2013

Dentro do nevoeiro: o futuro em suspensão

por Guilherme Wisnik

Resumo

Um dos grandes problemas contemporâneos, no campo da arte, é a excessiva nitidez com que o mundo se apresenta à nossa percepção. Em vários planos da vida, tudo à nossa volta parece nítido e destituído de ambiguidade: a sociedade multicultural se faz representar de forma horizontal e transparente através das reivindicações das minorias (étnicas, raciais, sexuais, de gênero) e das redes sociais. O espaço “liso” da internet abole barreiras físicas e temporais colocando a todos em contato permanente e não filtrado por qualquer jugo moral, e a intensificação da circulação das imagens na sociedade de consumo – que por sua onipresença acabam ocupando o lugar dos seus referentes reais –, alude a um mundo sem fissuras, e que parece não ser mais passível de qualquer ação transformável por parte do sujeito, e sim, apenas, de uma leitura passiva dos seus códigos de funcionamento. Acessibilidade, no caso, também quer dizer excessiva proximidade, que amplia a nitidez das coisas.

Se as vanguardas modernas embasaram a sua ação em uma dimensão projetiva, orientada para ao futuro, e as críticas pós-modernas, ao contrário, acusaram a idealidade dessa utopia, voltando-se com certa nostalgia e pragmatismo para exemplos do passado, a situação contemporânea parece não caber mais nem em um paradigma nem em outro. Distante tanto da utopia quanto do revival, boa parte da melhor produção contemporânea em artes plásticas e em arquitetura recusa o excesso de visibilidade e nitidez do mundo atual através de uma poética do embaçamento, que retarda a percepção de formas e objetos, resgatando a noção de experiência.

No mundo do turismo, da economia de serviços e da volatilização do trabalho sob a égide do capital financeiro, a relação das pessoas com as obras de arte, em museus, e com os edifícios de grande apelo midiático, foi absorvida pela chamada “economia da experiência”. Contudo, na mão contrária ao culto da imagem e aos excessos formalistas da arte e da arquitetura pós-modernas, emergem a partir dos anos 1990 – e portanto no período que se iniciou com o chamado “fim da história”, e que Hobsbawm já situa como fora do século XX – edifícios e instalações artísticas informes, evanescentes, e que parecem evaporar-se diante de nós. Refiro-me, por exemplo, aos ambientes brumosos de Olafur Eliasson, ao edifício-nuvem de Diller Scofidio, feito para a Expo 2002 na Suíça, às fotografias de longa exposição de Michael Wesely, em que cenários urbanos se transformam em espectros, e ao sensualismo anêmico da arquitetura da dupla japonesa Sejima e Nishizawa (SANAA). Por trás de todos eles, estão as lições de Joseph Beuys, e não de Andy Warhol.

Assim, se em 1940, o “anjo da história” de Walter Benjamin era lançado para a frente pela ventania do progresso, enxergando no passado catástrofes e ruínas, hoje ele talvez estivesse perdido no meio de um nevoeiro.


Há momentos históricos fortemente orientados pela dimensão de futuro, como o modernismo. Há outros, por sua vez, nitidamente revivalistas, voltados para o passado, como o chamado pós-modernismo. Hoje, no entanto, não somos nem utópicos nem nostálgicos. Parece-me que a dominância da dimensão temporal refluiu, no mundo contemporâneo, em favor de uma espacialização própria à experiência da globalização. Espaço indeterminado, no qual nos vemos imersos e sem recuo suficiente para enxergar o seu contorno e a nossa própria posição relativa em seu interior.

Figura 1. Poluição do ar em Pequim (Valentina Tong)

Apesar de vivermos um período histórico que não é revolucionário do ponto de vista artístico, há sinais claros de que estamos em meio a profundas mudanças de paradigmas, que correspondem a uma alteração na base produtiva da sociedade e parecem reestruturar as formas de subjetividade. No campo da arquitetura, nota-se um progressivo deslocamento de ênfase simbólica do esqueleto estrutural – a transparência moderna – para a pele – o invólucro pós-moderno e os véus contemporâneos. Ao mesmo tempo, dá-se uma transição da ênfase mecânica dos edifícios para o seu comportamento energético, que corresponde à passagem do paradigma industrial ao biamórfico, ou, como define Stan Allen, da natureza objetual do edifício à condição de campo, estruturada por relações que se dão em nuvens e redes, de maneira próxima à incomensurabilidade identificada e trabalhada por Robert Smithson nos anos 1960 e início dos 1970[1]. Nesse contexto, as oposições entre elementos antes muito distintos, como estrutura e vedação, ou estrutura e ornamento, tendem a desaparecer, dando lugar a novas unidades formais e programáticas.

Figura 2. Junya Ishigami, Estúdio Kait, Kanagawa (Valentina Tong)
No mundo do chamado “fim da história”[2] , um aumento progressivo das desigualdades sociais se faz acompanhar, no entanto, de um grande arrefecimento ideológico, em que a dimensão de conflito, antes encarnada de forma materialista no devir histórico, se deslocou para uma espécie de paranoia difusa em relação às diferenças étnico-religiosas e às revoltas da natureza, na forma de ataques terroristas, aquecimento global, ameaça de esgotamento das reservas de água e petróleo, terremotos, ciclones, vulcões e tsunamis. Na arte, essa irrupção da alteridade corresponde a uma substituição do outro social pelo outro antropológico, horizontalizando ainda mais as práticas artísticas, que passam a basear-se no respeito politicamente correto às diferenças (étnicas, religiosas, raciais, sexuais, de gênero etc.) e na crítica da subjetividade autoral. Se a entropia dos anos 1970 foi substituída pela sustentabilidade dos dias de hoje, o conceito pós-estruturalista de “morte do autor” deu lugar à pirataria, às autorias abertas do Creative Commons e ao sampleamento de motivos originais como forma de apropriação e recriação, que Nicolas Bourriaud chamou de “pós-produção”[3].

Dominada pelo discurso pós-colonial da alteridade e da diferença, a arte contemporânea parece, muitas vezes, querer permanentemente nomear as coisas, colocando-as em seus lugares devidos e merecidos. Decorre daí uma crescente perda de ambiguidade artística, que corresponde a uma adesão bem-intencionada à literalidade das representações sociais. Procurando se contrapor ao consumismo e à coisificação crescente das relações humanas, guiadas pelo individualismo, a assim chamada estética relacional busca uma “utopia de proximidade”[4], que, interpretando o legado dos anos 1960 e 1970, procura transformar o processo de criação e recepção dos trabalhos de arte em momentos compartilhados de diálogo e negociação, que se convertem, por vezes, em declarado utilitarismo, criando postos de serviço para a população. Desenhando objetos de mobiliário urbano, a arte tende muitas vezes a assumir, no “campo ampliado” contemporâneo, a forma “positiva” da arquitetura e do design.

