2013

Valéry on-line, McLuhan off-line

por Sérgio Alcides

Resumo

O lugar contemporâneo mais convulsionado não é a tela dos nossos computadores. É o próprio cérebro humano. É nele que transcorrem as mudanças mais profundas que hoje vivemos cotidianamente. Cotidiana e irresistivelmente – sendo esta última circunstância um bom sinal de que se trata mesmo de uma revolução.

Vida online e vida offline cada vez mais se confundem. Durou pouco a dicotomia entre o real e o virtual, desde que a internet se difundiu em escala globalizada. Não se trata de uma nova mídia, porque a rede mundial atua muito além da mera mediação. É todo um planeta a mais para habitar. Nele, certos hábitos mentais são privilegiados, em detrimento de outros.

A linearidade – como via de aquisição e organização do conhecimento – vai perdendo terreno para reticularidade, a disposição em rede das matérias e dos processos da consciência. É necessário avaliar as consequências cognitivas dessa virada. Ela afeta o próprio funcionamento do cérebro humano, transformando-o. Mudando o cérebro, muda o ser humano como um todo, suas habilidades, seus horizontes.

Duas figuras cruciais do século XX podem nos ajudar a fazer essa avaliação. Primeiro, porque se confrontaram com o futuro nos passos mais decisivos de suas trajetórias. Segundo, porque o fizeram de maneiras opostas. Um é o teórico da comunicação Marshall McLuhan (1911-1980). O outro é o poeta e pensador Paul Valéry (1871-1945).

São dois personagens tão diferentes quanto o visionário e o cético. E o maior contraste entre eles se liga à possibilidade de profetizar. Valéry não cansava de reiterar sua indisposição para a profecia: “Entramos no futuro de ré”, costumava dizer. Já McLuhan ficou famoso nos anos 1960 como o profeta das novas tecnologias de comunicação.

Para muitos, McLuhan antecipou o surgimento da internet, com sua visão de uma “aldeia global” criada pela velocidade instantânea das informações em circulação pelo mundo. “Nesta era elétrica nos encontramos cada vez mais traduzidos na forma da informação, deslizando através da extensão tecnológica da consciência”. Daí sua fórmula célebre sobre os meios de comunicação “como extensões do homem”.

Mas, se a consciência humana para McLuhan podia esperar do futuro uma ampliação cada vez maior, para Valéry era preferível ver nela uma ruptura irrevogável, produzida pelas turbulências do passado recente. Era a “crise do Espírito”. Diante da devastação espalhada pela Europa, bem no centro da orgulhosa “civilização” ocidental, era possível finalmente encarar o “homem” como uma inquietante interrogação, e não mais como o ideal de racionalidade em progresso até então propalado.

Hoje, quando a “aldeia global” já tem sua própria história e apresenta suas próprias clivagens, seus próprios impasses, o discurso profético de McLuhan soa inevitavelmente datado, apesar da lucidez de seus melhores insights. Mas é surpreendente a atualidade da meditação sobre ruínas de Valéry. Para McLuhan, tratava-se de prospectar o futuro do homem. Para Valéry o que se impunha era questionar o futuro da própria noção de humanidade.

Num ponto humano, porém, McLuhan e Valéry convergiam: ambos viam o cérebro como o campo das transformações mais importantes – onde se instalava a consciência estendida, para um; e onde, para o outro, o aturdido “Espírito” europeu persistia como um vírus.


Estar on-line quer dizer estar em rede. É dessas ironias da terminologia difundida em momentos de mudança acelerada, quando a linguagem nem sempre dá conta do que é mais profundamente vivido, ou nem sempre se dá conta do que é mais intensamente necessário dizer. São rupturas entre o desígnio e a designação, o movimento das transformações e a capacidade de dar nome ao traço decisivo que elas comportam. E o traço decisivo neste caso – traço? traçado? – é o contraste entre dois modos de apreender e representar o mundo para a consciência e de situá-la nele: o modo linear, em linha, e o modo reticular, em rede. Podemos esperar que não sejam modos excludentes, mas ainda assim a predominância de um ou de outro implica um conjunto de consequências consideráveis. Os hábitos mentais que eles engendram se enraízam no cérebro humano – e talvez seja aí que a nossa história hoje toca mais de perto o nosso corpo.

Porque o lugar contemporâneo mais convulsionado não é a tela dos nossos computadores. É o próprio cérebro humano. É nele que transcorrem as mudanças mais radicais que vivemos na atualidade, cotidiana e irresistivelmente – sendo esta última circunstância um bom sinal de que se trata mesmo de uma revolução, pela sua irresistibilidade. Vida on-line e vida off-line cada vez mais se confundem. Durou pouco a dicotomia entre o real e o virtual, desde que a internet se difundiu em escala global, diária, indispensável. Não se trata apenas de uma nova mídia ou um novo meio de comunicação, porque a rede mundial de computadores atua muito além da mera mediação. É todo um planeta a mais para habitar, em condições que forçosamente interferem nos modos de ser, pensar e sentir.

Nessa espécie de superesfera fragmentariamente pública, certos hábitos mentais são privilegiados, em detrimento de outros. A linearidade – como via de aquisição e organização do conhecimento – vai perdendo terreno para a reticularidade, a disposição em rede das matérias e dos processos da consciência. Essa virada traz consigo uma série de inegáveis benefícios, bem traduzidos por termos como “acessibilidade”, “interação”, “compartilhamento”. Qualquer pessoa conectada, em qualquer parte do mundo, apreende num instante a significação dessas palavras. Um punhado de cliques abre em janelas um acervo zil vezes mais rico que o das mais ricas (e inacessíveis) bibliotecas. Nunca existiu tanta riqueza tão disponível. No entanto, já chegamos outros a esse tesouro, a esse imensurável thesaurus, uma vez que a própria cognição humana se modifica no salto da linha para a rede. Virar uma página não é o mesmo que abrir uma homepage. O funcionamento do cérebro humano se transforma, à força de tantos cliques, tanta presentificação e tanto enlace de simultaneidades. Seria um equívoco estabelecer um julgamento rígido acerca dessa transformação: o problema é mais complexo do que nossas tendências pessimistas ou otimistas, apocalípticas ou integradas. Mais urgente é reconhecer que algumas habilidades cognitivas entram em declínio, enquanto outras se fortalecem. Ler, por exemplo, é uma prática mais ligada à linha do que à rede. Sem dúvida, é ótimo que edições impecáveis do Dom Quixote ou das obras completas de Shakespeare estejam disponíveis, de graça, na internet, prontas para “baixar”. A disponibilidade é abundante. Mas e a disposição? Quantos internautas estão efetivamente dispostos a ler um livro, físico ou eletrônico, da página um até a trezentos – enquanto zilhões de links tão atraentes estão ali perto reclamando sua atenção em notebooks, tablets, smartphones e o que mais inventarem antes mesmo de este parágrafo terminar?

