A vida como tempo de uma experiência sempre inacabada
por Eugène Enriquez
Resumo
A modernidade teve como característica principal a crença no progresso contínuo e na supremacia de uma razão, e teve como finalidade a busca do bem-estar ou, pelo menos, o afastamento do mal-estar ou do mal. Ela se estruturou a partir do desenvolvimento de métodos de previsão do futuro abrindo a possibilidade de antecipação dos acontecimentos. A história do século XX e do início no século XXI anunciou o fim dessa ilusão de previsibilidade. A época atual (pós-moderna ou hipermoderna) não acredita mais nos “cantos da aurora”, nos grandes discursos ideológicos (J. F. Lyotard) e aceita que o mundo seja imprevisível.
A partir dessa constatação, o que fazer a não ser aceitar que as vidas coletiva e individual tornem-se o tempo de experiências sempre renovadas e constantemente inacabadas, obrigando o indivíduo e a coletividade a se confrontarem com o inesperado, e, consequentemente, a pensar e agir sem esperanças utópicas?
A vida é o campo de experiências sempre únicas, contudo ligadas (frequentemente mascaradas) entre si. A vida é portanto uma construção contínua de si mesmo, de relações com o outro e de obras, quaisquer que sejam suas naturezas. O essencial não é o resultado (ainda assim importante), mas o método e os meios escolhidos ou impostos pela imaginação para se chegar a isso (Paulo Valéry).
Na verdade, todo o funcionamento das sociedades modernas avança em sentido contrário. A experiência figura como um resíduo obsoleto e inútil, com o tempo da reflexão e da análise pontual substituído por aquele da decisão e da urgência, no qual as convicções cedem lugar à sedução, à manipulação, às mentiras, à hipocrisia, tornando-se o disfarce moeda corrente.
Se o mundo quer ainda ser o campo do espírito que trabalha (Valéry) e que dança (Nietzsche), cada um deve resistir às pesadas tendências da sociedade e caminhar na contra-corrente (Castoriadis), afrontar a pressão da uniformidade, desconstruir paradoxos infindáveis. Ainda que impelido a ser de tempos em tempos como um “barco bêbado” (Rimbaud), deve-se, apesar de tudo, continuar corajosamente em sua rota (Wittgenstein). Talvez se fracasse; mesmo assim, trata-se de continuar prudente ou impassível, ou, dito de outra forma, ser sempre constante em um mundo sem sentido e de uma brutalidade sem precedentes.
Durante milênios os homens viveram na e pela experiência. Certamente não é possível reconstituir esse passado pré-histórico, pois justamente a meta-história é o tempo que escapa ao nosso modo de funcionamento mental modelado pela história. É possível dizer apenas: “era uma vez” (como nas lendas e nos contos de fadas) e servir-se da melhor maneira possível dos trabalhos de geólogos, paleontólogos, historiadores da Pré-História, para imaginar (o mais objetivamente possível, o que, mesmo assim, é difícil de admitir, pois a objetividade nunca foi teoricamente compatível com a imaginação) a vida de nossos ancestrais que saíram progressivamente da animalidade.
Contudo, tentemos fazer isso (embora estejamos muito distantes, mental e tecnicamente, desses precursores dos homens e dos primeiros homens). Eles são pouco numerosos, num mundo imenso, desconhecido, surpreendente, inquietante. Não possuem método algum para pensá-lo e domesticá-lo (contrariamente a nós, que temos palavras precisas para designar as coisas porque conhecemos sua natureza, como se formam e seu funcionamento).
O perigo está em toda parte, a segurança, em nenhuma. Primeiro, é preciso alimentar-se, e para isso há poucas possibilidades. Caçar animais terrestres e aéreos, pescar peixes, colher plantas, legumes, frutos que se apresentam ou que são encontrados escavando a terra, ou arrancados das árvores, eventualmente caçar e comer outros homens. A cada dia é preciso passar pela experiência do medo e aprender alguma coisa de novo (por exemplo, que tal planta é comestível ou não, que tal animal é fácil de caçar ou, ao contrário, pode nos devorar).
Milênios transcorrem assim e aos poucos os homens se tornam capazes de acumular experiência, de classificar as coisas e os seres vivos, de transmitir seu saber, de elaborar instrumentos cada vez mais evoluídos, de descobrir os meios de produzir o fogo etc., antes de se sedentarizar e de inventar a agricultura, no Neolítico.
Eles devem também se prevenir dos perigos do ambiente, criando para isso habitats. Tentam, enfim, compreender o cosmo no qual se encontram, e assim nascem as mitologias e as religiões. Progressivamente, os homens dão sentido ao mundo em que vivem e inventam as artes: a música, o canto, a pintura, a escultura etc.
É inútil prosseguir. Durante um tempo extremamente longo, o homem aprendeu pela experiência. Viver de maneira autônoma o obrigou a acumular os bens mais diversos. Sem eles, a espécie humana não teria tido a possibilidade de subsistir. Isto por razões simples, mas essenciais. Diferentemente dos animais, o homem não tem instinto, tem apenas pulsões e desejos; portanto, não pode, para sobreviver, repousar sobre montagens prévias e que não variam. Deve sempre desconfiar, compreender, aprender. Além do mais, o homem se caracteriza pela prematuração. Nasce incapaz de se arranjar sozinho. É verdade que os animais também têm um tempo de aprendizagem, mas este é muito curto, enquanto o homem tem necessidade de muitos anos de formação.
Enfim, o ser humano não pode viver sozinho. Os animais também vivem em grupo, mas há animais solitários. Já o homem sempre viveu num grupo, num clã, numa tribo. Os paleontólogos dizem mesmo que “a organização social é a verdadeira condição orgânica do aparecimento das altas faculdades humanas”. É o que escreve-um dos grandes paleontólogos do século XX, Jean Piveteau.
Prematuro, sem instinto, dependente dos outros, o homem é um ser sem referências. Como diz Castoriadis num enunciado impressionante que pode causar espanto: o homem é um ser louco por definição. Por que louco? Justamente porque tem todas as faculdades possíveis desde o início (o pensamento, a linguagem, as aptidões operatórias). Mas estas são apenas balbuciantes, misturadas entre si, caóticas, só podendo se desenvolver (e isso muito lentamente) pela melhor educação possível, pela ternura e afeição dadas pelos pais. É por ser amado e alimentado por seus primeiros educadores que ele pode vir a ser um sujeito. Os raros casos de crianças criadas por animais o comprovam. Essas crianças selvagens nunca se tornaram verdadeiros seres humanos. Ser louco desde o ponto de partida é ter tantas possibilidades, tantas escolhas a fazer, que o infans (a criança antes da fala) não saberia por onde começar se a sociedade representada por seus pais não lhe desse a sustentação, as escoras que lhe permitem mover-se, agir, falar, pensar, e se essa sociedade não oferecesse ao longo de toda a sua vida os quadros (leis, normas, regras), ou seja, as experiências classificadas e reunidas que farão dele um ser humano e social.
Em outros termos, é porque somos loucos no começo que podemos nos tornar seres normais, com frequência talentosos e às vezes até (mas o caso é mais raro) geniais.
