Medo e esperança em Hobbes
Resumo
O medo é um sentimento desconsiderado pela maioria dos filósofos. Não por Hobbes, para quem o medo, seja ele mesquinho, medíocre ou ambos, é o sentimento fundador, tanto na esfera individual quanto na coletiva.
Não por acaso.
Nascido de parto pré-maturo na perigosa e dividida Inglaterra do final do século XVI, Hobbes escreveria em sua autobiografia tardia a seguinte sentença, no duplo sentido da palavra: “Minha mãe pariu gêmeos, eu e o medo”. Isso diz tanto de seu inconsciente quanto de 84 anos de construção de um sentimento. Mais: de uma obra em torno dele. Ela que começa rompendo com Aristóteles, já que o homem não é intrinsecamente racional ou social. Afinal: “Os homens são incapazes de extrair prazer da companhia uns dos outros quando não há um poder que os mantenha respeitosos”.
Não que, para Hobbes, o que há seja uma sociedade de misantropos, pois a questão é, para ele, menos acerca do “ser” do que do “relacionar-se”, por meio do medo – sempre. Daí o ideal de pacificar a Inglaterra.
De início, note-se que, para Hobbes, os homens são iguais em força e espírito. É que as diferenças, por maiores que sejam, não impedem que qualquer um seja física ou intelectualmente derrotado.
O mesmo aconteceria com a prudência, já que não há quem, nesse quesito, não se julgue melhor do que o outro. É, pois, a crença, a convicção ou a reinvindicação de desigualdade que provam a igualdade. E eis que Hobbes sorrateiramente introduz, em seu discurso, a ideia de que a prudência seja composta de partes. Ou seja: de que haja um estoque dela do qual, se cada homem estiver satisfeito com seu quinhão, possa-se afirmar que a distribuição tenha sido equitativa. E isso sem maiores explicações.
De todo modo, é no medo que recai de novo a ênfase. O melhor: nas três principais origens dele, que são a guerra de todos contra todos, a opressão estatal e a religião. Delas, a mais conhecida ganhou até nome e livro próprios. É o Leviatã, que não se manifesta somente na forma de Estado, mas nas relações entre pai e filho ou senhor e escravo.
Uma leitura superficial do “Leviatã” aproxima Hobbes do despotismo. Cabe, pois, analisá-lo com mais cuidado.
Primeiro, é preciso esclarecer que o uso do termo “soberano” por Hobbes não se limita ao monarca. Ele pode – e deve – remeter a uma assembleia constituinte, um parlamento; um mandatário eleito pelo povo, até. Afinal, em qualquer regime, há que se seguirem leis, regulamentos, atos executivos etc. Certo que nos regimes constitucionais há limites ao poder do governante, mas, mesmo assim, o Estado multiplica seus tentáculos e lança-os para todos os lados. Até porque Hobbes teme a divisão do poder do Estado.
Por quê?
Porque, por mais venenoso que seja o poder, ele é menor do que o veneno que os cidadãos podem destilar entre si.
No mais, no caso de um governo em que o soberano, ao ser acusado de infringir a lei, possa ser julgado por outra instância, esta passa a ser a verdadeira detentora da soberania.
Já quanto à “guerra de todos contra todos”, ela encontra sua causa primeira no desejo de locupletar-se do que é do outro. A ganância não é um argumento genial. Mas, em Hobbes, o modo como é abordada sim. Como? Não pelo viés do espoliador, mas do espoliado. Ele que se pergunta, a todo momento, de onde pode partir a ganância – e ela pode partir de qualquer lugar. Nisso, Hobbes é moderno; afinal, desde Descartes, em resposta à certeza de si, há a dúvida acerca do outro. O mundo moderno é, pois, o da socialidade complicada ou impossível. Por isso, é sensato atacar quem pode me atacar. Daí que a suspeita gera mais conflitos do que a ganância. Daí que, enfim, quem mais tem mais deve temer.
Pois bem. O medo da morte. Ele que é o fundamento da religião ou da sombra que ronda a condição humana, na forma não só do fato em si, como do medo do porvir. Mais concretamente: o princípio do poder clerical, de seu discurso, no que há nele de manipulador, inclusive. O espinho cravado na garganta do Estado.
Os medos de Hobbes, enfim. Mas não só, pois, como escreveu John Donne, o gêmeo do medo é a esperança.
Roland Barthes abria seu livro de 1973, O prazer do texto, com uma epígrafe de Hobbes: “a única paixão de minha vida foi o medo”.[1] Mais adiante, dizia que o medo é o laissé pour compte de toda filosofia, aquilo que todos os pensadores — salvo um, Hobbes — deixaram de lado, por o considerarem desprezível, por nele não verem a dignidade que outras paixões alcançam. A própria crueldade ou a luxúria, em que todos reconhecem defeitos, atingem apesar disso uma grandeza, ainda que negativa. O medo, não. É mesquinho, medíocre. Assim, pensar a sociedade e a política partindo do medo fascina Barthes e desperta sua paradoxal admiração: afinal, merece mais elogios — quem sabe — aquele que tem a coragem de lidar com o mesquinho do que aquele que facilmente retoma os registros grandiosos e nobres.
Essa imagem de um Hobbes associado ao medo é de fácil constituição. Aparece, mais que tudo, em sua autobiografia tardia, que escreveu em versos latinos em sua velhice. Nela, o filósofo aludiu a seu nascimento, de parto prematuro, em 5 de abril de 1588, perto da aldeia de Malmesbury, na Cornualha. A “muralha do canto” (Cornwall), província na qual também há um lugar de nome Land’s End, o fim da terra (ou do mundo), o cabo finisterra dos ingleses, estava apavorada pelas notícias que circulavam da iminente chegada de uma frota muito poderosa. Com a Invencível Armada, pretendiam os espanhóis de Felipe II vingar a execução de Maria Stuart, rainha deposta da Escócia, que sua prima Isabel ordenara ou permitira em 1587, depois de mantê-la dezoito anos presa. A esquadra católica acabou dispersa pelos ventos — um “vento protestante”, como protestante seria cem anos depois, bem contados, o vento que traria as tropas de Guilherme de Orange dos Países Baixos à Inglaterra, para depor um monarca papista, Jaime II. Uma vez, o vento impeliu — os protestantes, em 1688; outra vez, ele repeliu — os católicos, em 1588; nos dois casos, cerrou fileiras com a Reforma. Mas o fato é que, com isso, a Inglaterra não foi tomada pelos invasores: é isso o que permitirá, a curto e também a longo prazo, construir um nacionalismo inglês em torno da convicção de uma forte diferença insular, que terá como um de seus principais fatores a versão inglesa — um anglicanismo em vias de definição — do cristianismo.
De todo modo, o que nos interessa é que no pânico e debandada geral nasça Thomas Hobbes, de parto prematuro; mais que isso, o que realmente nos importa é que em sua memória bem tardia de seu nascimento ele declare: “minha mãe pariu gêmeos, eu e o medo”[2], em sua memória tardia, porque não se trata da sensação que ele terá tido ao nascer, a qual ele próprio terá enfurnado em seu inconsciente, mas da laboriosa e imperceptível construção a que procedeu — ao longo de 84 anos que separam o acontecimento e esse escrito — de seu momento inicial, de sua vinda ao mundo, do modo como ingressou na vida.[3]
É possível que venha dessa memória a ideia de um filósofo comprometido com o medo. Mas é mais provável que tal imagem somente se tenha constituído porque na teoria de Hobbes não é pequeno o papel dessa paixão. Portanto, precisaremos tratar de sua doutrina filosófica antes de voltar ao modo como sua vida e sua teoria, sua imagem pessoal e seu legado como pensador convergiram no privilégio conferido ao medo.
Hobbes rompe com Aristóteles, na definição do ser humano. Para o pensador grego, o homem é por natureza racional e sociável. Hobbes não aceita essa descrição: a razão tem para ele menor peso do que para os pensadores que o antecedem, mas — sobretudo — o ponto de divergência está em que para o inglês o ser humano não é naturalmente sociável. “Os homens não tiram prazer algum da companhia uns dos outros (e sim, pelo contrário, um enorme desprazer), quando não existe um poder capaz de manter a todos em respeito.”[4] Mas note-se que isso não significa que sejamos avessos ao contato com o outro. Penso que Hobbes não coloca o peso de sua argumentação no ser o homem sociável ou não; seria equivocado entender que ele apenas substituísse a afirmação aristotélica de uma natureza humana sociável por outra de sinais trocados ou mesmo opostos. O interessante é que Hobbes desloque a questão, do ser para a relação. O medo que temos um do outro diz respeito ao que este nos poder fazer. Precisaremos, daqui a pouco, rememorar rapidamente as causas de guerra em Hobbes. Estamos no quadro daquilo que é conhecido como a guerra de todos contra todos, a bellum omnes omnis, que no Leviatã, a obra mais conhecida e mais acessível do filósofo, aparece no cap. XIII, e no Docidadão, outra obra de leitura sem maiores dificuldades, está já no cap. I[5]. ( De Hobbes, um comentador recente, William Sacksteder, comentou que foi ele quem “ensinou a filosofia a falar inglês”, isto é, foi no mundo de língua inglesa quem retirou a filosofia do latim e do grego e a trouxe para o vernáculo. Isso significava substituir, como destinatário principal da obra filosófica, a comunidade internacional de especialistas pela comunidade nacional de leitores mais ou menos leigos. Ao mesmo tempo em que frequentava Mersenne e Gassendi, em que se correspondia com os pensadores de ponta do continente, em que visitava Galileu preso em sua casa, seu principal interesse, em política, era conseguir a adesão de leitores seus concidadãos à obediência, à paz: pacificar a Inglaterra. Daí que suas obras de filosofia política sejam de leitura fácil, não exigindo maiores conhecimentos do que aquilo que o leitor se disponha a aprender em suas páginas.)