Ouçamos o testemunho de um ensaísta americano especializado em informática e novas tecnologias, formado no mundo jurássico off-line, linear, mas logo normalmente absorvido pela comunicação on-line, em rede. “O próprio jeito de funcionar do meu cérebro parecia ter mudado”, escreve Nicholas Carr. “Foi então que comecei a me preocupar com minha incapacidade de prestar atenção a qualquer coisa por mais que uns poucos minutos.” Primeiro, ele pensou que era a chegada da meia-idade, mas não demorou a compreender que sua dispersão tinha outras razões. “Percebi que meu cérebro não estava apenas à deriva. Ele estava faminto. Exigia ser alimentado da maneira que a rede o alimentava. E, quanto mais alimentado ele era, mais aumentava sua fome. Mesmo quando eu estava longe do meu computador, ansiava por checar meu e-mail, clicar em links, ‘googlar’ alguma coisa. Eu queria estar conectado.” Dramaticamente, o internauta confessa: “Saudade do meu cérebro antigo”[1].

É compreensível o tom de “meditação sobre ruínas”: trata-se do declínio de habilidades ao redor das quais o sujeito formou sua identidade, a imagem que tem (ou tinha) de si próprio. O convite à nostalgia se torna tão irresistível quanto o desejo de “googlar” – e daí a uma visão meramente reacionária do mundo atual vai apenas um clique. Carr soube se precaver desse risco, mergulhando na pesquisa para um livro fascinante sobre as consequências neurológicas e cognitivas dos novos hábitos de comunicação em rede. Suas conclusões apontam uma tendência contemporânea à superficialidade, cobrindo vastas extensões, mas dificultando o poder de concentração e reflexão em profundidade sobre um ponto específico. Não se trata para o ensaísta de uma questão meramente moral. Não é o nosso espírito – “vicioso” ou “virtuoso” – o que está em causa: é o nosso corpo, mais especificamente o cérebro, em sua constituição neurológica. Carr procurou sintetizar os últimos dados das pesquisas de ponta no campo da neurobiologia, que parecem confirmar cada vez mais e melhor a antiga hipótese sobre a plasticidade cerebral, discutida desde o século XIX. O cérebro muda constantemente em face das experiências e das práticas que absorve ou é levado a empreender. Num certo sentido (neurobiológico), o humano se amolda às tecnologias historicamente dominantes, que o prolongam e o limitam ao mesmo tempo.

Graças à plasticidade das nossas conexões neuronais, quanto mais usamos a rede, mais treinamos nosso cérebro para ser distraído: para processar a informação muito rápido e com muita eficiência, mas sem uma atenção prolongada. Isto nos ajuda a explicar por que muitos de nós acham difícil concentrar-se mesmo quando estão longe de seus computadores. Nosso cérebro se torna um adepto do esquecimento, inepto para relembrar.[2]

A ironia é que a internet traz à tona tanta coisa que valeria a pena recordar, sem dúvida.

Mas o Google, como provedor das principais ferramentas de navegação da rede, também molda o nosso relacionamento com o conteúdo que ele disponibiliza tão eficientemente e em tanta profusão. As tecnologias intelectuais que ele introduziu pioneiramente promovem um rápido e superficial deslizar sobre a informação, mas desestimulam qualquer envolvimento profundo e prolongado com um argumento, uma ideia ou uma narrativa[3].

O risco então, depois de tanto esforço cultural, científico e tecnológico, é tornar-se incapaz da fruição do próprio êxito: morrer na praia, afogado no raso.

Não é por acaso que Carr inicia seu livro com uma homenagem a Marshall McLuhan, o ensaísta canadense que meio século antes já tinha percebido com impressionante nitidez uma reviravolta que na época mal tinha começado. “O meio é a mensagem”[4] – foi a máxima tantas vezes repetida do autor de clássicos como Agaláxia de Gutenberg (1962) e Os meios de comunicação como extensões do homem (1964). Mas ele também poderia ter iniciado com uma homenagem a Paul Valéry, o poeta e pensador francês que se entediava com a superfície dos acontecimentos e preferia mergulhar na reflexão sobre os “funcionamentos”: “Os acontecimentos são a espuma das coisas. Mas é o mar o que me interessa”[5]. Ambos os homenageáveis permitem uma abordagem sobre os contrastes entre o raso e o fundo, o “surfe” em superfícies e interfaces, o mergulho em distinções e profundezas.

São duas figuras cruciais do século XX, McLuhan e Valéry. Entre outros motivos, por terem se confrontado com o futuro nos passos mais decisivos de suas trajetórias. No entanto, os dois são tão diferentes quanto o visionário e o cético. O ensaísta viu o mundo moderno como uma “aldeia global” criada pela velocidade instantânea da informação circulante, e a partir daí profetizou o advento de “uma consciência cósmica geral”[6]. Já o poeta não cansava de reiterar sua indisposição para a profecia: “Entramos no futuro de ré”, costumava dizer”[7] McLuhan e Valéry exemplificam bem dois modos diferentes de lucidez em face de transformações radicais que se impõem às maneiras de pensar, sentir e viver. Em comum, eles têm o fato de terem vivido em tempos de mudança: McLuhan como professor de literatura em meio à proliferação de signos e hábitos de comunicação de massa muito mais abrangentes e muito diferentes do ambiente livresco que o formara; Valéry como o “homem de espírito” em tudo avesso à história, que, abruptamente, vê as guerras mundiais destroçarem a segurança do fragilizado ideal de civilização que dava sentido ao seu modo de ser. De maneiras diferentes e por ângulos diversos, ambos se viram diante de uma imagem cambiante do ser humano. Mas o que mais os aproxima de Carr é que, também para eles, “cérebro” era uma palavra-chave para entender os movimentos da história. Ou porque dali se expandisse uma consciência coletiva deslizando para o futuro, ou porque dele brotasse o “espírito” individual que pudesse resistir ao que quer que o futuro viesse a trazer.

1.

Justifica-se que McLuhan (1911-1980) tenha ficado célebre como o profeta das novas tecnologias de comunicação. Com um vocabulário que hoje pode soar nostradâmico, sobre a passagem da “era mecânica” de Gutenberg para a “era elétrica” da televisão, e sem maiores conhecimentos de neurofisiologia, McLuhan fez uma contundente descrição das profundas alterações culturais e cognitivas trazidas pelo desenvolvimento de cada novo meio tecnológico ao longo da história, desde a invenção da escrita, da imprensa de tipos móveis, do telégrafo e do rádio até a difusão da TV. Para ele, a circulação instantânea de informações ao redor do mundo “retribalizou” o ser humano e reduziu o planeta inteiro às dimensões de uma “aldeia global” [global village]. Há quem acredite que ele anteviu no início dos anos 1960 o surgimento da internet – que só se expandiu globalmente mais de trinta anos depois.

