Uma filosofia sem destino
Resumo
Lida-se mal com a contradição. Daí a vontade de expulsá-la, motivo, aliás, do incômodo da célebre e um tanto artificial divisão entre o primeiro e o segundo Wittgenstein. Como é difícil imaginar uma obra que se desdobra sobre si mesma, a tendência é acomodar diferenças em compartimentos distintos. Com efeito, a obra de Wittgenstein divide-se, sim, em dois grandes momentos, mas a distinção costuma desconsiderar o que há de continuidade, o traço marcante de um pensador que se volta a seu próprio trabalho, realizando um movimento de terapia, mais do que de simples negação. Julga-se assim que a principal diferença entre os momentos não consiste na oposição entre teses, mas antes no modo distinto de articular respostas sobre seu tema de fundo, a saber, os limites da significação, a unidade da experiência.
Trata-se de revelar como a tensão na obra de Wittgenstein, um dos maiores pensadores de todos os tempos, traz componentes trágicos e espetaculares. Está longe de reduzir-se a uma simples mudança de posição, sendo esse o fio tenso que se chamará de terapia. Em seu caso, a tensão dá-se por uma terapia do dogmatismo inerente à sua primeira obra, que sua reflexão futura quer desnudar, como terapia do dogmatismo que induz a supor respostas mesmo para problemas ainda não formulados.
Com o combate a um dogmatismo assim definido, passa a estar em questão o destino de toda uma tradição filosófica que alguma vez tenha tido a pretensão de ser sistemática. Abala-se a fixidez de categorizações clássicas, com o há nelas de mais profundo, ou seja, o modo como pressupostos ontológicos estão irmanados à determinação dos limites do conhecimento possível, na cumplicidade essencial entre o que se dispõe como experiência e pode ser conhecido.
A terapia implica mudança de estilo e horizonte. Ao contrário da obra primeira, que teria resolvido de vez todos os problemas da filosofia, a obra segunda recusa a ideia de haver respostas para perguntas ainda não formuladas, não podendo a circunscrição do espaço lógico ser considerada, como outrora, intocável e definitiva. E, como autoterapia, não mais se antecipando a si mesma, o futuro da obra (que começara acabada) não mais é o que prometia, reescrevendo-se a obra inteira por não mais ter um destino certo. Tem assim um sentido profundo a ideia de que sua obra segunda, as “Investigações filosóficas”, só pode ser compreendida contra o pano de fundo de sua obra primeira, o “Tractatus logico-philosophicus”.
Eis, então, o roteiro: comparar rapidamente o espírito das duas obras por dados de superfície, isto é, seus prefácios. Afinal, estes são momentos essenciais a qualquer obra, pois neles o autor lembra que existe um leitor, ou melhor, prefácios inventam o leitor ideal, pois autor algum que se preza poderia ser servo de um leitor que não fosse ele mesmo uma produção de sua obra. Prefácios dizem como autores desejam ser lidos, dirigem o olhar e delimitam a leitura. E, superfície das superfícies, para nossos fins, bastará ler desses prefácios suas epígrafes. Diferentes os momentos, decerto, mas unificados pela tensão futura, pelo olhar retrospectivo das “Investigações…”, e ainda pela urdidura contínua de um estilo.
Em seguida, cabe formular duas perguntas tolas, já que são elas as melhores. E, diante delas, é possível comparar possíveis respostas nos dois ambientes da obra, cujos distintos humores já hão de ter sido flagrado no ar carregado das duas epígrafes. Será assim que se chegará a respostas distintas consideradas as atmosferas desértica do “Tractatus…” e a mais amena das “Investigações…”.
1. Temos dificuldade com a contradição. Queremos sempre expulsá-la, mandá-la para fora. Esse, aliás, um dos motivos do incômodo da célebre e um tanto artificial divisão entre o primeiro e o segundo Wittgenstein. Como é difícil imaginar uma obra que se desdobra sobre si mesma, tendemos a acomodar diferenças em compartimentos distintos. Com efeito, a obra de Wittgenstein divide-se, sim, em dois grandes momentos, mas a distinção costuma esmaecer uma forte continuidade, o traço marcante de um pensador que se volta a seu próprio trabalho, realizando um movimento de terapia, mais que uma simples negação. Julgamos assim que a principal diferença entre os momentos não consiste na oposição entre teses, mas antes no modo distinto de articular respostas sobre seu tema de fundo, a saber, os limites da significação, a unidade da experiência.
