dentro. Sua boca é um risco desesperado. O queixo nos dá a impressão de estar espremido por um tampo de vidro, perfeitamente invisível, embora metálico.

A associação entre a imagem de Spitzer e a obra de George Condo não é acidental. Havia uma foto do político, acompanhada de textos explicativos, na exposição de seus trabalhos em Paris, em julho de 2009, no Musée Maillol. Num dos quadros, Dreams and Nightmares of the Queen, em que a rainha Elizabeth, de coroa e tudo, faz boca de banguela preocupada, vemos o mesmíssimo queixo, num tom cor-de-rosa. Os olhos da rainha estão arregalados e azuis – atarantados, assustados, reforçando a expressão de seus lábios espremidos entre as arcadas. Parece que, naquele dia, a rainha posou sem dentadura.

Outra personagem do noticiário também aparecia na exposição: Hillary Clinton. Deslizante, ela também. Ao final de sua campanha, derrotada nas prévias do Partido Democrata, em 2008, suas fotos irrompem como contradições, como disjuntivas visuais, entre o sorriso treinado e os olhos em pânico, traidores. O primeiro traz os dentes como azulejos, querendo dizer que tudo está muito bem, mas os olhos, meio esbugalhados, meio esgotados, exauridos de esperança, denunciam. Hillary também se deforma sob o olhar que a espanca.

E nos secciona – pelas lipoaspirações, pelos fios microscópicos que, implantados sob as bochechas, “levantam” o sorriso, pela visibilidade solar que nos seduz e nos envergonha tanto. Ele não nos rasga apenas quando abre caminho para que peitorais de silicone sejam embutidos sob a pele de marmanjos flácidos, mas também quando esculpe a nossa identidade, em significantes autônomos que se depositam no nosso íntimo como colagens. É desconcertante descobrir que somos, em nosso aspecto sofrível, a junção mal costurada de significantes autônomos. O cabelo mais ou menos como um chapéu, o batom para realçar os lábios, o sorriso adestrado diante do espelho.

Os lábios. Os lábios são significantes que se autonomizaram. Lábios de Angelina Jolie ou de Mick Jagger se descolam de seus portadores e entram na profusão dos signos que passeiam pelo céu do entretenimento. Viram capa de disco, logotipo de motel, item das clínicas estéticas, até se depositarem sobre rostos fungíveis, não como um beijo, mas como um adereço industrializado, como um brinco, um piercing, uma tatuagem. O olhar nos escrutina, nos escaneia, nos diagrama.

Somos um pouco modelos de George Condo nos escancarando em sorrisos de quatrocentos dentes de porcelana. Não fechamos os olhos. Nem a boca.

PARTE IV (EM QUE SOU BREVE)

Se podemos falar sobre isso, tudo está bem

Ainda penso em lábios (fazer o quê?). Se eles não fossem um equivalente de palavras, a pintura surrealista, que subvertia o encadeamento simbólico por meio do embaralhamento dos significantes visuais, teria sido estéril. E incompreensível. Um rosto pintado por Picasso, com a boca fora de lugar, era um enunciado com uma palavra fora de lugar que, no entanto, fazia sentido. Os surrealistas pintaram isso, o deslizamento dos significantes visuais, antecipando a industrialização obsessiva desse efeito linguístico no domínio das imagens. Orientando-se para o olhar, elas passaram a ser trabalhadas pelo olhar, de tal forma que fundiram significado e valor para a mercadoria. Hoje não há como uma imagem não ser linguagem, ainda que, às vezes, ela encarne forças libidinais e extrassemânticas. Mesmo nessa hipótese, porém, a imagem desloca significantes para abrir claros, vazios, lapsos nos encadeamentos discursivos. Mesmo quando atua como antilinguagem, a imagem acarreta efeitos significantes e, portanto, linguísticos, entregando algo como gozo ao sujeito em busca de saber de si, tanto pelo que imagina poder ver como pelo que supõe nomear.