Passarei mais ou menos depressa pelos dois primeiros parágrafos do cap. XIII do Leviatã. No começo do capítulo, diz Hobbes que os homens são iguais em força física, e no segundo, que também o são no espírito. Note-se que não se trata de identidade, de igualdade exata. É claro que uns são mais fortes que outros, fisicamente: mas isso não impede que o mais fraco mate o mais forte. A diferença de força é menor, ou menos relevante por seus efeitos, do que a razoável igualdade que há entre as pessoas nesse tocante. Igualdade e diferença assim se medem por seus efeitos, melhor, por seu efeito no tocante a matar ou ser morto.
A igualdade em prudência (porque Hobbes exclui da igualdade a ciência, na qual uns se empenham mais que outros; já a prudência, ou experiência de vida, vamos adquirindo enquanto simplesmente vivemos) é provada de maneira igualmente não convencional: a melhor prova de que todos somos iguais em prudência está no fato de que cada um se julgue melhor que os outros nesse campo. A prova da igualdade está na crença, convicção ou reivindicacão da desigualdade. E isso porque Hobbes entende, pela reivindicação de superioridade, que cada um se sinta satisfeito com a parte que lhe coube da prudência. O que Hobbes introduz meio sorrateiramente aqui é a ideia de que a prudência tenha partes: de que haja um estoque de prudência do qual, se cada um se sentir satisfeito com o seu quinhão, se possa pois dizer que a distribuição terá sido equitativa. Devemos notar que nada permite afirmar que a prudência consista num estoque, ou seja, numa quantidade finita e determinada, bem como nada autoriza a afirmar que ela passe por algum tipo de distribuição. Esse pressuposto do estoque, da finitude determinável, da distribuição efetuada, em nenhum momento Hobbes o justifica ou sequer o explicita. Mas, sem ele, a igualdade em prudência se esvaeceria. Se por exemplo supusermos que a prudência, no mundo, não seja finita e estável, a possibilidade de cada um afirmar que a tem em maior quantidade que outro deixará de trazer as consequências que Hobbes lhe imputa.
O curioso é que Hobbes deriva da igualdade, assim provada quanto à força e quanto à prudência, a guerra; mas, se lermos com atenção, notaremos que a igualdade já é provada a partir do conflito. Somos iguais em força porque o mais fraco pode matar o mais forte, e em prudência porque cada um se considera superior ao outro. Ele prova a guerra, talvez, mas porque já a pressupôs.
Há três principais modos do medo, em Hobbes. São eles: o medo da morte violenta, no estado de guerra generalizada; o medo do poder de Estado, uma vez este instituído; o medo da morte, ou ao que vem depois da morte, e que funciona como causa da religião e, sobretudo, do poder do clero sobre os corações e mentes. Os dois primeiros são os mais conhecidos, ao passo que o terceiro quase não é mencionado pelos comentadores: como hoje vivemos numa época laica, a tendência é ignorar o que afirma o filósofo sobre a religião ou, pior, dar crédito à imagem que já em seu tempo foi cunhada por seus detratores, segundo a qual a pecha de ateu servia para desqualificar-lhe o pensamento. Isso exige uma nota preliminar. Certa vez em que eu comentava a fama de ateu atribuída a Hobbes, um aluno me perguntou sobre essa “nova interpretação” de seu pensamento e ficou bastante surpreso (tanto quanto eu ficara com a sua pergunta) ao ouvir que, longe de nova e original, era essa a leitura mais banal e tradicional de suas ideias. (Penso que ele se entusiasmara com a ideia de um filósofo pouco convencional, um ateu no meio do cristianismo triunfante: mas a originalidade de Hobbes está em outras coisas). Pois essa leitura é a mais banal, porque, em sociedades nas quais de todos os pensadores se exigia certa coesão em torno da religião oficial, acusar alguém de romper com ela constituía a melhor forma de destruir seus argumentos, geralmente sem sequer lhes discutir o cerne. Uma caricatura das doutrinas atacadas assim se forjava como, aliás, hoje se faz o mais das vezes, quando seria de se esperar uma discussão séria, respeitosa e enriquecedora — e com isso se eliminava o gume poderoso que ideias interessantes e originais poderiam ter.
Ora, dessas caricaturas, duas eram particularmente eficazes: aquelas que convertiam o conjunto de proposições atacadas em heresia ou em ateísmo. As implicações nos dois casos eram parecidas, com o risco de levar o acusado à morte, eventualmente na fogueira; mas penso razoável sugerir que, ao longo dos séculos iniciais da modernidade, especialmente o XVII e o XVIII, o eixo se foi deslocando do ataque por heresia ao por ateísmo — até porque alguma espécie de tolerância, especialmente na Inglaterra, veio beneficiar denominações religiosas que diferiam entre si, como, por exemplo, as protestantes.
Daí que a dinâmica de destruição precisasse chamar de ateu o outro, aquele a quem se queria aniquilar. Já o infiel, isto é, aquele que acredita em outra religião, que não é portanto ateu, mas tampouco pertence à nossa família religiosa, paradoxalmente talvez fosse o mais poupado. O judeu ou o muçulmano aos olhos dos cristãos, o cristão ou o judeu para os muçulmanos tinham, em que pesassem eventuais chacinas, um estatuto mais protegido que o do herege. Sinal preciso disso é o fato de que a Inquisição católica só funcionasse interna corporis, para fulminar cristãos que haviam deserdado o aprisco, mas não tivesse poder contra quem era realmente de outra religião; o cristão-novo era perseguido, não por ser judeu, mas porque se convertera ao catolicismo e o abandonara. Em suma, se nenhuma dessas condições era minimamente invejável, o fato é que as piores eram a do herege e a do ateu; e ao longo do século XVII e sobretudo do XVIII, parece sensato entender que a perseguição da heresia, em especial nos países protestantes mas também nos meios mais cultos do mundo católico, arrefeceu-se, de modo que a acusação severa e perigosa se tornou, acima de tudo, a de ateu). Mas voltaremos a isso quando discutirmos o que, no pensamento laicizante de Hobbes, ameaçava o clero e suas pretensões ao poder.
Dos três principais medos hobbesianos, aquele hoje mais conhecido se refere ao medo ao Estado, ao Leviatã, cujo nome é constantemente invocado como emblema de um poder ilimitado, absoluto e caprichoso, em face do qual nenhum de nós tem qualquer defesa. Basta lembrar que, quase cem anos após a publicação do Leviatã (que data de 1651), Montesquieu lançou seu Do espírito das leis (em 1748). Não só esse livro praticamente se inicia com uma crítica a Hobbes, como, dos três tipos de governo que define, um (o despotismo) tem por princípio de funcionamento o medo — o que evoca, obviamente, essa paixão, que em Hobbes serve de fundamento a todo poder, ou melhor, à fundação de todo poder de Estado. Os dois outros regimes de Montesquieu funcionam sobre outras bases, a saber: a virtude, no caso da república; a honra, no da monarquia.
Fica assim fácil converter o regime hobbesiano do Leviatã em prenunciação do despotismo. Some-se a isso que Hobbes, ao falar das formas de domínio, acrescentava ao domínio propriamente estatal aquele do pai, ou da mãe, sobre o filho, e do senhor sobre o cativo — e este último recebia o nome de domínio despótico, o que não significava, de forma alguma, um nome pejorativo. Ao contrário da tradição aristotélica, que sempre distingue as formas canônicas de poder e suas deformações (por exemplo, a monarquia e a tirania, a aristocracia e a oligarquia, o regime chamado politeia e aquele que tem por nome dimokratia e é degradação da politeia[6]), em Hobbes não há tal separação. Segundo ele, por exemplo, a tirania é apenas o nome que os detratores da monarquia lhe dão, com o fito de melhor a desmoralizarem junto à opinião em geral. Assim, tudo isso somado — o ataque de Montesquieu; a conversão da soberania hobbesiana (a qual, em sua teoria, pode se realizar indiferentemente, como monarquia, aristocracia ou democracia) em simples espécie, denominada despotismo, do que ocorre nos regimes possíveis; a presença já em Hobbes de um despotismo; a recusa do filósofo a condenar o poder que outros chamam de tirânico ou despótico — configura uma imagem de nosso pensador como simpático àqueles governantes que mandam pelo medo, e que a tradição chama de déspotas. Mas revisitemos e revisemos este ponto.