Queremos mostrar como a tensão na obra de Wittgenstein, um dos maiores pensadores de todos os tempos, tem componentes trágicos e espetaculares. Está longe de constituir-se em uma simples mudança de posição, sendo esse o fio tenso do que chamamos de terapia. Em seu caso, a tensão se dá por uma terapia do dogmatismo ínsito à sua primeira obra, que sua reflexão futura quer desnudar, como terapia de certo dogmatismo, qual seja, o que faz supor dadas as respostas mesmo a problemas ainda não formulados.
Com o combate a um dogmatismo assim definido, passa a estar em questão o destino de toda uma tradição filosófica que alguma vez tenha tido a pretensão de ser sistemática. Abala-se a fixidez de categorizações clássicas, e nisso que têm de mais profundo: o modo como pressupostos ontológicos (o que supomos deva haver) estão irmanados à determinação dos limites do conhecimento possível, na cumplicidade essencial entre o que se dispõe como experiência e pode ser conhecido.
A terapia implica mudança de estilo e de horizonte. Ao contrário da obra primeira, que teria resolvido de vez todos os problemas da filosofia, a obra segunda recusa a ideia de haver respostas para perguntas ainda não formuladas, não podendo a circunscrição do espaço lógico ser considerada, como outrora, intocável e definitiva. E, como autoterapia, não mais se antecipando a si mesma, o futuro da obra (que começara acabada) não mais é o que prometia, reescrevendo-se a obra inteira por não mais ter um destino certo. Tem assim um sentido profundo a ideia de que sua obra segunda, as Investigações filosóficas, só pode ser compreendida contra o pano de fundo de sua obra primeira, Tractatus logico-philosophicus.
Esse, então, é o nosso roteiro. Vamos comparar rapidamente o espírito de duas obras por um dado de superfície. Seus prefácios. Afinal, prefácios são momentos essenciais a qualquer obra, pois neles o autor lembra que existe um leitor, ou melhor, prefácios inventam o leitor que se deseja ter, pois autor algum que se preza poderia ser servo de um leitor que não fosse ele mesmo uma produção de sua obra. Prefácios nos dizem como os autores desejam ser lidos, localizam nosso olhar e delimitam nossa leitura. E, superfície das superfícies, para nossos fins, bastará ler desses Prefácios as suas epígrafes. Diferentes os momentos, decerto, mas unificados pela tensão futura, pelo olhar retrospectivo das Investigações, e ainda pela urdidura contínua de um estilo.
Em seguida, vamos formular duas perguntas tolas. As tolas costumam ser as melhores. E, diante delas, vamos comparar possíveis respostas nos dois ambientes da obra, cujo distinto humor já teremos flagrado no ar carregado das duas epígrafes. Vamos ver assim que respostas distintas podem ser dadas na atmosfera desértica do Tractatus e no clima bem mais ameno, tipo tropical baiano, das Investigações.
2. Há traços comuns ao inteiro programa wittgensteiniano. Em todo ele, podemos reconhecer a nítida distinção entre o trabalho da ciência (que, digamos, cuida do jogo da descrição) e o trabalho da filosofia (que talvez se obrigue a deter-se nas regras mesmas do jogo). Em comum, portanto, a investigação das condições da significação, sendo um seu traço característico evitar respostas extralinguísticas para questões de essência. Por outro lado, nesse mesmo núcleo comum instala-se a maior diferença, que consiste em saber, por exemplo, se o espaço lógico pode ser determinado em definitivo e se nele, então, necessidade e universalidade coincidem. Também em função disso, temos duas maneiras distintas de afirmar uma comum negatividade para o trabalho filosófico, que, emaranhado como deve ser, nos leva em suma a resultado nenhum. Essas duas maneiras, esses dois humores já podem ser agarrados em uma escolha de superfície, as distintas epígrafes dos nossos dois grandes livros. Trata-se de um dado de aparência, mas, como bem sabemos, somente pessoas fúteis não levam em conta as aparências.