Assim, me parece que um dos grandes problemas contemporâneos é a excessiva nitidez com que o mundo se apresenta à nossa percepção. Em vários planos da vida, tudo à nossa volta parece nítido e destituído de ambiguidade: a sociedade multicultural se faz representar de forma horizontal e transparente através das reivindicações das minorias e das redes sociais, o espaço liso da internet abole barreiras físicas e temporais colocando todos em contato permanente e não filtrado por qualquer jugo moral, e a intensificação da circulação das imagens na sociedade de consumo alude a um mundo sem fissuras, que parece não ser mais passível de qualquer ação transformável por parte do sujeito e sim, apenas, de uma leitura passiva dos seus códigos de funcionamento. Acessibilidade também quer dizer proximidade, que amplia a nitidez das coisas.

Nas duas últimas décadas, o rápido desenvolvimento das tecnologias da informação foi acompanhado pelo grande aumento da mobilidade e da liquidez do capital, em processos econômicos realizados de forma cada vez mais transnacional, envolvendo permanentes fluxos de mão de obra, matérias-primas, mercadorias, pessoas e capitais. É nesse momento que se dá a ascensão das chamadas “cidades globais”[5], à medida que os estados nacionais optam pela privatização de empresas e pela desregulamentação das suas economias, abrindo-as ao mercado globalizado. Impõe-se, então, uma nova lógica de criação de centralidades no território mundial, na qual as cidades se tornam importantes atores econômicos e geopolíticos.

Aqui é preciso recuar um pouco. Desde pelo menos o início dos anos 1970, uma fundamental mudança de paradigma alterou a base produtiva do mundo – com resultados imediatamente mais visíveis no Ocidente, em especial entre os países ricos -, e com ela a representação simbólica da sociedade. Refiro-me à virada histórica ocorrida em torno de 1972-1973, que o historiador Eric Hobsbawm caracteriza como a passagem da era de ouro para o que chamou de era do desmoronamento, e que coincide com o que o geógrafo David Harvey entendeu como a mudança de um paradigma fordista de produção a um sistema de acumulação flexível no interior do capitalismo, voltada para produtos específicos e nichos de mercado. Processo que, no campo da cultura, corresponde em grande medida à passagem do modernismo ao pós-modernismo, tal como definido por teóricos militantes como Charles Jencks, e sistematizado de forma mais rica e abrangente por Fredric Jameson, associando o pós-modernismo ao chamado capitalismo tardio[6]também conhecido como neoliberalismo.

Tal mudança de paradigma é produto de crises em vários campos da sociedade, que abarcam as esferas econômica, cultural e ambiental, resultando em um declínio do papel do Estado. Na sua esteira, dá-se a grande revolução tecnológica nos sistemas de circulação da informação, e o trânsito de uma sociedade alicerçada na produção (industrial) a uma sociedade baseada nos serviços (pós-industrial). Em busca de maior competitividade nesse mercado cada vez mais integrado, as indústrias dos países centrais passaram a adotar programas de deslocalização do trabalho, que tendeu a migrar para regiões menos “desenvolvidas” do planeta, ocasionando a erosão dos direitos sociais e trabalhistas historicamente adquiridos pelas políticas de Bem-Estar Social na Europa, desde os traumas das depressões econômicas dos anos 1920 e 1930. Tal processo ocorreu em paralelo à flexibilização dos regimes de trabalho, à escalada do valor fictício das coisas – com a especulação financeira assumindo um papel central na nova economia – e à necessidade de reconversão de vastas áreas industriais das cidades que, uma vez “revitalizadas”, passaram a abrigar usos voltados ao setor terciário, em que predominam o uso cultural e o turismo.

Se a arte moderna, em seu momento, havia rompido o dualismo entre realidade e representação, criando com isso um campo plástico imanente e relacional, capaz de plasmar, em suas tensões visíveis, as tumultuosas disputas sociais, hoje a realidade não parece mais tão acessível à manipulação e à transformação simbólica. É sintomático, a propósito disso, o fato de que a mudança na compreensão da arte, nas últimas décadas, acompanhe o declínio histórico da noção de trabalho, flexibilizado, e cada vez mais precarizado, no capitalismo tardio. Trata-se, afinal, daquilo que Hannah Arendt qualificou de “erosão da durabilidade do mundo” em favor de um permanente consumo das coisas, próprio à predominância da dimensão do labor sobre a noção de trabalho.

Se uma das características centrais do pós-modernismo foi a autonomização dos significantes em relação aos significados, abstraindo-se os lastros materiais, a ascensão da economia financeira exponenciou essa característica predatória do capitalismo, gerando na arquitetura recente aquilo que Pedro Fiori Arantes chamou de “renda da forma”[7]. Trata-se, segundo Arantes, de uma equivalente autonomização da forma arquitetônica – cada vez mais retorcida, liquefeita e antitectônica – em relação aos materiais e ao trabalho envolvido na sua construção. Daí, exatamente, o valor de marca desses edifícios icônicos, realizando um fetiche da mercadoria em segundo grau. Pois, de maneira análoga, se a economia não possui regras nem limitações para a autovalorização especulativa do capital financeiro, o urbanismo também deixa de ser a ciência que controla e dá parâmetros ao crescimento das cidades, agora “globais”, e a forma arquitetônica parece dobrar a sua materialidade sem qualquer resistência. Parece haver claramente aí, como nota Pedro Arantes, uma desmedida que espelha o curso descontrolado do mundo atual.

Com efeito, é preciso encontrar uma mirada crítica a esse estado de coisas que não assuma um ponto de vista exterior e imune ao seu raio de ação. Quer dizer, é preciso encontrar um ângulo interno de análise que possa engendrar uma perspectiva crítica sem negá-la completamente, já que afinal foram esses os caminhos tomados até aqui, e não outros. Portanto, me parece que é necessário entender a relação entre a ubiquidade da imagem na sociedade de consumo e a abolição da opacidade do mundo, ou da resistência da matéria, na sua inextrincável relação com a arte e com a noção de trabalho, às quais se vincula também a descrença no instrumento da percepção como forma de intelecção. Segundo Rodrigo Naves, essa imagem “descolada de toda e qualquer resistência à formalização”, e que portanto “pode assumir ares de algo intercambiável e plenamente disponível”, está na base de uma situação em que “a percepção tende a deixar de radicar na experiência”, e “uma homogeneidade genérica de fundo se apodera de grande parte das representações”, fazendo com que a atividade perceptiva se reduza “a um reconhecimento de imagens”, algo que, pondera Naves, “a pop soube antecipar com extrema pertinência”[8]. Uma boa ilustração dessa relação de oposição entre o “gesto utópico” moderno e a superficialidade desencantada pós-moderna aparece na comparação feita por Fredric Jameson entre as telas Um par de botas (1887), de Van Gogh, e Diamond dust shoes (1980), de Andy Warhol. Pois se no caso de Van Gogh a insistência na materialidade da obra procura de certa forma recriar um universo ausente – a transformação do opaco mundo camponês em pura cor é um “gesto de compensação utópica” -, no caso dos sapatos de Warhol a operação hermenêutica não se completa, pois, dada sua pura exterioridade, não há como reintegrá-los a algum contexto de origem. Segundo Jameson, se no trabalho de Van Gogh “um mundo ferido é transformado, por um fiat nietzschiano ou por um ato de vontade, na estridência de um colorido utópico”, em Warhol, “ao contrário, é como se a superfície externa colorida das coisas – aviltada e previamente contaminada por sua assimilação ao falso brilho das imagens da propaganda – fosse retirada para revelar o substrato mortal branco e preto do negativo fotográfico, que as subtende”[9].

