As metamorfoses do olhar
por Gerd Bornheim
Resumo
Na língua grega, a vinculação entre os termos “ver” e “conhecer” é evidente. Mais: ela está na origem mesma do surto filosófico grego. Isso de modo tão claro que, mais evoluía a episteme, mais se educava o ver. Com efeito, a visão age em amplo espectro. Tanto que instaura a gênese da percepção e, assim, faz história, de que serão abordados os momentos essenciais.
Só no contexto homérico, havia nove modalidades de ver, a exemplo do olhar furioso da deusa ou do olhar nostálgico de Ulisses.
Alguns desses verbos desapareceram, outros surgiram, associados, normalmente, a modos de conhecer, inclusive no sentido interior. Nessa linha, theoros significa ser espectador, o que se verifica, já que teorizar não é mais do que um ato de visão concentrada e repetida.
Com Platão e Aristóteles, o olhar complica-se por meio da ideia da educação. Tanto que se impõe como fundamento evolutivo da Metafísica.
Para que se entenda isso, volta-se ao mito platônico. Nele, preconiza-se a transubstanciação do olhar, ou seja, a divinização da realidade humana, a ser seguida por Aristóteles e toda a Metafísica ocidental, o que exigiria a inversão da postura humana, já que, prisioneiro congênito do mundo das trevas, o homem deve libertar-se rompendo as correntes que o imobilizam e provocam “dores profundas”, bem como a luz do sol, que representa a própria educação, que leva ao mundo supra-sensível, onde o homem atinge a sabedoria.
“O que pode ir junto e o que deve permanecer separado”, eis, no Sofista de Platão, a invenção da lógica, associada à vinculação do olhar com a interioridade.
Definitivo, nesse sentido será o estabelecimento do cristianismo, sobretudo a partir de Santo Agostinho.
Isso se estende até o século XIV, com o mestre Eckehart e o livro apócrifo A imitação de Cristo, no qual tudo se adensa no reconhecimento interior. Tanto que a conversa com o Absoluto prescinde de intermediação, seja a do sacerdote, seja a da menor das pedras de uma catedral.
Trata-se um processo dialético. O ver grego passa do físico ao metafísico, já que, mesmo subjetivo, deixa-se conduzir pelo que lhe é exterior. Já na Idade Média, há a inversão do ver rumo ao interior. A síntese dos dois momentos começa com o surgimento da física e da filosofia cartesiana.
Vai-se assim da coisa à constituição do objeto, tipicamente cartesiana. Disso a consciência moderna soube tirar menos lições do que lucros, já que passou do conhecimento à manipulação do real.
Seja como for, é toda a questão do olhar que é retomada pela filosofia contemporânea, a começar por Hegel e pela convulsão geral dos valores metafísicos.
O “olhar para o alto platônico” caiu, devido ao caos móvel, na lama do asfalto.
Entre as peculiaridades mais notáveis da língua grega encontra-se a vinculação que sói oferecer o verbo ver com o ato do conhecimento. Uma das raízes, em nada secundária, do próprio surto da filosofia na Grécia prende-se justamente a tal vinculação. Mais ainda, esse surto da episteme insere-se num processo evolutivo que mostra uma verdadeira educação do ato de ver. Realmente, a visão humana não se deixa elucidar apenas em nível fisiológico, e sequer no psicológico — já são muitos os autores que analisam o seu exercício enquanto indissociável de um sentido instaurador da própria gênese da percepção. De resto, tudo aqui se faz histórico: há uma história do ver que acompanha os marcos mais decisivos do evolver da cultura ocidental. O que pretendo aqui é traçar um breve itinerário[1] que indique tão-somente os momentos essenciais dessa história.