Mas devo ir um pouco adiante. O homem obrigado a coabitar com outrem, aprendendo com os pais e as pessoas à sua volta os conhecimentos anteriores ao seu nascimento e as leis sociais, vive naquilo que chamei, continuando e generalizando o pensamento de Castoriadis, de sociedade louca.
Por que se pode dizer que as sociedades são loucas? Muito simplesmente porque não há definição alguma de uma “sociedade boa” que permitiria a todos os homens “viver juntos” com prazer. Aliás, é por essa razão que em todas as mitologias e em todas as religiões, tanto monoteístas como politeístas, é indicado certo número de leis, normas, regras (como os Dez Mandamentos) que os homens devem seguir simplesmente para se suportar.
As sociedades, como os homens, têm muitas faculdades, capacidades, aptidões. Basta pensar no número de línguas (vários milhares) que elas são capazes de inventar, no número de leis (às vezes totalmente contraditórias de uma sociedade a outra) que inventaram e promulgam continuamente (como escrevia Pascal: ‘Verdade aquém dos Pireneus, erro além”), no número de ritos, dos mais sanguinários (os sacrifícios humanos) aos mais rotineiros etc.
Assim cada sociedade é levada a definir estilos de governo, de obrigações morais, de restrições sociais, de organizações sociais que sejam as mais adaptadas à situação sócio-histórica na qual se encontra. Pelo menos é o que ela pensa e o que ela espera. Mas ela sabe também (embora resista a esse pensamento) que um dia deverá mudar, pois terá modificado por suas obras seu ambiente, pois terá aumentado sua densidade humana, e com isso se verá diante de outra situação sócio-histórica. Nada de estável, nada de definitivamente adquirido nas sociedades que, como os sistemas físicos, dependem da lei da entropia e lutam, mais ou menos bem, contra as consequências desta. E isto sem a menor indicação (nem falo de certeza) de que estão no bom caminho e de que o futuro que preparam não será pior que o presente que consideram inadaptado.
Certamente, quando povos inscreveram seu nome na História, em particular desde o Renascimento na Europa, por um longo período eles acreditaram ser capazes de construir sua história, de controlar seus atos, de se dirigir a um futuro que prometia as maiores bem aventuranças, mesmo que em alguns momentos tenham sido forçados a perceber que o caminho escolhido não levava a parte alguma ou era mesmo uma regressão. Quando digo tenham sido forçados a perceber, dou-lhes uma capacidade de tomada de consciência que eles nem sempre têm. A aptidão dos povos de se iludir, de se desviar da realidade, de não ver o que está sob seus olhos, portanto de se cegar, é bem maior que a de olhar as coisas de frente, em sua verdade. Nada mais fácil de enganar que um povo. Os tribunos populistas, os aprendizes de ditadores e os revolucionários iluminados ou que se dizem científicos sabem isso bem. Não fosse assim, a Revolução Francesa não teria engendrado o Terror e depois o bonapartismo; a revolução soviética, o totalitarismo; a revolução chinesa, o maoismo intransigente; as revoluções conservadoras alemã e italiana, o nazismo e o fascismo, que não precisamos qualificar.
Entretanto, apesar de tudo, apesar das decepções acumuladas, apesar dos “caminhos sem saída” (dos quais tomavam ou não consciência), os povos acreditavam (e não há nada mais forte que a crença no impossível), desde o Renascimento e principalmente desde o “século das Luzes”, que se dirigiam ao progresso tanto na vida material como na do Espírito, e que poderiam um dia, cada vez mais distante, construir um “futuro radioso”, estabelecer a paz universal e assegurar a felicidade para todos de forma constante. Tal “crença”, quando os progressos efetuados se acompanhavam sempre de recuos inquietantes (como o desenvolvimento do capitalismo que provocou, no século XIX uma terrível miséria entre os operários, condenados a trabalhar 14 horas por dia em troca de um salário insignificante), mostra bem que, mesmo na época da vontade racional de domínio do mundo, tanto os povos como as sociedades, as organizações sociais que eles fundam, continuam atravessados pela loucura, a loucura sendo sempre uma negação da realidade e a preeminência da ilusão enganadora.
Assim a modernidade, que quis submeter o mundo e os povos ao reinado da razão, a qual devia favorecer no homem, como pensava Descartes, o “domínio e a posse da natureza”, evitando definitivamente os sonhos e os fantasmas (desembaraçando-se do “gênio maligno”), não conseguiu estrangular todas as manifestações da loucura. Mas, como chegou a desenvolver, de maneira assintomática, a ciência e as técnicas mais elaboradas, dando preeminência à racionalidade instrumental (que se traduz pelos termos como e, nos dias de hoje, quanto) sobre a racionalidade dos fins (caracterizada pela questão por quê?), ela julgou que havia percorrido a maior parte do caminho e que os restos de loucura que podiam subsistir acabariam um dia por se esfumar ou mesmo desaparecer. É verdade que os progressos efetuados em todos os domínios, da física à medicina, não podem suscitar senão a admiração. Admiração a cada dia renovada diante do afluxo de novas descobertas e de novas aplicações das ciências fundamentais. Por isso se pode compreender que as sociedades – apesar de numerosos sintomas inquietantes – e os homens que as fazem existir tenham acreditado (e às vezes continuem acreditando) no progresso infinito e na possibilidade de antecipar e de controlar o futuro.
Contudo, desde os anos 1970-1980, o horizonte mudou e se obscureceu. Alguns pensadores denunciaram os danos do progresso (por exemplo, o aquecimento do planeta ou as diferentes formas de poluição). Porém, bem mais ainda que os danos, o que se viu foi a extensão contínua do progresso e a entrada na era da eletrônica, da robótica, da globalização – inscrevendo na realidade as premonições de McLuhan sobre a aldeia global, “a aldeia planetária”-, que acarretam consequências não previstas e estão transformando o mundo de tal maneira que este se torna opaco e cada vez menos antecipável e controlável. Um exemplo: a invenção de uma ferramenta em princípio inocente como o Facebook, destinado a ligar os amigos, torna-se um elemento essencial para agrupar in situ populações furiosas contra o regime ditatorial que sofrem, o que lhes permite derrubar o ditador e iniciar um processo revolucionário (como ocorreu com a “revolução do jasmim”, na Tunísia). Ninguém jamais havia pensado, no início, em tal utilização. No entanto aconteceu. Ou seja, os progressos das ciências e das técnicas, que deveriam assegurar o controle racional do mundo, estão em via de torná-lo incontrolável.
(Outro exemplo, que tiro da minha própria experiência. Quando os primeiros computadores foram criados, eram verdadeiros monstros que ocupavam imensas salas e só podiam estar nas mãos de grandes dirigentes de empresas. Ninguém pensava então, no final dos anos 1960, que em breve os computadores estariam ao alcance de todo mundo e que em algumas famílias cada membro teria seu computador portátil. Fazendo uma conferência a esse respeito, em março de 1968, diante de banqueiros belgas, perguntei-me que consequências podia ter o uso de computadores. Fui incapaz de prever um mundo em que os computadores pululariam. A única antecipação exata que formulei é que seriam miniaturizados – mas não ao ponto a que chegaram atualmente – e que não seriam um risco para a democracia!