Se o poder hobbesiano se exerce pelo medo, é porque não cabe aos súditos destituir ou limitar o soberano. As leis deste devem ser obedecidas, e não só as leis, mas também os regulamentos, os atos executivos, até mesmo as decisões e sentenças judiciárias que dele porventura emanem. Não há, ao contrário do que ocorre nos regimes que conhecemos como constitucionais, limitações ao poder do governante. Na verdade, porém, aqui ocorre com frequência um equívoco na leitura que se faz de Hobbes. Aceitamos razoavelmente bem que exista, no Estado, um poder soberano, que é, por exemplo — ocasionalmente—, o de uma assembleia constituinte, ou — de maneira mais permanente — o de um Parlamento, que pode, como o britânico ainda hoje pode, mudar por completo a ordem constitucional do País, ou — ainda e mais em geral — o de um eleitorado popular que por seu voto elege e destitui todos os mandatários, bem como tem competência para alterar a Constituição. Mas se aceitamos bem essa soberania no interior do Estado, é porque ela está investida numa assembleia ou mesmo no povo todo, ao passo que o poder em Hobbes é visto como sendo, sobretudo, monárquico (é visto, porque o filósofo também admite, embora sem muito entusiasmo, a soberania investida numa assembleia de alguns ou de todos).
Se sistematicamente lermos, quando Hobbes fala em soberano, assembleia ou eleitorado soberano, resistiremos menos à sua argumentação, e — mais que tudo — a compreenderemos melhor, e — talvez — a aceitemos mais. Há mais que isso, porém: é que, unindo o governante ao soberano, recusando qualquer descompasso entre um e outro, Hobbes impede o funcionamento de um esquema que, desde Montesquieu, aparecerá como a melhor garantia da liberdade dos súditos contra o poder de Estado. Tal esquema, conhecido na Inglaterra do século XVIII como o dos checks and balances, consistia numa divisão de poderes entre executivo, legislativo e um terceiro poder, que mais tarde, a partir da Constituição dos Estados Unidos da América, se convencionou ser o judiciário. Nenhum deles detém a soberania; nenhum deles esgota o poder; esse esquema funciona mediante dois pressupostos: o primeiro é de que o poder é um mal, ou pelo menos tende ao mal. Quem melhor o expressou foi, no século XIX, o grande historiador liberal inglês, Lord Acton, na célebre frase, tão citada, mas geralmente de forma errada (aqui a copio literalmente): “O poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente.[7] O erro de citação consiste em interpretá-la no sentido de que “todo poder corrompe”, quando o que John Acton afirma é que, no poder, há uma tendência a corromper, que pode, portanto, ser limitada ou contida. Só quando nenhuma limitação cabe (por ser, o poder, absoluto), é que a corrupção campeia de maneira ilimitada.
Acton, com isso, modifica o modo aristotélico de ver as coisas, pelo qual o poder e a corrupção se opunham, aquele sendo, como vimos, a forma canônica, e este, a sua degradação; agora, a corrupção está inscrita no próprio poder porém, insisto, como tendência. A questão consistirá, por conseguinte, em construir diques contra essa propensão do poder a corromper. Tais diques são os checks and balances, isto é, aquilo que afere ou equilibra a tendência à corrupção. Um mal bloqueia outro: por exemplo, o poder legislativo, o judiciário e o executivo, os três dotados de alguma tendência ao mal, evitam, cada um, que os outros descambem no pior. Ou, para tomar um exemplo do próprio Montesquieu, nos países despóticos a religião, embora supersticiosa e intolerante, equilibra o poder do sultão, como, na península ibérica, Inquisição e absolutismo régio reduzem reciprocamente o que é mau um no outro.
Se o primeiro pressuposto desse esquema liberal reside no caráter mau do poder, o segundo está numa certa qualidade positiva das relações humanas que independam do Estado. É essa positividade que permite que, definindo-se um território autônomo em face da atuação estatal, esse território seja bom. Ou, por outra: dado que o poder de Estado é necessário, porém perigoso, reduzimos o perigo que nele há dividindo-o (dividir para reinar, dizia-se da estratégia inglesa de dominação): para que ele não faça guerra a nós, indivíduos, instituímos uma certa guerra interna entre os poderes. Do mal que nele, poder, há, conseguimos assim gerar um bem, ou pelo menos um mal menor. Ele é um mal necessário, primeiro ponto; graças a nosso trabalho de engenharia institucional, que está em fazê-lo guerrear a si mesmo, em desviar seu veneno contra si próprio, tornamo-lo um mal menor (menor que sua inexistência, que nos privaria dos traços positivos do Estado). Mas estes, vê-se, são pressupostos liberais, os quais Hobbes não compartilha. Vejamos por quê.
A questão hobbesiana essencial consiste em temer justamente a divisão do poder de Estado. Hobbes concorda que esse contenha algum veneno, mas que não é maior que o veneno que todos nós, humanos, podemos destilar uns contra os outros. A fim de que a paz se instaure, é preciso que haja um poder supremo, em condições de tornar irracional que um indivíduo ataque outro, na medida em que os custos decorrentes de tal conduta superem — desmedidamente — as vantagens que dela possam advir. Ora, esse poder pacificador somente cumprirá seu papel se for soberano. Isso significa duas coisas: que não esteja subordinado a nenhuma outra instância, e que não esteja dividido. Imaginemos uma situação, simpática à maior parte dos leitores, segundo a qual o governante, embora prevaleça em quase tudo, estaria subordinado à lei e poderia ser julgado pelos tribunais. Nesse caso, ao ser ele acusado de infringir uma lei, quem decidiria as coisas em definitivo seria o juiz ou a corte, que portanto estaria, nem que fosse apenas pontualmente, acima do soberano, e por conseguinte seria o verdadeiro soberano — porque quem tem o poder de fazer ou desfazer o soberano é, ele, o autêntico detentor da soberania[8]. A argumentação é irrefutável.
A não ser que saiamos dela: existe uma possibilidade de contestar Hobbes, mas somente se deixarmos de compartilhar suas premissas, e as pusermos em xeque. O pilar de sua argumentação, aqui, é a indivisibilidade do poder soberano, necessária para conter o que há de venenoso (esse termo não é hobbesiano, mas parece-me pertinente) nas relações humanas. Somente será possível, então, sair do esquema hobbesiano se alegarmos que o poder pode ser dividido, sem problemas maiores para os súditos, e que deve sê-lo, para vantagem de todos; que o risco de impasse, no caso de estar o poder repartido entre diversas instituições, é pequeno, e grande a vantagem de se proteger a liberdade dos súditos; que esta última, longe de ser entre indiferente e nociva à vida em comum, é na verdade seu melhor ingrediente e produto. Não nego que essas teses deram mais certo historicamente que as hobbesianas; eu mesmo simpatizo mais com elas, pessoalmente, do que com as de Hobbes; mas é bom lembrar que aí se saiu de Hobbes, e que criticá-lo por isso é, para usar de um eufemismo, não compreender bem de que ele trata.
Detive-me longamente neste ponto, a fim de mostrar onde está a efetiva diferença entre Hobbes e outros pensadores da política. É errado dizer que está no fato de ele defender o absolutismo, e eles, formas liberais ou democráticas de Estado: porque Hobbes prioriza o indivíduo, como os liberais, e admite a democracia e a aristocracia, além da monarquia. Mas também é insuficiente localizar a diferença no fato de nosso filósofo defender a soberania, e eles não: porque isso só é correto na medida em que outros venham a esposar a doutrina — quase exclusivamente anglo-saxônica — dos contrapesos na estrutura de poder. A tradição europeia continental, seja por dever ao absolutismo, seja por dever aos jacobinos, constituiu-se em torno de uma ideia de soberania, que do rei se transladou à assembleia popular[9]. Na América Latina, que foi muito marcada pelo presidencialismo norte-americano, mas com suas características próprias, o equilíbrio instável entre as instituições sempre tendeu a ceder lugar à predominância do poder executivo ou do elemento militar — até porque o segredo do modelo britânico e norte-americano está exatamente em ser o equilíbrio instável, mas sem nunca chegar ao franco desequilíbrio, que em nossa parte do mundo tem sido regra frequente. No bem-sucedido esquema anglo-saxônico, é justamente o risco do desequilíbrio que impele os agentes a tudo envidar em prol do equilíbrio; aqui, copiamos o modelo no que ele tem de estático, sem esse movimento, sem essa vida que lhe corrige os riscos.