Apóio-me inicialmente nas bem fundamentadas pesquisas de Bruno Snell. A língua grega é singularmente pródiga em modalidades do verbo ver. Snell enumera, somente no contexto homérico, nove dessas modalidades: todo esse acervo prende-se sempre a formas bem determinadas de ver, como, por exemplo, o olhar furioso da deusa ou o olhar nostálgico de Ulisses, distante de sua pátria.[2] Com o tempo, alguns desses verbos desaparecem, mas, em compensação, surgem outras formas de ver, como, notadamente, blepein e theorein (de oran, que significa ver). Um traço característico apontado por Snell nessa riqueza toda está no fato de que esses modos do verbo ver ligam-se habitualmente a modos de conhecer. E se, originariamente, os verbos ver prendem-se à diversidade de formas particulares de conhecimento, arrastados sempre por uma situação objetiva, mais tarde, como o início do teatro e da filosofia, e como atestam os dois últimos verbos referidos, a ação de ver concentra-se em si própria, na ação de olhar em si mesma; assim, de meramente exterior, ela passa a educar-se nas dimensões de seu próprio exercício. Aliás, o verbo theorem deriva de um nome, theoros, ser espectador. Sem dúvida, a teoria é apenas isso: um ver concentrado e repetido, um ver que sabe ver, que inventa meios para ver cada vez melhor. E é nessa educação do olhar, a partir dela, que se institui toda a filosofia e as ciências do Ocidente, e até mesmo o saber voltado para o prático, como atesta a escola médica de Cós, que calou a boca do feiticeiro e ensinou a estabelecer um diagnóstico a partir de um olhar atento.
Os dados alinhados até aqui já permitem perceber que, de Homero a Platão, se nos depara uma decisiva história do ato de ver, de importância que cresce exatamente por permanecer ligada à questão do conhecimento. Com Platão e Aristóteles, entretanto, as coisas sofrem uma complicação menos imprevisível do que seria de imaginar e que terminaria por se impor como definitiva para toda a evolução da Metafísica ocidental. Basta que se atente, para entendê-lo, o relato do mito da caverna na República platônica; ou que se acompanhe a descrição da vida teorética no capítulo final da Ética a Nicômaco de Aristóteles. Em ambos os casos, o olhar passa a ser orientado de maneira metafísica. De fato, já estamos longe das preocupações jônicas com o mundo da natureza: agora, o olhar deve ser arrancado de seu estatuto “natural” e ser educado de tal modo que se o oriente para o alto, a fim de que a visão busque a sua medida na contemplação das coisas divinas. Acenemos brevemente para o dramático itinerário proposto por Platão no referido mito.
O mito trata justamente da cultura do olhar. Ou melhor: Platão preconiza uma verdadeira transubstanciação do olhar, cujo escopo definitivo prende-se à vontade de divinização da realidade humana — ideal que será repetido por Aristóteles e se fará presente em toda a Metafísica ocidental: Hegel nada apresenta de novo quando fala no “homem divino universal”.[3] A educação metafísica exige que se inverta a postura em que normalmente se encontra o homem. Prisioneiro que é, por nascença, do mundo das trevas, deve ele libertar-se, rompendo com as correntes do mundo da escravidão, e isso o faz sofrer “dores profundas”, sem falar no risco de tornar-se cego, tamanha a violência dessa reeducação. Tal intento já pode ser constatado no emprego que Platão faz do verbo blepein (um ver atento), acrescentando-lhe um prefixo, anablepein, que passa a significar ver para cima, olhar para o alto. Quem chega a educar-se através da visão da Idéia alcança a freqüentação do fundamento supra-sensível, e é nesse piano do homem divinizado que reside a sabedoria. Pretende-se, pois, que a vida filosófica consiste no abandono da práxis simplesmente mundana e utilitária, e na instauração de uma práxis contemplativa, único caminho para o conseguimento daquilo que se postula seja a verdade. Todo o processo da Metafísica, desse ir além do plano “físico”, reside, portanto, na substituição de um tipo de práxis por outro, supostamente mais verdadeiro. Fundamental neste contexto todo é o conceito de orthotes, do ver corretamente, na orientação correta. É precisamente esse conceito que vai determinar a verdade enquanto adequação. Com isso, a natureza já não se manifesta mais a partir de si mesma, posto que a verdade passa a vincular-se à justeza do olhar. E essa premissa do ver corretamente está na base de toda evolução metafísica da visão.