O ambiente do Tractatus, seu Prefácio, começa com uma epígrafe devastadora: “E tudo que se sabe, e não se ouviu como mero rumor ou ruído, pode-se dizer em três palavras” (Kürnberger). Esse motto dá ideia da profunda negatividade da obra, mas também de seu caráter conclusivo. De certa forma, lido por Wittgenstein, antecipa a dupla ideia de que todo significativo pode ser expresso com clareza, de que todo conhecimento, todas as proposições das ciências naturais, pode ser afigurado em uma linguagem que esteja em ordem, mas também, dito assim em três palavras, deixa-se antever o pouco que significa esse feito nenhum, que, entretanto, tal como decorrente da urdidura de sua obra primeira, cumpre-se de uma vez por todas, de maneira intocável e definitiva.
Wittgenstein estaria fazendo então, a um tempo, muito pouco e tudo. Muito pouco porque cumprir a tarefa filosófica, determinando o que pode ser dito, é frustrante. Desenhar, com necessidade, os limites do espaço lógico, mostrar a cumplicidade essencial entre qualquer mundo que se deixe dizer e qualquer linguagem que possa afigurá-lo (gesto que está na raiz do dogmatismo de ter antecipadas todas as respostas), importa muito pouco, se pensamos enfim em tocar as relevantes questões de vida – exatamente aquelas que sabemos agora inefáveis, mas que, por isso, não deixam de ser as que nos mobilizavam para o fazer filosófico.
Cumprimos as tarefas filosóficas, resolvemos todos os problemas filosóficos e, eis a frustração, não sentimos que estejamos mais fazendo filosofia. Os problemas filosóficos, todos eles, residiam no mau entendimento da lógica da linguagem e, como Wittgenstein teria então exposto todo o arco das possibilidades expressivas legítimas, faria desaparecer de vez esses problemas, sendo porém um valor ainda maior do Tractatus “mostrar como importa pouco resolver esses problemas”. Perfeito o trabalho, restamos no campo do contingente, envoltos em proposições autênticas, que só podem dizer como está o mundo e não o que deva ou por que deva ser.
Podemos dar agora um salto, passando ao largo de operoso e rico período de maturação e terapia. Vejamos o Prefácio das Investigações e também a sua epígrafe. Ora, o ambiente muda por completo, sendo todavia reconhecível o mesmo sentimento, a mesma negatividade. Na verdade, na assim chamada versão intermediária das Investigações, Wittgenstein escolhe como epígrafe uma frase de Hertz, pela qual a tarefa do livro parece residir, não em oferecer respostas sobre a essência, mas antes em acalmar um espírito, que então cessa de fazer perguntas impertinentes.
Decide-se enfim na versão mais bem elaborada das Investigações por uma frase de Nestroy: “O progresso tem sobretudo isso de seu, de parecer bem maior do que realmente é”, com o que afirma uma abertura própria do labor filosófico, que não chega a resultados, não tem respostas definitivas, inclusive por não ter mais a esperança de demarcar de uma vez por todas o território do significativo. A primeira marca então do novo espírito é a renúncia ao dogmatismo. Além de não termos respostas para o que ainda nem sequer perguntamos, mesmo o já respondido deixa de ser definitivo ou infenso ao próprio mundo que deseja circunscrever. A frustração parece continuar a mesma. Entretanto, acrescenta-se a ela a produtiva ideia de não haver mais uma demarcação intocável e definitiva do campo do significativo.
Não haver uma demarcação definitiva implica duas coisas. A primeira, que já mencionamos, relativa a não se definir por completo o campo do que pode ser dito. A segunda, que mencionamos agora, relativa à própria condição de a linguagem doravante não mais ser restrita ao jogo da afiguração, não podendo ter uma cifra única, uma forma geral, como o fora o modelo verifuncional do Tractatus. Uma nova imagem da linguagem, portanto, é uma diferença essencial entre os momentos. E aqui o não estar restrita ao jogo da afiguração, um jogo entre os possíveis (mesmo que ainda privilegiado), aponta para a situação de uso como definidora última da significação. E, assim, não só a multiplicidade de ferramentas deve ser considerada, mas também, e sobretudo, a incorporação de um traço pragmático agora tornado também linguagem.
A pregnância dos gestos, a ligação entre palavras e aplicações de palavras, é a única medida comum ao que não mais tem a mesma medida, a mesma cifra. Não tendo mais o segredo único da capacidade de afiguração das coisas, como se pensada outrora do ponto de vista de Deus (capaz de dizer o mundo estando fora dele), a linguagem passa a ser invadida pelas ações que também condensa, não podendo furtar-se ao significado de uma palavra ou de regra às intempéries de sua aplicação.