Vamos adiante. Alguns filósofos se colocam seriamente a questão de saber se tal evolução não ocasionaria o nascimento de um novo indivíduo. Estaríamos presenciando uma transformação antropológica. E isto na medida em que as ciências sociais e humanas não progrediram da mesma forma que as ciências físico-químicas, na medida em que se referem a teorias que não se ajustam bem, sua própria evolução tendo arruinado as pretensões científicas de algumas delas. Quem, no momento atual, ainda crê que exista uma teoria econômica? Entre os defensores do liberalismo puro e duro à Milton Friedman e de um liberalismo associado a medidas sociais à J. M. Keynes, não há diálogo possível e ninguém é capaz de dizer que um é mais justo que o outro. Os antigos economistas tinham razão. Eles chamavam sua disciplina de Economia Política, indicando assim que economia e vontade política estavam intimamente ligadas. A ciência econômica não existe, como tampouco as ciências jurídicas, as ciências da gestão, as ciências pedagógicas, as ciências políticas ou as ciências da decisão. Em realidade, essas disciplinas servem-se tanto da arte como da ciência; recorrem mais à imaginação e aos sentimentos que à razão. Mas, como a Ciência com C maiúsculo tornou-se a referência absoluta, os pesquisadores em sociologia, psicologia, direito etc. quiseram fazer acreditar que eram também cientistas da mesma ordem. Não compreenderam que, ao quererem o papel principal, condenavam seu próprio domínio. A psicologia transformou-se em fisiologia ou em experimentação (que é o contrário da experiência), a economia em econometria, a sociologia em questionários de opinião e em estatísticas.
Apenas a psicanálise escapa a esse destino. E ainda assim Freud queria fazer da psicanálise uma ciência como as outras e ser reconhecido por seus pares. Felizmente ele criou, sem querer, outra maneira da fazer ciência, inventando um método que leva em conta pulsões, desejos, sentimentos, e não medidas. Edificou uma ciência qualitativa que se interessa pelos casos particulares, não uma ciência quantitativa. Ora, a ciência acadêmica, oficial, aceita por todos, é uma ciência da medida, das quantidades, do geral. Há que convir de uma vez por todas: as ciências humanas não são ciências da medida. Isso não quer dizer que não se deva medir o que pode ser mensurável (por exemplo, o número de habitantes, o número de pessoas abaixo do limiar de pobreza, se for possível definir o limiar de pobreza…), apenas que os fenômenos sociais e humanos são fenômenos qualitativos, singulares, não repetitivos, o que não significa, porém, que seja impossível teorizá-los. Mas a teoria (por exemplo, em sociologia) deve buscar definir “formas”, como diz Simmel, ou “tipos ideais”, como escreve Weber, os dois fundadores da sociologia compreensiva. Assim é possível fazer uma teoria geral da burocracia. Mas, toda vez que um psicossociólogo ou um sociólogo estuda uma burocracia particular (como a administração dos impostos, um banco etc.), ele deve ser sensível às características espeáficas dela. Do mesmo modo, a teoria geral da psicanálise deve guiar o psicanalista, mas cada paciente deve ser para ele um ser singular não redutível à teoria.
Ou seja, para voltarmos à economia, deve-se admitir que esta nunca poderá dizer a verdade definitiva, e se um economista diz o contrário é que ele faz da economia uma simples ideologia. O liberalismo não é uma ciência, o materialismo dialético também não. Ambos quiseram se estabelecer como ciência. Por isso não são sequer ciências humanas qualitativas como a psicanálise ou a sociologia compreensiva, mas puras ideologias.
O progresso foi a ideologia central da modernidade. A interrogação sobre o progresso, que agora se generaliza, significa o fim das ideologias. Os únicos que creem no liberalismo como ciência são os grandes capitalistas (e mesmo assim um homem como G. Soros, que possui uma das maiores fortunas do mundo, critica o capitalismo financeiro atual); os únicos que consideram o materialismo dialético como ciência são os dirigentes totalitários da China e da Coreia do Norte. Os outros não creem mais nas “grandes narrativas” (J.-F. Lyotard), e sem grande narrativa explicativa e fundadora, sem ideologia, os homens não têm mais pontos de referência e de apoio garantidos. Então, o que fazer? O que será?
DE NOVO, A VIDA COMO EXPERIÊNCIA
A partir dessa constatação, poderíamos ser invadidos pela angústia, nos sentir em estado de abandono, nos dizer que, se o mundo não tem mais sentido, só nos resta aproveitar ao máximo a existência, aceitar trabalhar sem objetivo, tentar possuir cada vez mais bens e objetos capazes de nos proporcionar prazer, ter numerosas satisfações sexuais, cada uma mais efêmera que a outra, fechar-nos em nós mesmos ou nos grupos de que fazemos parte e esquecer que somos seres vivos, isto é, homens e mulheres que devem compreender, pensar o mundo no qual estão situados e assumir riscos, pois viver, para o ser humano, se caracteriza essencialmente pelas escolhas arriscadas que fazemos em nossa vida.
Na verdade, é o caminho inverso que devemos tomar, se não quisermos nos desviar da vida e nos dirigir a um futuro sem interesse e talvez catastrófico. O fim das ideologias, a falta de referências é, em realidade, uma chance que nos é dada para seguirmos rumo a maior humanização do mundo e de nossos atos, isto é, de nós mesmos.
Estamos, na prática, numa situação análoga à do homem pré-histórico, condenado a todo momento a fazer experiências. Precisamos tentar domesticar nosso universo cada vez mais incompreensível. Se digo que temos uma chance, é que podemos questionar as tradições que se acumularam desde o Renascimento e que não são mais que a tradução das experiências de nossos antepassados. Essas tradições nos serviram, possibilitaram o desenvolvimento econômico, social, humano. Mas, ao mesmo tempo, elas progressivamente formaram um quadro rígido para nossos pensamentos e nossos atos, acabando por nos sujeitar. Convém não esquecer que o termo sujeito humano e social, com que nos glorificamos, tem dois sentidos opostos. Sujeito é aquele que pensa e age, que busca ser o mestre (ou um certo mestre) do mundo no qual se move. Mas sujeito é também aquele que pode ser sujeitado ao pensamento e à ação de um ser mais forte ou da coletividade. As tradições foram necessárias para edificar nossas sociedades, mas com o passar do tempo nos sujeitaram, obrigando-nos a pensar e a agir de maneira conforme ao que ditavam. Ainda que novos pensamentos, atos e descobertas tenham ocorrido durante toda a modernidade, eles em parte também se imobilizaram em rotinas, normas e ritos. E o homem da modernidade, que supúnhamos livre, autodeterminado (pois era esse o projeto da modernidade), tornou-se cada vez mais um indivíduo conformista, um ser que prefere uma existência rotineira a uma vida repleta de “som e fúria”, sem dúvida perigosa, mas cheia de experiências inesperadas, de encontros surpreendentes, de atos em princípio inconcebíveis. Em vez de um ser normativo, como nos recomenda o filósofo e médico G. Canguilhem, que foi o mestre de Althusser e de Foucault, isto é, um ser que sabe interrogar as normas sociais embora as aceite e, principalmente, que define, propõe ou mesmo impõe suas próprias normas, o homem contemporâneo se transformou num ser normatizado, cada vez mais semelhante a todos os outros e que cumpre as exigências da civilização capitalista: um homem unicamente produtor e consumidor, um homo economicus. Gostaria de citar, para apoiar o que digo, duas breves passagens de Canguilhem: “O organismo sadio (ou seja, o ser humano) busca menos manter-se em seu estado e em seu meio presente do que realizar sua natureza. Ora, isso exige que o organismo que enfrenta riscos aceite a eventualidade de reações catastróficas. O homem sadio não se esquiva diante dos problemas que lhe colocam as mudanças de seus hábitos… ele mede sua saúde por sua capacidade de superar as crises e instaurar uma nova ordem”. Assim, eu comento, o homem normativo é um homem sadio, enquanto o homem normatizado é um homem doente. O que Canguilhem confirma: “viver é enfrentar riscos e triunfar… A doença é um andamento da vida regrado por normas vitalmente inferiores ou depreciadas, que impedem ao ser vivo a participação ativa e desembaraçada, geradora de confiança e de segurança na vida”.