Desde sempre, a imagem tanto compõe sentidos como pode precedê-los ou mesmo anulá-los. O que a distingue na indústria da nossa era, porém, que se vale do olhar como trabalho, é que ela passou a atuar prioritariamente como linguagem e índice de valor. E essa imagem se confecciona (como sentido e como valor) no instante em que é olhada no consumo. Em síntese, consumindo imagens – ou consumindo mercadorias, que são imagens ou não são quase nada – o sujeito fabrica, por meio do olhar, mais sentido e mais valor na fonte em que vai beber com os olhos.

Quem se diverte no YouTube apenas fabrica o valor do YouTube, exatamente como quem, ao passar o tempo jogando no cassino, produz moedas e fichas coloridas para o cassino, que é uma linha de montagem com meios de produção variados, como uma mesa de roleta ou um simples caça-níqueis.

Os consumidores e os jogadores são os operários na indústria da diversão. No tecido do olhar, essa lei é mais intensa e se expande sem cessar, sem ter encontrado seu ponto de esgotamento.

Fora isso, ao menos até aqui, ler e escrever é algo que nos cansa – e como -, embora seja, talvez, a única via de emancipação do espírito. A essa altura, só o que sei é que pensar, como escrever, é chato. Estou cansado. Tento cerrar os olhos, mas as imagens ainda passeiam no que deles retenho. Solto meus dedos para despregá-los do teclado. Mais que os olhos, é tempo de fechar a minha boca.