Essa, porém, poderia ser uma diferença entre teses, e teríamos um teórico que simplesmente defendeu posições distintas ao longo da vida. Ora, não é nesse campo que opera o trabalho filosófico – ao menos, não de um ponto de vista wittgensteiniano. A mudança filosófica opera onde é decisivo o trabalho mesmo da filosofia, a saber, no campo das modalidades, no qual se determina o arco em que proposições eventualmente verdadeiras podem transitar. Nesse deslocamento, abandona-se a determinação precisa dos limites do significativo, do campo do possível e do necessário, sendo claro que não deve o filósofo antecipar-se ao mundo em que se constituem os elementos básicos da linguagem e a própria afirmação de necessidades, que se preserva então em outro registro, sem resvalar para a mera contingência nem retirar-se do mundo que constitui. Dois ambientes, decerto, mas um grande Wittgenstein, no qual todavia opera uma profunda e subterrânea mudança. no que pode ser essencial à filosofia, ou seja, no modo como lida com noções como as de necessidade, existência, possibilidade. Podemos então contrapor uma “gerente da gramática” limitada a uma bem mais dúctil. A primeira marca do novo espírito, seu primeiro e mais saliente indício, é assim a renúncia ao dogmatismo. A segunda marca é sua nova compreensão da linguagem, fundamental a tal renúncia e a ela correlata. Vejamos como essas marcas distintas, porquanto fundamentais, podem condicionar respostas até opostas a questões apresentadas aos diferentes contextos da obra, aqui desenhados, com o perdão de todos, com grande superficialidade, a traços nervosos de um pintor impressionista que já teve momentos mais felizes. Considerando, porém, esses dois grandes ambientes, permitam-nos desafiá-los com nossas perguntas tolas, como de resto costumam parecer tolas as perguntas típicas do trabalho filosófico.
3. Primeiro, a cegueira. Experimentos de pensamento com a cegueira, esse outro da visão, sempre intrigaram a filosofia. Tomemos um desses, que se tornou um dos mais importantes programas de investigação da história da filosofia, qual seja, o problema proposto por Molyneux a Locke, indagando se um indivíduo que nascera cego e que tivesse aprendido pelo tato a diferenciar cubos de esferas, caso recuperasse a visão por alguma arte mágica ou cirúrgica, saberia distinguir de imediato, sem usar as mãos, pela simples vista, qual seria o cubo e qual a esfera e ainda a que distância esses objetos estariam.
Não vamos recuperar as menções muitas à cegueira, sempre feitas para uso dos que veem, servindo para interrogar radicalmente o que é ver – um ver que, por conta da cegueira, não mais é por si natural. As lições empíricas da cegueira ajudariam a corrigir a visão que doravante tematiza ou desafia. A visão deixa de ser trivial. No caso do problema de Molyneux, a resposta não é óbvia. Responder afirmativa ou negativamente importa em ter compreensões distintas sobre a construção da unidade da experiência (que, por exemplo, me apresenta jungidos o barulho do meu gato, que acaba de me quebrar mais um jarro, e o brilho de seu pelo ao fugir esbaforido) e a importância do corpo nesse processo.
Leibniz, por exemplo, dirá que o indivíduo, sim, tendo adquirido a visão, pode distinguir os objetos sem fazer uso das mãos. Existiria afinal uma estrutura comum à descrição de cubos e esferas, estrutura que, em sendo formal, seria independente da experiência, mesmo que concomitante a ela. Não importa se dada no tato ou na visão, seria possível traduzir formal e racionalmente uma descrição em outra, remontando todas a uma estrutura quiçá geométrica da possibilidade da representação em qualquer sentido. E aqui identificaríamos logo uma semelhança com uma possível solução wittgensteiniana, a que talvez tivesse amparo no Tractatus, no qual a estrutura lógica da proposição desprezaria ontologias regionais, de sorte que não poderia ser contraditório no espaço das cores o que fosse legítimo no espaço lógico ele mesmo. Ademais, desprezando um trabalho e uma mediação que o autor do Tractatus não recusaria, lembraríamos seu aforismo 4.014, que aponta para a mesma relação interna de afiguração em uma ideia musical, nas notas escritas, na gravação do gramofone e nas ondas sonoras – em certo sentido, seriam o mesmo, de modo que um poderia ser obtido do outro, assim como o músico pode obter a sinfonia de uma partitura e vice-versa.
