1994

Humanismo e pintura

por José Américo Motta Pessanha

Resumo

Diverso por natureza, o Renascimento aconteceu em vários países europeus em momentos e circunstâncias diferentes. Há contudo, nele, os seguintes aspectos inconfundíveis e relacionados: se, por um lado, ele se define pela rejeição da época que o antecedeu – a Idade Média –, retoma, por outro, a Antiguidade greco-romana. Não ela tal qual, claro; mas reinterpretada e reformulada, de modo a servir de inspiração e base para a construção de uma nova cultura.

Nova cultura, novo homem. Citadino e burguês, ele se afirma econômica e socialmente por meio de atividades artesanais e comerciais. Julga, inclusive a si mesmo, usando escala de valores não-tradicionais. Inverte-os até – sobretudo porque seu tempo não é mais o das verdades perenes, mas o presente. Para tanto, encontra aliados no passado, a exemplo dos platônicos e dos pitagóricos. É que, filosoficamente, não lhe bastam mais as categorias aristotélicas e escolásticas. Ele quer ser forte por si mesmo. Daí a “dupla verdade”, como a defendia Giordano Bruno. A revelada, divina, e a racional, humana. Ou seja: a fé e a razão, mãe da nova filosofia e da ciência. O conflito é, contudo, inevitável. O Deus imanente ou o Deus que se identifica com a Natureza é impossível. Bruno é queimado na fogueira. Pouco depois, Espinosa será perseguido e afastado do convívio social por toda a vida.

Interessante é que a pintura renascentista não tenha abandonado o tema religioso. São mesmo muitas e magníficas as Madonas – segundo novos cânones estéticos. Tanto que a mensagem é outra. No caso de Botticelli, por exemplo. Sua Virgem Maria é ainda serena; por outro lado, é opulenta, como as belas e saudáveis italianas de então. São a santidade e a beleza. Melhor: a santidade da beleza – dentro do mundo, “deste mundo”, que é o de Leonardo da Vinci. Gestos espontâneos segundo minuciosos estudos anatômicos, uma vez que não se trata somente da espiritualidade, mas da corporeidade também. O sagrado está, enfim, imerso no mundo físico – de Galileu. Há mesmo algo de pagão nisso tudo. Tanto que a beleza da Madona é a mesma da Vênus das águas, platônica e sem disfarces, menos porque nua, mais porque, em seu trono natural, cercada dos elementos naturais. O vento acorre, o céu brilha e a terra cobre-se de árvores e flores.

Mas será nas pinturas de Michelangelo na capela Sistina, no Vaticano, que se dará o apogeu pictórico renascentista, já imbuído de traços maneiristas e barrocos. Nelas cujas leituras mais bíblicas não dispensam mensagens profanas.

A começar pela Criação do Universo. Nela já se vê um Deus imponente, atlético, cuja potência exprime-se pela musculatura hercúlea. E é mesmo um Hércules a realizar trabalhos como a criação de astros ou a separação entre terra e água – vigoroso, decidido, determinante, dotado de um volume que, vindo de outra dimensão, produz as criaturas corpóreas ou, pelo menos, a concretude necessária para que elas existam no mundo.

A seguir, o protótipo do homem. Também atlético, ele é criado por um quase-toque – entre o Absoluto e o “ser em processo” de autodivinização – na mão do Criador. Isso porque sua condição é de coautor da realidade. Mais uma vez, flagra-se o paradigma da “dupla-verdade”, entre ciência, filosofia – e religião.

A partir daí, a criação de Eva, o Pecado Original – que impressiona pela ousadia lúdica –, a Expulsão do Paraíso, o Sacrifício de Noé…

Com Michelangelo, na capela Sistina, o Renascimento harmoniza, outra vez, espírito, natureza e corpo.


De início, é necessário reconhecer: não é fácil circunscrever com exatidão geográfica e temporal o Renascimento. Vasto e diversificado movimento cultural ocorrido em vários países da Europa, a partir de momentos e circunstâncias diferentes, o Renascimento possui genericamente duas características que permitem interligar suas múltiplas manifestações: por um lado, representa um novo momento histórico que sucede — e frequentemente critica e rejeita — concepções e valores medievais, por outro lado, como o próprio nome indica, significa a retomada, o renascer de ideias e cânones antigos, recolhidos da herança greco-romana e que, reinterpre-tados e reformulados, passam a servir de base e inspiração para a construção de uma nova forma de cultura, um novo “espírito”, uma nova “mentalidade”, uma nova visão-de-mundo.

Mas desde logo é imprescindível lembrar: a oposição entre Renascimento e Idade Média é muitas vezes estabelecida de forma excessivamente simplificada. Frequentemente corre-se o risco, por comodidade argumentativa ou deformado didatismo, de relacionar apenas dois estereótipos, duas caricaturas. E a oposição entre os dois momentos aparece nítida e radical justamente porque opera sobre imagens esquematizadas e empobrecidas. Na verdade, porém, sem eliminar a diferença e mesmo a oposição, deve-se tentar preservar a riqueza e as contradições internas de ambos os períodos, reconhecendo-se inclusive o que no Renascimento existe de prolongamento e sobrevivência do medieval.

Olhada com mais atenção, aquela frequente simplificação pode revelar razões mais profundas. E que, do mesmo modo que o Renascimento toma a Antiguidade greco-romana como inspiração — dela porém construindo uma imagem modelar que fatalmente simplifica a complexa realidade histórica, ao radicalizar alguns de seus aspectos e negligenciar outros justamente para poder usá-la como paradigma —, assim também a Idade Média e a Renascença passarão a ser vistas posteriormente como modelos e fontes de inspiração alternativos, numa polaridade que chega até nós. Mas, para isso, sofrerão análogo processo de simplificação e homogeneização, de esquematização e radicalização — para serem erigidos em arquétipos culturais. Passarão a ser vistas como expressões de valores contrapostos, como modelos alternativos e excludentes, sendo valoradas diversamente por historiadores e filósofos conforme cada época, pois usadas também como armas ideológicas no processo de busca de identidade e afirmação cultural. Assim, iluministas e liberais do século XVIII, na medida em que eles próprios estão empenhados numa luta político-cultural que geralmente os contrapõe à Igreja, são levados a repudiar o “trevoso” modelo medieval de uma sociedade e de uma cultura marcadas pela hegemonia do religioso, do eclesiástico, do católico, do perene e rigidamente hierarquizado. Consequentemente, só podem ver a passagem da Idade Média para o Renascimento como súbita passagem da treva à luz, como salto da obscuridade à iluminação, da fé submissa à corajosa razão. Mas, com isso, é a própria imagem do Renascimento que resulta “iluminada”, vista segundo a óptica radicalizadora do Iluminismo — o que tende a excluir dela qualquer contradição interna, qualquer laço com as “sombras” da Idade Média. O que leva a afirmar rupturas radicais onde persiste a continuidade. Por sua vez, o Romantismo, ao revalorizar aspectos da Idade Média e ao restabelecer, a seu modo, o vínculo entre finitude humana e infinito, tende também a idealizá-la, a lhe emprestar caráter de idealidade arquetípica. Mas com isso, em contrapartida, tende a empalidecer e a desvalorizar alguns dos traços mais fortes e inovadores do Renascimento.

A complexidade histórica de ambos os períodos tem sido, assim, simplificada, para que possam melhor servir de instrumentos argumentativos ou de armas de combate em batalhas ideológicas ocidentais. A heterogeneidade e a tensão interna de cada um deles têm sido geralmente aplacadas, para que possam dar lugar a dois modelos antagônicos de vida, de sociedade e de cultura, construídos pela exacerbação de suas diferenças. Ao historiador mais cauteloso e exigente cabe inevitavelmente lidar com esses arquétipos, mas buscar, através deles e apesar deles, resgatar a riqueza histórica — sempre marcada por contradições — que eles ao mesmo tempo ocultam e revelam.

Cabe saber, de saída, que a Idade Média não é apenas aquilo que os românticos viram e exaltaram, como o Renascimento não se reduz ao que foi visto e exaltado por liberais e iluministas. Cabe saber ainda que a “superação” — perigoso conceito equivocadamente empregado, em geral, numa acepção linear, unidirecional, “progressista” — do medieval pelo renascentista, na sequência histórica, não se efetiva de forma sempre nítida e definitiva, nem ocorre da mesma maneira em todas as culturas. Mais: que o medieval e o renascentista muitas vezes convivem, em harmonia ou tensão, no mesmo pensador ou no mesmo artista. Se há ruptura e oposição — e incontestavelmente há —, existe também, em muitos casos, duplo compromisso e continuidade. Pois somente entre os modelos abstratos e as imagens radicalizadas e simplificadas que são feitas dos dois períodos é que podem ser estabelecidas diferenças também radicais e absolutas.