Mas, mesmo nos países em que os checks and balances representaram uma saída para a aporia hobbesiana (aporia que reza o seguinte: alguém sempre manda, em última análise — se não é quem aparece como mandando, será alguém por trás dele, um parlamento, um juiz, mas sempre haverá alguém nestes termos[10]), a relação do súdito ou cidadão com o poder será ainda assim a de quem obedece a este. Pode participar da escolha e até da destituição de quem está no poder, mas deve respeitar a lei. Diante da lei, pois, ele está na mesma situação hobbesiana. E é aqui, somente aqui, que aparece o medo do cidadão ante o poder de Estado.
Resumindo, então, o que até agora vimos: esboçamos uma abordagem de dois dos três medos hobbesianos — deixando de lado o medo da morte, que engendra a religião. Tratamos do medo que todos têm um do outro, quando não há poder comum capaz de manter a todos em respeito. Mencionamos o medo que os súditos sentem do governante, quando este edita leis e dá ordens a que eles devem obedecer. Notemos, agora, que a palavra para medo não é a mesma nos dois casos. Enquanto o medo ao governante se denomina awe, o temor reverente, o respeito — e dele trataremos logo adiante —, o medo recíproco e ilimitado na condição de guerra é chamado de fear, que é o mais próximo, em português, de “medo”. Não é pavor, contudo. Conserva uma racionalidade. Aliás, dele se pode dizer que é eminentemente racional.
Hobbes trata de três causas da guerra de todos contra todos, logo após a passagem no cap. XIII do Leviatã, que comentamos linhas atrás, sobre a igualdade entre os homens. A primeira causa é o desejo, que têm alguns, de tirar o que é dos outros. Tal causa, que no fundo se confunde com a ganância, é quase banal. E não é generalizável: possivelmente apenas alguns, entre os homens, serão movidos por tal cupidez. A novidade hobbesiana, sua genialidade, está na segunda causa. Nessa, Hobbes mudou de enfoque. Parou de considerar as coisas do ângulo de quem agride ou espolia em função de seu desejo e passou a vê-las do viés de quem receia ser agredido e espoliado. Não é o desejo concupiscente o fator que generaliza o conflito, mas o receio de ser alvo da concupiscência alheia. A segunda causa é assim uma causa em segundo grau. A segunda causa é o receio que se tem da primeira causa: o medo que se sente de que o outro esteja movido pela cupidez. São poucos os gananciosos, seja; mas como saber se o outro o é ou não? Ou, dizendo de outro modo, a primeira causa é ou pode ser uma causa objetiva; já a segunda diz respeito ao conhecimento que eu possa ter, ou não, da existência da primeira. A primeira existe, ou não existe; o outro é ganancioso, ou não; mas a segunda causa é a problematização do conhecimento que se possa ter da primeira. Daí que a segunda seja, eminentemente, moderna: se nos limitássemos à primeira, estaríamos pretendendo uma teoria do conhecimento realista, na qual as coisas são ou não são, há ou não há ganância; mas se temos a segunda causa, é porque o realismo pré-moderno sucumbiu e foi substituído por uma dúvida radical quanto a existirem ou não as coisas, no caso uma dúvida insanável, se o outro está ou não dominado pela cupidez. É moderna pela dúvida quanto à existência, e acrescentaria: por uma dúvida essencialmente acerca do outro. Um dos eixos da modernidade, que se constata igualmente na dúvida cartesiana, é que a dubitação incide acima de tudo sobre a alteridade, e a certeza será de si. O mundo moderno é o da socialidade problemática ou impossível, assim como do realismo contestado e problematizado.
Imaginemos um mundo marcado apenas pela primeira causa (“se dois homens desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo que é impossível ela ser gozada por ambos, tornam-se inimigos”[11], e isso quer seja seu fim a própria conservação ou apenas o deleite). Não houvesse a segunda, ou não fôssemos modernos, poderíamos conceber uma solução diretamente educativa — pregar aos gananciosos que se moderem — ou repressiva — castigá-los. Mas a modernidade sugere a impossibilidade de saber se o outro é ou não cúpido. Como o conhecimento realista se tornou impossível, segue-se que devemos imaginar, supor: suspeitar, desconfiar.
Por isso, é sensato, pela segunda causa, eu atacar quem pode me atacar. Mais que isso, e embora a essa altura Hobbes ainda não tenha explicado em que consiste a propriedade, é um medo de quem tem em face de quem não tem, dos have em face dos have-not. Citemos, sempre na admirável tradução do Leviatã por João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva:
“E disto se segue que, quando um invasor nada mais tem a recear do que o poder de um único outro homem, se alguém planta, semeia, constrói ou possui um lugar conveniente, é provavelmente de esperar que outros venham preparados com forças conjugadas, para desapossá-lo e privá-lo, não apenas do fruto de seu trabalho, mas também de sua vida e de sua liberdade” (cap. XIII, kc. cit.).
É visível que a primeira causa de guerra, a simples cupidez, gera menos medo, e conflito, que a segunda — o medo de uma cupidez alheia. A grande causa belli é o medo que os proprietários fundiários sentem dos sem-terra[12]. Ou, mais simplesmente, a desconfiança: porque a simples ganância, que é a primeira das causas, mobiliza apenas aqueles que têm essa paixão como preponderante. Já a desconfiança pode surgir em todos. São provavelmente poucos os que desejam mais do que têm. Mas todos, ou pelo menos todos os que têm, os have, farão muito bem em agir preventivamente contra quem os ameace. A primeira causa dizia respeito a um mero ou puro desejo, mas a segunda agora introduz um elemento de suspeita que é altamente racional: se o outro pode vir a me atacar, é melhor eu atacá-lo antes. O mais razoável, para cada um de nós, é esvaziar todos os demais de sua força e eventualmente da própria vida. Racionalidade se combina com ter. Embora a essa altura, se respeitarmos — o que me parece, porém, discutível — a ordem do texto como se fosse uma ordem cronológica, no texto de Hobbes ainda não tenha aparecido a propriedade, o fato é que existe uma relação forte entre razão e posse. Quem mais tem a temer é quem mais tem. Há, é claro, outros tipos de medo[13], mas a segunda causa é aquela que mais os multiplica, que os generaliza. E essa generalização se dá pela racionalidade de quem, tendo feito algo, se torna vulnerável à cobiça dos demais.
Mas, além do medo mais visível, que é o de um a outro no estado de natureza, é o caso de se tratar também do medo que se tem do soberano, e que se expressa como awe, não como fear. Awe é corretamente traduzido como “reverente temor”, e keep in awe, como “manter em respeito”[14]. Não é portanto o mesmo medo recíproco e ilimitado que temos, todos de todos, no estado de natureza — mas um medo respeitoso, mais respeito talvez que medo, que se sente em relação ao superior que tenha título a mandar em nós.
O grande erro que os comentadores vão cometer — e que talvez tenha tido como sua máxima realização a conversão, que Montesquieu efetua meio consciente, meio inconscientemente, do medo hobbesiano, que é princípio de todo regime, no medo despótico do Espírito das leis, que é o princípio apenas do regime que nega toda a dignidade humana — consiste em ler fear lá onde só cabe awe. Melhor dizendo, em Hobbes, o fear somente serve para o estado de natureza e uma relação de franca desigualdade entre as partes, ao passo que awe rege as relações dos súditos com o governante. O inadequado, mas ao mesmo tempo o erro paradigmático na abordagem de Hobbes, consiste em transpor o sentimento que temos reciprocamente em relação a toda a humanidade, numa condição de igualdade que é o estado de natureza (ou de guerra), para uma situação em que há uma radical desigualdade entre quem manda e quem obedece. É isso o que permite converter uma condição política que não é muito diferente da do Estado de direito moderno, com o monopólio da violência legítima de que tratou Weber, em simples despotismo.
O awe infligido pelo soberano de Hobbes não é, assim, mais que a violência legítima monopolizada pelo Estado weberiano. E no entanto ele é lido como despótico. O próprio Hobbes percebeu uma das grandes razões para tanto, ao notar que uma parte significativa da opinião cultivada de seu tempo — aquela que ele acusou de se embeber nos clássicos — reconhecia a uma assembleia soberana poderes que jamais atribuiria, de bom grado, a um príncipe, embora igualmente soberano. E teve ele toda a razão ao lembrar que, se a palavra-chave é soberania, os poderes de uma assembleia democrática, de um senado aristocrático ou de um rei devem ser os mesmos.