Berkeley, por sua feita, valorizaria por completo o trabalho do tato, um conjunto de ações que importam para a determinação de nossos conceitos os mais abstratos, podendo até imaginar como sendo o mais fabuloso dos seres, porque mais absurdo, um ser de pura visão sem tato. O vidente não tateante (ser improvável, experimento exagerado de pensamento) seria incapaz de unificar a experiência. Cada espaçamento dependeria de aprendizados distintos, com suas regras próprias, e a princípio imiscíveis; e apenas no trabalho do corpo que aprende distâncias e unifica a experiência teríamos a lição de que não nos ferem os olhos por contato os objetos que passamos a ver.
A diversidade lógica dos espaçamentos não remontaria a uma unidade formal anterior. Isso nos ensinaria a própria experiência, sendo exemplares e típicas as ilusões que se nos oferecem, como quando representamos na bidimensionalidade aparentes paradoxos tridimensionais (a exemplo dos muitos desenhos de Esher e de todas as demais ilusões perspectivas) ou quando nos parecem de tamanhos distintos linhas que, pelo tato, medimos como iguais (como na ilusão de Müller-Lyer), não devendo ser intolerável a obviedade de que, sim, para a visão, são mesmo distintas, embora também, com semelhante força, sejam iguais para o tato essas linhas, cabendo recusar a tentação tradicional de dizer que parecem diferentes retas que ao fim e ao cabo seriam iguais. Enquanto conhecidas, quem sabe, por Deus. Esse olhar quintessencial, que alguns pensam constitutivo da ciência e talvez próprio do Tractatus, nos diria e faria as linhas diferentes à visão porque idênticas ao tato, e ainda nos daria a medida exata disso, ou seja, a regra da distorção, que dissolveria o inaceitável paradoxo. Não havendo, porém, um modo único de construção das formas, tampouco há um modo único de aprendizado das formas.
E esse ambiente de distintos aprendizados, conformando (com o perdão do anacronismo) diferentes jogos de linguagem, parece-nos então bem mais propício ao segundo Wittgenstein, de cuja obra, portanto, com alguma boa vontade, podemos extrair respostas distintas para um dos mais importantes programas de investigação da história da filosofia.
A segunda questão é mais tola ainda, tendo sido motivada por uma anedótica história de Wilhelm Steinitz, primeiro campeão mundial de xadrez, que, enfim, internado em um hospício, dizia ser capaz de desafiar Deus para uma partida de xadrez e que ainda Lhe daria um peão de vantagem. A pergunta: é possível jogar xadrez com Deus? Em outros termos, ao pretender desafiar Deus para uma partida de xadrez, Steinitz dava claros sinais de rematada loucura, formulando algo desprovido de sentido, ou estava apenas sendo imprudente, ao Lhe conceder um peão de vantagem, sendo um minuto para Deus uma eternidade, que teria assim todo tempo para pensar?
Começa aí o problema. Ter todo tempo para pensar, ter todo tempo para usar as palavras, isso depende do modo que compreendemos a determinação dos conceitos, importando, por exemplo, saber se a aplicação de uma palavra, o domínio de seu significado, deve estar determinada por completo e seus limites circunscritos, sem vagueza, de sorte que conhecer um significado seria algo como antecipar-lhe todos os empregos corretos. Nesse caso, conhecer o significado da palavra “bispo” ou da palavra “torre” seria algo como conhecer todas as situações possíveis em que podem comparecer essas palavras, equivalendo isso a ter jogado todos os jogos. Dessa forma, nesse sentido restrito da determinação do significado de uma palavra ou do objeto que lhe seja correspondente, apenas Deus conheceria o jogo, não tendo qualquer sentido jogar com quem já jogou todos os jogos. Esse sentido de conhecer, entretanto, depende de uma determinação completa e prévia das possibilidades combinatórias dos objetos, que poderia ser entendida como uma tarefa metafísica ou transcendental. Esse ambiente estaria mais próximo à atmosfera rarefeita do Tractatus, na qual respiraríamos com alguma dificuldade.