Com a cautela sugerida por essas ressalvas, pode-se dizer que o Renascimento é um momento histórico-cultural complexo e heterogêneo, que se desenrola ao longo de aproximadamente dois séculos na Europa: o XIV e o XV. Mais do que mera “passagem” do medieval ao moderno, possui características próprias, surgindo como expressão de nova forma de vida, de pensamento, de criação artística — a partir de mudanças ocorridas na estrutura sócio-econômica europeia. Uma de suas manifestações mais típicas é justamente a nova concepção que o homem faz de si mesmo — um novo humanismo —, que se formula filosoficamente, mas que pode também ser captado através de diversas expressões artísticas.

UMA NOVA SOCIEDADE, UM NOVO HOMEM

Como mostra Henri Pirenne em sua História econômica e social da Idade Média, a reabertura das antigas rotas de comércio entre a Europa e o Oriente através do Mediterrâneo — reabertura que constituiu o principal resultado prático das Cruzadas — reativou a economia europeia a partir dos séculos VIII e IX. Surge então uma nova fase dentro da Idade Média, dotada de dinâmica social mais intensa e cada vez mais distanciada dos padrões da Idade Média primitiva, de base fundamentalmente agrária, fechada numa economia dominial imposta pelo cerco estabelecido pela expansão do Islã. Nessa Idade Média primitiva, as atividades econômicas tipicamente urbanas — artesanato, comércio — haviam decaído e se reduzido enormemente. Ao mesmo tempo, nessa economia agrária, o poder político ficara estreitamente vinculado à posse da terra. E, numa estrutura social que tendia à fixidez e à hierarquia, o ápice da pirâmide era naturalmente ocupado pelos donos da terra, os senhores feudais, e pela Igreja. Esta, numa Europa que fora “barbarizada”, passara a deter com quase total exclusividade os instrumentos culturais mais sofisticados: a escrita, a erudição, o conhecimento das línguas antigas. É natural, portanto, que o latim se transforme na língua culta por excelência, no qual deveriam ser expressas não só as verdades religiosas, mas também as verdades científicas e filosóficas, controladas pela Igreja.

Vale assinalar, porém, que esse panorama da primitiva Idade Média não pode ser inteiramente generalizado. O que então ocorre na Europa continental não é o mesmo que acontece nas ilhas Britânicas e em certas regiões da península Italiana. Aquele modelo de sociedade de base agrária, tendente à fixidez, ao estático, ao rigidamente hierárquico, cabe bem à Europa continental. Isso porque o cerco imposto pelo Islã e o bloqueio das rotas comerciais através do Mediterrâneo não impediram que intenso comércio permanecesse ocorrendo no mar do Norte, nem que Veneza mantivesse contatos comerciais com o Oriente. Assim, não é de admirar que, após a reabertura das velhas rotas comerciais devido às Cruzadas, a dinâmica social dessas regiões, já economicamente diferenciadas dentro do panorama da primitiva Idade Média, se intensificasse ainda mais, ensejando a germinação de novos valores sociais e a elaboração de ideias inovadoras e novos cânones para nortear e valorar as diversas atividades humanas. Essa diferenciação é que nos permite entender, também, a força e a riqueza que terão as Renascenças inglesa e italiana. E é essa diferenciação econômico-social que nos permite ainda entender melhor as razões da oposição frontal, desde a Idade Média, entre as teses filosóficas e teológicas do pensamento continental — sediado sobretudo na universidade de Paris — e as teses filosóficas e teológicas inglesas, expressas principalmente pelos oxfordianos. De fato, o confronto Paris/Oxford — confronto entre duas “razões” — faz-se na Idade Média, atravessa o Renascimento e penetra nos vários séculos da Modernidade, ecoando até hoje.

Vista em seu avesso econômico-social, a oposição no plano das ideias abstratas é a repercussão da oposição entre uma sociedade de base rural, conservadora, tradicionalista, de fixada hierarquia, e outra onde as atividades urbanas criam “novos ricos” que ascendem socialmente e reivindicam liberdade de ação, espaço e reconhecimento de valores e direitos — seus valores, seus direitos — demonstrados não com base na tradição, no passado, mas em sua afirmação presente. O direito fundamentado na an-cestralidade — sempre, em última instância, um “direito divino” — começa a ser questionado e combatido pelo direito conquistado agora, conquistado de fato, por uma experiência presente que ostenta seu êxito como prova principal de sua legitimidade. Ao tradicional contrapõe-se este aqui e este agora irrecusáveis. À autoridade do passado contrapõe-se a evidência empírica do atual. O homem que ascende social e economicamente não pode mais aceitar como naturais — e, portanto, definitivos — os “lugares” das coisas e sobretudo das pessoas. Não pode admitir que os lugares estejam desde sempre — e, portanto, para sempre — definidos; nem que as hierarquias sejam rígidas e perenes; nem que tudo esteja previamente — porque essencialmente — para sempre estabelecido. Ele próprio vive individual e socialmente uma experiência de ascensão, de mudança, que é negação do definitivo, do estático, do absolutamente situado e hierarquizado. Ele próprio é uma prova do que há de relativo e provisório nas hierarquias. Ele próprio é uma prova do valor da experiência presente na delimitação entre “o que é” e “o que não é”, entre o que vale mais ou menos. Às essencialidades aparentemente eternas e fixas — típicas do pensamento metafísico continental — contrapõe-se, assim, desde a Idade Média, o senso inglês de uma verdade que se vai construindo experimentalmente, progressivamente. O valor da experiência será, por mais forte razão, um dos traços característicos do pensamento renascentista inglês e italiano, como atestam Rogério Bacon, Leonardo da Vinci, Galileu.

Sem dúvida, a mais plena expressão do pensamento medieval enquanto sustentado pelas noções de hierarquia e fixidez das essências é dada pelo tomismo, que passa, a partir do século XIII, a dominar a filosofia continental, tornando-se uma espécie de filosofia oficial da Igreja. Desenvolvendo a proposta inicial de Alberto Magno — de associar intrinsecamente aristotelismo e cristianismo —, Tomás de Aquino defende uma física e uma metafísica aristotélicas cristianizadas, nas quais a realidade cósmica tanto quanto a realidade das essências aparece organizada em hierarquia perene. De fato, já a cosmologia aristotélico-ptolomaica mostrava um universo organizado ao redor da Terra e formado por esferas concêntricas. Essa a base física da hierarquia, a base “científica” da hierarquia. A sociedade, hierarquizada, refletiria a hierarquia cósmica, nela se legitimando. E a hierarquia do universo, para o aristotelismo, estava sustentada desde sua base material: com efeito, o mundo sublunar — onde está a Terra — seria constituído pelos quatro elementos de Empédocles (água, ar, terra e fogo), enquanto o mundo supralunar seria formado por uma “quinta-essência”, o éter. Materialmente distintos, mundo sublunar e mundo supralunar apresentariam necessariamente movimentos também diferentes: a região su-pralunar seria a região dos movimentos regulares, contínuos, circulares, eternamente repetidos, enquanto a região sublunar seria o local dos movimentos retilíneos, desconexos, intermitentes. Os movimentos do cosmos estariam, assim, distribuídos em duas categorias definitivamente diferenciadas, em duas “naturezas” distintas. Distintas e hierarquizadas, pois os movimentos “inferiores” (da região sublunar) estavam na dependência — física e metafísica — dos movimentos circulares das esferas superiores, as esferas dos astros: numa sequência hierárquica de motores e móveis, cada esfera é movida pela que lhe é imediatamente superior, até o primeiro motor, que move sem ser movido, fonte de todo movimento. Assim, em seu conjunto, a região sublunar move-se à sua maneira como consequência de uma cadeia de motores-móveis que, na região dos astros, geram movimentos circulares e ordenados — a imagem mais próxima do perfeito repouso do primeiro motor.