Notas

  1. Arkan Simaan; Joelle Fontaine. A imagem do mundo: dos babilônios a Newton, São Paulo: Companhia das Letras, 2003, pp. 86-87. 
  2. lbid., p. 88. 
  3. G. Simon, Siences et savoirs ao XVIème e XVIèéme siécles. Lille: Septentrion, 1996, p. 23, citado por Arkan Simaan; Joelle Fontaine, A imagem do mundo: dos babilônios a Newton, São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 87. 
  4. Expressão de Merleau-Ponty. 
  5. Tanto é assim, que a indústria do entretenimento inventou fórmulas de remunerar o olhar. O que a publicidade compra não é apenas a atenção do potencial consumidor do produto anunciado, mas um fragmento do olhar social, fungível, que fabricará a condição de signo reconhecível para aquela marca ou mercadoria. Sem a compra dessas fatias de olhar, o signo não ganha ingresso no repertório comum ou, dizendo de outro modo, no imaginário. Desenvolvi essa ideia, estabelecendo comparações numéricas entre o preço da força de trabalho e o preço do olhar em Eugênio Bucci, “A fabricação de valor na superindústria do imaginário”. Revista Communicare, São Paulo: Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero, vai 2. n. 2. Segundo Semestre de 2002, pp. 55-72. 
  6. Num artigo da Revista Communicare, já citado, expus com mais detalhes esse tópico. 
  7. Ver, por exemplo, Wolfgang Fritz Haug, Crítica estética da mercadoria, São Paulo: Fundação Editora Unesp, 1997. Ele observa claramente que a imagem da mercadoria segue uma fabricação industrial que não se confunde com a fabricação do corpo da mercadoria, e que essa imagem fabricada será responsá­ vel, em boa parte, pelo valor de troca da coisa. Ver também Günther Anders, “O mundo fantasmático da TV”, in 8. Rosenberg; D. M. White; Cultura de massa, São Paulo: Cultrix, 1973, pp. 415-425. 
  8. Ver Eugênio Bucci, “O espetáculo e a mercadoria como signo”, in Adauto Novaes (org.), Muito além do espetáculo, São Paulo: SENAC, 2005, pp. 218-233. 
  9. Ver Eugênio Bucci, “O espetáculo e a mercadoria como signo”, in Adauto Novaes (org.), Muito além do espetáculo, São Paulo: SENAC, 2005, pp. 218-233. 
  10. Essa tese foi um pouco mais trabalhada por mim em O espetáculo e a mercadoria como signo. in Adauto Novaes (org.), Muito além do espetáculo, São Paulo: Senac. 2005, pp. 218-233. 
  11. Karl Marx. O Capital, crítica da economia política, trad. Régis Barbosa e Flávio Khote. São Paulo: Abril Cultural, segunda edição, 1985. volume 1, p. 71. 
  12. Slavoj Zizek. O espectro da ideologia, in Zizek. Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996, p 25. 
  13. Vale enfatizar, uma vez mais, que esta tese foi apresentada em Eugênio Bucci, “O espetáculo e a mercadoria como signo”, in Adauto Novaes (org.), Muito além do espetáculo, São Paulo: Senac, 2005, pp. 218-233. 
  14. Theodor W. Adorno; Max Horkheirner, “A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas”, em Adorno; Horkheimer, Dialética do esclarecimento,Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985, p. 128. 
  15. O termo “supermodernidade” é formulado por Marc Auge, in Não lugares- introdução a uma antropologia da supermodernidade, Campinas: Papirus, 1994, p. 33. 
  16. É interessante, aqui, levarmos em conta as observações de Régis Debray, numa leitura que devo a Rafael Venâncio, meu aluno em um curso de pós-graduação, na ECA-USP, em 2009. “A imagem não é linguagem”, diz Debray, Manifestos midiológicos (Petrópolis: Vozes, 1995, p. 181). Deveríamos ser autorizados a ver na pintura “um objeto significativo, e não significante, já que ela não é suscetível de se decompor em unidades discretas dependentes de um sistema de dupla articulação (paradigma e sintagma)”. O fantasma da midiologia (Debray) é o da “aceitação do silêncio imagético” (Venâncio, A linguagem dos três fantasmas – gozo na experiência da televisão. Trabalho da disciplina CJE 5987, ministrndo por mim no primeiro semestre de 2009. p 13: texto ainda não publicado). Para Debray, uma figura está mais próxima de ser “passagem ao ato do que um discurso” (Debray, 190). A imagem teria no inconsciente um poder extrassemântico – e precisamente por isso constitui “uma fonte sem igual de alimentação do nosso desejo” (conforme Venâncio, p. 13). “Pretender estender as lógicas discursivas ao império das imagens é deixar escapar, simultaneamente, suas duas dimensões fundamentais, estratégica e libidinal; ou negligenciar seus dois desafios, político e amoroso, um em razão do outro” (Manifestos midiológicos, p. 192). 
  17. Daniel J. Boorstin, The lmage: A guide to pseudo-events in America. New York: First Vintage Books (Random House). 1992, p. 244. 
  18. Giles Achache “EI marketing político”, in Jean-Marc Ferry, Dominique Wolton e outros, El nuevo espacio público, Barcelona: Editorial Gedisa, 2ª reimpressão, 1998, pp. 112-123, p. 116. 
  19. A noção de “ação comunicativa”, que muito inspirou vários dos defensores da “comunicação dialógica”, é originalmente formulado por Jürgen Habermas em Teoria de La Acción Comunicativa (Madri: Taurus, 1987), que afirma:
    ” O ator que se orienta para o entendimento deve postular com sua manifestação três pretensões de validade, a saber, a pretensão:

    de que o enunciado é verdadeiro (quer dizer, de fato se cumprem as condições de existência do conteúdo proposicional…);

    de que o ato de fala é correto em relação ao contexto normativo vigente (ou de que o próprio contexto normativo em cumprimento do qual esse ato se executa é legítimo); e…

    de que a intenção expressada pelo falante coincide realmente com o que ele pensa”.

    Isso significa que o ator orientado para o entendimento é guiado por princípios de razão e do que chamamos de boa-fé- posta acima da defesa estratégica ou maliciosa dos próprios interesses-, o que supõe o emprego de um código falível, verificável e criticável, nos moldes exatos da linguagem escrita ou falada. No dizer de Giles Achache, o agente voltado para o diálogo deve governar as suas emoções: ser livre no modelo dia16gico” g,ar capaz df! dominar gm si mesmo aualauer determinação psicológica que possa perturbar o exercício da razão, em especial tudo o que depende da particularidade pessoal, os afetos e os sentimentos” (“EI marketing político”, in Jean-Marc Ferry, Dominique Wolton e outros, E/ nuevo espacio público, Barcelona: Editorial Gedisa, 2ª reimpressão, 1998, pp. 112-123, p. 116.