Por outro lado, jogamos xadrez e queremos jogar xadrez. Isso se resolve em práticas de múltiplos aprendizados, de sorte que o próprio domínio da regra não é anterior às múltiplas aplicações que dela fazem parte. Que eu conheça uma canção, isso não significa que a tenha assoviado em espírito. E, que eu saiba somar, isso não significa que tenha realizado previamente, em um mundo ideal, todas as somas. Da mesma forma, Deus precisaria purgar seu tempo em clubes, consultar boletins, disputar torneios e, hoje em dia, utilizar computadores. E assim, mesmo Ele, computador posterior ao de ultimíssima geração, realizaria seu aprendizado do jogo, confirmaria estar seguindo as regras do jogo por este seu mesmo emprego. É de suspeitar apenas que faria isso bem demais, sendo de todo imprudente conceder-Lhe qualquer vantagem. Ora, parece evidente que esse último ambiente, bem menos rarefeito, seja mais próximo à atmosfera das Investigações filosóficas, no qual o arco possível das significações não faz coincidir necessidade e universalidade, não sendo a determinação dos significados, a margem de liberdade que nos concede a gramática, infensa à rudeza própria de nossas formas de vida.
A diferença entre os momentos torna-se, então, clara no modo que a obra pode oferecer respostas a certas questões. Ora, quem sabe, resolvendo o problema de Molyneux à maneira de um Leibniz, ora à de um Berkeley. Ora esvaziando o sentido de um desafio que se situaria fora do mundo, ora situando-o com o mundo no interior da própria linguagem.
4. No Prefácio às Investigações filosóficas, Wittgenstein enuncia um traço fundamental de sua reflexão, qual seja, o de ter sua obra primeira como um pano de fundo contra o qual se compõe, mas do qual também depende para adquirir pleno sentido. A obra se situa assim como singular trabalho autoterapêutico, operando sua maior transformação não em uma mudança de teses ou de projeto, senão em uma mudança de perspectiva. Continuando a enfrentar o problema essencial de uma lógica filosófica, que seria o da determinação das condições de possibilidade da significação, sua obra pode, porém, questionar suas próprias esperanças iniciais, que se mostram, a par de ingênuas, profundamente dogmáticas.
O tema da unidade possível da experiência, das condições por que um conhecimento pode ser objetivo, tudo isso se preserva, sem que a aventura da separação entre o possível e o necessário possa estar decidida de uma vez por todas, à revelia da frequentação do mundo que deixa a conhecer. Assim, não podendo ser antecipado o próprio desenho do espaço lógico-gramatical, o futuro da obra e da reflexão, mesmo mantendo sua negatividade, não pode mais ser o que inicialmente se prometera. Nesse sentido, uma filosofia sem essência é também uma filosofia sem destino, sem qualquer promessa que faça suspender previamente seu espanto.
Se nos cabe preservar o espanto como marca filosófica essencial, uma de nossas conclusões é bem simples. Não há resposta certa ou errada para o problema de Molyneux ou para o problema de Steinitz. Respostas filosóficas são as que se sabem dependentes do contexto de modalidades que pressupõem, são as que se reconhecem atadas ao universo de linguagem em que se inserem. Por razões como essa, a história da filosofia não precisa decidir entre Leibniz e Berkeley, por exemplo. Fazendo um balanço de tudo, em uma mera frase de encerramento, creio ser simples a lição dessa viagem tensa, à beira do contraditório, fazendo conviver, como fundo e figura, o Tractatus e as Investigações. O ver efetivo é sempre perspectivo, não se descola dos seus pontos de contato com o mundo, de suas formas de expressão, nem de suas próprias condições. E ver demais não é realmente ver.
*Este texto conserva as marcas de uma exposição oral e de sua destinação a um amplo público, estando assim desprovido do aparato usual de notas e de certas preocupações técnicas. Tem a marca dos anacolutos, que, na presença da fala, o interlocutor cúmplice ajuda a costurar. Cumpre registrar, entretanto, que as ideias aqui apresentadas em linhas gerais foram desenvolvidas de modo mais preciso no livro O cético e o enxadrista: Significação e experiência em Wittgenstein (publicado em 2012 pela Editora Quarteto), no qual tentamos desenhar com mais detalhes o movimento da obra de Wittgenstein, confrontando a posição do cético (que, paradoxalmente, talvez só possa satisfazer-se com o olhar divino) e a do enxadrista, entregue à perspectiva dos jogos de linguagem.