Nesse cenário cósmico, cada tipo de ser e cada elemento material teria seu lugar natural”. Uma prova baseada numa experiência corriqueira? Quando jogamos para o alto uma pedra — que é sólida, pesada e tem, consequentemente, o baixo como lugar natural —, retirando-a do lugar que lhe está conferido pela hierarquia do mundo físico, ela naturalmente tende a cair e cai fatalmente, retornando ao lugar que desde sempre e para sempre lhe está destinado por sua natureza. Mas o que ocorre com objetos materiais analogamente acontece com os humanos. Com efeito, Aristóteles transpõe a noção física e cosmológica de lugar natural — intimamente associada por sua metafísica à noção biológica das espécies fixas — para a esfera social. E conclui analogicamente que a hierarquia social também está fundamentada em essências definidas e estáveis, sendo pois uma hierarquia permanente por natureza. Por isso afirma que o escravo é naturalmente escravo, escravo não só de fato mas de direito, porque destituído de alma noética, aquela que realiza o mais alto grau de conhecimento e justifica o autogoverno. Essencialmente escravo, o escravo seria, assim, definitivamente incapaz de orientar sua própria vida, de viver autarquicamente. Embora deva ser bem tratado, deve também ser respeitado em sua natureza. E respeitá-lo em sua natureza, para Aristóteles, é mantê-lo como aquilo que ele é — e pode ser — segundo sua natureza: escravo. Se for retirado dessa situação natural de escravidão — natural e consequentemente boa — por meio de um “movimento violento” (análogo ao do lançamento da pedra para o alto), que é sempre um crime de lesa-natureza, de lesa-essencialidade, pois contraria a natureza do ser e a “ordem natural das coisas”, ele, como a pedra, tenderá a retornar à condição e ao lugar anterior, aos quais está essencialmente destinado, naturalmente destinado…

O universo aristotélico é, assim, em todos os níveis, um universo regido pela metafísica de todas as vicissitudes do mundo físico e humano. Primeiro motor de tudo o que se move (no sentido também de “se transforma”), estaria “o pensamento que se pensa a si mesmo”, na solidão de sua perfeição e de sua transcendência.

Ao cristianizar Aristóteles, Tomás de Aquino terá de retraçar o perfil desse princípio último e divino, para arrancá-lo de sua imobilidade, de sua inércia, e lhe conferir as atribuições de Deus criador e providente. Na versão original, aristotélica, o primeiro motor moveria as esferas que lhe estão abaixo sem delas tomar conhecimento, entregue tão-só à autocon-templação, movendo o mundo de que é causa final-exemplar “como o amado atrai o amante”, na plenitude intangível de um pensamento-de-si. O que Tomás de Aquino terá de fazer para cristianizar esse divino é arrancá-lo de sua indiferença em relação ao mundo, fazê-lo autor intencional do universo, seu criador (a criação a partir do nada era inaceitável para o pensamento grego) e também seu eventual socorro, por meio da Providência. Mas se no tomismo Deus cria o mundo e ama e socorre suas criaturas, ele não contraria o princípio de hierarquia universal, antes é sua salvaguarda: as essências permanecem eternas e hierarquizadas, permitindo ao homem a conquista de uma verdade estável e universal, obra de uma filosofia perene.

Com isso, porém, o tomismo exprime uma situação de fato vivida pela sociedade medieval, onde impera a hierarquia. Na esfera humana, a aplicação do princípio de subordinação de todos os seres do universo ao primeiro motor — identificado agora com o Deus cristão — significa a subordinação de todas as instituições e atividades humanas à orientação da Igreja Católica, que se pretende, no plano temporal, a representante do Ser Supremo e Suprema Causa, guardiã portanto de Sua revelação, de Sua verdade. Em consequência, o profano deve estar subordinado ao religioso, o filosófico e o científico ao teológico, a “verdade natural” — conquistada pelos esforços racionais ou empíricos — sob o controle da “verdade revelada”, doação da Graça. Mas é importante não perder de vista: essa hierarquia corresponde, de fato, à situação historicamente predominante naquela Europa continental culturalmente romanizada, onde a hegemonia da Igreja estava garantida inclusive por ter ela permanecido como detentora e preservadora quase exclusiva dos bens espirituais, da escrita, da erudição. Se é ela que fala em nome da verdade suprema e supostamente universal é também porque, praticamente, só ela possui os instrumentos adequados àquela fala, à expressão de ideias filosóficas e teológicas, ao pensamento mais elaborado. A concepção da filosofia enquanto verdade natural serva da teologia — que trata da “verdade revelada” — reproduz, assim, uma hierarquia vivida concretamente pela sociedade típica da Idade Média continental.

Justamente essa hierarquia social — que o tomismo tentara legitimar ao inseri-la na hierarquia universal — é que passa a ser negada pela emergência do homem novo: o citadino, o burguês, que se afirma econômica e socialmente por meio das atividades artesanais e de comércio, já na Alta Idade Média, mas sobretudo no Renascimento. Esse homem novo julga e se julga pela utilização de uma nova escala de valores, que independe dos valores tradicionais e até às vezes os inverte. Afirma-se e valora no tempo presente e a partir desse presente, independentemente de verdades supostamente perenes, intemporais. Cria-se assim uma tensão — quando não oposição frontal — entre ideias e valores novos e tradicionais. Tensão entre a velha e a nova mentalidade. E o que esta faz, num recurso argumentativo de autodefesa, é mostrar que também possui aliados no passado, até num passado mais remoto do que aquele que autorizava e legitimava a velha mentalidade: ao pensamento medieval o Renascimento contrapõe a Antiguidade clássica, ao Cristianismo contrapõe Grécia e Roma. E, para combater os fundamentos aristotélicos do pensamento da Idade Média, retoma a tradição platônica e pitagórica. O novo não é forte apenas porque novo: quer ser forte também por trazer em si a força de um renascer, por ser um Renascimento

Como mostra Rodolfo Mondolfo, em Figuras e ideias da filosofia da Renascença, aquela tensão surge às vezes aplacada por uma solução típica do pensamento renascentista: o conceito de dupla verdade. Ao contrário da tese medieval de uma verdade única, fundamentada, em última instância, na revelação, Giordano Bruno, por exemplo, sustenta a inco-mensurabilidade entre a verdade revelada, de origem divina, e a verdade racional, puramente humana. Essa incomensurabilidade estabeleceria espaços distintos e sobretudo autônomos para os dois tipos de verdade, garantindo a liberdade da razão em relação à fé. Essa tentativa de coexistência pacífica entre os territórios da religião e o da ciência e o da filosofia não consegue resolver a tensão cultural da época. A tese da dupla verdade quebra o monopólio da verdade por parte da Igreja, deixa livre e solto — entregue apenas a suas próprias exigências de racionalidade e comprovação — o pensamento científico e filosófico. Mas teorias como a imanência de Deus — fusão e mesmo identificação entre Deus e Natureza —, com que Bruno abre o caminho para Espinosa, não podem ser aceitas pela Igreja como verdades apenas racionais. O conflito é inevitável. A liberdade de pensamento de Bruno afasta-o do que é consentido como verdade pela Igreja naquele momento, afasta-o da teologia oficial de base aristotélico-tomista. E sua filosofia é condenada como heresia. Mas o martírio pelo “fogo purificador” com que Bruno é punido não queima a necessidade de renovação e de rebeldia que impulsiona o Renascimento.

A tese da dupla verdade parece mesmo imprescindível a esse momento em que o desenvolvimento de novas ideias precisa abrir espaço na rígida teia dos dogmas religiosos. Essa tese é, na verdade, também uma estratégia cultural: uma tentativa de acordo ou trégua com o pensamento dominante e autoritário, que se quer porta-voz do Absoluto e por isso dono da absoluta verdade. Tanto parece ser assim que outro renascentista italiano a retoma: Campanella. Ao fazer a apologia de Galileu e ao defender a verdade científica, Campanella também procura separar em campos distintos ciência e religião. Escreve: “No Evangelho não se lê que Cristo tratasse jamais de assuntos físicos ou astronômicos, mas de coisas morais e das promessas da vida eterna”. E Campanella vai mais longe: procura mostrar que impedir a pesquisa científica é uma ofensa ao próprio cristianismo, pois “aquele que teme ser contraditado pelas coisas naturais é consciente de sua própria falsidade, aquele que em nome das leis cristãs quer vedar as ciências, os estudos e as pesquisas das coisas físicas e celestes, pensa mal do cristianismo ou é causa de suspeita dos outros”. A liberdade da ciência, reivindicada por Campanella, é colocada até como condição indispensável para que a razão possa, ela também, celebrar a glória de Deus por meio da investigação de sua obra. Inútil. Isso não impede que o filósofo sofra processos e perseguições devido à audácia libertária de suas ideias. Ao pensamento autoritário, escudado no Absoluto, não interessa fazer qualquer concessão: a liberdade de pensamento só interessa a quem entende o pensar como processo, como esforço, como conquista: conquista humana no campo do relativo, do temporal, do provisório, do novo. É dessa liberdade que necessita o pensamento renascentista.