ESCAVANDO A SUPERFÍCIE DAS COISAS

O processo histórico que estamos descrevendo focaliza alterações cruciais nos paradigmas artísticos, relacionadas a importantes mudanças na dinâmica social instauradas na segunda metade do século XX – e em especial a partir dos anos 1960 -, que levaram à redução das possibilidades de dissenso no mundo contemporâneo. O resgate de dimensões simbólicas na arte contemporânea, que tem em Joseph Beuys um dos seus exemplos primeiros e mais importantes, surge como uma reação evidente a essas dificuldades, procurando formas de reespessamento da relação com o mundo.

Usando materiais informes e sensíveis ao calor, como o feltro, a cera e a gordura, Beuys realiza trabalhos em que o sentido não está dado na sua superfície, mas, ao contrário, em uma dimensão interna. Partindo da premissa de que o mundo da aparência – da visibilidade e da mercadoria – foi inteiramente colonizado pela racionalidade técnica e pela mercantilização das relações, o artista alemão procura desvincular os materiais de sua exterioridade instrumental, buscando outras dimensões de significação em que o sentido dos trabalhos é suspenso ou retardado. Assim, a aparência exterior desses trabalhos se torna apenas um indicador de processos internos não representáveis, aludindo à ideia de um mundo mais profundo que resiste ao uso e à manipulação. Portanto, se a Pop Art transforma as coisas em imagens, não importando que seja uma lata de sopa ou a Marilyn Monroe, Beuys, ao contrário, converte o mundo em matéria informe: a cadeira em gordura, o piano em feltro etc. E ainda, se a Pop e a Minimal tratam de superfícies sem interior, a arte de Beuys parece apresentar, por sua vez, interiores sem superfície, matérias sem forma.

É interessante notar a existência de uma genealogia de artistas alemães que desenvolvem questões a partir desse ponto, tal como no caso das imagens borradas de Gerhard Richter, pintando figuras desfocadas a partir de fotografias, numa associação inusitada entre Beuys e Warhol. Nessas telas de imagens nebulosas, Richter reflete sobre o périplo sem fim da imagem na sociedade contemporânea – fotografada, pintada, impressa, refotografada-, cuja vertigem suspende de certa forma a remissão a uma realidade original que estaria sendo representada, contestando a literalidade pop. Essa suspensão da literalidade e da nitidez é fundamental para o trabalho artístico que Michael Wesely começa a desenvolver com fotografias de longuíssima exposição a partir de meados dos anos 1990.

O trabalho artístico de Wesely parte de uma profunda crítica à condenação da fotografia a uma poética literal e restrita. Procurando incluir a dimensão temporal no instante fotográfico, como que a aproximar a fotografia do cinema, Michael Wesely criou um caminho absolutamente original entre os artistas contemporâneos, revolucionando o médium simultaneamente à forma narrativa. Eis aí a grande diferença do seu trabalho em relação ao de outros fotógrafos de sua geração que também procuraram romper com o paradigma moderno, porém atuando unicamente no plano narrativo, através do registro de cenas propositadamente banais, cromaticamente saturadas, e próximas ora de uma poética da desolação e da ruína, ora do hiper-realismo quase fantástico. Dando um passo além da mera exploração temática ou narrativa da fotografia, os trabalhos de longa exposição de Wesely atuam a partir de uma profunda autoconsciência interna ao próprio suporte, potencializando a fotografia como arte.

O processo de fotografia em longa exposição foi criado por Michael Wesely através da preparação de câmeras especiais, em que uma combinação de filtros retarda enormemente a gravação da imagem, permitindo que o registro das cenas se estenda por um tempo muito longo. O resultado é uma imagem única, na qual tudo o que esteve presente diante da câmera durante o tempo em que ela esteve aberta foi plasmado. Plasmado, porém, de um modo muito singular: na forma de sobreposição simultânea de camadas imagéticas com diferentes graus de nitidez, como num estranho palimpsesto. Pois a fotografia fixa melhor os objetos estáticos, duradouros, enquanto os transitórios se esfumam em infinitas gradações de opacidade e transparência, compondo uma imagem espectral. Muito distantes do realismo literal, suas fotos são, portanto, constituídas por uma sucessão de camadas de tempo que se espacializam, pois ao dilatar enormemente o instante do clique fotográfico em horas, dias, meses ou anos, Wesely dá uma feição surpreendentemente tangível à duração temporal, antes alheia ao universo diacrônico da fotografia.

As fotos de longa exposição feitas por Michael Wesely carregam o rico paradoxo da unicidade-multiplicidade, uma vez que são imagens únicas que trazem consigo longas histórias, gravadas de modo não sequencial. Seria possível, a partir daí, considerá-las imagens sintéticas? Sim e não, eu diria. Não, no sentido em que criticam a ideia de síntese como resumo autoevidente de uma situação complexa, revelando, em última análise, o caráter ilusório de qualquer operação sintética nos tempos atuais. Mas também sim, por outro lado, exatamente na medida em que essa mesma crítica abre-nos a possibilidade de imaginar sínteses abertas, fragmentárias e distendidas, formadas por narrativas não diretamente legíveis, e remetidas mais às noções nebulosas de trama e de rede do que de uma teleologia causal.

Nesse sentido, apesar de resultarem muito belas plasticamente, suas fotos se opõem fortemente ao sentido reificado da imagem no capitalismo tardio, uma vez que trazem à luz todo o processo material que está por trás da cena enquanto produto final de uma cadeia produtiva e temporal. Assim, os trabalhos de Michael Wesely desrecalcam a profundidade na poética fotográfica, revelando a superficialidade de uma sociedade que cultua imagens iridescentes e sem espessura histórica. Vem daí o fato de Wesely ser, certamente, um dos artistas mais capacitados a registrar e tensionar a dimensão complexa e turva da cidade contemporânea, dita global e genérica, e suas múltiplas transformações particularmente inscritas em obras de grande escala.