Vê-se assim que, ao nos tornarmos unicamente “homo economicus”, homens conformistas que respeitam as tradições, nos tornamos homens doentes. Para sairmos desse estado patológico que é também o da sociedade em que vivemos, devemos renunciar a existir de maneira morna, repetitiva, tediosa e, ao contrário, aceitar que tanto a vida individual como a coletiva sejam o campo de experiências sempre renovadas e, claro, constantemente inacabadas para não se transformarem em ritos e em tradições. Devemos aceitar com alegria e confiança o fato de sermos forçados, enquanto sujeitos individuais e membros de uma coletividade, a nos confrontar com o inesperado, o diverso, o inquietante, o espantoso, e a pensar e agir de acordo com isso. E mais, sem ser movidos por uma esperança utópica de um mundo no qual somente haveria a felicidade.
Três grandes experiências da vida nos solicitam: a experiência interior, a dos acontecimentos da vida e a da ação empreendida ou a empreender. A experiência interior. Retomo aqui um termo do filósofo francês Georges Bataille, cuja vida e as obras tiveram certamente uma influência essencial sobre minha reflexão, ainda que eu vá utilizar essa modalidade de experiência num sentido muitas vezes diferente do dele.
Essa experiência é a do nosso “foro íntimo”. Para explicar o que quero dizer por esse termo, é necessário primeiro examinar a que se opõe essa experiência.
Todos sabemos que existe um eu social. Esse eu se caracteriza pela identidade que nós forjamos ao longo da existência, que oferecemos aos outros em nosso comportamento cotidiano e que os outros acabam por esperar de nós (é o que os americanos chamam “a expectativa de papel”). Não é somente uma máscara. Faz parte de nós como nossa apresentação física, e não podemos recusá-lo como se fosse apenas uma aparência enganadora. Somente os indivíduos que têm um falso self, como diz o psicanalista inglês Winnicott, se resumem nisso. Ter um falso self é fazer como se não existissem no interior de nós mesmos pulsões, sentimentos e desejos não exprimíveis numa sociedade dada, sob pena de sermos rejeitados, excluídos dessa sociedade que não suporta tais expressões.
Essas pulsões, sentimentos e desejos são evidentemente diferentes em cada sociedade e em cada momento histórico. Coisas das quais é proibido falar, sentimentos que não se pode exprimir numa sociedade em certo momento da história, podem ser facilmente aceitos ou mesmo exigidos, conforme o contexto no qual estamos. Por exemplo, se somos membros de uma empresa muito burocrática, devemos sempre nos mostrar o mais possível competentes em nossa função, só devemos falar do nosso trabalho e, principalmente, nunca mostrar nossa fraqueza. Assim, num seminário de formação, um dos membros exprime (pois a regra é falar o mais autenticamente possível) dúvidas sobre sua capacidade, sobre sua vontade de assumir riscos calculados em seu trabalho, sobre suas possibilidades de integração numa empresa que não respeitasse sua ética pessoal. Nesse momento ele é interrompido por outro membro que lhe diz ter conhecimento de sua intenção de ser contratado para um cargo de responsabilidade numa empresa. Esse interlocutor faz saber, também, que seu pai é um dos diretores dessa mesma empresa e que, se este ouvisse tais palavras, nunca o contrataria. Assim, faz-lhe uma verdadeira intimação: não mais falar de suas dúvidas, caso contrário seria obrigado a contar isso ao pai e este não lhe concederia o cargo. O que exprimiu dúvidas sobre si mesmo compreende então que deve se calar e, ao contrário, afirmar com firmeza que se sente inteiramente capaz (pois é um homem viril e totalmente positivo) de assumir as responsabilidades que poderiam lhe ser dadas. Vê-se assim que o homem que duvida não pode mais expor as interrogações sobre si mesmo, devendo, se quiser ser bem-sucedido, passar a imagem de um homem sempre competitivo e obcecado pela excelência. Numa outra empresa, mais tecnocrática ou mais estratégica, ele poderia exprimir seus sentimentos, pois nesse outro contexto é valorizada a capacidade de cada um colocar-se questões, pois a filosofia da empresa é que, se alguém se interroga, então é capaz de se superar, de dar o melhor de si, de desenvolver-se, mesmo se para isso precisar da ajuda de um coach. Atualmente, em algumas empresas, o coaching é perfeitamente admitido. Mais: alguém que acreditasse conhecer tudo e que fosse seguro de si, recusando portanto qualquer treinamento, seria pouco apreciado, pois seus superiores duvidariam de sua capacidade de aperfeiçoar-se. O coaching não existia na Europa quarenta anos atrás, estou certo disso, pois fiz intervenções num número considerável de empresas. Hoje, ao contrário, o coaching é cada vez mais apreciado.
Assim, em alguns casos é possível exprimir suas interrogações, noutros, é impossível.
Todavia, não convém evocar dúvidas na maior parte das organizações contemporâneas, nas quais se requer dos indivíduos unicamente a excelência, mesmo se lhes pede todo dia para serem um pouco mais excelentes que na véspera. Ou seja, a grande maioria das organizações prefere atualmente homens ou mulheres que sejam continuamente competitivos (contanto que não tentem se mostrar superiores a seus dirigentes) e, ao mesmo tempo, capazes de evoluir, a fim de acompanhar ou favorecer a dinâmica da organização. Assim, o que se requer são indivíduos com falso self, aqueles que são o que suas aparências mostram, seguros de si, capazes de se controlar e de controlar seu grupo, e também de recalcar ou reprimir os sentimentos ou desejos que poderiam perturbar seu ardor no trabalho e seu pleno engajamento psíquico na vida da empresa, à qual devem se identificar com entusiasmo.
Fazer uma experiência interior significa, portanto, que todo sujeito humano, mesmo sem rejeitar seu eu social, pois sabe que ele é também esse eu, é capaz de estabelecer uma articulação entre este e seu “foro íntimo”, sua identidade profunda, que é diferente na medida em que cada um possui um inconsciente que fala dentro dele e tem uma influência direta sobre seus pensamentos e seus atos.