Mas penso que, se pode ser essa a razão da leitura errada que consiste em traduzir a obra de Hobbes em defesa do despotismo, cabe, porém, observar como se dá tal tradução, qual a sua lógica. A leitura de awe como se fosse fear se produz quando o caráter recíproco do medo, que é distintivo do estado de natureza, passa também ao Estado de direito. Na boa leitura de Hobbes, a reciprocidade do medo — o fato de que todos temem a todos — diferencia os dois estados, por sua presença na condição natural, por sua exclusão no Estado político, que, aliás, só é o que é por haver eliminado a reversibilidade do medo. No Estado-Leviatã, somente haverá um medo direcionado, alocado: tememos o soberano, e isso não em estado puro (temer por temer) e incondicionado (sem sabermos quando ele vai atacar-nos), mas apenas quando desrespeitemos a lei. O soberano, legislando e mandando, define com precisão os casos em que teremos a recear o gládio de sua justiça. (É claro que Hobbes admite que, eventualmente, ele possa se desmandar, e ferir inocentes; mas são casos mínimos, de exceção; mesmo o príncipe mais enlouquecido só fere quem ele conheça, quem se sobressaia: razão a mais para termos, na monarquia, uma “vida retirada”, retraída, que será um seguro de vida ou de saúde dos melhores).
Ora, na constituição da imagem do despotismo desde muito tempo se afirma o caráter recíproco do medo: Thomas More, por exemplo, em seus poemas latinos, explica que o déspota ou o tirano, por incutir medo nos súditos, também passa o tempo todo a temê-los[15]. Por oprimi-los e mesmo matá-los, suas noites são perturbadas pelo medo de que alguém o ataque e assassine. Por agir sem regra e sem lei, pelo mero capricho, não vê regra nem princípio na revolta popular, ou no tiranicídio, cujos espectros o rondam. Da mesma forma, Fénelon observa que o príncipe ou reina pelo amor que devote aos súditos, e que estes retribuirão, ou pelo medo que neles incute, e que eles, igualmente, devolverão na mesma moeda[16]. O governante assim escolhe a paixão-mestra das relações com os súditos, amor ou medo, e a que ele eleger funcionará nas duas direções. É claro que o amor do rei aos súditos, ou dos pais aos filhos, não é o mesmo que os filhos ou súditos tenham pelo pai ou rei; o amor sobe diferentemente de como desce; mas essa diferença não chega a ser grande. E de todo modo, no caso do medo, à diferença do amor, o medo do déspota ao justiceiro que o matará é visto como homogêneo em quase tudo ao medo que ele infundiu em seu povo. O medo, enfim, tende a ser entendido como o rigoroso avesso do amor, mais talvez que da esperança, que seria seu par usual. Governar pelo medo se opõe a governar paternalmente. É evidente que um pai vinca seus elos com os filhos não só pelo amor, mas igualmente pela esperança, uma vez que dele os rebentos esperam o melhor, no presente e no futuro. Mas a palavra-chave, o mantra da política tal como ela deve ser, é amor, e o da política como não deve ser, medo.
Assim, a chave da conversão da política em geral, da política quase ou pré-weberiana esboçada por Hobbes, em despotismo está em transformar o medo respeitoso ao soberano em medo ilimitado, o medo hierarquizado e canalizado, dentro de condições conhecidas e públicas, em um medo irrestrito, ou seja, para resumir tudo: em tornar recíproco o medo. Se o soberano teme, se ele teme porque fez os súditos o temerem, então uma mesma e única paixão liga todo o corpo social, mas liga-o num arremedo, num pastiche da boa liga, que é a do amor: liga-o no modo da destruição recíproca. É essa uma socialidade falsa, perigosa — que interessantemente funciona com precisão quase milimétrica do mesmo modo que o estado de natureza hobbesiano. Convém aqui uma palavra sobre este último.
Compreenderemos bem o estado de natureza descrito por Hobbes se dissermos que ele não é uma condição de nenhum contato social, mas sim a situação em que toda e qualquer pessoa, em seus contatos com os outros, que existem, não tem garantia alguma de ser respeitada. Toda descrição dos conflitos que nele ocorrem não é a descrição de pessoas isoladas, como será, mais tarde, a do estado de natureza rousseauniana, em que os encontros são pouco mais que fortuitos, apenas um deles, o acasalamento, tendo alguma regularidade mas não construindo ainda uma duração. Não; o tema hobbesiano do estado de natureza não é o da ausência de encontros, mas o da constante conversão do encontro em desencontro. As pessoas cruzam-se o tempo todo, mas promessas que façam, gestos que se dirijam, podem sempre ser — ou, mais que isso, ser entendidos como — agressões potenciais. São agressões potenciais quando se trata da primeira causa de guerra. São entendidas como potenciais agressões quando se trata da segunda causa de guerra. Por isso, o estado de guerra não reside só nas florestas, e a parca e confusa menção de Hobbes aos povos da América que tampouco estão em guerra, porque vivem sob a tutela de patriarcas, pensa ele — não deve induzir em erro: o estado de guerra é a guerra civil, e grassa nas sociedades constituídas, quando se desconstituem. Melhor o compreenderemos lendo bem a história das filhas do rei Peléas, que a instâncias de Medéia picam o velho pai em pedaços querendo rejuvenescê-lo, do que esboçando uma antropologia do pré-social, do pré-histórico, daquilo que antecede as sociedades políticas. Por isso, o estado de natureza hobbesiano somente se pode entender a partir do Estado político comme il faut, e uma das chaves para isso está no momento em que, no final do cap. XVII do Leviatil, Hobbes afirma que para se compreender o Estado é preciso pensar como se —”de um modo que é como se cada homem dissesse a cada homem”, e aí enuncia, de forma ficcional, os dizeres do contrato[17]. É retrospectiva e retroativamente que o estado de natureza recebe sua construção teórica.
Ora, se o estado de natureza assim funciona como o avesso que justifica e legitima o Estado político, o mesmo papel é atribuído ao despotismo por aqueles que o condenam. De posições políticas muito diferentes, é operado o mesmo recorte, que consiste em construir uma figura ideal ou desejada e legitimá-la mediante a construção de outra figura, na qual se investe a repulsa, a aversão, a qual é conotada de realidade a exorcizar, a vencer, mas tão construída quanto a figura do projeto. Um dejeto, que é dito ser real, assim justifica o projeto, que é apresentado como plataforma, como programa, programa esse que constitui uma figura-mestra da filosofia política (que nunca se pode contentar em descrever: tem, sempre, se não que prescrever, pelo menos que propor).
Para Hobbes, o dejeto, o real a vencer, é o estado de guerra. Para seus detratores, o real a superar é o despotismo, do qual dizem que é, entre outras realizações históricas, hobbesiano. Mas já observamos qual o seu problema: é que despotizar Hobbes exige uma série de procedimentos. Um deles consiste em passar de três regimes possíveis para um só, assim se esquecendo a possibilidade de um Estado não-hobbesiano não-monárquico. Outro procedimento, o principal, é retirar do Estado hobbesiano os traços quase weberianos do Estado de direito, para substituí-los pelos da violência ilimitada.
E desse modo, voltando ao medo, podemos entender que awe e fear ocupem lugares próprios e distintos. Fear é o sentimento que todos temos por todos, numa condição em que o medo é recíproco e reciprocamente se alimenta, inflacionando-se. Awe é o sentimento que temos por aquele que em nós manda, numa condição em que as regras para temer estão claras e definidas: é o sentimento, portanto, que serve para deportar do mundo o fear, ou pelo menos para operar sua redução em forte escala. Daí, enfim, que confundir os dois seja não só equivocado, mas a cifra pela qual o Estado de direito é pastichado como despótico.
Evidentemente, estamos aqui diante de uma encruzilhada histórica. Hobbes, tal como é lido nas últimas décadas, aparece cada vez mais como quem prenuncia o Estado de direito (assim o lê, por exemplo, Franz Neumann, quando apresenta o Leviatã como Estado de direito, e o Behemoth como a institucionalização da guerra de todos: por exemplo, o nazismo[18]) e mesmo o Estado liberal (Moreau, Manent[19]). Antes de nosso tempo, era mais frequente lê-lo como um defensor do poder desmedido, do capricho régio, em suma, de um despotismo que oscilaria, quando muito, entre o oriental, detestável, e o esclarecido, talvez tolerável. É possível que eu tenha sido muito enfático em dizer que a leitura certa é a primeira, e errada a segunda: na verdade, cada tempo lê como pode. Mas, da ênfase que propus, pelo menos se pode inferir que há um jogo pelo qual se produz a segunda leitura, aquela que o despotiza.