É sintomático que, na profecia de McLuhan, a questão já se ligasse decisivamente ao funcionamento do cérebro, cada vez mais desviado de seu antigo procedimento sequencial, linearizado:

Um dos aspectos principais da era elétrica é que ela estabelece uma rede global [a global network] que tem muito do caráter de nosso sistema nervoso central. Nosso sistema nervoso central não é apenas uma rede elétrica [an electric network]; constitui um campo único e unificado da experiência. Como os biólogos apontam, o cérebro é o lugar de interação [the interacting place], onde todas as espécies de impressões e experiências se intercambiam e se traduzem, permitindo-nos reagir ao mundo como um todo.[…]. Mas essa unidade orgânica de interprocessos, que o eletromagnetismo inspira nas mais diversas e especializadas áreas e órgãos de ação, está no polo oposto da organização numa sociedade mecanizada. [Mais adiante, o autor mostra o efeito dessa troca de polaridade][…] A sincronização instantânea de operações numerosas acaba com o velho padrão mecânico do arranjo das operações em sequência linear [8].

Talvez seja esta a passagem de toda a obra de McLuhan mais “profética” acerca da internet – uma “rede global” espalhada como um “campo unificado da experiência”, uma “unidade orgânica de interprocessos” que se estabelece no polo oposto ao das “operações em sequência linear”. Cinquenta anos depois, tudo isto nos parece muito familiar: é lugar-comum – em todos os sentidos, em todas as direções. No entanto, o que o trecho traz de mais sugestivo só agora começa a sobressair: a “rede global” antevista se assemelha em muitos aspectos ao cérebro humano. Reside precisamente aí o ponto que hoje parecerá fundamental a Carr, pelas advertências que ele faz, como esta: “À medida que o nosso uso da rede nos torna mais difícil reter a informação na nossa memória biológica, somos forçados a contar mais e mais com a memória artificial tão abrangente e facilmente buscável, mesmo se isto nos transforma em pensadores rasos”[9]. Não só a antiga linearidade dos processos mentais está rompida: há um ultracérebro lá fora que também pensa por nós, lembra infalivelmente de tudo o que esquecemos e retém, por uma espécie de delegação, uma parte significativa das nossas consciências. E nada disso surpreenderia o velho McLuhan: “Com o advento da tecnologia elétrica, o homem prolongou ou projetou para fora de si mesmo um modelo vivo do próprio sistema nervoso central”[10]. E ainda: “Nossa vida particular e associativa se transformou em processo de informação justamente porque projetamos para fora nosso sistema nervoso central, sub specie de tecnologia elétrica”[11]. Ou, com certa poesia: o homem elétrico é “um organismo que agora usa o cérebro fora do crânio e os nervos fora do seu abrigo”[12]. McLuhan vê esse prolongamento do sistema nervoso central como um movimento “rumo à extensão tecnológica da consciência”[13]. Mas, externada, a consciência deixará de ser um processo individual e passará a ser ela própria um compartilhamento. Nesse processo, deflagrado com os avanços da telecomunicação no século XIX e cada vez mais acelerado no XX, surge um ambiente não muito acolhedor para o ideal moderno do sujeito autocentrado, idealmente estável, sempre idêntico a si próprio, senhor de suas representações e supostamente responsável por seus atos[14]. O pressuposto metafísico mais fundamental para esse tipo humano se ergueu exatamente sobre a autoconsciência em face do mundo externo. No idealismo alemão, sobretudo a partir de Kant, impôs-se como um paradigma o contraste entre o “eu” e o “não eu”, frequentemente concebidos topologicamente: o dentro e o fora. Fichte partirá daí para postular a existência de um “Eu absoluto”, puro e universal, intersubjetivo, de cuja essência divina cada um de nós participa individualmente[15]. A integração a esse ideal é também um télos, um ponto de chegada, orientação para toda uma ética e ainda para uma concepção de história como força dirigida para esse fim imaginado como exterior a ela, metafísico, não histórico. O refinamento da vida interior do indivíduo burguês, no século XIX, por exemplo, é assim percebido como um estágio dessa linha, rumo a uma consumação absoluta, ou seja, solta do tempo e do mundo – numa evolução cujo ponto de partida é justamente a distinção entre o “eu” e o tempo, o “eu” e o mundo, o “eu” e o “não eu”.

A argumentação de McLuhan se incompatibiliza de saída com essa maneira de explicar e circunscrever o indivíduo. Se as tecnologias são “extensões do homem”, o “eu” se prolonga pelo “não eu” afora. A consciência individual, de outro modo entendida como índice particular de uma instância metafísica, revela-se como contingência, criatura da história, determinada por certa configuração tecnológica e fadada a desaparecer com ela. Para McLuhan, o que “possibilitou a descoberta do individualismo, da introspecção e assim por diante” foi o desenvolvimento da escrita e sobretudo a invenção da imprensa[16]. Note-se que ocorre dentro dessas coordenadas históricas a própria invenção do conceito de literatura, em fins do século XVIII, como domínio discursivo reservado à ficção e atrelado a pressupostos metafísicos sobre a nação, a época e a subjetividade individual. Do ponto de vista da mídia, na escrita e na tipografia, o sujeito não se confunde com os meios: “Vinde cá, meu tão certo secretário”, é como Camões inicia sua Canção X, referindo-se ao papel em branco, a quem o poeta confia seus segredos[17]. Mas, para McLuhan, essa separação é mecânica, e portanto não poderia persistir na era que ele chama de “elétrica”: “Com a TV, o espectador é a tela”[18]. Ou, como observa um teórico posterior: “A digitalização geral de canais e da informação apaga as diferenças entre o indivíduo e a mídia. Som e imagem, voz e texto são reduzidos a efeitos de superfície, conhecidos pelos consumidores como a interface”[19].

Nesse plano estendido da consciência, deixa de fazer sentido o antigo ideal de “formação” – a Bildung, como os alemães chamavam o processo de educação e desenvolvimento singular do indivíduo, resultante da acomodação, no seu “espírito”, de um conjunto de aprendizados e experiências pessoais e estéticas. Tratava-se de um ideal de cultivo: o sujeito era o terreno a ser inseminado pela cultura; sua singularidade única e o efeito dela sobre o mundo e os outros era o que se esperava colher[20]. Estava implicado aí um tipo de relacionamento com bens culturais que nada tem a ver com o paradigma hoje dominante: ler um poema, ir ao teatro, ouvir um concerto são atos que então só podiam ser concebidos como diferentes modos de nutrir o sujeito – e não como diferentes meios de entretenimento. Não se podia fazer download do alimento necessário à alma humana.