Ora, quando se admite a presença do inconsciente, tenta-se, mais ou menos bem, fazer com que este não só fale em voz baixa, mas possa também se exprimir no eu social que ele modifica e remodela continuamente. Embora ninguém seja capaz de ser consciente de todos os processos inconscientes (o que levaria a secar o inconsciente e a fazê-lo desaparecer), existe a possibilidade, para cada homem, de analisar-se, de compreender suas motivações mais fortes, de perceber os conflitos que o animam (pois o ser humano é um ser eminentemente conflitual), os maus sentimentos (pois não há ser humano sem maus sentimentos, sem o que Espinosa chamava as “paixões tristes”: o ciúme, o ódio, o ressentimento, a inveja etc.), as pulsões de morte, de destrutividade em relação a si mesmo, que o agitam tanto quanto as pulsões de vida. Existe, portanto, a possibilidade de ser mais consciente do que se é em última instância, o que permite a cada um abarcar todas as facetas da sua personalidade. Assim ele agirá de modo que as pulsões, os desejos arcaicos mais violentos e mais nefastos não possam obstruir sua personalidade e impedir as relações de amor, de amizade, de simpatia, que são necessárias ao homem para se desenvolver e, às sociedades humanas, para não serem o lugar da “guerra de todos contra todos”, como disse o filósofo inglês Hobbes. Freud dizia com razão que, sem o amor do outro, o indivíduo humano seria doente. Tocqueville, por sua vez, mostrou bem que a simpatia é o sentimento essencial para fundar e fazer viver uma democracia. Não ser doente, ser capaz de ser normativo (Canguilhern), sentir simpatia por outrem como prega Tocqueville, é conduzir-se corno um verdadeiro ser humano. O homem com falso self não é um verdadeiro ser humano, pois engana a si mesmo ao acreditar-se mais forte do que é, e engana os outros ao fazê-los acreditar que ele é adequado à sua aparência sólida, quando dentro dele se agitam pensamentos recalcados, às vezes totalmente ignóbeis. Os psicanalistas dão com frequência este exemplo que todos conhecem e que nunca suscita críticas: um bom cirurgião é um homem que não tem medo de sangue, de vísceras, e que consegue cortar com a maior tranquilidade. Portanto, deve ser movido por algumas pulsões sádicas inconscientes. Mas, corno é capaz de sublimação, isto é, de fazer que suas pulsões inconscientes possam se transformar em atos socialmente valorizados, ele tem a aptidão de curar o doente, enquanto um assassino (por ser incapaz de sublimar) não vai além do prazer da destruição. Um médico deve ter, como um assassino, o gosto do sangue, mas se servirá dessa pulsão de maneira útil à sociedade, enquanto o assassino permanecerá no seu prazer egoísta e imundo. Assim, é melhor ser um bom cirurgião do que Jack, o Estripador! Mas um cirurgião que se deixasse levar por suas pulsões não sublimadas seria capaz de cortar tranquilamente um ser vivo. Tais médicos existiram (exemplo sinistro: Mengele) e torturaram e cortaram pessoas em Auschwitz ou noutros campos de extermínio. Deixaram triunfar suas pulsões mais vis, pois eram desprovidos do menor senso moral, e se comportaram como assassinos. Do mesmo modo, psicanalistas mal analisados, e que se tomavam por mestres, puderam ser auxiliares da tortura no Brasil e na Argentina.
Portanto, homens que se interrogam nunca podem se tornar criminosos tranquilos, que sucumbem à ‘banalidade do mal” (Hannah Arendt) corno Eichmann, pequeno burocrata consciencioso que mandava os judeus às câmaras de gás, assim como teria construído carros.
Ao contrário, os que são capazes de se confrontar com a “inquietante estranheza” de sua psique, com o caos que reina no inconsciente e que têm o desejo de se compreender e se transformar, embora saibam que se trata de uma tarefa infinita e sempre a recomeçar, poderão ser humanos verdadeiros e fazer suas estas palavras de Montesquieu: “Se soubesse alguma coisa que me fosse favorável e que fosse prejudicial à minha família, eu a esqueceria imediatamente; se soubesse alguma coisa que fosse favorável à minha familia e prejudicial à minha pátria, eu a tiraria do meu espírito; se soubesse alguma coisa que fosse útil à minha pátria e prejudicial à Europa, ou que fosse favorável à Europa e prejudicial ao resto da humanidade, eu consideraria essa coisa como um crime, pois sou necessariamente homem, ao passo que sou francês por mera casualidade”. Um homem que se interroga é um ser digno que vive de acordo com essas palavras de Montesquieu.
EXPERIÊNCIA DOS ACONTECIMENTOS DA VIDA
Geralmente os homens atravessam a vida sem se modificar muito, exceto nos planos físico e fisiológico, pois o tempo inflige a todos, pelo envelhecimento, perdas irremediáveis. Todos os poetas insistiram nesse ponto, convidando os homens e as mulheres a tirarem o maior proveito dos anos de juventude, quando são belos e desejáveis. “Cuillez dès aujourd’hui les roses de la vie” [Colham desde hoje as rosas da vida], escrevia Ronsard.
Quanto aos psicólogos e aos psicanalistas, eles se debruçaram sobre os primeiros anos da vida, que são naturalmente os de nossas experiências fundamentais, pois nos permitem aprender a nos mover, agir, pensar e falar, isto é, passar da situação de infans (a criança antes da linguagem e mal diferenciada de seu ambiente) ao estado de criança apta a ser um dia um adolescente e depois um adulto.
Mas esse período fundamental parece tão normal que, com exceção dos pais e dos psicólogos, não chama a atenção de ninguém, a não ser quando as crianças são difíceis de educar.
Por outro lado, os filósofos, os romancistas e os homens em sua maturidade se interessaram pela passagem da adolescência à idade adulta. Pareceu-lhes sempre normal que, durante esses poucos anos (mais ou menos longos conforme as épocas e os países), os indivíduos possam se formar, fazer a aprendizagem da vida, ter as experiências as mais diversas e às vezes as mais aberrantes ou as mais perigosas possíveis, “fazer diabruras”, ou seja, pensar e mesmo fazer coisas contrárias aos hábitos sociais. Os adultos dizem então com indulgência: “Vai passar, são coisas da mocidade…”. Um dia será preciso enterrá-las, sendo então indispensável aproveitar esses momentos de irresponsabilidade.
Os romancistas descreveram esses anos de aprendizagem; os alemães, em particular, fizeram disso uma especialidade chamada Bildung Roman (romance de formação), cujo protótipo é o Wilhelm Meister, de Goethe. As histórias que eles contam nem sempre têm um final feliz. No seu primeiro romance, Goethe nos mostra um Werther consumido por sua primeira paixão, que o levará ao suicídio. (Ele não teve tempo de aprender que a paixão é má conselheira e de recuperar-se do seu erro.)
Mas, quando os indivíduos chegam à idade adulta, tudo se passa como se o estoque de experiências acumuladas na juventude (se esta não se extraviou definitivamente) fosse suficiente e o homem pudesse viver graças a elas, mais as experiências dos que o precederam e que formaram as tradições e os quadros da sociedade na qual ele passará sua existência. Certamente exagero um pouco a situação. Mas os que continuam a inventar sua vida diariamente, a multiplicar as experiências fundamentais (não levo em conta os diversos “amores passageiros”), são minoria e os romancistas se interessam menos por eles.
Ora, se estamos vivendo num mundo sempre em mudança, no qual as tecnologias se multiplicam, os espaços se encolhem, as normas se transformam e os pontos de referência se esfumam, há uma única consequência pertinente a tirar: é impossível viver em tal mundo como se vivia no antigo – o qual certamente mudava, mas a uma velocidade razoável e que mantinha, mais ou menos bem, os quadros de vida habituais.