Liberdade para questionar o já-pensado, para duvidar do já-pensado e afirmado como irremovível. Entende-se, portanto, que a dúvida — bem antes de Descartes — apareça como atitude intelectual básica para renascentistas como Campanella e Montaigne. Se é com Descartes que ela revelará todo o seu poder destrutivo-construtivo — talvez cedo demais cedendo lugar outra vez à certeza irretorquível —, já com esses pensadores da Renascença a dúvida aparece como recurso demolidor das pesadas construções teóricas tradicionais, como salutar forma para abrir espaço, dentro do habitual e do consentido, para o surgimento do novo.

MATEMATISMO E EXPERIMENTAÇÃO

O Renascimento resulta de condições econômicas, políticas e sociais, mas também de avanços técnicos que estão, alguns, intimamente ligados à expansão das próprias atividades comerciais. De fato, o aprimoramento de instrumentos que facilitam a navegação permitirá aos europeus longas e mais seguras viagens marítimas. E no ciclo de navegações à procura de um caminho marítimo para as Índias acabarão por descobrir as Américas, novas terras, nova e desconhecida gente.

Por outro lado, também o aperfeiçoamento dos instrumentos ópticos permite que se revolucione a antiga imagem geocêntrica do universo. O heliocentrismo de Copérnico derruba a tradicional imagem aristotélico-ptolomaica do cosmos: a Terra no centro, cercada pelas esferas dos astros. A partir de Copérnico, a Terra dos homens perde a privilegiada condição de centro do universo, enquanto na própria Terra as novas terras vão sendo descobertas. Na Terra e nos céus novos mundos se abrem, fazendo esboroar a antiga imagem de um universo onde a Terra — e a Europa — eram o centro em torno do qual tudo parecia girar. Se o homem europeu vai tentar manter na Terra sua situação privilegiada — por meio do processo de colonização política e cultural dos outros continentes —, a posição do homem dentro do macrocosmos está definitivamente alterada: a Terra aparece agora a girar em torno do Sol e ambos são poeiras perdidas no interior de mundos infinitos. Do infinito universo — esse o título de uma das principais obras de Giordano Bruno.

Afirmar a infinitude do universo é, porém, opor-se frontalmente à imagem do cosmos que a Idade Média herdara da Antiguidade através de Aristóteles e fora cristianizada pelo tomismo, transformando-se em cosmologia oficial da Igreja. Assim, a nova cosmologia proposta pelo Renascimento vai encontrar feroz resistência, pois aponta para além da “última esfera” — a das estrelas fixas —, em direção ao infinito inumerável e imensurável. Como escreve Mondolfo, essa nova cosmologia “rompe aquela abóbada celeste como se fosse um cenário pintado, prosseguindo na descoberta de mundos infinitos, muito além do nosso”. E o divino é justamente esse universo infinito — afirma audaciosamente Bruno, acendendo um fogo de pensamento inovador que receberá a resposta da fogueira de seu martírio.

Com Galileu, o aprimoramento dos instrumentos ópticos permite inclusive que se afronte no detalhe a velha cosmologia sacralizada. Com a luneta aperfeiçoada ele a falência da física aristotélica. Vê, por exemplo, que não há diferença entre a dinâmica da região supralunar e a dinâmica da região sublunar. A física é uma só, conclui, não há regiões substancialmente diferentes no cosmos, a ponto de causar tipos essencialmente diferentes de movimento, explicáveis por leis físicas diversas. As leis da física são universais: o macrocosmos pode ser entendido a partir de nosso microcosmos, pois este microscosmos reflete o macrocosmos. A queda dos corpos — como Galileu comprova na famosa experiência realizada na Torre de Pisa — incorpora-se a uma dinâmica universal, única. E mais: Galileu, com sua luneta, manchas no Sol! Vê máculas, estranhas máculas, estranhas “imperfeições” numa região que deveria ser, segundo a concepção aristotélico-tomista adotada pela Igreja, o reino da perfeição absoluta.

É bem verdade que a hipótese não geocêntrica tivera antecedentes no pitagorismo antigo e que a universalidade das leis da física repetia tese platônica. Mas tais ideias haviam sido sufocadas, na Idade Média, com a oficialização pela Igreja do pensamento aristotélico-tomista. Por isso, o que renasce com pensadores renascentistas como Galileu é a linhagem platônica e neoplatônica, aliada — na Antiguidade como agora — ao matema-tismo pitagórico, em oposição à física qualitativista do aristotelismo. O Renascimento científico-filosófico é, em grande parte, o renascimento de ideias platônico-pitagóricas. O que de fundamental o Renascimento acrescenta a essa tradição matematizante é a valorização da experiência, num sentido já de experimentação: experiência controlada e instrumentalizada, não a “experiência corriqueira” do puro “bom senso” desarmado e frequentemente preconceituoso — como a que aparece no aristotelismo, a exemplo da que servira para “provar” a existência de lugares naturais no cosmos e, analogamente, na sociedade. Justamente o ponto central e revolucionário do método científico de Galileu é este: a íntima associação entre matematismo e experiência, que resulta na constituição da física-matemática que prosseguirá seu impressionante desenvolvimento no decorrer da Modernidade.

Associação entre matematismo e experimentação é o que também aparece em Leonardo da Vinci. Artista genial, mas igualmente grande cientista e extraordinário inventor, Leonardo defende um método de conhecimento e um de elaboração artística que têm de comum a fundamentação na observação minuciosa e na experimentação. De fato, sua arte quer ser fundamentada cientificamente, sua estética pressupõe a investigação da natureza. As asas de seus anjos remetem a seus projetos de máquinas voadoras que o colocam como precursor da aeronáutica. As expressões de suas figuras — como atestam desenhos, estudos, esboços magníficos — estão baseadas na observação atenta movida pela busca de rigor psicológico que leva em conta o estudo também da musculatura facial,. A impressionante e realista anatomia de seus anjos, santos, apóstolos, está alicerçada na dissecação de músculos e no registro — por meio de desenhos de extraordinária precisão científica — da estrutura interna dos corpos. A tocante espiritualidade que envolve um quadro como Santana, a Virgem e o Menino (Louvre), que tanta reflexão sugeriu a Freud, na verdade supõe uma base científica e fisiológica cuidadosamente estudada. O enigmático sorriso da Gioconda (Louvre) está sustentado por músculos perfeitamente investigados. Isso porque Leonardo da Vinci considera a obra de arte como devendo resultar de uma “fantasia exata”. Como observa Paul Valéry, na Introdução ao método de Leonardo da Vinci, “sua pintura exige sempre dele uma análise minuciosa e prévia dos objetos que quer representar, análise que não se limita, de modo algum, aos caracteres visuais, mas vai ao mais íntimo ou orgânico, à física, à fisiologia, até à psicologia, para que afinal seu olho descanse, de certo modo, na percepção dos acidentes visuais do modelo que resultam de sua estrutura oculta”.