A novidade maior do platonismo está neste ponto: a verdade passa a depender de um certo cultivo da visão, o que se vê deve ser bem ordenado, deve-se saber “o que pode ir junto e o que tem de permanecer separado”, como diz Platão no Sofista, inventa-se, com isso, a lógica. E abre-se, por aí, o caminho para uma nova etapa da evolução do olhar: sua vinculação com a interioridade. Neste ponto, a presença do cristianismo sequer poderia ser exagerada. Claro que é fácil encontrar na Grécia antiga até mesmo uma proto-história dessa vinculação — ela já começa na poesia lírica arcaica. Ou, então, pense-se no fragmento 45 do Heráclito, que afirma que, ao contrário do que acontece no mundo físico, jamais se poderá encontrar os limites da alma, tão profundo é o seu logos, ou seja, ela se estende para além de todo limite. Claro também que, de Heráclito a Plotino há um deslocamento que sublinha lentamente a descoberta da subjetividade. Todavia, é apenas com o cristianismo que se abrem de fato as portas para o cultivo da vida interior, e mesmo assim isso se faz através de um demorado itinerário. O passo decisivo, sem meias palavras, foi dado por santo Agostinho; ouçamo-lo: “Não caminhes para fora; entra dentro de ti mesmo; no interior do homem reside a verdade: e se achares que a tua natureza é mutável, transcende a ti mesmo”[4]. Entende-se, por essa virada, o alijamento a que passa a ser submetida a ciência da natureza durante a hegemonia do pensamento cristão. É bem verdade que a lição agostiniana, toda voltada para a interioridade e a sua fundamentação metafísica, levou cerca de mil anos não só para ser bem assimilada, mas, principalmente, para que viesse a assumir a inteireza de suas dimensões, todos os vãos de seu espaço íntimo. E esse itinerário não encontrou o seu meio mais propício de desenvolvimento, em primeiro lugar, na teologia, e sim na mística e na prática religiosa. Já em seus começos, observe-se, por exemplo, na mística bizantina, o papel que desempenha o esforço de educar a atenção, esse olhar interior que está na raiz de toda virtude espiritual. E ao cabo desse caminho, no século my, se nos depara a figura de um mestre Eckehart, que assevera em um de seus Sermões: “O meu olho e o olho de Deus é um olho e um rosto”. É neste século, de resto, que a conversão do olhar à interioridade alça-se à sua máxima pureza de expressão; nesse momento pode aparecer um livro como Imitação de Cristo, de um monge holandês desconhecido, no qual tudo se adensa no reconhecimento interior: a conversa com o Absoluto pretere agora a interrnediação do sacerdote e mesmo o elemento sensível da pedra das catedrais. “Tóda forma de interme-diação é estranha a Deus”, assegura ainda mestre Eckehart.[5]
A olhos vistos, delineia-se aqui um processo dialético. O ver grego realiza a transmutação do ver físico para o ver metafísico. Acrescente-se que, não obstante o fato de que a verdade interpretada como adequação instaura o processo de atrelamento da verdade a exigências subjetivas, o ver grego se deixa conduzir fundamentalmente pelo que lhe é exterior, seja o elemento sensível ou o mundo das coisas divinas. Já na Idade Média a perspectiva se inverte, visto que o predomínio termina trasladado para a interioridade, mesmo que a interpretação do conhecimento continue emprestando vigência, basicamente, às teses gregas. E se cabe falar em síntese dialética, ela teve o seu início com o surgimento da Física moderna e encontrou a sua primeira expressão maior na filosofia cartesiana.
Essa passagem se faz, como é fácil perceber, na transposição da coisa para a constituição do objeto. O objeto passa a ser, por exemplo, o resultado da análise de tipo cartesiano. E não tardou para que a consciência moderna se desse conta do lucro da empresa: esse objeto construído não apresentava como finalidade tão-somente o conhecimento do real, mas sim, e muito mais que isso, a possibilidade de sua manipulação. O objeto, ou essa síntese entre a atividade subjetiva e a realidade exterior, inventa até mesmo um novo tipo de homem, híbrido e bicéfalo, que é o engenheiro — a revolução industrial e tecnológica associa, pela primeira vez, a teoria científica e a prática artesanal. Por tais caminhos, a realidade toda passa a configurar um objeto manipulável pelo homem. Inútil lembrar que é o sucesso dessa fórmula que domina amplamente os horizontes de nosso tempo.
Para o nosso tema, entretanto, o êxito do olhar engenheiro nada tem a ver com apaziguamento feliz de um final vitorioso mesmo porque a tecnologia persegue o estabelecimento do homem neste mundo, meta a ser alcançada. Seja como for, é toda a questão do olhar que é retomada pela filosofia contemporânea. O cenário de fundo está na crítica da verdade entendida como adequação, já iniciada por Hegel, e pela convulsão geral dos valores metafísicos: o “olhar para o alto” platônico parece definitivamente dessorado. Digamos que aquela síntese dialética se metamorfoseia hoje num polissêmico leque de contraposições através do qual o olhar busca desembaraçar-se de seus entraves metafísicos a fim de alcançar o seu estatuto mundano.