Um dos trabalhos que melhor desenvolvem essa questão é o que registra o processo de reconfiguração da Potsdamer Platz, em Berlim, em fotos com durações variadas que muitas vezes ultrapassam dois anos, feitas entre 1997 e 2000. Instalando câmeras em cinco lugares protegidos e privilegiados para a observação do transcurso das obras, Wesely montou um set com diferentes pontos de vista. Conduzidas por um plano diretor desenhado por Renzo Piano, que incluiu projetos de edifícios assinados por importantes arquitetos do chamado star system mundial, as obras no conjunto formado pela Potsdamer e a Leipziger Platz movimentaram não apenas toneladas mensuráveis de terra, aço, concreto e vidro, como também as maiores expectativas quanto à nova face urbana do mundo capitalista no raiar do século XXI, uma vez que mexiam em um símbolo crucial não apenas para a Alemanha reunificada, mas também para a Comunidade Europeia e, em última análise, para o novo mundo unidimensional que emergia da queda do muro de Berlim – muro que justamente cortava a praça, apagando-a do mapa durante os seus 28 anos de existência.

Diante de tamanha complexidade e carga simbólica, o resultado obtido por Wesely nesse trabalho é espantoso. O que vemos aí é um emaranhado de formas sobrepostas: edifícios em construção fundindo-se em formas espectrais, o skyline da cidade por trás, gruas e andaimes por toda parte, brilhos e luzes refratados, e o desenho cambiante do percurso do sol no céu ao longo das estações do ano. Quer dizer, o artista encontra nesta série uma maneira cortante de representar uma reunificação mais ilusória do que real, mostrando-a como um conjunto de estratos espaço-temporais esgarçados, fragmentários, fraturados internamente – como num plano cubista atualizado -, e que nos interpelam como uma poderosa fantasmagoria do presente.

Criando um provocativo amálgama entre elementos técnicos e naturais, como lajes e aterros, ou vidros espelhados, miríades de reflexos e o próprio movimento concreto do sol no céu, suas fotos nos apresentam iconografias urbanas que hibridizam artifício e natureza, criando um poderoso retrato dos tempos atuais. É sob essa lente inequivocamente contemporânea que Michael Wesely retrata e ressignifica as novas megaoperações de transformação urbana pelo mundo no capitalismo tardio, em que a engenharia e a arquitetura de grande porte deixaram de estar restritas ao plano dos problemas territoriais e infraestruturais, tornando-se eixos centrais do imaginário e da própria cultura de massas.

TRANSPARÊNCIA AMBÍGUA

Nos seus retratos mais conhecidos, os arquitetos japoneses Kazuyo Sejima e Ryue Nishizawa nos encaram com um olhar lívido e ausente, e com roupas neutras, cinza ou pretas, sobre um fundo branco. Espontâneas ou construídas, suas personas públicas demonstram uma frieza pálida, e uma desdramaticidade que espelha os traços de sua própria arquitetura, que, a meu ver, retrata de maneira vertical certo espírito do nosso tempo. Com um traço de autoria marcante, seus edifícios extraem um sensualismo imprevisto da inexpressividade, fundindo o racionalismo cartesiano ao contorno orgânico das formas naturais.

Sejima começou a carreira trabalhando com Toyo Ito, nos anos 1980.. E foi justamente Ito quem primeiro definiu a produção de Sejima como um ponto de mutação no cenário arquitetônico contemporâneo através do termo “arquitetura diagrama”[10], que se tornaria, não por acaso, o conceito-chave da arquitetura nos anos 2000, indicando um princípio de integração entre função e espaço a partir de uma nova matriz informacional. A arquitetura de Kazuyo Sejima, ainda segundo a caracterização de Toyo Ito, figura uma relação inédita entre corpo e espaço construído, parecendo abrigar apenas androides sem cheiro nem calor no interior de suas superfícies anódinas. Já distante das arestas fraturadas do desconstrutivismo, seus edifícios sinuosos e espectrais não procuram desestruturar o objeto arquitetônico enquanto tal, como em Peter Eisenman ou Kazuo Shinohara. Sua operação é mais delicada: eles dissolvem as conhecidas hierarquias arquitetônicas, tais como as que existem entre estrutura e vedação, ou espaços de circulação e de estar, aspirando a uma homogeneidade fria porém sensual, que, segundo a analogia feita por Toyo Ito, tem proximidade com o imaginário do mundo digital.

Fundando o SANAA em 1995, Sejima e Nishizawa prolongam em sua obra conjunta as características descritas acima, radicalizando o sentido de grande continuidade espacial dos edifícios, baseada no paradoxo entre a enorme fragmentação dos espaços interiores e a cristalina legibilidade geométrica do volume externo. Os exemplos mais claros desse procedimento são duas obras-primas: o Museu de Arte Contemporânea do Século 21 (1999-2004), em Kanagawa, e o Pavilhão de Vidro em Toledo, Ohio (2001-2006). Trata-se de dois edifícios em que um amontoado aparentemente aleatório de blocos isolados que não se tocam são contidos por uma forma pura de vidro – um cilindro, no primeiro caso, e um retângulo no segundo. Em Kanagawa, o perímetro circular permite a entrada no edifício por qualquer lado, destruindo o conceito de fachada, que supõe uma hierarquia. Por fora, vemos uma superfície centrífuga e infinita. E, por dentro, um labirinto de percursos entre salas e pátios, no qual os espaços de circulação (os interstícios entre os blocos) se tornam também lugares de estar, ganhando um protagonismo inédito. Na esteira da tradição cultural do seu país, Sejima e Nishizawa sabem perfeitamente construir o vazio.

Figura . SANAA, Museu de Arte do Século 21, Kanagawa (Valentina Tong)

Kazuyo Sejima associa a sociedade da informação contemporânea à falta de profundidade e de transparência. Daí que ela se declare interessada em explorar diferentes graus de opacidade e reflexão ao usar o vidro, criando efeitos atmosféricos através da sobreposição de planos envidraça­ dos curvos, muitas vezes jateados ou serigrafados, combinados a cortinas brancas. Por outro lado, afirma buscar a transparência através de materiais opacos, criando um curto-circuito entre visualidade e materialidade por intermédio da solução espacial. Em suas palavras: “O que eu procuro encontrar é uma forma de transparência sem um material transparente. Assim, não se trata de uma transparência literal mas conquistada, por exemplo, graças a algum método de desenho”[11].

Se a sociedade da informação tem uma relação estreita com a falta de visibilidade, ao contrário do que postularam os profetas da virtualidade, como Paul Virilio, a arquitetura do SANAA busca entrar em fase com a subjetividade contemporânea, associando-a também à flexibilidade e à homogeneidade. Por outro lado parece refutar, em suas ambiências hospitalares, o consumismo compulsivo da nossa sociedade, criando um vetor de oposição a ela. É claro que essa oposição, dada a sofisticação das suas soluções construtivas, pode ser vista como um mero despojamento cool. No entanto, me parece que a rápida pregnância alcançada pela arquitetura de Sejima e Nishizawa no mundo contemporâneo se deve menos a uma facilidade do que a um incômodo. O incômodo sedutor do anonimato voluntário em um mundo pós-sociedade de massas, com espaços pouco hierarquizados, diáfanos e anoréxicos, que se revelam, no entanto, de grande acolhimento, como se da crisálida dos androides nascessem homens comuns: nós. Pois em meio ao bombardeio sensorial da sociedade da informação, o que mais desejamos são mensagens insinuadas, não literais.