Há ainda um terceiro medo, em Hobbes. É o medo da morte. Não o da morte violenta, que é aquela que abrevia o tempo de vida que a natureza normalmente nos daria, mas o da morte em geral. Melhor dizendo, é um medo misto, uma fusão ou confusão de medo da morte com medo do que venha depois da morte — como dizia Hamlet, quantos de nós não cortaríamos pela raiz o sofrimento, matando-nos, não fosse o temor de dores e desesperos piores que os conhecidos, uma vez transposta, pelo suicídio, a linha divisória entre este mundo e o Além[20]. Esse medo, que nem mesmo o advento do Estado refreia, porque não está em mãos do soberano tornar imortais os homens, é a base na qual nasce e cresce a religião. Limita o alcance do poder de Estado.
Simplificando, o Estado surge e se consolida contendo o medo da morte violenta, substituindo o fear, que a um tempo resulta da guerra de todos e a retroalimenta (usamos a imagem da inflação), pelo awe, que é sua versão regulada, civilizada, sua passagem de sentimento anti-social para social e socializador. Mas, assim procedendo, o Estado ainda não pode nada quanto ao medo da morte: É contido o homicídio, é inaugurado o prazer nas rela-çóes sociais, mas um espectro continua a rondar a condição humana, que é o da inevitabilidade da morte, e o do medo daquilo que virá depois dela. Ora, aqui não apenas nasce a religião, mas, como todo discurso está ligado a um poder, que o profere e eventualmente manipula, também o clero. Este assim é um espinho cravado na garganta do Estado.
Já comentei que é errado ler o Leviatã apenas pela chave do poder civil que contém a guerra de todos, ou pensar que o poder do Estado está apenas no gládio da justiça[21]. Porque, se “covenants without the sword are but word”[22], se os pactos sem a espada do soberano são palavras ao vento, mesmo assim há palavras que, sendo embora vento, causam tempestade. É o caso da palavra clerical, que deriva sua força do controle que exerce sobre o medo da morte, ou do que venha após a morte. Uma instituição assim medra, e seu poder está em lidar com uma paixão sobre a qual o Estado tem escasso controle.
Hobbes tem quarenta anos, e está fazendo sua passagem de humanista preocupado em controlar as paixões desmedidas de seus concidadãos para cientista interessado em conhecer os corpos físicos e, além disso, em dar base sólida à política, quando Felton mata Buckingham[23]: o ministro favorito do rei Carlos I é assassinado por um puritano, movido pela pregação dissidente. Ora, um traidor pode muito bem ser executado com requintes de crueldade: Hobbes e todos sabem que nada disso dissuadirá outro exaltado, que meça de um lado a morte física, de outro a morte eterna, de um lado os sofrimentos do corpo, de outro os valores da alma. O Estado somente tem controle sobre o primeiro termo da ponderação, a tortura ou a morte física. Já o clero apela para o segundo termo, que, embora inverificável, oferece a vantagem dos valores e da eternidade.
Daí que só reste uma saída, se quisermos que o Estado controle as condutas: que ele também controle os espíritos. Uma leitura rasa do Leviatã se contentaria com a pacificação dos comportamentos, das ações, e não estaria errada em descrevê-la apenas, não teria completado a leitura do projeto hobbesiano. Este exige que se vá do controle estatal sobre as condutas para a anexação laica do mundo espiritual. Depois do receio eminentemente racional que os have teriam dos have-not,chegamos ao temor que tenha o Estado de seu duplo, de seu rival vezes sem conta bem-sucedido, que é o clero, seja ele romano, seja ele puritano ou presbiteriano. Aqui, então, o que fazer?
Vimos que, para se chegar ao awe, havia que vencer o fear da guerra de todos; o Estado pacificador dava cabo do conflito movido pelo desejo de ter e multiplicado pela razão que ensinava a, mediante agressões preventivas, precaver-se. O segundo medo, ao Estado, era assim a versão civilizada, reduzida, canalizada, do primeiro medo, que sentíamos de todos os nossos semelhantes. Instituindo a desigualdade de poder, entre o governante e nós, refreávamos a igualdade — que, explica Hobbes mais de uma vez, é condição de guerra. Agora, contudo, temos outro medo, esse inefável. Do primeiro, era fácil chegar a uma série de argumentos racionais, passando pelas figuras do visível: temer a um[24]é melhor que temer a todos, temer a lei é melhor que temer a desmedida, saber em que condições ter medo é melhor do que ter medo sempre e sem condições. Era possível até agora ponderar e quantificar as vantagens e prejuízos de cada caso. Mas, aqui, o medo está na beira do imponderável. Como discutir, como argumentar, quando está em jogo a salvação eterna? Haverá, por um lado, que recorrer à autoridade da citação bíblica, mas isso Hobbes só faz a posteriori, como justificação adicional, “contraprova”, diria Guéroult. Por isso, o principal é uma reinterpretação não de passagens das Escrituras, mas de seu espírito.
Tudo converge aqui para duas chaves. A primeira consiste em dizer que a salvação é fácil. A segunda, em mostrar que o Estado deve reunir em suas mãos o poder civil e o espiritual — o que traduzi, em termos que não são bem os de Hobbes, mas são aqueles em que ele foi compreendido, e me atrevo a dizer, mais que isso, são os termos “reais” do jogo, como sendo provar que o poder leigo deve anexar o espiritual. Não é preciso retomar aqui o que já disse, em Ao leitor sem medo, sobre a facilidade da salvação — até porque evitei, neste artigo, duplicar o que já publiquei sobre Hobbes. O que importa é indicar como se articulam as duas chaves, isto é, como a facilidade da salvação monta a obediência a um Estado leigo.
Um paralelo esclarecerá. Hobbes ainda moço, o rei Jaime I empenha-se em lutar contra a common law. Humilha e finalmente destitui Sir Edward Coke, o maior dentre os juristas consuetudinários, da posição que ocupava no Judiciário. Várias vezes ataca a linguagem em que está redigida a lei, e sobretudo em que são vazados os procedimentos dos tribunais, que é o law French, literalmente “francês de lei”, isto é, uma corruptela de francês normando arcaico com acréscimos de inglês e de latim. Pede que a lei seja sempre dita em inglês, para que todos a conheçam, que os arcanos dos tribunais sejam devassados, que todo súdito saiba exatamente o que pode e o que não pode. Tudo isso nos parece extraordinariamente simpático, e é difícil entender que justamente os que se opunham a tão boas intenções tenham sido vistos na época, e registrados pela história, como os defensores das liberdades inglesas. Mas há razões para isso.
A ideia de uma lei difícil, e que requer interpretação, significava que existia um legado inglês, precioso, que então começa a ser chamado o birthright do free-born Englishman, isto é, o direito de nascença (ou direito natural) ou herança do inglês que nasce livre, o qual é imune à vontade caprichosa do rei e só pode ser defendido por tribunais e cultores. O empreendimento monárquico de racionalizar a lei é — corretamente — decifrado como o propósito de submetê-la à vontade do rei, que por sua vez é entendida como capricho, ou pelo menos como uma vontade não controlada pela sociedade. Entenderemos bem o que está em jogo, se aproximarmos obirthright do que hoje é, em inglês, heritage, que alguns traduzem como herança, e com razão, mas que tem o sentido mais preciso de patrimônio, geralmente histórico, natural ou cultural. Os defensores da common law são vistos como defensores do patrimônio, no caso, jurídico e acima de tudo constitucional: trabalho difícil e que justifica reticências em face de modernizadores apressados, que querem submeter a uma razão de fancaria — na verdade, um disfarce para sua vontade caprichosa — um legado imemorial e precioso. E há razão, insisto, nessa postura, até porque o mesmo rei que exige que se ponha fim aos mistérios dos tribunais, ao que há de misterioso na leitura e obediência da lei, clama, por sua palavra direta ou pela de seu ministro, o filósofo Francis Bacon (de quem Hobbes foi secretário e tradutor), a existência de “mistérios da realeza”, os quais nenhum súdito deve se atrever a penetrar. O rei quer retirar o mistério da recepção das leis, mas só para garantir o mistério na sua redação, produção ou sanção. Temos aí uma luta pelo mistério: quem assegura o seu mistério, o seu segredo, terá assegurado o seu poder[25].
Com Hobbes, é um pouco diferente — sua política visa justamente a excluir o mistério, e por isso mesmo, defensor que é da curiosidade, ele enfrenta a tradição do direito divino que era a de Jaime I[26]. Mas há um encontro entre ele e Jaime na forma — sabemos que oponentes podem compartilhar a mesma forma de articular as coisas — pela qual agregam a defesa do simples e a da autoridade. A simplificação da lei do Estado acompanhava uma defesa, por parte do rei, de seu poder de legislar e de mandar em toda a matéria legal. A mesma matriz de pensamento aparece em Hobbes. A simplificação da lei divina ou espiritual vem com a reivindicação, pelo soberano leigo e espiritual, de seu poder de mandar em toda a matéria, seja ela a que consideramos estatal, seja a que era pleiteada naquele tempo pela Igreja. Quanto mais simples for a lei, menos ela precisará de juízes ou de sacerdotes capciosos. O papel de uns e outros é precisamente o mesmo, porque uns e outros vivem de interpretar a lei, humana ou divina, e tanto mais têm a ganhar quanto mais confusa ela for — ou eles a fizerem. Como ninguém alega diretamente que a lei é confusa, a conclusão de Hobbes e de Jaime é que sacerdotes e juízes embaralham propositadamente o simples, introduzindo confusão nas mentes dos fiéis ou súditos, e assim cravando uma cunha entre eles e o soberano. Nessa cunha, os defensores da common law que Hobbes atacará em todas as suas obras, mas sobretudo no Dialogue of the common laws, obra final e inacabada — e os da dissidência religiosa — que ele critica ao longo de sua vida, com maior ênfase do que acusa os advogados, mas que vai privilegiar no Behemoth — conseguem fundar o seu poder. Num caso e noutro, é um poder sobre os espíritos, é uma fala que usurpa, para as profissões da palavra, a obediência devida ao soberano.