Seria um erro pressupor aqui dicotomias rígidas entre “alta cultura” e “cultura de massa”, “cultura erudita” e “cultura popular”, high brow low brow, para as quais tudo se reduz a uma questão de juízo ou, pior, de “gosto”. O decisivo para o contraste entre os paradigmas da formação e do entretenimento não é o valor dos bens culturais envolvidos e sim o tipo de relação que se estabelece com eles. A formação entendia o sujeito como um potencial a desenvolver – em resposta a um apelo que para Nietzsche vinha da própria consciência individual: “Torne-se aquilo que você é”[21]. O envolvimento com a literatura, a música e os espetáculos ganhava assim um caráter existencial semelhante ao que ligava cada um aos estudos, ao amor, às viagens: eram experiências que supostamente passavam a nutrir e constituir a identidade da pessoa e sua correspondente forma de ver o mundo. O resultado, embora em permanente desenvolvimento sempre cambiante, não deixava de se dar de uma forma relativamente acomodatícia – e para isso se tornava necessária uma memória que tampouco poderia ser artificial ou externa. Ainda com Nietzsche: “Continue sem cessar a ser aquele que você é – o criador do seu Eu! Assim você vai reter a memória dos seus bons momentos e achar a conexão entre eles, a cadeia de ouro do seu Eu”[22].

No plano do entretenimento, ao contrário, as conexões são externas e não necessariamente se ligam a uma “vida interior”; embora também possam estimular uma zona subjetiva, não é este o seu foco. A relação com os bens da cultura se dá como alternativa disponível para preencher o tempo livre do trabalhador ou do estudante que se prepara para ingressar no mercado de trabalho ou tenta melhorar sua condição social, sem adquirir para ele um caráter existencial integrado à pressuposição de um todo sem falhas ou arestas, o antigo “eu” feito de profundidade interna e circunspecção exterior. O entretenimento explicita o aspecto mercantil que a formação preferia ocultar, quanto ao “consumo”, mas disfarça como escolha “livre” o cardápio de espetáculos oferecidos pela indústria e divulgados pela imprensa regular. Sua lógica também pode contribuir para a constituição de identidades particulares ou para a aglomeração de grupos, fãs ou “tribos”, mas não se processa por acomodação na memória individual, antes por expansão topológica, ao sabor de estímulos que vêm mais do ambiente que de uma consciência em busca de cultivo.

Também seria equivocado entender os dois paradigmas diferentes como estanques, excluindo os diversos graus de contaminação que eles podem admitir ao se encarnarem, na história, em práticas efetivas de relação com a cultura. Isto também basta para afastar a tentação de mistificá-los, um como ideal sem sombras, outro como idade pop das trevas. As iniquidades do imperialismo do século XIX e as catástrofes militares e ideológicas do XX impedem hoje qualquer visão edulcorada ou ingênua do estilo de vida individualista e introspectivo propagado a partir da Europa “esclarecida” como um modelo ideal, definidor por si só do que fosse ou devesse ser o “humano”. No mundo burguês oitocentista, o cultivo de si também atuou como um modo de distinção social e exclusão de qualquer perspectiva desviante, com a consequente violência. Quanto à vida particular do indivíduo, pode-se calcular o sofrimento neurótico gerado pela imposição social de um padrão de “normalidade” tão estrito sobre a “vida interior” a ser cultivada, que por definição despertava a sensação permanente de estar aquém daquilo “que se é”. Por fim, o veio mais obscuro da melancolia na literatura oitocentista (em autores como Gérard de Nerval, Charles Baudelaire e o Conde de Lautréamont) mostra o lado problemático dessa expectativa de retenção da experiência, e insinua que o maior legado acomodatício do sujeito é feito mais de perdas que de ganhos.

Feitas essas ressalvas, cabe apontar um contraste a mais acerca dos dois paradigmas conflitantes na virada que McLuhan descreveu com tanta contundência. Se o entretenimento reduz a liberdade a uma questão de escolha, a formação a declarava ao mesmo tempo como condição e recompensa: sem ela, o cultivo nem seria possível; este, por sua vez, também pretendia realizar no indivíduo uma progressiva “libertação”, com a construção de sua autonomia. Sabemos que essa concepção de liberdade conviveu bem com toda sorte de interditos e com um caráter na prática bastante normativo, tendente ao etnocentrismo e suscetível de apropriações políticas variadas, com resultados históricos às vezes monstruosos. No entanto, como princípio, ela abria uma brecha para o inconformismo, que na sociedade de consumo e do entretenimento raramente extrapola as exterioridades da moda e da pose em foto promocional de roqueiros sob contrato. Da mesma forma, também como princípio, ela reclamava um arbítrio daquela forma de consciência individual que, segundo McLuhan, era uma criação da “era mecânica”, obsoleta na “era elétrica”.

A propósito da liberdade, nem sempre os entusiastas da obra de McLuhan se lembram do capítulo em que ele tratou do especial narcisismo do homem “amante de gadgets”. O ensaísta começa examinando o próprio nome de Narciso: “Vem da palavra grega narcôsis, entorpecimento. O jovem Narciso tomou seu próprio reflexo na água por outra pessoa. A extensão de si mesmo pelo espelho embotou suas percepções até que ele se tornou o servomecanismo de sua própria imagem prolongada ou repetida”[23]. Essa espécie de tradução do mito grego em idioma mcluhaniano sintetiza os dois aspectos da sua concepção que representam as mais severas restrições à liberdade individual próprias dos novos tempos. O primeiro é que a extensão tecnológica do ser humano é também uma “autoamputação”: ela resulta inevitavelmente no “entorpecimento” (narcótico) da parte prolongada[24]. O segundo é que, uma vez prolongado, o ser humano é assimilado como servo pela tecnologia que o prolonga: “Um índio é um servomecanismo de sua canoa, como o vaqueiro de seu cavalo e um executivo de seu relógio”[25].

Assim, a roda é vista como uma extensão dos pés, o martelo como uma extensão das mãos, os binóculos como uma extensão dos olhos e assim sucessivamente – como utensílios cujo uso ao mesmo tempo aperfeiçoa e atrofia as capacidades corporais. Estes exemplos, no entanto, vêm todos da “era mecânica”. Na “era” subsequente, a parte prolongada do corpo humano não é nenhum membro nem nenhum dos cinco sentidos: é o cérebro, tendo no horizonte a simulação eletrônica da consciência. “Nossa nova tecnologia elétrica”, diz McLuhan, “apresenta tendências orgânicas e não mecânicas porque ela projeta e estende, não os nossos olhos, mas o nosso sistema nervoso central, como uma vestimenta planetária”[26]. Nos termos do ensaísta, pode-se esperar uma consciência individual narcotizada, autoamputada, de maneira que o homem possa “servir à tecnologia elétrica” com a maior “fidelidade servomecanística”[27]. Um sinal do possível cumprimento dessa profecia é a quantidade de pessoas que hoje podem ser observadas em atitude de reverente obediência, meio entorpecidas, diante de aparelhos de televisão ligados em restaurantes, ônibus, lavanderias, nas indefectíveis salas de espera de hospitais, delegacias e repartições em geral, em toda parte, enfim, muito além de suas residências. A mesma reverência servomecânica está certamente relacionada à ânsia por conexão e clicagem, de que nos dá testemunho Nicholas Carr. A hipótese inquietante é: quanto mais smart é o fone, mais tolo pode ser o dono…