Figura 1- Detalhe de Sant'Ana, a Virgem e o menino
Figura 1- Detalhe de Sant’Ana, a Virgem e o menino

A valorização da experiência como base para a ciência ou para a arte, como em Galileu ou Leonardo, possui pressupostos revolucionários para a época. Primeiro, subentende que as explicações abstratas, fundamentadas em essências universais e intemporais geradas por um processo de abstração metafísica — à maneira de Aristóteles e Tomás de Aquino —, não desvendam os segredos da natureza; ao contrário, escondem a verdadeira face do real por trás de um tecido de vagas palavras, construções verbais que falseiam e ocultam os detalhes, as variações, as nuances, as contradições, as mudanças, as diferenças de que é feito o mundo concreto e que só se entregam, mas paulatinamente, ao preço de observações atentíssimas e minuciosas, da dúvida estimulante, de experimentações equipadas com instrumentos adequados e cálculos rigorosos. Segundo, pressupõe que essas observações e experimentações, aliadas ao matematismo, mostram aqui as leis físicas do universo infinito, cuja multiplicidade é unificada pela legalidade científica à dimensão da compreensão humana. Terceiro, pressupõe ainda que, consequentemente, o segredo das coisas pode e deve ser descoberto pelo esforço humano, pelo trabalho de pensar e observar, calcular e experimentar, com o auxílio de máquinas e artefatos, figuras e números — sem precisar conferir essas informações conquistadas pelo esforço científico empírico-racional com dogmas religiosos ou afirmativas de Aristóteles tidas como infalíveis: a autoridade, agora, é a própria razão humana, que interpreta experiências e observações, registra e calcula, e não mais o dogma ou a tradição. E mais: a valorização da experimentação sobretudo pressupõe que a natureza não é mais considerada, como no pensamento medieval dominante, apenas como ocasião e palco de pecado, não o teológico cenário da perdição, não o religioso vale de lágrimas. Valorizada e até divinizada, como em Bruno, a natureza é objeto de curiosidade mas também de amor — amor que se traduz em pesquisa, pesquisa que é forma de apreço e respeito pelo que se deseja conhecer cada vez mais. Sim, as paisagens que servem de fundo às pinturas renascentistas — mesmo em quadros de Madonas e santos — são a face amorável da divina natureza, lugar de labuta mas também de valorização do humano pelo trabalho criador. Lugar de criação, na vida, na arte, no pensamento. Território dos mortais que, criando, são deuses na Terra”. Por tudo isso, o Renascimento, do ponto de vista filosófico, é principalmente o momento da proposta de um novo humanismo.

A DIGNIDADE DO HOMEM

Coerente com a noção de que o pecado marca fundamentalmente a condição humana, como estigma degradante, e que este mundo material é apenas lugar de perdição ou, na melhor das hipóteses, lugar de penas regeneradoras, o pensamento católico medieval insistiu no tema da miséria e da indignidade do homem. Indignidade resultante da Queda, indignidade tornada visceral e que, sozinho, apenas por si mesmo, apenas com suas parcas forças o homem não conseguiria superar, necessitando da ação mediadora da Igreja, seus clérigos, seus sacramentos. É bem verdade que essa visão pessimista em relação ao homem e à natureza, que lhe propicia ocasiões de pecado ou de esquecimento da necessidade de salvação, encontra seu reverso, na própria Idade Média, no cristianismo de são Francisco de Assis, baseado em pobreza, alegria e amor à natureza enquanto obra belíssima de Deus. Essa é justamente uma das contradições mais fecundas apresentadas pelo universo religioso medieval (contradição muito bem exposta, em forma romanceada, por Umberto Eco, em O nome da Rosa). Mas vale lembrar: primeiro, o franciscanismo inicialmente se defronta, dentro da própria Igreja medieval, com forte resistência, olhado com suspeição’ de heresia justamente por suas propostas de pobreza alegre e de amor à natureza (o que parecia tendência a um panteísmo à maneira de Bruno); segundo, é dentro da tradição franciscana — como em Oxford — que se desenvolve o pensamento teológico e filosófico que, já na Idade Média, faz violenta oposição à filosofia e à teologia “oficiais” da Igreja continental e da universidade de Paris (Rogério Bacon, Duns Scot, Guilherme de Ockham são todos franciscanos). Mas, franciscanismo à parte, a tese que prevalece na Idade Média como concepção “oficial” da Igreja é aquela da degradação do homem em decorrência do pecado original e a natureza como reino da perigosa e tentadora materialidade.

Essa concepção da indignidade inerente ao homem aparece claramente num texto daquele que se tornaria papa com o nome de Inocêncio III. O texto possui significativamente o título de “De contemptu mundi”, ou seja, “O desprezo do mundo”. Nele o futuro papa mostra o homem como inferior aos próprios vegetais, em toda a extensão de sua abjeção e de sua indignidade, como um ser que “anda pesquisando ervas e árvores; estas, porém, produzem flores, folhas e frutos, e tu produzes de ti lêndeas, pioIhos e vermes; elas lançam de seu interior azeite, vinho e bálsamo, e tu do teu corpo, saliva, excrementos…”.

Ora, o que a experiência histórico-cultural do Renascimento permite é a inversão completa dessa imagem. Em lugar do ser miserável e perdido, a produzir imundícies, o homem se reconhece afirmado e engrandecido por seu trabalho, como ser que inventa, cria, descobre. Reconhece-se na posse de uma altíssima dignidade, que se expressa inclusive nas construções filosóficas, científicas, artísticas. Por isso, o tema da dignidade humana — ao lado do tema do progresso, progresso realizado pelo homem no universo que ele cria, o da cultura — ocupa o centro do humanismo renascentista. Em seu livro sobre a Renascença italiana, Rodolfo Mondol-fo transcreve textos de diversos pensadores renascentistas que defendem essa concepção da grande dignidade do homem. Escreve, por exemplo, Coluccio Salutati:

A sabedoria e a eloquência são dotes característicos do homem, por cujo meio se distingue dos outros animais, e quão excelente, quão glorioso e honroso se torna superar os outros homens por aqueles dons da natureza, por meio dos quais o homem é superior aos outros animais! Os homens sábios e eloquentes parecem-me ter criado para si tal grau de excelência sobre os outros homens, como Deus e a natureza estabeleceram entre os homens e os animais desprovidos de razão.

Como se vê, em lugar de inferior até aos vegetais, o homem é apresentado como superior a todos os demais seres da natureza, superioridade que pode ser transformada em excelência quando equipada com sabedoria e eloquência. Com efeito, o humanismo renascentista traz em seu interior a revalorização da arte da persuasão, em oposição à razão autoritária, dogmática, coagente, que se impunha verticalmente, com suposto endosso do Absoluto, como dona da Verdade irretorquível garantida pela tradição ou pela revelação religiosa. É a essa razão, que se pretende in-temporal e tece as malhas da catequese, que o Renascimento contrapõe a eloquência, a persuasão retórica, que Chaim Perelman caracteriza, em nossos dias, como a manifestação de uma racionalidade humanizada e temporal, dependente sempre das circunstâncias.

A superioridade do homem, em função de sua razão, reaparece em, João de Prato: “Que o homem tenha razão podes ver com clareza e julgá-lo firmemente. Pois é só ele quem distingue os tempos, isto é, passado, presente e futuro, e sob essa distinção guia-se para julgar as coisas presentes e futuras pelas passadas, e por isso constrói-se, governa-se a república, realizam-se casamentos, criam-se filhos, provêem-se às necessidades que podem surgir, deseja-se a glória perpétua… e coisas semelhantes estimuladas pela razão”.

Esse ser racional que, por isso mesmo, pode ter o senso da temporalidade na qual constrói e na qual pode até sonhar com a glória perpétua, é exaltado por outro humanista da Renascença, Bernardino de Sena, que eleva a alma humana ao nível máximo de dignidade e beleza: “A alma não supera a beleza do céu apenas mil, nem mil vezes milhares de milhares, mas por um número infinito de vezes. De maneira que se criarem tantos céus empíreos como somam as gotas das águas e os grãos de areia no mar e as estrelas do céu, toda a beleza junta dessas coisas não poderia igualar a beleza de uma só alma, tão grande é sua excelência”.

A beleza que supera até as belezas celestiais desponta na alma humana, porém, por meio da conquista do saber, segundo Bernardino de Sena. Não é uma beleza inerente e dada à alma: é uma beleza que ela conquista dinamicamente com seu progresso, crescendo e embelezando-se pelo conhecimento. Daí a importância atribuída pelos humanistas da Renascença, em geral, ao estudo, à pesquisa, ao progresso da cultura. Esse o sentido mesmo das humanidades, como explica outro renascentista, Leonardo Bruni: “Lendo e aprendendo devemos recolher muitas coisas de todas as partes e amontoar as que convêm e pesquisar cada uma de todas as maneiras, e investigar e escavar ali de onde possa vir alguma utilidade a nossos estudos […]. Esses estudos chamam-se humanidade justamente porque aperfeiçoam e adornam o homem”.