Esse novo mundo exige, se não quisermos nos sentir continuamente angustiados, estressados, ultrapassados, que estejamos disponíveis ao tempo e ao campo de experiências que nos afetam, a todos os acontecimentos que podem se produzir, e dispostos a compreendê-los, a adotar as condutas mais adaptadas à situação ou, ao contrário, adotar outras, às vezes contraditórias com as que são requeridas; exige submetermo-nos às novas normas ou revoltarmo-nos contra elas e transgredi-las. Somos convidados, portanto, a ficar atentos ao que se passa e a aceitar que nossa formação e nossa evolução só podem terminar com nossa morte. Cada dia traz seu lote de experiências satisfatórias ou perturbadoras. Nada está adquirido para sempre. O que era bom fazer um ano atrás seria extremamente prejudicial se o fizéssemos agora.
O que isso tudo quer dizer? Simplesmente que o ser humano deve se tornar um aventureiro de sua vida e não um simples organizador (como se dizia antes) ou um simples administrador (como nos recomendam agora, pois só se pode administrar situações relativamente similares e não situações dessemelhantes). Ser um aventureiro, um “conquistador”, um descobridor de terras desconhecidas ou um inventor de coisas novas, esse é o nosso destino. Como já observei, viver é ser capaz de suportar a turbulência, a incandescência, a variedade, é propor respostas novas tanto às velhas questões como às novas. É o contrário da existência, da insipidez e do tédio do cotidiano.
Examinemos algumas experiências cruciais.
Experiências da natureza
Quase não se tem mais tempo de descobrir a natureza, de passear, de curtir as paisagens e se entregar ao devaneio. Os que praticam um pouco de esporte farão seu jogging simplesmente para manter a boa saúde, sem se preocupar com a beleza ou a feiura do ambiente.
No entanto sabemos que alguns dos maiores escritores e pensadores tiveram uma relação intensa com a natureza. Rousseau fazia longas caminhadas e nos deixou seus “devaneios de um caminhante solitário”. Nietzsche andava muito (várias horas por dia) e, como Rousseau, só conseguia pensar ao ar livre. Em sua mesa, apenas escrevia os pensamentos surgidos durante as caminhadas.
O escritor americano H. D. Thoreau (discípulo do primeiro grande filósofo americano, R. Emerson), autor da Desobediência civil, que declarava que todo cidadão deve poder recusar sua obediência às leis injustas e que foi um adversário intransigente da escravidão, retirou-se por vários anos nos bosques, onde viveu numa cabana construída com suas próprias mãos. Ele relatou essa experiência fundamental no seu grande livro Walden.
(Paro por aqui meus exemplos. Mas eu poderia ter fornecido muitos outros, se tivesse citado poetas e pintores românticos alemães, ingleses ou franceses. Mais perto de nós, filósofos contemporâneos fizeram o elogio da lentidão, da caminhada, da vida na natureza.)
De fato, a descoberta da natureza, de seus atrativos e de seus aspectos perigosos (quantos seres humanos já caíram de uma montanha ou se afogaram), favorece o desenvolvimento da imaginação, suscita os processos de pensamento, nos faz cultivar a atenção e a memória, em suma, nos torna um ser à escuta do mundo e capaz de aumentar suas aptidões físicas, fisiológicas e mentais. A natureza não se deixa domesticar como uma cidade. É preciso tomar o caminho certo, não cair, orientar-se constantemente, estar vigilante. Todos os nossos sentidos, sentimentos, afetos, nossa capacidade de neutralização, são solicitados: é por isso que muitos grandes pensadores (citemos ainda Darwin ou Freud) amaram a natureza e souberam tirar grande proveito intelectual e afetivo do convívio com ela. Convívio, aliás, que só pode fazer um grande bem aos homens médios que somos.
Experiências da vida cotidiana
Habitualmente pensamos que a vida cotidiana nada tem a nos ensinar. No entanto, se em nossa cidade, que acreditamos conhecer bem, tomarmos uma série de ruas ou explorarmos um bairro mais ou menos desconhecido, quantas surpresas são possíveis! A arquitetura das casas, suas cores, o piso das ruas e das calçadas, as atividades que ali se desenrolam, as pessoas novas que vemos etc., tudo é feito para nos deixar desorientados. E é justamente quando estamos desorientados que ficamos mais atentos ao ambiente que nos cerca; nossa visão, e mesmo o conjunto dos nossos sentidos e nossa reflexão, são estimulados; temos a chance de deparar com obstáculos inesperados, de fazer encontros surpreendentes, de viver pequenas aventuras que excitam nosso pensamento.
Mais ainda: numa cidade que conhecemos perfeitamente, podemos, ao olhar as ruas e as casas como se as víssemos pela primeira vez, fazer descobertas insuspeitadas. Isso é possível se nos conduzimos como um “exote”, como diz Victor Segalen, isto é, um homem que gosta de descobrir o diverso, discernir no conhecido o desconhecido (e para tanto teremos de fazer primeiro ou de maneira concomitante uma “experiência interior”). Nesse estado de espírito, poderemos nos espantar com o que não nos espantava mais, ver elementos que permaneciam ocultos, ter surpresas. (Os poetas surrealistas franceses, em particular Breton e Aragon, nos fizeram sentir o quanto a paisagem urbana cotidiana era rica de qualidades, de acontecimentos ou de encontros inesperados, insólitos, perturbadores, que muitas vezes nos fazem sonhar, imaginar e pensar de outro modo.) Na verdade, se estamos disponíveis tudo pode acontecer, tanto o maravilhoso como o pior. Cabe a nós sabermos nos conduzir em tais ocasiões.
Experiências do encontro de outrem
Diariamente fazemos essa experiência, mas na maioria das vezes não a percebemos. Tagarelamos como de hábito, utilizamos as mesmas palavras, sentimos e exprimimos os mesmos sentimentos. Nenhuma surpresa. É como se a vida fosse morna, sem calor e sem cor. No entanto, se encontrarmos realmente as pessoas que vemos todo dia (nossa mulher, nossos filhos, nossos amigos, nossos colegas), haveremos de perceber, se estivermos verdadeiramente atentos, aspectos que não havíamos percebido, expressões significativas que nos haviam escapado. Nós mesmos, em contatos com eles, ficamos diferentes, temos o desejo de nos comportar de outro modo, de nos ocupar mais deles, pois temos o sentimento de ver seu verdadeiro rosto, como diz Levinas, e de nos vermos também sob outro ângulo. Essas descobertas podem ser agradáveis ou desagradáveis. (Podemos notar que nossa mulher nos ama mais e melhor ou que se afasta de nós, que nosso filho nos conta o que lhe aconteceu realmente ou que suas palavras são um tecido de mentiras, que estamos abertos à presença deles ou, ao contrário, fechados em nós mesmos.) O que importa é querer mais verdade. Pois quanto mais nos aproximamos da verdade (sempre momentânea) dos outros e de nós mesmos, tanto mais somos capazes de mudança e, portanto, capazes de enfrentar os acontecimentos mais inesperados, de forma inovadora.