Figura . SANAA, Pavilhão de Vidro em Toledo, Ohio (Guilherme Wisnik)

Figura . SANAA, Pavilhão de Vidro em Toledo, Ohio (Guilherme Wisnik)

E não poderiam ser outros que não os japoneses os mais aptos a traduzir a fenomenalidade contemporânea na dimensão do mistério e da obscuridade, por oposição à literalidade da luz ocidental, símbolo da espiritualidade e da razão[12]. Assim, é preciso não se enganar quanto ao significado do branco-gris de todos os edifícios que trazem a marca do SANAA. A propósito, como já observou Luis Fernández-Galiano, “Diante da solidez solar das arquiteturas do jogo sábio e magnífico de volumes sob a luz, essas obras etéreas ostentam a palidez lunar dos espíritos noturnos, e uma fragilidade evanescente que a sensibilidade romântica denominou de feminina”[13].

Se Herzog & De Meuron exploram ao limite a realidade física para transcendê-la e aspirar ao imaterial[14] , a arquitetura do SANAA parte direto desse grau zero da materialidade e da tectônica, em que paredes quase sem espessura e pilares de esbelteza inverossímil parecem querer liberar a construção da densidade e da inércia. À beira do desvanecimento, atrás de um sfumato que desrealiza os seus perfis em sombras e reflexos, a imaterialidade abstrata dos edifícios do SANAA está distante daquela celebrada por Lyotard em meados dos anos 1980[15]. Dissolvendo o esqueleto das construções em bosques de colunas quase imperceptíveis, Sejima e Nishizawa reduzem a referência antropomórfica da arquitetura em edifícios feitos quase que apenas de pura pele, mas com uma riqueza espacial interior inegável, que refusta qualquer suspeita da ênfase epidérmica. Em resumo, eu vejo na arquitetura do SANAA uma espécie de sonambulismo lúcido, cuja vitalidade provém justamente da sua aparência inerte. E que, como em outras manifestações artísticas recentes, tais como as canções do Radiohead, parecem manter a nossa atenção presa à circularidade translúcida da sua superfície, prometendo um mergulho em seu interior, que revelaria a sua estrutura formal. Mas o acesso a essa dimensão, no entanto, permanece sempre vedado, mantendo-nos em hipnótica vigília.

ARQUITETURA COMO AR

O discurso que embasa a produção de arquiteturas topográficas ou paisagísticas – certamente uma das maiores modas contemporâneas – reivindica a ascendência de uma tradição plástica que remonta ao pitoresco e ao sublime, e que teria sido marginalizada durante o modernismo, no século XX, sendo agora reabilitada no contexto da emergência das discussões sobre a sustentabilidade do planeta e das novas teorias antropológicas que propõem abolir a rígida divisão iluminista entre natureza e técnica.

Com efeito, a produção de muitos dos artistas e arquitetos que focalizo nesta conferência-artigo, embora partilhe esse mesmo campo de inscrição conceitual, não procura mimetizar a paisagem com relevos, morros ou superfícies gramadas. Trata-se, ao contrário, de abordagens menos formais da questão, e que também não se reportam às “arquiteturas líquidas” baseadas em Bergson e Deleuze[16]• Em essência, são abordagens que não propõem a construção de paisagens, e sim, antes, a desconstrução de visões, em situações de suspensão do sentido nas quais a baixa definição visual parece indicar a possibilidade de um estado de transmutação simbólica. Nesse sentido, estamos mais próximos do cinema, na ambiência quase religiosa de certos filmes de Andrei Tarkovsky- como da enigmática “zona”, em Stalker (1979) -, do que do paisagismo ou da escultura propriamente ditos.

Figura . Laura Vinci, No Ar, São Paulo (Nelson Kon)

Ao contrário do que ocorre na tradição do racionalismo iluminista, a estética do pitoresco e do sublime costuma borrar os limites entre natureza e artifício, dando lugar a experiências artísticas que se desenvolvem de forma distendida no tempo. Essa dilatação da experiência, que não é propriamente formalizável, encontra, no entanto, uma bela tradução formal na imagem da névoa, ou da nuvem: um meio quase indefinível entre o material e o imaterial, e que, no polo oposto ao plano imanente da visão perscrutadora iluminista, parece nos transportar a um plano transcendente, como em um céu que, surpreendentemente, tivesse baixado à terra.

De acordo com Claude Lévi-Strauss, o nevoeiro é um elemento simbólico recorrente nas mitologias ameríndias, encontrando inúmeras variações sobre uma mesma estrutura narrativa ao longo de todo o continente. Assim, em vários dos mitos inventariados por ele na América, o denso nevoeiro que cai de repente e obscurece a visão dos seres (humanos e não humanos) é o véu que cobre por um instante a realidade, desencadeando uma situação a partir da qual as coisas se transmutam e trocam de posição. Em suas palavras, o papel do nevoeiro, nesses casos, é “alternadamente disjuntivo ou conjuntivo entre alto e baixo, céu e terra: termo mediador que junta extremos e os torna indiscerníveis, ou se interpõe entre eles de modo que eles não podem se aproximar”[17] .

Figura . Rio Yagtze próximo à Represa de Três Gargantas (Valentina Tong)

No campo da arquitetura, essa questão aparece de maneira contundente no pavilhão temporário projetado por Elizabeth Diller e Ricardo Scofidio para a Expo 2002, na Suíça, com a consultoria da artista japonesa Fujiko Nakaya[18]. Construído sobre o lago Neuchâtel, o Blur building é uma plataforma constituída por uma trama de estrutura metálica vazada, acessível por uma extensa passarela, e envolvida por uma nuvem permanente, que muda de tamanho e densidade reagindo às mudanças climáticas do entorno. Essa nuvem é formada pela água captada no lago e aspergida por pulverizadores controlados por computador. O edifício, portanto, desaparece enquanto forma, apresentando-se às pessoas como algo indefinido, uma vaga neblina, um rumor branco e cinza. Trata-se, segundo Elizabeth Diller, de um “medium habitável e informe”, um “ambiente imersivo no qual o mundo é posto fora de foco, enquanto a nossa dependência visual é posta no foco”. E completa: “Blur é, decididamente, um projeto de baixa definição: nesse pavilhão de exposição não há nada para se ver além da nossa própria dependência da visão”[19].