Por outro lado, igualmente inquietante é a hipótese de a crítica cultural acerca dos novos hábitos de comunicação assumir uma postura reacionária e nostálgica. Isto seria uma espécie de “demissão”, já que a partir desse ponto ela deixa de ser de fato “crítica” e passa a se deixar guiar por motivações afetivas, temores, ressentimentos. Reside aí a maior dificuldade, e não ajuda nada a circunstância de ser o espírito crítico – segundo o esquema armado por McLuhan – um desenvolvimento histórico próprio da “era mecânica”, por seu procedimento ser fundamentalmente baseado no estabelecimento de distinções, através das quais se pretende esclarecer especificidades desse modo separadas do todo maior onde se ocultam. Mesmo a origem etimológica da palavra ressalta esse caráter: vem do verbo grego kríno (krínein), que significa “separar”, “distinguir”, “escolher”, “decidir” (entre outras coisas)[28]. São exatamente estas as habilidades que McLuhan associa ao “individualismo fragmentado, letrado e visual” de uma cultura destribalizada, que por meio da escrita se separou da natureza, ergueu a visão acima dos demais sentidos (na contramão de um primitivismo muito mais tátil) e se consolidou por meio da tipografia: “O homem letrado e civilizado tende a restringir o espaço e separar as funções, enquanto o homem tribal livremente projeta a forma de seu corpo para abranger o Universo”[29]. Por isso a marca do mecanicismo, segundo McLuhan, é a fragmentação que destribaliza o indivíduo. Já a da “era elétrica” é a organicidade, que retribaliza o homem na “aldeia global” das informações em circulação: ”As tecnologias anteriores eram parciais e fragmentárias, e a elétrica é total e inclusiva”[30]. Assim, se a crítica sempre se percebeu a si própria como estrangeira e desenraizada por definição, no mundo contemporâneo tem ainda mais motivos para tanto.

Desde essa perspectiva necessariamente estrangeira, é oportuno levar a sério o que McLuhan diz e prediz sobre o mundo das comunicações globalizadas. O que não significa deixar de observar os desacertos que ele comete, no meio de insights tão certeiros. A cinquenta anos da publicação de Understanding media, ninguém ousaria dizer tão candidamente que a transformação vivida nesse período “elevou a consciência humana de responsabilidade a um grau dos mais intensos”[31]. Nem imaginar que “a tradução de nossas vidas inteiras sob a forma espiritual da informação” poderá resultar “numa só consciência do globo inteiro e da família humana”[32]. Como crer ainda no ideal de uma “família humana”? São esses contornos utópicos da visão mcluhaniana que nos levam a deixar um “pé atrás” ao ouvirmos as trombetas do seu discurso. É bem convincente que tenhamos “prolongado ou traduzido nosso sistema nervoso central em tecnologia eletromagnética” e que o “próximo passo” seja “transferir nossa consciência para o mundo do computador”. A profecia que se extrai daí já é mais difícil de aceitar: “Então poderemos programar a consciência, para que ela não ceda ao entorpecimento e à alienação narcísica provocada pelas ilusões do mundo do entretenimento”[33]. McLuhan pressupõe que essa consciência fora da cabeça ainda seja humana. Mas como prevenir a alienação de uma faculdade que já foi de antemão alienada?

Outro aspecto duvidoso da utopia comunicacional da “era elétrica” é a confiança que se deposita na informação, a ponto de confundi-la com o que ela não pode ser sem o concurso de uma elaboração crítica. É assim que, logo na abertura de Understanding media, McLuhan vaticina que, com a “simulação tecnológica da consciência”, “o processo criativo do conhecimento se estenderá coletiva e corporativamente a toda a sociedade humana”[34].

Da mesma forma, no desfecho do livro, notamos a redução do conhecimento a um processo transmissivo: “De repente”, diz McLuhan, “os homens passaram a ser nômades à cata de conhecimento”[35]. Tudo bem: como internauta nômade retribalizado, prometo clicar no botão “Curtir” quando essa frase aparecer no Facebook atribuída a Clarice Lispector ou a Maradona. Inegavelmente, McLuhan incorre no risco apontado por um crítico do messianismo envolvido nas ideias de Walter Benjamin sobre a “reprodutibilidade técnica” da obra de arte: “Quem acredita que a evolução tecnológica da mídia pode servir como chave para entender processos sociais se arrisca a deixar de ser um analista e se transformar num profeta”[36].

Ao fim e ao cabo, a visão fascinante de McLuhan é inseparável de um plano em que a teoria da mídia se confunde com uma espécie de teologia[37]. Seu discurso pode ser qualificado como “adventista”: “Em suma”, diz ele, “o computador, pela tecnologia, anuncia o advento de uma condição pentecostal de compreensão e unidade universais”. Nessa espécie mística de download, “o próximo passo lógico seria não mais traduzir, mas superar as línguas através de uma consciência cósmica geral”[38]. Mas quem garante que o “próximo passo” será lógico? E o que será daquele que porventura divergir de uma entidade consciente tão total e sublime? É possível, sim, que essas perguntas ainda estejam muito ligadas àquela dessacralização que o autor atribui ao “homem tipográfico” da “era mecânica”, que em seus processos de fragmentação e segmentação (ou critica, pode-se acrescentar) “separou Deus da Natureza, o Homem da Natureza, o Homem do Homem”[39]. No limite, essa dessacralização nem sequer admitiria sem reservas a reflexão a partir de categorias metafísicas como “o Homem”, assim erguido sobre o pedestal da caixa alta.

Com tudo isso, os atuais embaraços da linha na rede tornam a contribuição de McLuhan imprescindível e muito oportuna. Não me parece que estejamos em condições de dispensar uma visada tão inteligente, tão elegante, capaz de articular com tanto brilho pontos tão cruciais da história da técnica e da comunicação. No fundo, McLuhan é um exemplo acabado de “homem tipográfico”, muito mais visual e sedentário que tátil e nômade. Atento observador do mundo, capaz de construir uma visão ampla a partir do detalhe que sabe destacar da circundante multiplicidade, a fim de estabelecer distinções fundamentais. A começar pela grande distinção entre a “era mecânica” e a “era elétrica” – por mais difícil de sustentar que ela seja, e por mais que ela própria envolva um excessivo mecanicismo. Leitor de poesia refinado e erudito, ele incorporou ao seu poder de análise critica a rebelião e a irreverência das vanguardas artísticas e literárias do século XX, das quais foi um corajoso entusiasta, em meio ao conservadorismo do ambiente acadêmico de seu tempo, na América do Norte. Por maior que tenha sido o impacto inicial da sua obra, por mais festejado que ele tenha sido no início dos anos 1960, o descrédito a que foi relegado nos seus últimos anos de vida mostra bem que McLuhan, apesar de ter profetizado a retribalização, não tinha tribo. “A sina da implosão e da interdependência”, diz ele, “é mais terrível para o homem ocidental que a sina da explosão e da independência para o homem tribal.” E, numa rara nota pessoal, tingida pela inconfundível nódoa melancólica dos letrados, acrescenta: “No meu caso, pode ser mera questão de temperamento, mas encontro algum alívio do fardo simplesmente no entender e no clarificar as questões”[40].