Esse acolhimento de outrem é ainda mais importante quando as pessoas que encontramos nos parecem estranhos. O estranho, seja de outra nação, de outra etnia ou de outra cor, sempre suscitou temores e um primeiro momento de rejeição ou mesmo de repulsa. O desconhecido, o estranho e o bizarro sempre causam medo. Aliás, no uníverso das sociedades arcaicas, os etnólogos mostraram que, quando duas tribos se encontram, elas sentem um verdadeiro pavor uma da outra, pois cada uma se vê como a única composta de homens, a outra parecendo pertencer ao reino animal. É necessário que elas façam dádivas recíprocas, que exprimam sentimentos positivos exagerados uma em relação à outra, para que a possibilidade de guerra seja substituída pela paz, pela aliança e eventualmente pela amizade. Assim, para entrar em contato com o outro estranho é preciso superar essa animosidade instintiva, ter vontade de conhecê-lo, de reconhecê-lo como igual, embora diferente, e de fazer desse momento um enriquecimento mútuo.
Mas os estranhos não são reconhecíveis apenas por suas características. Muitas vezes pessoas que pertencem a outros grupos, com profissões diferentes da nossa ou que moram em bairros que não frequentamos, nos aparecem como verdadeiros estranhos, com os quais não temos vontade alguma de estabelecer contato. Fechamo-nos naquilo que os psicólogos sociais chamam grupos de referência (aos quais nos identificamos porque nos parecem prestigiosos) e grupos de pertencimento (grupos de trabalho, de amigos de bairro). O fato de nossa sociedade ser cada vez mais complexa acentua atualmente nosso afastamento dos outros. Como uma sociedade complexa é uma sociedade angustiante, pois nela tudo pode acontecer (e somos sempre inclinados a pensar no pior), temos uma tendência crescente a só manter relações com pessoas conhecidas que são semelhantes a nós por alguns de seus aspectos. O pessoal de uma empresa ou organização forma um grupo fechado, os filósofos ou os sociólogos falam apenas entre si, esquecendo que o resto da sociedade existe e que, se quiserem compreendê-la e viver no seu interior, serão obrigados a conviver e a falar com pessoas que eles tendem a tornar invisíveis.
Experiências de outros pensamentos, de outras maneiras de ver
Conversar com outros, confrontar-se com outras reflexões, maneiras diversas de conceber as coisas, de identificar, de colocar os problemas e de resolvê-los, sempre foi considerado como algo enriquecedor. Aliás, é a lição que todos os que vivem em organizações ensinam, mesmo que às vezes sejam reticentes em aplicar esses preceitos. Foi o que possibilitou o desenvolvimento da psicossociologia e da sociologia das organizações, a qual mostrou, em alguns casos, a preeminência da decisão coletiva sobre a individual, e que também sublinhou a necessidade da discussão, das sugestões, dos confrontos do conjunto de pessoas implicadas, para bem compreender o funcionamento e o dinamismo da organização e para tomar decisões pertinentes. Graças a esses contatos, os indivíduos conseguem desprender-se de suas maneiras de pensar estereotipadas, daquilo que J. L. Moreno chamava justamente “conservas culturais”, que levam a tomar sempre o mesmo tipo de decisão, impedindo cada um de considerar os problemas presentes com um olhar novo e sem preconceitos. Somos indivíduos repletos de tais conservas, que, como todas as conservas, um dia acabam se deteriorando. Elas nos impedem de ver a realidade em sua expressão atual e, portanto, de questionar nosso modo e nosso estilo de pensamento. Já em 1933, em seu livro Who shall surviver [Quem sobreviverá?], Moreno nos prevenia e mostrava que somente os indivíduos aptos a antecipar os problemas latentes, dando-lhes respostas adaptadas, seriam capazes de sobreviver neste novo mundo. Assim, a palavra de ordem que ele pronunciava, e que tem um caráter paradoxal, era: “Aprendam a ser de novo espontâneos!”.
Experiências da ação
Sabemos que cada uma de nossas ações deveria ser longamente amadurecida, profundamente preparada (exceto as que dizem respeito a nossas rotinas cotidianas), levando em conta o conjunto dos parâmetros no qual se situam (ou, pelo menos, o maior número possível deles, pois Herbert Simon, sociólogo e economista, Prêmio Nobel de Economia, nos fez compreender que é impossível pensar e classificar todos os parâmetros e que, portanto, só podemos pôr em prática uma “racionalidade limitada”). Devemos a seguir examinar como essa ação é executada por nós e por nossos colaboradores, e estudar a totalidade das consequências previstas e não previstas que ela engendra. Somente quando a ação é levada a cabo é que poderemos dizer que ela comporta resultados benéficos, renová-la em todos os casos análogos ou, ao contrário, corrigi-la, se as consequências imprevistas e desfavoráveis forem mais numerosas e mais perniciosas que as consequências previstas e favoráveis.
Essa é a teoria da ação racional. O único problema é que tal modo de ação, por benéfico que seja, é difícil de pôr em prática na maior parte dos casos. As razões disso são várias.
- Temos de decidir na urgência e não há tempo de considerar todos os parâmetros, todas as soluções possíveis, antecipar todas as consequências.
- Temos tempo de refletir, mas temos múltiplos conselheiros com opiniões diferentes e que buscam todos nos influenciar. Assim será preciso arbitrar entre esses sistemas de referência sem saber previamente o resultado. Foi o que aconteceu a J. F. Kennedy quando teve de tomar sua decisão relativa aos mísseis soviéticos em Cuba. Decisão que teve, felizmente, consequências benéficas para todos nós.
- O problema a tratar é tão novo e tão difícil que é preciso reunir um grupo de pesquisa operacional composto de muitos experts diferentes. O problema torna-se então o da condução do grupo. Há necessidade de um animador que ao mesmo tempo saiba compreender suficientemente a maneira de pensar de cada um, conheça os princípios das disciplinas reunidas, seja capaz de fazer esse grupo trabalhar em comum para que cada um evolua em sua maneira de pensar e, naturalmente, que seja neutro para animar o debate. Todos esses elementos são necessários para o êxito. Foi assim que se comportou o grupo que organizou a operação “Overlord” (o desembarque na Normandia em 1944) ou o menos conhecido, mas muito eficaz, “Círculo de Metodologia de Moscou” [que funcionou de 1954 a 1989]. Nesse caso, o animador do grupo deve não só ter todas as qualidades enunciadas, mas tanto ele como o restante do grupo devem ser capazes de questionar as opiniões, os argumentos propostos, confrontando-os uns com os outros, e sobretudo saber desligar-se de sua própria maneira de pensar para se abrir a outros modos de reflexão. Todos, em suma, devem ser capazes de reflexividade, isto é, da capacidade de questionar os princípios do seu próprio pensamento (como Descartes antes de chegar a pronunciar o Cogito) e de desempenhar assim o papel do “gênio do mal” destruidor (do adversário), de interrogar o paradigma ao qual adere e que deve abandonar se quiser que o problema encontre uma solução. Enfim, todos devem compreender que seu saber prévio não só não lhes serve para nada, mas também é um obstáculo a uma melhor compreensão e a uma boa solução do problema.