Tomando a associação feita por Walter Benjamin entre ruína e alegoria, Jane Rendell situa o edifício nebuloso de Diller + Scofidio nesse campo filosófico – a visão da história como ruína -, que em termos artísticos se reporta claramente à tradição do pitoresco. O Blur, no entanto, não entraria nessa chave por encarnar uma poética da melancolia diante de espaços vazios ou abandonados, mas por sua exploração espacial da transitoriedade e da desintegração ao longo do tempo, como ferramenta alegórica que apontaria um estado de expectância, de descolamento da realidade, assumindo um papel tanto conjuntivo como disjuntivo, retomando aqui os termos de Lévi-Strauss. Para Rendell, a força disjuntiva da obra está na obstrução forçada da visão, que instaura uma experiência crítica no contexto de um evento dessa magnitude. Assim, diz ela: “Parece que nesse contexto particular – a exposição-, a experiência dessa arquitetura como atmosfera não foi nem de distração nem tampouco de contemplação, mas criou um lugar para a crítica, colocando a importância de um longo passeio pelo lugar sob condições em que a visibilidade é baixa, e em que é possível não ‘ver’, em oposição ao rápido consumo visual esperado por tal sociedade do espetáculo no caso de uma exposição internacional”[20].

Em um texto publicado na revista Anything um ano antes do evento, Elizabeth Diller já anunciava o projeto do pavilhão, que então se chamaria Blur/babble (fora de foco e ruidoso), já que em meio à densa nuvem branca seriam (e foram) instaladas fontes sonoras dispersas, criando um burburinho que ela chamou de “ruído branco”. Ainda nesse texto, Diller ressalta a importância que o tempo climático vem ganhando nas discussões científicas, políticas e jornalísticas, em razão de concentrar as maiores incertezas atuais sobre o futuro da vida no planeta. Daí que Blur/babble tenha procurado refletir, e fazer refletir, sobre essa questão, tendo sido concebido, segundo Diller, como uma “épica, interativa e serial ópera do tempo”…[21]

Ainda que possa ser criticado por participar da chamada “economia da experiência” contemporânea – e de fato alguns aspectos da obra nos reportam a isso, como a degustação de águas glaciais no seu sky bar, ou a incorporação de sensores cromáticos nos casacos de chuva usados pelos visitantes-, o Blur building é uma das mais poderosas obras de arquitetura contemporânea, exatamente pela sua capacidade de literalmente borrar a fronteira entre arquitetura e artes plásticas em um trabalho de natureza indefinível.

Algo que está suposto no desejo de Diller + Scofidio de tratar arquitetonicamente (e também artisticamente) a questão do clima é a percepção de que em um tempo marcado pelo declínio das disputas político-ideológicas, que situavam a noção de conflito, de forma materialista, no andamento histórico, a imagem da alteridade parece ter se deslocado para as revoltas da natureza, como o efeito estufa, a ameaça de esgotamento da água e do petróleo, e os terremotos, ciclones, vulcões e tsunamis. Daí a noção de incerteza associada ao clima, já que não se trata de um inimigo claramente identificável. E se o Blur building, por isso mesmo, leva a “transparência fenomenal”[22] ao quase limite da opacidade e obscuridade, outros artistas saem a campo para tentar capturar o ciclone em seu momento de formação, como no caso de Francis Alys (Tornado, 2010), imaginando talvez que a única forma de se compreender o mundo contemporâneo seja flagrar o diabo no meio do redemoinho, como o enigma da esfinge: decifra-me ou devoro-te. E não seriam o tornado de Alys e as nuvens de Sejima, Ishigami, Wesely, Olafur Eliasson e Diller + Scofidio imagens acabadas da crise financeira contemporânea e da incapacidade que temos de imaginar formas de saída para ela?

IRREALIDADE VEROSSÍMIL

O tema do nevoeiro nos leva, obrigatoriamente, à obra do artista dinamarquês (de origem islandesa) Olafur Eliasson, cuja produção, aliás, é central para a discussão da relação contemporânea entre as artes plásticas e a arquitetura.

A obra de Olafur lida, em grande medida, com fenômenos e elementos da natureza tais como vento, água, luz e fumaça. Mas nem por isso pode ser associada a qualquer discurso ecológico que implicasse as ideias de pureza ou de retorno a um estado essencial da vida. Ao contrário disso, a natureza, no trabalho de Olafur, é dada sempre por um condicionamento cultural, isto é, aparece necessariamente como construção, e não como verdade redentora. Vem daí o aspecto muitas vezes surrealista dos seus trabalhos, que replicam artificialmente elementos naturais colocando-os em confronto com seus pares “reais”, criando assim uma dimensão da experiência na qual a ilusão e a realidade estão interconectadas, tornando-se, portanto, indiscerníveis. Nas palavras do próprio artista, “estamos sendo testemunhas de uma mudança na relação tradicional entre realidade e representação”. Assim, “já não evoluímos do modelo (maquete) à realidade, mas do modelo ao modelo, ao mesmo tempo em que reconhecemos que, na realidade, ambos os modelos são reais”[23]. Consequentemente, prossegue, “podemos trabalhar de um modo muito produtivo com a realidade experimentada como um conglomerado de modelos”, pois “mais que considerar o modelo e a realidade como modalidades polarizadas, eles agora funcionam no mesmo nível. Os modelos passaram a ser coprodutores de realidade”[24].

Essa mudança na relação tradicional entre realidade e representação a que se refere deve ser compreendida à luz de uma soma entre os efeitos da emancipação pós-moderna dos significantes – o que, em outros termos, equivale à hipertrofia da imagem na sociedade de consumo – e da acelerada virtualização da experiência com as tecnologias digitais na última década. Ocorre que, no caso de Olafur, em vez de reforçar esse efeito de artificialidade como perda total do referente, os trabalhos procuram criar um campo de equalização dessas instâncias, na medida em que deixam de ser tratadas como polaridades duais. Vem daí o seu foco na questão da participação do visitante como condição da experiência dos trabalhos de arte. O que quer dizer que esses trabalhos só se realizam como necessárias negociações intersubjetivas entre o artista, o espaço e o público.

Note-se, no entanto, que não se trata exatamente de converter o espectador em ator, como em muitas instalações participativas dos anos 1960, mas de negociar os termos da criação com ambientes de explícita artificialidade, nos quais a percepção assuma um papel construtivo, e portanto restaurador de uma possível subjetividade da experiência.

Se as atmosferas enevoadas criadas por Olafur criam um campo de embaralhamento entre natureza e artifício, o fazem espacialmente reabilitando a noção de ilusionismo, estigmatizada por uma corrente dominante da arte moderna. É o que se vê, por exemplo, em um trabalho urbano como Double sunset (1999), feito em Utrecht, na Holanda, onde o artista criou um sol artificial, feito de chapa metálica e iluminado por uma bateria de lâmpadas de xenônio, posicionado no alto de um edifício da cidade. Assim, dependendo do ângulo do qual se olhasse para esse estranho sol artificial e baixo – em uma cidade de alta latitude, na qual o pôr do sol é um fenômeno lento e cotidianamente apreciado durante o verão-, se poderia vê-lo simultaneamente ao pôr do sol real, criando uma duplicidade algo sinistra. Situação que se desdobrava ainda durante a noite, quando a iluminação dos holofotes de um estádio vizinho ao prédio no qual o trabalho se instalava o fazia brilhar como um impossível sol noturno.