Mas poucos humanistas do Renascimento conseguiram exprimir tão bem quanto Marsílio Ficino o significado da dignidade que o homem manifesta por meio da atividade criadora, que o diviniza:

Os animais são dominados por uma lei de necessidade física, não têm artes; em compensação, os homens criam uni sem-número de artes que põem em ação por sua vontade. As artes humanas fabricam as mesmas coisas que a natureza. O homem aperfeiçoa, corrige, emenda as obras da natureza inferior. Portanto, ele se assemelha verdadeiramente à natureza criadora divina, posto que de qualquer matéria cria formas e figuras […], domina os elementos

[…], cria instituições sociais e leis {…}, sabe unir passado e futuro, recolhendo em um momento eterno os intervalos fugazes do tempo. Através da linguagem e da escrita mostra a divindade de sua mente, por meio da linguagem, intérprete do pensamento, pregoeira e mensageira de infinitas descobertas, exterioriza de infinitas maneiras seu poderio interior.

O homem de mente divina e que se diviniza plenamente por meio de sua força criadora aparece também em Giordano Bruno. Escreve ele no Despacho da besta triunfante:

Os deuses deram ao homem o dom do intelecto e das mãos, e criaram-no semelhante a eles quando lhe outorgaram poderes sobre os animais, os quais consistem em poder agir, não somente segundo a natureza e o comum, mas também além e fora das leis da mesma, a fim de que, formando ou podendo formar outras naturezas, outros caminhos, outras ordens por meio de sua inteligência, com aquela liberdade sem a qual não teria essa semelhança com os deuses, chegasse a ser deus na Terra. Aquela, por certo, quando chegar a ser ociosa, será vã, tal como em vão está o olho que não vê e a mão que não pega […1. Ora, como as dificuldades nasceram entre os homens e entre eles surgiram as necessidades, aguçaram-se as inteligências, inventaram-se as indústrias, descobriram-se as artes, e sempre, dia após dia, por meio da necessidade estimulam-se novas e maravilhosas invenções desde as profundezas do intelecto humano. De maneira que sempre, cada vez mais, afastando-se do estado bestial pelas atividades prementes e urgentes, mais ainda se vão aproximando do estado divino.

Que diferença entre o homem miserável e abjeto de Inocêncio III e o homem livre e criativo de Ficino e Bruno! Para os renascentistas, pelo trabalho das mãos e do intelecto, pela força da linguagem e pela inventividade nas várias partes, o homem ascende do bestial ao divino, transformando-se em “deus na Terra”. Não é de surpreender que pensadores que afirmam essas teses, corajosamente afrontando o pensamento oficial das autoridades religiosas de seu tempo, sejam geralmente perseguidos e processados como heréticos. Na verdade, a heresia deles está sobretudo em exaltar a excelência e a dignidade do homem, em mostrá-lo como livre criador de’ “outros caminhos” e “outras ordens” para além do que é tido como “natural”, “comum”, “definitivo”, “necessário”, em mostrá-lo ern sua condição de ser que sobrepõe ao reino da necessidade o reino instituído pela liberdade. Essa liberdade proclamada como divinizadora — pois torna o homem um criador — é que justamente mais assusta e ocasiona perseguições e condenações. É ela que, no caso de Bruno, se tenta destruir na fogueira. O que mais escandaliza e é punido violentamente é exatamente a afirmação do homem enquanto livre criador de si e de sua cultura, sem tutelas opressoras que o transcendem: homem criador de suas verdades, de suas instituições, de sua progressiva e insaciável sabedoria. Acima do plano da necessidade natural — que ele inclusive às vezes retoca, “emenda” —, acima do que podem todas as demais criaturas terrenas, o homem revela seu poderio, a força de sua vontade, de sua imaginação, de suas mãos, de seu pensamento. Sua liberdade reside justamente nessa capacidade de sobrepor-se ao meramente dado como natural, para criar — criatura-criador — além da legalidade da natureza, num reino que ele inaugura, do qual é o inventor. Inventor de arte, ciência, filosofias, utopias, instituições; inventor de indústrias e artefatos manuais, intelectuais e artísticos de todo tipo; inventor de cultura.

Esse o homem novo do Renascimento: aquele que se liberta da tradição pela dúvida e confirma seu valor através dos resultados de seus esforços; aquele que confia em suas experiências e em sua razão; o que confia no novo, pois assume sua realização dentro da temporalidade. Por isso é aquele que ousa substituir os rígidos cânones do canto gregoriano, em louvor do Absoluto, pela flexibilidade e a alegria dos madrigais que exaltam e expressam humanos sentimentos, humanos amores, humanos prazeres. “Deus na Terra”, o homem do Renascimento se volta para a compreensão de sua condição terrena e de seu mundo, ambos redignificados. Se isso explica o interesse pelos sentimentos e o mergulho nas “paixões da alma” e do corpo — como o faz o gênio de Shakespeare —, é isso também que justifica a extraordinária expansão da inventividade em todos os campos. É que o homem do Renascimento recobra a confiança em si mesmo, em sua capacidade enquanto apenas humana e desvelada na temporalidade, recobrando com isso a liberdade de ousar e de dizer “não” ao oficial, ao tradicional, ao imposto como definitivo, ao sacramentado como se fora absoluta e intransformável Verdade.

Essa mudança de mentalidade e essa mensagem de liberação contida no humanismo do Renascimento podem também ser “lidas” em sua pintura.

HUMANISMO E PINTURA: BOTTICELLI E MICHELANGELO

Como é compreensível, os temas religiosos predominam na pintura medieval, como parte de uma arte quase inteiramente a serviço da religião: são inumeráveis anjos, santos, Madonas, beatos, cenas revelando a celestial bem-aventurança ou as torturas infernais dos condenados, os vários episódios do Antigo e do Novo Testamento… Mas não só a temática é predominantemente religiosa: também a construção pictórica, a organização interna das composições, revela a valorização do Alto, do transumano, do que estaria acima e além desta vida e deste mundo terrenos. Se, por exemplo, contemplamos duas obras-primas da pintura medieval, como a Madona de todos os santos, de Giotto, e a Madona no trono, de Cimabue — ambas expostas na Galleria degli Uffizi de Florença —, percebemos que, apesar das diferenças estilísticas, as duas estão realizadas segundo os mesmos rigorosos cânones estéticos. Em ambas, a mesma atmosfera hierática, formada pela postura rígida e solene das figuras, de gestos contidos e semblantes onde não transparece qualquer emoção, qualquer sentimento humano. Eis a serenidade beatífica, acima de todas as paixões e de todas as contingências — parecem “dizer” os dois retábulos magníficos. Neles, tudo tende ao estático e aponta para o alto, desde o próprio formato dos retábulos, com sua parte superior pontiaguda, como uma flecha que indica o céu ou como o teto de uma igreja, enquanto as linhas de construção da pintura são todas dominadas pela vertigem da verticalidade e da ascensão. Em todos os seus elementos construtivos, essas pinturas dizem: o Alto é que importa, Lá está nosso destino e para Lá devemos voltar toda a nossa atenção e nosso empenho. Por sua vez, os dourados dos fundos e das auréolas comprovam: trata-se mesmo de uma representação aproximada do inimaginável esplendor celestial, o esplendor que só se pode conhecer plenamente noutra vida, noutro mundo. As figuras esguias, etéreas, sem detalhes anatômicos marcados, também confirmam: estamos diante não propriamente de corpos, mas de puros espíritos, de uma espiritualidade extremada e excelsa, e que apenas “aparecem” corporificados para que possam ser vistos, representados, cultuados, seguidos. São figuras ascéticas, severas, quase na fronteira da incorporeidade. E o corpo e sua anatomia de fato importam muito pouco, quando o que se quer representar é a imponderável realidade do Reino Espiritual — não a grosseira e pecaminosa corporeidade mortal. Por isso, em ambos os retábulos todos os elementos pictóricos estão a serviço da exaltação dos que imperam, em seus tronos dourados, não no tempo, mas na eternidade: uma Virgem sem pecado e seu Menino Salvador. Nesses retábulos de Giotto e de Cimabue estamos — pelo tema e sobretudo pelas soluções estéticas diante, de fato, do apogeu do gótico na pintura.

Figure 2. A Madona de todos os Santos, Giotto (1303c. 1310). Florença, Uffizi.
Figura 2. A Madona de todos os Santos, Giotto (1303c. 1310). Florença, Uffizi.