Extremamente significativo neste contexto revela-se — na impossibilidade de dedicar ao tema uma análise abrangente — o diálogo entre Sartre e Merleau-Ponty. O interesse primordial que oferece este diálogo prende-se justamente à problemática da Metafísica e de sua superação.
O Sartre propriamente existencialista, da primeira fase, deixa-se cativar entranhadamente pela moderna tradição metafísica: ele radicaliza Descartes, levando os privilégios outorgados à dicotomia sujeito-objeto às suas decorrências mais extremadas. O ser confunde-se agora simplesmente com o objeto, e o nada apresenta-se como fundamento da consciência, ou seja, do sujeito. Como, para Sartre, relação pressupõe interioridade, o mundo dos objetos perde-se na total exteriorização: a relação de objeto com objeto não se pode verificar, e não menos inviável revela-se a relação de sujeito com sujeito: seria pretender ligar o nada ao nada, o que é absurdo. Mas o absurdo continua presente na única modalidade possível de relação: a que acontece entre sujeito e objeto. E o absurdo se constata privilegiadam. ente na relação intersubjetiva, já que ela só chega a estabelecer-se enquanto redutível à relação sujeito-objeto. Tal é a função precisa do olhar. A essência do olhar não consegue ir além do conflito, porquanto transforma o outro necessariamente em objeto — ainda que o revide seja possível, e o olhar mais forte do outro inverta a relação e me transforme em objeto. Por outras, objetivando, o olhar passa a ser uma forma de dominação. Se o conhecimento, tal como o entende Descartes, termina manifestando a sua verdade nos processos técnicos de manipulação, com Sartre isso invade até mesmo a intimidade da relação intersubjetiva — poderiam os caminhos metafísicos ir mais longe? Não fica, desse modo, desautorizada a síntese dialética em sua acepção clássica?
A intuição originária e absorvente do pensamento de Merleau-Ponty concentra-se exatamente na crítica ao caráter excludente da dicotomia sujeito-objeto, e isso vem à tona em dois pontos decisivos. Nosso autor procura mostrar, e o faz com largo sucesso, que a dicotomia sujeito-objeto não compõe o referencial último e definitivo da experiência humana, nem mesmo no que respeita a intersubjetividade. Aliás, neste tema essencial, Merleau-Ponty liga-se a uma tradição que arranca da própria crise da Metafísica, o que em nada prejudica as suas percucientes análises — antes as confirma. Assim é que, já em Marx, a crítica à dicotomia se faz a partir da práxis do trabalho, instituidora da objetividade do objeto e também da subjetividade do sujeito. O que Merleau-Ponty viu perfeitamente bem é que a maneira sartriana de acolher a dicotomia sujeito-objeto, passivamente, como um referencial absoluto e indiscutível, torna o existencialismo nuclearmente caudatário da Metafísica. E contra isso, tudo enraíza-se agora no corps propre e suas extensões: o corpo dos outros e o corpo cultural — “há uma carne da história”. Tudo gira em torno de uma ontologia da encarnação.
Fiel a tais coordenadas, Merleau-Ponty procura ler a prosa do mundo tal como ela se oferece hoje. Trata-se, então, de pensar aquilo que ele chama, em sua última fase, de “ser selvagem”, e nesse horizonte, espécie de avesso da Metafísica, sobressai a temática da reeducação dos sentidos, em especial da visão. Já não se quer, portanto, privilegiar o pensamento cartesiano em prejuízo da visão encarnada. Assim, estamos longe também da base última do cartesianismo, a violência platônica do “olhar para o alto”, fundamento de todo o Humanismo tradicional. A visão começa, enfim, como que a encontrar o seu endereço natural: a situação do homem enquanto debruçado sobre o mundo e a história. E o ser se faz olhar, visão.
Notas
[1] Este texto é apenas o resumo da conferência pronunciada a convite da Funarte
[2] Bruno Snell, La cultura greca ele origine del pensiero europeo Milano, Einaudi, 1951, pp. 22 e ss
[3] G. W. F. Hegel, Phânomenologie des geistes,-Hamburgo, F. Meiner, 1952, p. 548.
[4] In De vera religione, 39, 72
[5] “Vom edlen Menschen”, in Deutsche Predigten und Traktate, Munique, Carl Hanser, 1955, p. 145.