Em 2003, aquele inusitado sol de Utrecht – duplo e onipresente -, reapareceu de forma alterada em Londres, no interior da Galeria das Turbinas, o magnífico hall de entrada da Tate Modem. Intitulado The weather project, era também feito por um semidisco metálico estruturado por andaimes e iluminado por lâmpadas de monofrequência. Além disso, o artista instalou um espelho rente ao teto do salão, duplicando o espaço e refletindo suas imagens – a arquitetura, as pessoas e o próprio meio sol, que, ao duplicar-se, completava-se -, além de envolvê-lo também em uma bruma artificial, cujo ar de mistério potencializava o sentido de verossímil irrealidade da situação. Aproximo aqui o verossímil do irreal na medida em que o trabalho logra de fato dissolver essas polaridades, no calor implacável de sua luz fria. O resultado é que as pessoas acorriam em grande número para o museu, durante o inverno londrino, com a intenção de se deitar no chão daquela praia artificial e receber na pele – ainda que apenas de forma mediada, pelos olhos e o cérebro, porém de modo muito verossímil – a energia daqueles benéficos raios solares. Tamanho foi o êxito do trabalho, que catapultou a carreira de Eliasson a um plano de consagração muito mais alto, sendo reconhecido ainda hoje como o mais importante trabalho já feito na Tate Modem.

Minha referência ao sucesso de The weather project não visa apenas elogiar a obra de Olafur. Nos termos da discussão proposta aqui, interessa investigar as razões desse sucesso, para além de suas razões mais evidentes, tais como a qualidade estética intrínseca – verificável inclusive no plano do ‘belo”-, e o enorme poder simbólico e midiático da instituição. Uma chave para essa questão, me parece, foi a instalação ter conseguido associar a inegável qualidade de espaço público daquele lugar à exploração de algo que talvez seja um dos poucos domínios verdadeiramente públicos ainda hoje: o tempo atmosférico (no sentido de weather, não de time), ao qual já me referi a propósito do Blur building.

Uma das grandes qualidades do trabalho de Olafur Eliasson, segundo o antropólogo Bruno Latour, é a superação das velhas e esgotadas distinções entre polaridades como o selvagem e o domesticado, o privado e o público, ou o técnico e o orgânico. Latour é um dos grandes formuladores da chamada “antropologia simétrica”, que, a partir de questões levantadas inicialmente por figuras como Claude Lévi-Strauss, propõe leituras da sociedade contemporânea que partem da inclusão estrutural da alteridade, isto é, da crítica à perspectiva dominadora ocidental, segundo a qual o outro deve ser reduzido ao eu. A grande questão contemporânea, diz Latour, é a progressiva fusão das duas formas de representação que foram separadas ao longo da história: a representação da natureza e a representação das pessoas em sociedade, isto é, a separação entre coisas e pessoas, ciência e política.

Segundo a visão moderna-iluminista, a história da civilização é a épica trajetória de emancipação daquele estado primitivo, animista, em que os homens se mesclavam com o mundo, em direção à separação racional de tudo. Assim, o corte racionalista ocidental separou sujeito e objeto, fatos e valores, buscando eliminar aquela antiga “confusão” do estado natural. A própria crítica à objetificação do mundo sob o capitalismo, como razão da obstrução de uma política baseada na “livre” ação comunicativa – tal como a que vemos em Jürgen Habermas -, se baseia no aprofundamento dessa divisão.

Hoje, no entanto, observa Latour, a ação humana se ampliou a uma escala em que as antigas paredes dos laboratórios se expandiram, extrapolando as fronteiras do planeta. Como explicar fenômenos como o buraco na camada de ozônio, por exemplo, ou a poluição dos rios, os embriões congelados etc.? Estariam, esses fenômenos, no campo do natural ou do cultural? Desde que o mundo inteiro foi convertido em um grande laboratório (um “campo ampliado”), vivemos um experimento generalizado, no qual todos são atores. É a “era da participação”, segundo Latour, na qual experiência e experimento se tornaram uma coisa só, um grande híbrido contemporâneo. Esse “campo ampliado” da experiência pede uma nova compreensão da política, observa Latour, na imagem de um “parlamento das coisas” (Dingpolitik)- que voltasse a associar as ideias de “público” e de “coisa”: Res publica[25].

Como extrapolar os experimentos científicos, historicamente fechados em laboratórios, para a atmosfera de toda uma cultura? Essa é uma pergunta crucial para a nova política, segundo Latour, no momento em que as referências de alteridade e de exterioridade se esfumam. Assim, se nós estamos emaranhados no mundo, as coisas acontecem sempre no interior, e não no exterior. “Devido à extensão simultânea da ciência e ao sempre crescente entrelaçamento das atividades humanas com as coisas”, insiste Latour, “já não há um exterior.” E, fazendo recurso a uma imagem alegórica, observa que o que Olafur Eliasson nos ajuda a descobrir, com seus trabalhos, é que “até a política necessita de ar condicionado”[26].

No seu “programa ambiental” de 1966, Hélio Oiticica fez a conhecida afirmação de que o “museu é o mundo”. Hoje, no entanto, se formos atualizar esse princípio de “apropriação geral” proposto por ele, veremos que, se por um lado o museu vai de fato se dissolvendo no mundo, como a arte na vida, o próprio mundo, por outro lado, vai também se museificando com o turismo, a publicidade e a economia de serviços, segundo uma lógica de equivalência entre realidade e modelo. A singularidade da posição de Olafur Eliasson está em nem aceitar a ideia de autenticidade defendida pela contracultura, em que arte e vida se integram – de matriz ainda moderna -, nem defender a artificialidade do simulacro pós-moderno. No meio do nevoeiro, não é possível decidir se estamos de um lado ou de outro da ponte. O que há é apenas a própria ponte.

A FUMAÇA E O ANJO

Se o nevoeiro identificado por Lévi-Strauss nas mitologias ameríndias tem eficácia simbólica porque se reporta tanto a um fenômeno meteorológico quanto a uma produção humana – a fumaça do cozimento de alimentos, ou de sacrifícios rituais, por exemplo -, aqui também seria preciso lembrar que a alegoria evocada pela névoa, se tomada como ruína, incide não apenas em aspectos simbólicos relativos à transcendência – o céu na terra -, mas também a uma série de irrupções trágicas no cotidiano, da ordem da imanência, como por exemplo as fumaças de grandes incêndios e demolições.