Basta, porém, que na mesma Galleria degli Uffizi, entremos, mais adiante, em outra sala, para que tudo se modifique, para que as pinturas revelem outros cânones estéticos e “falem” outra mensagem. É a sala dedicada a Sandro Botticelli. Apenas um século separa o ano de seu nascimento (1444) do ano da morte de Giotto (1337). Mas é tempo suficiente para que a nova sociedade, a nova filosofia, a nova arte tenham surgido: estamos então em pleno Renascimento.

Não que os temas religiosos hajam desaparecido. Pelo contrário, ali estão várias e magníficas Madonas. Só que agora o pincel de Botticelli as apresenta com idealizada serenidade, sim, mas também com opulenta carnadura: como belas e saudáveis mulheres, de beleza marcadamente italiana, beleza que parece brotar do solo mesmo de Florença, aquela Florença dos Medici, sua Florença, sua terra. A santidade e a beleza — e a santidade da beleza — surgem dentro do mundo, deste mundo. Por isso mesmo, as santas figuras têm gestos mais soltos, naturais, espontâneos, e seus corpos são reproduzidos em todos os pormenores anatômicos. É que a corporeidade agora é importante: o homem e a natureza foram redignificados. Estamos, assim, diante da santidade encarnada, mais: da santidade da encarnação. Estamos diante de uma espiritualidade sem ascetismo, que esplende a partir do corpo, com o corpo, através do corpo maximamente valorizado. E eis por que desaparece a postura hierática e solene da representação gótica das santas figuras: a santidade agora está imersa no mundo físico, na natureza, no cotidiano — o trono da Madona é frequentemente apenas uma pedra. A beatitude é apresentada nesta vida. E, como na Virgem da romã, está humanizada e envolta numa aura de alegria, viçosa e sumarenta como um fruto amadurecido no seio da natureza. Por isso, a fruta que a Virgem segura e o Menino toca é como um coração, uma carne que se abre e mostra o interior sangrento. Mas, na verdade, todas as figuras representadas no tondo, nesta superfície circular, são outros esplêndidos frutos da terra: a mãe, o filho, os anjos robustos.

Também na Virgem do Magnificat as santas figuras aparecem enlaçadas numa guirlanda de tranquila felicidade terrena, acentuada pela representação circular, que elimina a hierarquia verticalizada da pintura gótica. O que vemos é a tão humana felicidade da mãe que, num momento qualquer, sustenta docemente o filho diante de belos e saudáveis meninos: anjos que modestamente escondem as asas ou apenas pajens de uma singela corte terrena, familiar? E a coroa que eles erguem acima da cabeça da Senhora não parece consagrar a realeza do divino humanizado, a mesma do humano divinizado, como quer o humanismo renascentista?

Figure 3. O nascimento de Vênus, Botticelli (1486). Florença, Uffizi.
Figure 3. O nascimento de Vênus, Botticelli (1486). Florença, Uffizi.

Ao correr os olhos pela sala, verificamos: temas cristãos e pagãos convivem lado a lado na pintura de Botticelli. Mais: percebemos que a serena beleza das Madonas é a mesma que reaparece no rosto da Vênus nascida das águas, deusa da beleza — a beleza enquanto divindade, a beleza suprema, a platônica beleza-em-si — erguida e mostrada em plena nudez num trono-concha, num trono natural. Aqui, no Nascimento de Vênus, a beleza do corpo em sua naturalidade, em sua santidade pré-cristã. Aqui a representação do altar onde se cultua a sacralidade da beleza natural. Por isso, essa Beleza está rodeada por todos os elementos da natureza: a água-mãe, o vento que acorre com seu sopro, o céu azul, a terra com suas árvores e suas flores. O rosto da Vênus — notamos encantados — é o mesmo das Madonas. Sim, a Vênus é uma rainha da beleza sem disfarces, revelada antes de receber o manto que lhe é prontamente oferecido; é a beleza pura, virginal: uma Madona despojada, uma Madona despida. E justamente a sacralidade dessa Beleza plena é que permite uma leitura neoplatônica e cristã do quadro. Pois, segundo historiadores da arte renascentista, o Nascimento de Vênus teria sido pintado sob influência do neoplatonismo de Ficino e seria uma alegoria da alma cristã a renascer das águas do batismo. Mas isso só provaria o quanto, em Botticelli, cristianismo e tradição greco-romana estão harmonizados. E se é verdade que, tanto em sua vida quanto em sua obra, Botticelli oscila entre o espírito renascentista e profano da corte dos Medici e o retorno à severidade cristã de Savona-rola, parece incontestável, porém, que ali, naquela representação da beleza inaugural de Vênus, a tensão entre cristão e pagão se transforma em harmoniosa integração: na Beleza o divino e o natural se integram.

Outro canto em louvor à natureza divinizada ressurge adiante, na Alegoria da Primavera, síntese pictórica da mensagem renascentista. O que vemos? No centro, uma Vênus agora vestida (a alma humana, segundo a interpretação que vincula Botticelli a Ficino) está situada entre os apelos terrenos — simbolizados por Zéfiro, Flora e Primavera — e os apelos divinos — simbolizados pelas Graças e pelo contemplativo Mercúrio. Mas, qualquer que seja a interpretação que se proponha, o mais evidente é que a Alegoria da Primavera constitui uma exaltação da natureza que mostra sua indestrutível vitalidade no renascer primaveril: renascer de vida e de beleza. Vitalidade que libera e faz dançar os corpos (as Graças) dentro do corpo florido do mundo e que resulta da presença dominante do Amor Universal: este Eros que impele Zéfiro em direção a Flora, que fecunda e faz florescer o manto da Natureza — o manto de Primavera — e que, como Cupido, do alto, no meio dos frutos, preside toda a cena e comanda com suas flechas a expansão da força que aproxima os corpos, faz o homem tender para a verdade por via da atração da beleza, organiza o universo enquanto cosmos e leva à divinização do humano através da espiri-tualização do corpóreo.

Nas pinturas feitas por Michelangelo na capela Sistina, no Vaticano, encontramos o apogeu da arte pictórica do Renascimento. Nelas, o gênio do artista leva o estilo renascentista à plenitude e até o ultrapassa em direção ao maneirismo e ao barroco. Em seu conjunto, o que essas pinturas contam é uma longa história, uma longa progressão que partindo do Começo vai até o Fim. “Lidas” em seu conteúdo e em sua forma, elas mostram também as grandes mensagens do Renascimento.

Figure 4. Detalhe de O Juízo Final (1537-41). Capela Sistina, Vaticano.
Figura 4. Detalhe de O Juízo Final (1537-41). Capela Sistina, Vaticano.

A História começa no Começo: na criação do universo por um Deus imponente, atlético, cuja potência se exprime pela musculatura hercúlea. E é bem um Hércules a realizar seus trabalhos, criando os astros ou separando a terra das águas, com gestos vigorosos, decididos, determinantes. O colossal obreiro é todo força, força criadora, modelo daquela força criadora que faz do homem um “deus na Terra”, como ensina o humanismo renascentista. O Deus-Criador é pintado — como as demais personagens da Sistina — como se pintar fosse, para Michelangelo, outra maneira de esculpir, de destacar volumes. E, no caso do Criador, isso faz inteiro sentido: criador dos seres, dos corpos, é representado como que “vindo” de outra dimensão: traz em si o volume com que produz as criaturas corpóreas, traz o volume para a concreção do corpo do mundo. Ao vê-lo, no teto da Sistina, em seu trabalho hercúleo, é impossível não pensar nos escravos que Michelangelo deixou como esculturas “inacabadas” e que estão expostos na Academia de Florença. Neles, o inacabado — as figuras só parcialmente libertas, só parcialmente formadas, e parcialmente ainda presas ao bloco de mármore do qual parecem se esforçar por sair — não é a representação perfeita desse fazer-se humano, dessa liberação pelo esforço contínuo e interminável que faz da atividade humana, sempre, um desescravizar-se? E não é o que torna o mundo da cultura — obra do homem — um permanente progresso, uma ponte em construção, inacabada, entre o bestial e o divino, como quer a filosofia humanista do Renascimento? Pois bem, o paradigma do homem-criador está lá no teto da Sistina: o Deus que cria a primeira parte da criação. Deus concebido à imagem do homem obreiro, do homem artesão de si mesmo e da cultura, que com sua inteligência e a força e a destreza de seus músculos, de suas mãos, de seu intelecto e de sua imaginação constrói para além da ordem natural “novas ordens”, “novas naturezas”, que inventa como um “deus na Terra”, segundo Giordano Bruno.