Assim, se controlarmos as duas profissões que tutelam os espíritos, sacerdotes e advogados, garantiremos a ordem social, subordinando eficazmente as pessoas ao governo e, mais importante, porque é para isso que existe o governo, asseguraremos a paz entre os cidadãos. Todo o discurso corporativo de um grupo, em especial o que só ele entenderia, na verdade tem por único fim assegurar o poder desse grupo. Daí, se queremos a paz, que devamos destruir esses poderes locais, e portanto os idioletos ou linguagens corporativas que, ilegitimamente, conferem a essas corporações a tutela do social. E dessas duas guildas, a religiosa e a jurídica, a mais poderosa é a primeira, porque brande como prêmio ou castigo não apenas o resultado de um processo cível ou penal, mas a salvação ou condenação eterna. Vencer o medo da morte em geral, ou seja, o medo do que vem depois da morte, é portanto eliminar a hipoteca de um clero independente sobre a sociedade. Ganham, com isso, o soberano, que exclui essa espada de Dâmocles que paira sobre seu poder, e todos os cidadãos, que podem levar a vida temendo somente o resultado de suas ações ilegais, e não a arbitrariedade de um clero que manipule suas superstições, seus temores, multiplicando-os. Ganhamos a paz civil e também a tranquilidade de nossas consciências.
Depois de concluir em 1973 o meu mestrado, que tratava de Hobbes e que publiquei com o nome de A marca do Leviatã, pretendi passar de uma dissertação sobre um autor para uma tese sobre um tema. Esse, bem hobbesiano, seria o medo na política. Hobbes se tornaria ferramenta para pensar a política, em vez de objeto reiterado de uma leitura. Li, nessa ocasião, O prazer do texto, que Barthes acabava de publicar. Procurei um corpus, um objeto — e em meados de 1974 encontrei-o: a Cartuxa de Parma, de Stendhal, mostrava uma sociedade e uma política, na Itália de começos do século XIX, em que todos se iam enredando pelo medo. Devorei o restante de sua obra: tinha o meu tema. Mas não consegui dar conta de estruturar, com ele, uma tese. A isso se somaram alguns anos de depressão, em que não chegava a completar nada. Voltei, então, a Hobbes, sempre pensando, sob a inspiração de Barthes, na importância do medo, no gêmeo do medo. (O trabalho sobre Stendhal acabou sendo o primeiro que publiquei numa das coletâneas organizadas por Adauto Novaes: chama-se “Paixão revolucionária e paixão amorosa em Stendhal”, e está no livro Os sentidos da paixão.) Um dia de 1981, porém, abrindo um livro da Pelican sobre a literatura inglesa, deparei com um poema de John Donne, cujo primeiro verso era “Pregnant again with th’old twins, hope and fear… [27]”
Fiquei impressionado, maravilhado. O gêmeo do medo era, então, a esperança? A Sra. Hobbes dera então à luz não a um clone do medo, mas à esperança? Tudo começou a mudar de sentido, na leitura que fazia de Hobbes. Assim, no final do cap. XIII do Leviatã, quando o autor diz que os homens procuram a paz por medo da morte violenta, notei que acrescentava o desejo de ter conforto[28] e a esperança de conquistá-lo mediante o trabalho. Seu nascimento numa sexta-feira santa, mencionado por seus discípulos, a comparação dele a um Messias, que traria aos homens a paz na Terra, enfim, toda uma positividade surgia na obra dele, em vez das figuras do medo. Um Hobbes despótico perdia toda a base. Uma das coisas que procurei estes anos, quer em Ao leitor sem medo, quer em outros artigos que sobre Hobbes escrevi, foi dissipar essa imagem do Hobbes vinculado ao pavor. Daí, por sinal, que Barthes estivesse totalmente errado na citação que fazia de Hobbes. Aliás, na época em que saiu seu O prazer do texto, pedi a meu amigo J. B. Natali, orientando de Barthes, que lhe perguntasse onde colhera a passagem de Hobbes; a resposta foi que não se lembrava exatamente, tendo apenas uma ficha com a suposta frase do filósofo. Penso que ou Barthes ou uma fonte sua na verdade reelaborou, inconscientemente, o “minha mãe pariu gêmeos, eu e o medo”, convertendo-o numa identificação de Hobbes com o medo e, daí, na bela fórmula de ter ele tido uma única paixão. O erro de Barthes foi mais do que significativo: é a forma mais bela, literariamente, de expressar a imagem corrente sobre o filósofo. Mas tal imagem é um equívoco, e desfazê-lo traz alguns resultados interessantes, que são os que procurei expor.
Uma palavra só, ainda. O par medo-esperança não se esgota em Hobbes. Nosso filósofo procurou dissipar o medo às potências do Além. Especialmente divertida é sua passagem sobre os profetas, em que com todas as aparências da seriedade (e talvez realmente a sério) os define como “às vezes prolocutor, quer dizer, aquele que fala de Deus ao homem, ou do homem a Deus, outras vezes praedictor, aquele que prediz as coisas futuras, e outras vezes aquele que fala incoerentemente, como os homens que estão distraídos”[29] (itálico final, meu). Não resta muito da reverência (awe) devida aos profetas quando não sabemos se falam em nome de Deus ou por distração… Logo adiante, no cap. XXXVII do Leviatã, tratando dos milagres, Hobbes mostra sua inutilidade, já que somente servem para comprovar o que já está provado, mas nada podem ou devem trazer de novo ao mundo. O que é sobrenatural na religião assim é praticamente liquidado. Ora, é esse um dos aspectos do processo a que Max Weber chamou o desencantamento do mundo. Esse vetor constitutivo da modernidade é bastante complexo, e hoje muitos lamentam o quanto o mundo se tornou menos interessante devido a ele; Heidegger, num curso do imediato pós-guerra, observava que “aquilo a que chamamos pensar” é maior que a razão, a qual, porém, ocupou nestes séculos da modernidade o cerne do que foi respeitado como pensamento.
Mas, mesmo que hoje possamos lastimar a larga medida a que tendeu o desencantamento do mundo, em Hobbes vemos alguns de seus aspectos principais. Primeiro, a superação do medo às potências infernais, e, com isso, uma enorme redução no poder do clero para amedrontar e controlar as pessoas: o mundo das consciências ficou mais livre, graças a Hobbes. Segundo, o fato de que essa emancipação de nosso espaço interior só foi possível mediante um reforço do poder de Estado. Hoje, provavelmente gostaríamos de conservar a liberdade de consciência e de reduzir a tutela do Estado. Desejaríamos conservar o que é positivo no desencantamento, ou seja, a redução do medo ao invisível, sem o seu fardo negativo, que é a extrema racionalização ou, no caso, normatização da vida. Nesta sintonia fina de nossos desejos, ou neste novo anseio de nosso tempo, Hobbes já não nos guia. Mas saber como ele articulou essas duas questões de outra maneira que não a nossa pode ser, pelo menos, utilíssimo para que revisitemos o que foi desencantar e o que alguns chamam reencantar o mundo.
BIBLIOGRAFIA
ARISTÓTELES, Política.
BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo, Perspectiva, 1987.
FÉNELON. Les aventures de Télémaque, Paris, Garnier-Flammarion, s/d.
HOBBES, Thomas. Do cidadão, São Paulo, Martins Fontes, 1992, trad. Renato Janine Ribeiro.
HOBBES, Thomas. Leviatã, São Paulo, ed. Abril, 1973, trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva.
HOBBES, Thomas. Thomae Hobbesii Malmesburiensis Vita authore seipso, 1679. (Obra datada de 1672).
MONTESQUIEU, Charles de Secondat, barão de. O espírito das leis. São Paulo, Martins Fontes.
MANENT, Pierre, História intelectual do liberalismo. Rio de Janeiro, Imago, 1990.
MOREAU, Pierre-François, Les racines du libéralisme —une ant hologie, Paris, Seuil, 1978.