    Nessa perspectiva de análise da comunicação, o uso da imagem é sempre propagandístico e estratégico – jamais dialógico. Não há – nem poderia haver, em termos lógicos – um ator orientado para o entendimento que entregasse imagens em lugar de empregar as palavras. 

  20. Vivemos sob o império do espetáculo generalizado e generalizante, não há muita dúvida quanto a isso. Guy Debord tem razão quando afirma que “o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens” (A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, p. 13). A mediação pela imagem – ou o comparecimento da imagem a todas as formas de relações sociais – não foi revogada. Contudo, ela não soterrou a democracia, como o texto de Debord parecia prever na década de 1960: como sempre, as vias comunicativas surpreendem e encontram meandros para o diálogo crítico – inclusive em relação ao próprio espetáculo. 
  21. “A pregnância de representações clássicas, como as imagens fotográficas, cinematográficas ou televisuais, pode tomar-nos cegos à essência das imagens infográficas e das representações virtuais. Estas imagens, ao contrário das imagens fotográficas ou videográficas – que nasceram da interação da luz real com as superfícies fotossensíveis – não são inicialmente imagens e sim linguagem.” (Philippe Ouéau, “O tempo do virtual”, in Parente, André. Imagem-Máquina: a era das tecnologias do virtual. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995, p. 91. 
  22. Walter Benjamin. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, in Obras escolhidas, Magia e técnica, arte e política, São Paulo: Brasiliense, 1996, p. 173. 
  23. Régis Debray, Vida e morte da imagem, Petrópolis: Vozes, 1993, p. 47. 
  24. Apontei essa distorção teórica em minha tese de doutorado, “A televisão objeto”, defendida na Escola de Comunicações e Artes, da Universidade de São Paulo, em 2002. Ver especialmente a página 108. 
  25. Arlindo Machado. Máquina e imaginário, São Paulo: Edusp, 1993, p. 10. 
  26. “O ‘público’ de que se trata não está limitado ao corpo eleitoral de uma nação: trata-se, melhor dizendo, de todos os que são capazes de perceber e compreender as mensagens difundidas no mundo. O público é, virtualmente, toda a humanidade e, de um modo correlato, o ‘espaço público’ é o meio com o qual a humanidade se entrega a si mesma como espetáculo. A palavra espetáculo, por certo, pode suscitar interpretações erradas, pois o espaço público não reduz seus meios à imagem e à palavra espetaculares: compõem-no também elementos do discurso, do comentário, da discussão, com as mais ‘racionais’ finalidades do esclarecimento. Mas o que aqui importa destacar, sobretudo, é que especialmente ‘o espaço público social’ não obedece em absoluto às fronteiras nacionais de cada ‘sociedade civil'” (Jean-Marc Ferry), “Las transformaciones de la publicidad política”, in Jean-Marc Ferry, Dominique Wolton e outros, E/ nuevo espacio público, Barcelona: Editorial Gedisa, 2ª reimpressão, 1998, p. 20). 
  27. Ver, por exemplo, Manuel Castells, A galáxia da Internet, Jorge Zahar Editor, 2003, p. 7. 
  28. Yochai Benkler, The Wealth of Networks, New Heaven: Yale University Press, 2006. 
  29. No Brasil, o filme recebeu o título de Alucinações do passado. 
  30. Registro aqui a contribuição de Oswaldo Giacoia Júnior, que me sugeriu, numa conversa em Tiradentes, um paralelo entre esse movimento ::iuicida do olhar, representado em O cão andaluz,, e o destino de Édipo, que vaza os olhos. Uma leitura possível é que o gesto de Édipo consuma um castigo, a realização de parte da maldição que sobre ele cairia, como pena pelo seu gesto de ter tomado a mãe por esposa e, mais ainda, por ter se deliciado com a visão da nudez dessa mulher que tanto desejou e que teve em seu leito. Depois de ver tudo, só lhe restaria a cegueira. O espetáculo que germinava na década de 1920 seria assim, também: imporia a visão desejante, total. de todas as mercadorias e, por isso, imporia também a cegueira total. 

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