- O real a que se deve responder é tão novo, tão enigmático, que não sabemos identificar o problema; somos mesmo incapazes de perceber seus germes, tão tênues e tão inesperados que somente alguns gênios (e olhe lá!) conseguem ter uma ideia vaga a respeito. Não esqueçamos que o enigma é precisamente o que desconcerta, o que desmonta, o que nos deixa como crianças amedrontadas e que sem sempre deve ser resolvido. Tudo o que não corresponde aos nossos modos de pensamento, à nossa episteme (Foucault), ao nosso “imaginário social” (Castoriadis), nos é, por muito tempo, totalmente opaco. Não encontramos a porta de entrada. Há assim problemas que só podemos identificar muito tempo depois que começaram a ser entrevistas. Acrescentemos também que há dificuldades que nos parecem tão benignas que não as vemos ou que não provocam nosso interesse, e que, portanto, não tratamos. Foi o caso da pequena fenda na fuselagem da nave americana Challenger, que explodiu pouco após sua partida, ou da sensibilidade das sondas Pitot ao gel em alta altitude, que desnorteou a tripulação do Airbus no voo Rio-Paris e provocou sua queda.
- Muitas decisões são tomadas também de maneira intuitiva ou após alguém ter sonhado, imaginado ou construido uma espécie de “Lego”, mesmo se temos dificuldade de reconhecer isso. Foi o caso da estrutura atômica elaborada por Kekulé, e da estrutura “helicoidal” do DNA por Crick e Watson.
- Enfim, algumas questões que nos afetam diretamente não podem de modo algum ser objeto de cálculo racional. Apaixonar-se, sentir amizade ou antipatia, escolher o cônjuge são coisas que excedem todo cálculo, ainda que alguns pesquisadores tentem quantificar esses problemas inquantificáveis.
É por isso que, num mundo hipercomplexo, devemos ser humildes, conscientes de que alguns problemas vão além de nós ou de que só podemos tratá-los de maneira aproximativa, e ser capazes de nos interrogar, abrir mão de nossas certezas e estar constantemente abertos à novidade. O homem não foi feito para viver feliz, mas para correr riscos, com a esperança de não se enganar, o que não é o caso mais frequente quando se trata de problemas humanos e sociais.
Assim devemos admitir que a vida é o campo e o tempo de experiências a cada vez únicas, específicas, mas sempre ligadas (muitas vezes mascaradas, ocultadas, recalcadas, reprimidas) umas às outras. Por isso devemos adotar o ponto de vista das “ciências diagonais” (Roger Caillois), que procuram mostrar as correspondências que podem existir entre fenômenos em princípio muito afastados (por exemplo, entre uma lei que permite o aborto e o número de crimes nos Estados Unidos, como sublinharam Steven David Levitt e Stephen J. Dubner) ou que entram em ressonância entre si (como o número de suicídios numa empresa e a rapidez da rotatividade do pessoal empregado). É o que nos permitirá, respeitando a especificidade dos casos, não enunciar leis, mas pelo menos evidenciar regularidades que poderão servir de balizas ou pontos de referência. Devemos também questionar todas as tradições, todas as interdições, e ser capazes, se necessário, de transgredi-las. Lembremos a frase famosa do grande sociólogo Marcel Mauss: “Os tabus são feitos para serem quebrados”. Significa que os tabus (as interdições) só existem por um tempo e, se favorecem durante certo período uma vida mais ou menos harmoniosa de um conjunto social, eles também pesam, pois impedem a expressão de pulsões e desejos geralmente legítimos, devendo assim um dia desaparecer.
O homem não é um ser amorfo e mediano. É um grande transgressor. Se nossos ancestrais tivessem sido inertes, ainda estaríamos, certamente, na Idade da Pedra.
Assim a vida (e não a existência) é uma construção contínua de nós mesmos, de nosso pensamento, de nossa ação, das obras que edificamos e que, em troca, nos modificam, bem como de nossas relações com outrem. O essencial não reside no resultado, ainda que este seja importante, mas no ou nos métodos e meios escolhidos por nossa reflexão, ao mesmo tempo racional e imaginativa, para chegar a eles. Paul Valéry sublinhou a importância do método para Leonardo da Vinci, para quem a pintura era uma “cosa mentale” (“um produto do espírito”). É evidente para todos nós que um pintor pode ser um excelente técnico, mas, se nada do seu pensamento, de suas hesitações e de suas dúvidas passasse em sua pintura, ele não nos emocionaria e não seria um grande pintor. Picasso dizia, justamente: “Eu não me interessaria pelas ‘maçãs de Cézanne’ se não sentisse a angústia que há por trás”.
Certamente o programa que proponho não é fácil de seguir nas sociedades da nossa modernidade avançada, que prega um programa contrário a ele. Em nossas sociedades. a experiência aparece cada vez mais como um resíduo obsoleto e inutilizável; o tempo da reflexão e da análise penetrante, do questionamento, da invenção de novos paradigmas é substituído pelas decisões a tomar de maneira urgente, e que logo serão anuladas por outras consideradas também urgentes e pertinentes; as convicções fortes cedem o lugar à sedução, à manipulação, à corrupção. As mentiras, a hipocrisia e o disfarce tornam-se moeda corrente. A economia de mercado dá origem a uma sociedade de mercado, em que o capital financeiro dita sua lei e transforma todas as relações sociais em relações monetárias. Tudo vive sob o reinado do efêmero: tanto as empresas como o amor.
No entanto, se quisermos que nosso mundo seja ainda o campo do espírito que trabalha duramente e nunca está contente consigo mesmo (os grandes artistas, como os grandes pensadores, nunca estiveram totalmente satisfeitos com o que fizeram), como escreveu Valéry; se quisermos que seja ainda o campo do espírito que dança, isto é, que inventa, como pensava Nietzsche, então devemos resistir às tendências pesadas da nossa sociedade e tomar “o lado mais abrupto da encosta”, como diz Castoriadis. Não pelo prazer da transgressão, mas porque pensamos (e são cada vez mais os que pensam assim) que o mundo atual sofre de loucura e marcha tranquilamente para a catástrofe. Os austríacos, antes da Primeira Guerra Mundial, tiveram a presciência de que o século XX seria um século catastrófico, mas não viam como deter a marcha para o abismo. Eles caracterizaram o período que viviam de ”Apocalipse alegre”.
Se não quisermos que o século XXI seja ainda pior que o século XX, devemos reagir à pressão, à uniformidade que nos faz conformistas e cegos, aos paradoxos que nos sufocam, do tipo: como ser um indivíduo autônomo, portanto um verdadeiro sujeito, num contexto em que a originalidade verdadeira é rejeitada. Devemos assim passar o tempo que nos é dado lutando contra um mar enfurecido, comportando-nos como um “barco bêbado” (Rimbaud) com o risco de naufragar, de nunca chegar a bom porto. Isso exige coragem. É o que Wittgenstein recomenda, pois um homem, para ser um verdadeiro sujeito, isto é, um ser “insubstituível”, só pode ser corajoso. Viver assim é naturalmente difícil e nem sempre gratificante. Quem busca compreender o funcionamento real da sociedade é geralmente marginalizado. Mas o título de glória do homem é querer, apesar de tudo, ser digno do pensamento e da palavra que o fizeram sair da animalidade e da submissão aos instintos. Baudelaire dizia: “Que coisa extraordinária um homem ser um homem!”. Ele tinha razão. Não devemos desiludi-lo e insultar um futuro que só pode ser o produto de nosso pensamento e de nossos atos.
Tradução de Paulo Neves.