RIBEIRO, Renato Janine. Ao leitor sem medo: Hobbes escrevendo contra o seu tempo, 2ª edição, Belo Horizonte, Editora UFMG, 1999.
RIBEIRO, Renato Janine. “História e soberania (de Hobbes à Revolução)”, em A última razão dos reis — ensaios de filosofia e de política, São Paulo, Companhia das Letras, 1993. p. 97-119.
SHAKESPEARE, William. Hamlet. Nova York/Londres, Norton, 1963.
THOMAS, Keith. “The social origins of Hobbes’ political thought”, em BROWN, Keith (org.), Hobbes studies, Oxford, 1965.
NOTAS.
- Retomo aqui temas de que tratei em Ao leitor sem medo — Hobbes escrevendo contra o seu tempo, Belo Horizonte, 1999, Editora UFMG, em especial nos caps. I e VII. Retomo: isto é, com poucas exceções o material todo que se segue é novo e inédito. A primeira edição de Ao leitor sem medo é de 1984 (São Paulo, Brasiliense). ↑
- “… metum tantum concepit tunc mea mater,! Ut paretet geminos, méque metúmque simul”. Thomae Hobbesii Malmesburiensis Vita authore seipso, 1679, p.2. ↑
- Há o risco, se concedemos demasiado peso ao nascimento de Hobbes, de entrarmos em algo como um romantismo piegas. Romantismo, porque estaremos dando ao nascimento um peso que possivelmente ele não teria no século XVII; piegas, pelo excesso de sentimentalismo. Não é isso, porém, o que aqui pretendemos, e sim ver que sentido Hobbes atribui à sua presença no mundo. Como entendemos esse sentido como construído e elaborado, e não como descoberto, não estamos no universo romântico, que derivaria a teoria da vida do autor. ↑
- Leviatã, cap. XIII; “Da condição natural da humanidade relativamente à sua felicidade e miséria”, p. 79. ↑
- Do cidadão, cap. I: “Da condição humana fora da sociedade civil.” ↑
- Para o que nos interessa, Aristóteles chama de politeia (constituição) o que chamaríamos de democracia, e de dimokratia sua deformação. Discutir as razões dessa curiosa atribuição nos levaria longe; que fique, aqui, a nota de que para o pensador grego e seus seguidores há um recorte, inaceitável para Hobbes, entre as formas canônicas e suas respectivas deformações. ↑
- “Power tends to corrupt, and absolute power corrupts absolutely. Great men are almost always bad men.” Historical essays and studies, apêndice. ↑
- A Constituição brasileira de 1988, como as de vários outros países, proíbe que processos criminais contra o presidente sejam conduzidos durante o seu mandato. Até ele deixar o Palácio, o único crime pelo qual pode ser processado é o de responsabilidade. Assim se evita que um juiz qualquer destitua quem foi eleito pelo povo todo. ↑
- Ver meu artigo “História e soberania (de Hobbes à Revolução)”, em A última razão dos reis, p. 97-119. ↑
- A rigor, nem sempre. É possível que o poder realmente esteja tão dividido que não haja esse poder de última instância. Mas, nesse caso, o poder se fragmenta e dissolve. ↑
- Leviatã, cap. XIII, p. 79. ↑
- É claro, porém, que não são apenas os desprovidos que atacam os já providos. Também pode suceder que uma pessoa com posses ataque outra, a fim de aumentar, de maximizar o que tem. Contudo, o cerne da segunda causa é que quem construiu ou constituiu algo se torna mais vulnerável à cupidez alheia do que aquele que nada fez ou tem. Num ambiente tomado pela segunda causa, qualquer produtividade, qualquer realização se torna contraproducente. Perversamente, quanto mais se constrói, mais se incentiva o outro a predar. Note-se que mesmo quando Hobbes menciona aqueles que, “comprazendo-se em contemplar seu próprio poder nos atos de conquista, levam esses atos mais longe do que sua segurança exige”, o que significa voltar ao registro da ganância, ele os está comentando no contexto da segunda causa, isto é, não do ponto de vista deles, dos excessivos, mas dos que deles precisam proteger-se. A frase assim prossegue: “se outros que, do contrário, se contentariam em manter-se tranquilamente dentro de modestos limites, não aumentarem seu poder por meio de invasões, serão incapazes de subsistir durante muito tempo, se se limitarem apenas a uma atitude de defesa”. É do ângulo dessas sensatas, racionais e razoáveis vítimas potenciais que está sendo considerada a necessidade de ataques preventivos, que ampliam a guerra in extremis. ↑
- Uma das poucas mudanças que nestes anos adotei em relação às ideias que sustento em Ao leitor sem medo se refere às causas de guerra. Naquele livro, priorizei a terceira causa, ou seja, a busca da glória, da honra. É essa a leitura de Keith Thomas, num notável artigo de 1965. Mas agora considero, pelos argumentos que acabei de expor, que a principal dentre as causas é a segunda. Com isso, o Hobbes teórico dos conflitos de honra recua um tanto, em favor do Hobbes teorizador dos conflitos por suspeita do construtor em face do predador — o que também significa assumir mais o ponto de vista burguês, ou do construtor, que o do homem de honra, ou do nobre suscetível. Mas esta é apenas uma correção de rota, em face do que dizia em Ao leitor sem medo e que continuo sustentando, uma vez que (1) a honra não deixa de ser causa belli, dado que são três as causas de conflito; (2) a suscetibilidade à honra compartilha, com a desconfiança, ser uma causa em segundo grau, que imagina o que o outro quer ou deseja, em vez de enunciar o que o outro é, ou o que sou; (3) deixei claro naquele livro, como continuo entendendo, que Hobbes não pode ser reduzido a nenhum grupo social ou político em particular — portanto, não estou propondo que deixe de ser situado entre os pró-aristocratas para figurar entre os favoráveis aos burgueses, uma vez que nunca admiti que ele pudesse ser integrado numa facção só ou numa única classe. Por isso mesmo, mantenho o que foi dito em Ao leitor sem medo sobre a honra, apenas lhe reduzindo a ênfase ou subordinando-o ao que aqui é afirmado sobre a desconfiança. ↑
- De dezesseis ocorrências, ao longo do De corpore político, de Do cidadão, e ainda do Leviatã, da palavra awe, praticamente todas se referem ao temor em face de um poder superior e comum a todos, que seria o Estado. ↑
- Comentei seus poemas latinos em Ao leitor sem medo, cap. I, la edição, p. 35-6, 2ª edição, p. 45. ↑
- As aventuras de Telêmaco. ↑
- Leviatã, cap. XVII, p. 109. ↑
- Ver Franz Neumann, Behemoth — the structure and practice of national-socialism, 1933/1944, Harper & Row, NYC, 1966. ↑
- Pierre-François Moreau, Les racines du libéralisme. Pierre Manent, História intelectual do liberalismo. ↑
- No célebre monólogo do “Ser ou não ser” — ato III, cena I, do Hamlet. ↑
- Ao leitor sem medo, esp. cap. VII. ↑
- Leviatã, cap. XVII, p. 107: “os pactos sem a espada não passam de palavras”. ↑
- John Felton, tenente da marinha, mata o duque de Buckingham em agosto de 1628. É curioso, de todo modo, que Hobbes não mencione Felton — nem o duque — em seu livro sobre a guerra civil e suas causas, o Behemoth. ↑
- Mesmo no caso da democracia, em que o poder soberano está nas mãos de um coletivo que reúne todos, esse coletivo é um só, enquanto pessoa. O poder democrático não é o de qualquer um, mas o dessa pessoa fictícia formada pela metamorfose de inúmeras individualidades num único coletivo. Esse, o eixo da discussão hobbesiana, que a um só tempo legitima as diversas formas de governo e reduz a pretensão da democracia a ser melhor que a monarquia: porque, em ambos os regimes, e ao contrário do que poderia pretender um La Boëtie com seu Contra Um, o poder está em Um. ↑
- Ver Ao leitor sem medo, cap. V, la edição, p. 137, 2ª edição, p. 139: o conflito político na Inglaterra de começos do século XVII se manifesta na capacidade de cada grupo, ou corporação, preservar seus segredos. ↑
- Cf., para a defesa da curiosidade em Hobbes, Ao leitor sem medo, cap. I, 1ª edição, p. 34-6, 2ª edição, p. 44-5; para a contestação aos mistérios na política, ibid.,cap. V, 1ª edição, p. 136-7, 2ª edição, p. 138-9. ↑
- Literalmente: “de novo prenhe dos velhos gêmeos, esperança e medo…”. Eugênio Gardinalli Filho traduziu esse poema de maneira esplêndida para O leitor sem medo, no qual se pode ler em apêndice. ↑
- No original, comfort, que indica mais a paz, a tranqüilidade, a consolação, do que o conforto material. ↑
- Leviatã, cap. XXXVI, p. 254. ↑