2.

Valéry não discordaria de que “o meio é a mensagem”. Só que para ele o único meio realmente importante era o cérebro individual, matriz do espírito: “Eu ‘contenho’ o que me ‘contém’. E sou sucessivamente continente e conteúdo”[41]. É impressionante o império de escrita que ele estendeu sobre si mesmo, incluindo uma obra poética tão curta quanto crucial, numerosos livros de prosa ensaística e filosófica, outros de discursos e conferências e – sobretudo – os 261 cadernos de variados tamanhos que deixou, cobertos de notas manuscritas, apontadas diariamente por décadas a fio, entre 1894 e o ano de sua morte, em 1945, sempre a partir das 4 horas da madrugada até as 7 ou 8 horas da manhã. Terá havido na “galáxia de Gutenberg” alguém mais inteiramente constituído pela tecnologia da escrita?

Sem nenhuma dúvida, Valéry pertence ao paradigma da formação, discutido acima, como indivíduo envolvido no processo contínuo do desenvolvimento de suas potencialidades particulares. No entanto, se esse processo era normalmente entendido como aquisição de aprendizados e experiências constituidores do sujeito, o poeta não deixou de ser, dentro dele, uma figura desviante. Mais do que os elementos constitutivos do “eu”, o que realmente interessava a Valéry era o movimento dessa constituição dele. Não tanto os “acontecimentos”, mas os “funcionamentos” – como ele não se cansava de afirmar. Daí a dupla obsessão que ocupa grande parte dos seus escritos: primeiro com o pensamento, entendido e vivido mais como exercício livre e ilimitado que como meio de alcançar conclusões estáveis; segundo, com a linguagem que o realiza na consciência subjetiva e que, desprendida dos seus liames com a realidade sensível, passa a formar um mundo só dela. O habitante por excelência desse mundo da linguagem é o que Valéry chama de “espírito”: o sujeito daquele pensar em movimento, em cujo fluxo de liberdade se torna também um criador. Daí ele representar o espírito com a imagem do uróboro: “[…] Acostumar-se a pensar à maneira da serpente que se engole pela cauda”[42]. Assim o espírito conquista a si próprio, como um modo de se expandir para dentro.

”A serpente come a própria cauda”, anotou Valéry, compondo uma espécie de apólogo sobre o modo de ser do pensamento. “Mas é só depois de um longo tempo de mastigação que ela reconhece no que devora o gosto de serpente. Ela para, então… Mas, ao cabo de outro tempo, não tendo nada mais para comer, ela volve a si mesma… Chega então a ter a sua cabeça em sua goela. É o que ela chama de ‘uma teoria do conhecimento’”[43].

Volver a si mesmo: eis para Valéry o gesto mais recorrente do espírito. Assim como aquele que, dia após dia, torna à escrivaninha de sempre, às 4 horas da madrugada, para se debruçar sobre o caderno de notas como Narciso sobre o lago – porém sem a narcose, sem o equívoco de se tomar por outro, porque desde o início a identificação é mais com o movimento do que com as realizações particulares dele: “Eu me amo em potência – me odeio em ato”[44]. A escrita então é o resíduo da atividade incessantemente insatisfatória desse servomecanismo de si mesmo que Valéry plasmou na seguinte fórmula: “Autoscópio – Ego”[45].

Assim, o “homem de espírito” é aquele que está empenhado consigo mesmo: “[…] ponho acima de tudo a preocupação de me conquistar, a mim, pela fabricação desenfreada do meu rigor”[46]. Esse empenho rigoroso também pode ser representado como uma obra interminável. “Perco-me em minhas longas esperas”, diz o personagem-título do diálogo Eupalinos ou arquiteto, publicado por Valéry em 1921. “Reencontro-me nas surpresas que me causo; e, por meio desses degraus sucessivos de meu silêncio, avanço em minha própria edificação; aproximo-me de tão exata correspondência entre meus desejos e minhas forças que tenho a impressão de haver feito da existência que me foi dada uma espécie de obra humana. De tanto construir, creio ter-me construído a mim mesmo”[47]. Como Eupalinos, o próprio Valéry se dedicou desde muito cedo a essa contínua edificação de si: “Os outros fazem livros. Eu faço meu espírito”[48].

Note-se que o poeta se acha mal ajustado à mecânica dominante no meio letrado do seu tempo: na falta de um télos, ponto de chegada ou consumação, a linearidade é menos progressiva que recursiva. Cancelada a teleologia, também é afastado o inflexível dualismo entre espírito e matéria, que marca a tradição idealista fundadora do paradigma da formação. Valéry e McLuhan têm em comum, além de serem ambos digníssimos exemplares do “homem tipográfico”, a concepção monista acerca da vida e da consciência[49]. Tanto para um como para o outro, “cérebro” é uma palavra-chave. Vem daí que McLuhan ponha tanta ênfase nos efeitos cognitivos dos hábitos comunicacionais: as realizações espirituais (ou simbólicas, ou artísticas, ou filosóficas etc.) do ser humano estão limitadas às habilidades cerebrais que ele puder manifestar, num dado momento histórico, sob as respectivas condições tecnológicas então existentes.

O pensamento de Valéry acerca da consciência individual e da “vida do espírito” divergia radicalmente do filósofo francês mais proeminente do seu tempo, Henri Bergson, que mantinha um entendimento dualista sobre a relação entre a mente humana e as suas bases neurofisiológicas. “O cérebro não será outra coisa senão uma espécie de central telefônica”, escreveu Bergson no seu livro clássico acerca da relação entre o corpo e o espírito, Matéria e memória, publicado em 1896[50]. Para ele, o conhecimento e a memória eram faculdades espirituais, independentes do córtex cerebral. Bergson se situava assim em oposição às pesquisas pioneiras do filósofo e psicólogo Théodule Ribot, que em seu livro Doenças da memória, de 1881, tentava demonstrar que “a lembrança não está na alma e sim fixa em seu local de nascença, numa parte do cérebro”[51]. O debate e as pesquisas sobre o funcionamento do cérebro eram uma das maiores obsessões de Valéry, que por toda a vida procurou se manter informado sobre os últimos desenvolvimentos no campo da neurofisiologia. Se, para o filósofo dualista, o cérebro está a serviço do espírito, para o poeta monista o espírito é um produto do cérebro[52]. Seria certamente divertido para Valéry saber o que McLuhan escreveu sobre os efeitos da telefonia como extensão do sistema nervoso central, atrapalhando a alegoria proposta por Bergson[53]. Contestando seu contemporâneo, o poeta anotou num caderno de 1920 sua frase mais mcluhaniana: “[…] a organização, a coisa organizada e o organizador são inseparáveis. O ‘espírito’ é inseparável da matéria – e reciprocamente”[54].