É o protótipo desse Homem que surge logo depois no teto da Sistina: o Adão também atlético, criado por um quase-toque da mão do Criador em sua mão privilegiada de futuro co-autor da realidade. O pequeno intervalo que separa desde sempre as duas mãos criadoras é suficiente para garantir a transcendência do Divino Absoluto em relação ao humano, esse ser em processo de autodivinização. Mas é suficiente também para instaurar duas ordens de verdade, para estabelecer essa dupla verdade que distingue o histórico do eterno, o contingente do absolutamente necessário, e deixa ao homem a responsabilidade pela invenção de sua cultura e pelo encaminhamento de seu processo de divinização temporal. O pequeno intervalo entre as mãos estabelece e legitima a autonomia do humano apenas humano, com suas verdades contingentes e suas realizações culturais sempre em processo, sempre em progresso — como sustentam os humanistas do Renascimento. O pequeno intervalo é um abismo intransponível situado entre dois territórios sagrados: o da sacralidade do divino e o da sacralidade do humano. Tentar ultrapassar esse abismo, essa fronteira, é para os mortais a grande loucura, o grande pecado que antigos filósofos gregos já apontavam e que a concepção renascentista da dupla verdade retoma: a hybris, a desmesura. Ao contrário, acatar o intervalo, a separação, é condição indispensável para instituir a verdadeira liberdade do humano e para garantir a convivência pacífica entre verdade “natural” e verdade “revelada”, entre Ciência, Filosofia — e Religião.

A sequência dos episódios bíblicos prossegue no teto da capela: a Criação de Eva, o Pecado Original, a Expulsão do Paraíso, o Sacrifício de Noé, o Dilúvio Universal, David e Golias, Judith e Holofernes… Se todos impressionam pela grandeza e expressividade pictóricas, o Pecado Original destaca-se pela ousadia da concepção. É que apresenta o sexo em sua gra-tuidade lúdica, como puro jogo prazeroso, despreocupado, sem compromisso com a procriação. É já — mesmo no Paraíso! — o jogo humano da
invenção para além da natureza, a criação de uma “nova ordem”. E é certamente isso que desencadeia a ira do Primeiro Criador e ocasiona a perda da ingenuidade paradisíaca: Homem e Mulher, autores de “outra natureza”, criadores de novos jogos, novas leis, perdem o Paraíso da ingenuidade natural — onde permanecerão os animais inferiores —, mas ganham a nova ordem que constroem com esforço e trabalho e que é também liberdade e busca da autodivinização. Nesse afresco, onde se pode ler ainda a sutil legitimação, por parte de Michelangelo, de sua própria homossexualidade e de sua condição de artista, de inventor — dois modos de se pôr, com auxílio da imaginação, além do “natural” —, impressiona sobretudo a opulência física desse Adão e dessa Eva, mesmo quando expulsos do Éden. São dois fortes que iniciam a longa caminhada. Despidos, como antes do delito da invenção e da fantasia, conservam no exílio a beleza e a força de seus corpos, a energia das mãos e dos braços. E principalmente levam consigo o instrumento da linguagem com que deram nome às coisas e que os situa muito acima dos outros animais que permaneceram na inocência infante. Parecem mesmo destinados a serem “deuses na Terra”

Olhados em seu grandioso conjunto, os episódios do teto da capela Sistina revelam algo que logo chama a atenção: estão interligados por figuras que constituem os elos de uma imensa cadeia: os Nus. Em diversas posições, monumentais, de anatomia perfeita, atléticos, são outras tantas “esculturas” pintadas por Michelangelo, resgatando o padrão greco-romano. Qualquer que seja o significado atribuído a essas figuras, é inegável que são, antes de mais nada, corpos. Corpos humanos exaltados e sua beleza física, a exibir tranquila e variadamente a majestade de sua nudez. Esses corpos sustentam e pontuam com serenidade apolínea a dramática saga da espiritualidade cristã. É o ideal helênico de beleza a fundir-se, no Renascimento, à própria religiosidade.

Os painéis centrais do teto estão ladeados por outra sequência de personagens: os Profetas e as Sibilas. São os anunciadores, os arautos, aqueles que, em diferentes épocas e culturas remotas, fizeram previsões e tentaram desvelar o futuro, em busca de um Final que desse sentido a tudo, à História toda. Eis a longa cadeia da sabedoria vaticinadora, a apontar sempre para “além”, para “depois”, para o “por-vir” — e que fala desse horizonte distante numa linguagem sempre ardente, delirante, sugestiva, ambígua, metafórica. Aí estão profetas de Israel, como Jeremias e Zacarias, mas aí estão também as vozes proféticas de outros povos, de outras tradições: as sibilas Pérsica, Líbica, Délfica, Cumana, Eritreia. Michelangelo une, como renascentista, também no nível da profecia, a tradição judaico-cristã às tradições do paganismo. Na verdade, a sequência dos Nus e a sequência dos Profetas e Sibilas parecem sugerir que a saga da espiritualidade cristã está tecida e sustentada, por um lado, pelo ideal helênico de beleza, por outro, pela premonição universal de que haverá um Fim que revelará o significado de toda a trama. Que será o desfecho e o Sentido da História. Quando então se fará, afinal, Justiça.

Para esse Final apontado pelos profetas do Velho Testamento e pelas sibilas de vários povos é que toda a pintura da capela converge. Em 1512 Michelangelo descerrara, diante dos olhos ansiosos do papa Júlio II, as pinturas do teto, após anos de penoso trabalho que lhe comprometeu definitivamente a saúde. Mas só em 1541, já sexagenário, terminou o afresco do altar — o Juízo Universal —, iniciado em 1538, numa outra fase de trabalho em Roma. Somente então arrematou a ornamentação da Sistina. E só então mostrou sua concepção do que estaria pressentido por Profetas e Sibilas:

Atléticos trombeteiros, embaixo, no centro, fazem soar o aviso de que a Hora é chegada. De um lado, ascendem os salvos, alguns ajudados por companheiros que os puxam para cima, na solidariedade da salvação. Do outro lado, os perdidos, os condenados, são levados pelo terrível Barqueiro mitológico para o reino sombrio dos sofrimentos. Alguns aqui também se enlaçam, na solidariedade e no companheirismo da perdição — como o homem que tapa um dos olhos com a mão, talvez para não ver toda a extensão de seu destino.

Acima, no plano superior, apóstolos, santos, bem-aventurados — os salvos. Há mesmo entre eles dois que se abraçam num apertado abraço de felicidade e reencontro: são duas hercúleas personagens, num dos mais belos detalhes do imenso afresco. E há também aqueles que chegam ao reino da felicidade levando em suas mãos os instrumentos de tortura que martirizaram seus corpos mas burilaram suas almas. E, impressionante, ascende à presença do juiz também a pele de são Bartolomeu, apóstolo que fora esfolado vivo antes de ser crucificado. Aqui, a dignificação renascentista do corpo atinge seu ponto máximo: mesmo a pele, esse mero envoltório do corpo, esse puro exterior do físico, essa aparência, é salva, resgatada para a bem-aventurança e a eternidade. A eternidade não é o reino apenas do incorpóreo e das essências: ela acolhe, fazendo justiça, também os corpos e suas aparências temporais.

No centro do afresco: o Grande Juiz. Um Cristo justiceiro, também atlético, como o Adão, como os Nus, como o Deus-Criador. Imponente, soberano, ergue o braço fortíssimo, no gesto que determina o momento da Justiça implacável. A seu lado, recolhida, em atitude de modéstia, coadjuvante e também submissa ao Justiceiro, a Bela Senhora.

Nesta corte de robustos bem-aventurados, a força e a perfeição da Justiça Final são mostradas pela beleza e pela força física do Juiz: com Michelangelo, na capela Sistina, o Renascimento faz outra vez o Espírito harmonizar-se com a Natureza e com o Corpo.

* O texto de José Américo Motta Pessanha foi feito originalmente para o ciclo Doze questões sobre cultura e arte, organizado pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas da Funarte, em 1985. Publicado agora pela primeira vez em livro, o texto guarda o tom oral e não foi revisto pelo autor. (N. E.)

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