Em relação às demolições, penso, por exemplo, na clássica imagem da implosão do conjunto habitacional de Pruitt-Igoe (St. Louis), em 1972, assim como, evidentemente, nas várias fumaças que tomaram Nova York após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001: a fumaça negra do incêndio nas torres, a fumaça branca do momento da queda, a nuvem amarelada que pairou nos extratos mais baixos depois da queda, depositando-se em forma de fuligem sobre as pessoas, e a intensa neblina cinzenta que cobriu a cidade por semanas, e que, em termos simbólicos, parece que não se dissipará tão cedo.

Duas megademolições, acompanhadas de suas respectivas fumaças, que no curto intervalo de 29 anos marcaram duas viradas de página da história: a irrupção do pós-modernismo, no primeiro caso, e o início de uma era ainda sem nome, no segundo, dominada pela globalização, e que atinge a sua eficácia trágica através do próprio imperialismo da mídia. como que subvertendo por dentro a sociedade do espetáculo. Nos termos da nossa discussão aqui, é significativo que essas novas eras se inaugurem através de demolições, e não de gestos construtivos – como foram o avanço da ciência e a descoberta da América, por exemplo, em momentos anteriores. Tal percepção parece reforçar o sentido trágico do “pacto fáustico” feito pela modernidade desde o século XIX, que levou Nietzsche a definir a história moderna como uma dialética entre a “destruição criativa” e a “construção destrutiva”[27]

A propósito, uma das muitas evidências sobre o mundo contemporâneo trazidas com os ataques de 11 de setembro foi a revelação, ainda que paradoxal, do renovado alcance midiático da arquitetura, cuja escala e difusão vieram a fazer inveja a muitos artistas – lembremos, aliás, da polêmica declaração do músico Stockhausen de que o atentado de 11 de setembro “é a maior obra de arte imaginável”. O que ajudaria a explicar, segundo Liane Lefaivre, a enorme invasão de temas e inspirações arquitetônicos na arte contemporânea[28]. Mais uma vez, temos aqui a aproximação entre arte (arquitetura) e tragédia, cujo poder violentamente disruptivo pode ser visto como algo da ordem do sublime, em uma sociedade na qual a imagem parece ter se tornado autônoma.

Assim, se em 1940 o “anjo da história” de Walter Benjamin era impelido para a frente pela ventania do progresso, acumulando ruínas atrás de si[29], hoje ele talvez estivesse perdido no meio de um nevoeiro sem brisa. Ou, então, retido por tempo indeterminado em algum aeroporto “sem teto”, vítima do caos aéreo, esperando a dissipação da nuvem de fumaça provocada por mais uma erupção vulcânica no Chile ou na Islândia.

Notas

  1. Stan Allen, “Del objeto al campo: condiciones de campo en la arquitectura y el urbanismo”, Naturaleza y artificio – el ideal pintoresco en la arquitectura y el paisagismo contemporáneos, Barcelona: Gustavo Gil, 2009. 
  2. Refiro-me às teses neoconservadoras conhecidas pela expressão cunhada por Francis Fukuyama em 1989, “o fim da história”, que viam o fim da Guerra Fria como a inauguração de um novo mundo unidimensional e pós-ideológico. 
  3. Nicolas Bourriaud, Pós-produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo, São Paulo: Martins, 2009. 
  4. Nicolas Bourriaud, Estética relacional, Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2006, p. 8. 
  5. Saskia Sassen, The global city: New York, London, Tokyo, Nova Jersey: Princeton University Press, 1991. 
  6. Fredric Jameson, Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio, São Paulo: Atica, 1997. O conceito de “capitalismo tardio” foi formulado por Ernest Mandel. 
  7. Pedro Fiori Arantes, Arquitetura na era digital financeira: desenho, canteiro renda da forma, São Paulo: Editora 34, 2012. 
  8. Rodrigo Naves, O vento e o moinho, São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 241. 
  9. Fredric Jameson, 1997, op. cit., pp. 36-37. 
  10. Toyo Ito, ”Arquitectura diagrama”, El Croquis n. 77[1] + 99, Madri: 2001. 
  11. Alejandro Zaera, “Una conversación con Kazuyo Sejirna y Ryue Nishizawa”, El Croquis n. 77[1] + 99, Madri: 2001, p. 17. 
  12. Junichiro Tanizaki, Em louvor da sombra, São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 
  13. Luís Fernández-Galiano, “SANAA en sueños”, AV Monografías n. 121, Madri: 2006, p. 6. 
  14. “Nós trabalhamos com a realidade física da arquitetura”, afirma Jacques Herzog, “porque só assim poderemos transcendê-la, ir mais além e chegar ao imaterial”, Jacques Herzog, Arquitectura Viva n. 91, Madri: 2003, p. 29. 
  15. Refiro-me à exposição Les immatéríaux, com curadoria de Jean-François Lyotard, ocorrida no Beaubourg em 1985. 
  16. lgnasí de Solà-Morales, “Arquitectura líquida”, Terrítorios, Barcelona: Gustavo Gili, 2002. 
  17. Claude Lévi-Strauss, História de lince, São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 22. 
  18. Fujiko Nakaya projetou a grande nuvem que coroava o Pavilhão Pepsi, na Exposição Universal de Osaka, em 1970. 
  19. Guida Incerti et al., Diller Scofidio ( Renfro): the ciliary function, Milão: Skira, 2007, p. 144. 
  20. Jane Rendell, Art and architecture: a place between, Londres: I. B. Tauris, 2008, pp. 99-101. 
  21. Elizabeth Diller, “Blur /babble”, Anything, Nova York: Anyone, 2001, p. 139. 
  22. Colin Ròwe e Robert Slutzky, “Transparencia: literal y fenomenal”, Manierismo y arquitectura moderna y otros ensayos, Barcelona: Gustavo Gili, 1999. 
  23. Olafur Eliasson, Los modelos son reales, Barcelona: Gustavo Gili, 2009, p.11 
  24. Idem, ibidem. 
  25. Bruno Latour e Peter Weibel (orgs.), Making things pub!ic: atmospheres of democracy, Karlsruhe: ZKM – Center for Art and Media Karlsruhe/ MIT Press, 2005. 
  26. Bruno Latour, “Atmosphêre, atmosphêre”, De lo mecánico a lo termodinámico: por una definición energética de la arquitectura y el territorio, Barcelona: Gustavo Gili, 2010, p. 106. 
  27. David Harvey, A condição pós-moderna, Rio deJaneiro: Loyola, 1993, pp. 25-26. 
  28. Liane Lefaivre, “Arte arquitectónico: una nueva tendencia en la Bienal de Venecia”, Arquitectura Viva, n. 102, Madri: 2005, p. 89. 
  29. Ver Walter Benjamin, “Sobre o conceito da história”, Walter Benjamin: obras escolhidas vol. 1. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 226. 

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