Inúmeras outras vezes, em seus apontamentos matinais, Valéry se deteve sobre os avanços do conhecimento científico sobre os segredos do cérebro, como mostrou o pesquisador Gabriele Fedrigo em obra a esse respeito. “Não há metafísica que resista à observação do que se passa no cérebro humano”, escreveu ele[55]. Essa consciência que McLuhan via em processo de se exteriorizar no seu vislumbre de uma “aldeia global”, para Valéry era um fenômeno igualmente ligado às condições do sistema nervoso central: “Pensamento, consciência, ideias, sensações são cintilações produzidas nas fronteiras entre o mundo físico e o mundo fisiológico”[56].

Essa fronteira física, cerebral, é o terreno por onde o espírito se expande indefinidamente, como a serpente que morde a própria cauda. Rigorosamente individualista, intelectualista e nada tribal, Valéry se entregou a uma espécie de nomadismo interior, em que a fixação de uma maneira estável de ser é tão impraticável quanto na “aldeia global” mcluhaniana: “A especialidade me é impossível”, anotou o poeta, distinguindo-se do fragmentarismo que McLuhan atribuía à cultura da letra[57]. No entanto, mais que as aproximações entre os dois autores, sobressai o contraste: o ideal serpeante do pensamento e do espírito prevê uma extensão da consciência para dentro de si mesma, e não para fora, onde a obra autoscópica da escrita se dissemina em compartilhamento e perde a singularidade que era a própria base da sua resistência ao mundo externo banalizador. O que McLuhan viu como “extensão da consciência” para Valéry só poderia ser pensado como “crise do espírito”.

Este é o título de um dos textos mais pungentes de Valéry, escrito sob o impacto da destruição trazida pela Primeira Guerra Mundial. Por meio dele podemos aferir a importância que o poeta atribuía à ilusória estabilidade esclarecida da “cultura europeia” como condição ambiental para a “vida do espírito”, interior. Sem disfarçar o etnocentrismo que tanto contribuiu para as catástrofes que ele próprio lamentava – ou sem ao menos notá-lo -, Valéry declara seu espanto diante dos escombros da Europa, “cérebro de um vasto corpo”[58] que, bombardeado, levou à perda “de uma consciência adquirida em séculos de mazelas suportáveis, por milhares de homens de primeira ordem, por inumeráveis acasos geográficos, étnicos, históricos”[59]. Era a “agonia da alma europeia” – com a ruptura da cerebral civilização que lhe embasava. Encarnando o espírito europeu no último ato de sua tragédia, surge a figura de Hamlet como persona para um sombrio Valéry: “Adeus, fantasmas!”, diz ele, depois de citar uma galeria de grandes representantes da cultura que parecia morrer, tais como Leonardo da Vinci, Leibniz, Kant, Hegel, Marx.

O mundo não precisa mais de vocês. Nem de mim. O mundo, que batiza com o nome de progresso sua tendência a uma precisão fatal, procura unir aos benefícios da vida as vantagens da morte. Uma certa confusão ainda reina, mas não demora muito tempo e tudo há de se esclarecer; veremos aparecer enfim o milagre de uma sociedade animal, um perfeito e definitivo formigueiro [60].

Valéry escolheu com cuidado a imagem exata para designar o risco que ameaçava seu ideal do espírito. Ele conhecia a obra do zoólogo Edmond Perrier de 1881, As colônias animais e a formação dos organismos. Para o cientista, nos formigueiros, cada indivíduo renuncia à sua autonomia em prol de uma direção dada pelo todo, com o consequente surgimento de uma “consciência colonial”[61]. Assim como, segundo Ribot, a consciência individual humana só era possível graças à subordinação de cada neurônio a um controle dirigido pelo cérebro como um todo[62] – como se o cérebro fosse uma colônia de neurônios.

O poeta lamentava a ruína da consciência europeia assim como Carr se afligia com o declínio de seu poder de concentração. Talvez ele se equivocasse, sob o efeito atordoante dos estrondos. Segundo McLuhan, a explosão ainda era uma categoria mental muito presa à “era mecânica”, que só viria a ser superada por meio da implosão dos seus hábitos cognitivos, provocada pelo desenvolvimento das telecomunicações elétricas: o explosivo ainda age pela fragmentação, como a cultura letrada[63]. Mesmo assim, a imagem do formigueiro e da “consciência colonial” também serviria para descrever a “aldeia global” de McLuhan – desde que o sinal positivo fosse trocado pelo negativo, com o afastamento da motivação adventista subjacente. Impossível não lembrar a distopia denunciada pelo escritor português (contemporâneo) António Vieira, na qual a humanidade, desprovida de um espírito “perscrutador do ser” e da verdade, reduz-se a um todo amorfo, incaracterizável. Diz Vieira:

Apesar do grande cérebro do incaracterístico, rede com milhões e milhões de unidades, a sua consciência permanece num estado de fechamento, letárgica e passiva, espraiando seus ócios, complacente, arrastando seu tédio diante dos ecrãs-circo e de outros dispositivos da coisa absurda que o envolvem e coagem, dando-lhe o sentimento paradoxal da liberdade”[64]. Em linha, on-line pela oportunidade de sua advertência, o cético Valéry talvez nos ajude a evitar os riscos desse formigueiro em rede. Depois da explosão da Europa, recusando-se a prever uma implosão global, ele parecia saber o que era mais necessário naquele momento de crise: “É preciso conservar nos nossos espíritos e nos nossos corações a vontade de lucidez, a limpidez do intelecto, o sentimento da grandeza e do risco, da aventura extraordinária na qual o gênero humano, afastando-se talvez demasiadamente das condições primordiais e naturais da espécie, engajou-se, para ir até onde não sei”[65].

Notas

  1. Nicholas Carr, The shallows. What the internet is doing to our brains, Nova York: Norton, 2010, ebook, parágrafos 12.30-31 (grifo do autor). 
  2. Idem, ibidem, parágrafo 23. 41. 
  3. Idem, ibidem, parágrafo 22. 18. 
  4. Marshall McLuhan, Os meios de comunicação como extensões do homem (Understanding media), trad. Décio Pignatari, São Paulo: Cultrix, 1969, p. 21. 
  5. Paul Valéry, «Propos me concernant”, Œuvres, Paris: Gallimard, 1962, v. II, p. 1508. 
  6. Marshall McLuhan, op. cit., p. 99. 
  7. Paul Valéry, “Discours de l’histoire”, Œuvres, 1, p. 1135. 
  8. Marshall McLuhan, op. cit., pp. 390-391; ver Marshall McLuhan, Understanding media. The extensions of man; Cambridge, MA: MIT, 1995, pp. 348-349. 
  9. Nicholas Carr, op. cit., parágrafo 23.41. 
  10. Marshall McLuhan, op. cit., p. 61. 
  11. Idem, ibidem, p. 71. 
  12. Idem, ibidem, p. 77. 
  13. Idem, ibidem. McLuhan se aproxima aí do conceito de “noosfera” introduzido pelo pensador jesuíta Teilhard de Chardin, para designar a “membrana” interativa da cognição humana que envolve e modifica a biosfera; Pierre Teilhard de Chardin, O fenômeno humano, trad. José Luiz Archanjo, São Paulo: Cultrix, 2006; para McLuhan, trata-se do “cérebro tecnológico do mundo”; Marshall McLuhan, A galáxia de Gutenberg. A formação do homem tipográfico, trad. Leónidas Gontijo de Carvalho e Anisio Teixeira, São Paulo: Companhia Editora Nacional/Edusp, 1972, p. 59. 
  14. Ver L. Costa Lima, Mímesis: desafio ao pensamento, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, pp. 71-161. 
  15. Cf Gerd Bornheim, “Filosofia do romantismo”. O romantismo, São Paulo: Perspectiva, 1978, pp. 75-111. 
  16. Marshall McLuhan, op. cit., p. 63; ver também Marshall McLuhan, A galáxia de Gutenberg…, op. cit., p. 220: “[A imprensa] é a tecnologia do individualismo”. 
  17. Luís de Camões, “Canção X”, Rimas, Coimbra: Universidade de Coimbra, 1953, p. 241. 
  18. Marshall McLuhan, op. cit., p. 351. 
  19. Friedrich Adolf :Kittler, Gramophonc,film, typewriter, trad. Geoffrey Wintrop-Young e Michael Wutz, Stanford. CA: Stanford UP, 1999, p. 7. 
  20. Ver, sobre o assunto: Aleida Assmann, Construction de la mémoire nationale. Une breve histoire de l’idée allemande de ‘Bildung’, trad. F. Laroche, Paris: Maison des Sciences de l’Homme, 1994; e Walter Horace Bruford, The German tradition of selfcultivation: ‘Bildung’ from Humboldt to Thomas Mann, Cambridge: Cambridge UP, 1975. Ver também, para além do tema alemão, Charles Taylor, Sources of the self. The making of the modem identity, Cambridge: Cambridge UP, 1989. 
  21. Friedrich Nietzsche, A gaia ciência, trad. Paulo César de Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 186 [seção 270]. 
  22. Apud Bruford, op. cit., p. 176. 
  23. Marshall McLuhan, Os meios de comunicação … , op. cit., p. 59. 
  24. Idem, ibidem, p. 61: “O princípio da autoamputação como alívio imediato para a pressão exercida sobre o sistema nervoso central prontamente se aplica à origem dos meios de comunicação, desde a fala até o computador”. 
  25. Idem, ibidem, p. 64. 
  26. Idem, ibidem, p. 170. 
  27. Idem, ibidem, p. 78. 
  28. Cf. Reinhart Koselleck, Crítica crise. Uma contribuição à patogênese do mundo burguês, trad. Luciana Villas-Boas, Rio de Janeiro: Ed Uerj / Contraponto, 1999, p. 202, nota 155. 
  29. Marshall McLuhan, Os meios de comunicação …, op. cit., p. 145. 
  30. Idem, ibidem, p. 19. 
  31. Idem, ibidem, pp. 77-78. 
  32. Idem, ibidem, p. 81. Por algum equívoco, as palavras “inteiras” e “espiritual” foram omitidas na tradução de Pignatari. Ver Marshall McLuhan, Understanding media…, op. cit., p. 61: “[…] might not our current translation of our entire lives into the spiritual form of information seem to make of the entire globe, and of the human Family, a single consciousness?”. 
  33. Idem, ibidem. 
  34. Idem, ibidem, p. 17 
  35. Idem, ibidem, p. 402. 
  36. Niels Werber, “Media theory after Benjamio and Brecht: Neomarxist?”, Mapping Benjamin. The work of art in the digital age, Stanford CA: Stanford UP, 2003, p. 238. 
  37. Agradeço a Luciana Villas-Boas por me chamar a atenção para esse aspecto. 
  38. Idem, ibidem, p. 99. 
  39. Idem, ibidem, p. 201. 
  40. Idem, ibidem, p. 70. 
  41. Paul Valéry, Cahiers, Paris: Gallimard, 1973, v. I, p. 225 (apontamento de 1944); cito a tradução de Augusto de Campos, Paul Valéry: a serpente o pensar, São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 114. 
  42. Paul Valéry, Cahiers, op. cit. I, p. 225 (de 1944); ver Augusto de Campos, “Esboço de um esboço”, Paul Valéry, op. dt., pp. 15-23. 
  43. Cahiers I, pp. 756-757 (de 1944); trad. em Augusto de Campos, Paul Valéry, op. cit, p. 113 (grifos do autor). 
  44. Cahiers I , p. 103 (de 1925); trad. em Augusto de Campos, Paul Valéry, p. 78. 
  45. Cahiers I, p. 125 (de 1931); trad. em Augusto de Campos, Paul Valéry, p. 81. 
  46. Cahiers I, p. 205 (de 1942); trad. em Augusto de Campos, Paul Valéry, p. 88. 
  47. Paul Valéry, Eupalinos ou arquiteto, trad. de Olga Reggiani, São Paulo: Editora 34, 1996, p. 51. 
  48. Cahiers I, p. 30 (de 1902-1903). 
  49. Cf. Gabriele Fedrigo, Valéry et le cerveau dans les ‘Cahiers’, Paris: L’Harmattan, 2000, pp. 24 e ss. 
  50. Henri Bergson, Matière et mémoire. Essai sur la rélation du corps à l’esprit, Paris: PUF, 1939, p. 26. Ver Fedrigo, op. cit., pp. 24-25, nota 6. 
  51. Apud Philippe Meyer, L’ Œil et le cerveau. Biophilosophie de la perception visuelle, Paris: Odile Jacob, 1997, p. 27. 
  52. Cf. Gabriele Fedrigo, op. cit., p. 28, nota II. 
  53. Ver Marshall McLuhan, Os meios de comunicação …, op. cit., pp. 298-308. 
  54. Paul Valéry, Cahiers I, p. 562 (de 1920). 
  55. Apud Gabriele Fedrigo, op. cit., p. 19. 
  56. Idem, ibidem, p. 35, nota 29. 
  57. Paul Valéry, Cahiers I, p. 77 (de 1916); trad. em Augusto de Campos, op. cit., p. 74. 
  58. Paul Valéry, “La Crise de l’esprit”, Œuvres I, p. 905. 
  59. Idem, ibidem, p. 989. 
  60. Idem. ibidem. p. 994. 
  61. Cf. Gabriele Fedrigo, op. cit., p. 59, nota 81. 
  62. Idem, ibidem, p. 57, nota 80. 
  63. Ver Marshall McLuhan, Os meios de comunicação … , op. cit., p. 306: “A liberdade no mundo ocidental sempre tomou a forma do explosivo e do dividido, patrocinando a separação entre o indivíduo e o Estado”. 
  64. António Vieira, Ensaio sobre o termo da história. Trezentos e sessenta e cinco aforismos sobre o Incaracterístico, 2ª ed., Lisboa: Fim de Século, 2009, p. 139 (aforismo 346). 
  65. Paul Valéry. “‘La Crise de l’esprit”, op. cit., p. 1040. 

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