O medo como procedimento heurístico e como instrumento de persuasão em Hans Jonas
por Bernard Sève
Resumo
A referência ao medo é um dos traços mais originais e tocantes no pensamento de Hans Jonas. Seu livro clássico, Princípio responsabilidade, soa como um aviso, e, como tal, é natural que se dirija à origem do medo no leitor, o que é um expediente eficaz tanto na esfera teórica quanto na prática. Por isso o que segue não concorre para desqualificá-lo; antes, para analisá-lo em algumas de suas dificuldades, sobretudo as de aspecto político.
Adiante-se que a terminologia a ser usada deve a Hobbes, que chama de “medo” ou “temor” o sentimento causado pelo risco real; “aversão” o sentimento causado por um mal deflagrado; e “perigo” ou “ameaça” quando se trata da preponderância da natureza objetiva ou subjetiva da origem do medo, respectivamente. Assim, tem-se que ele é causado diretamente pela ameaça e indiretamente pelo ameaçador, distinção que surte mais efeito intelectual do que psicológico. Isso porque se uma aversão ou rejeição surge quando da presença efetiva do mal, ela é imediata, indiscutível, ao passo que a ameaça do mal integra a esfera representativa; incerta, portanto.
Pois bem. Jonas, antes de tudo, trata de mostrar que a avaliação humana da ameaça é, quase sempre, distorcida, de modo que a mais temida nem sempre é a mais perceptível. A ênfase recai, então, sobre a técnica, que, por meio de promessas imprecisas, dissimula seus perigos inerentes, o que implica o descontrole e o desgoverno dela. Destaque-se, pois, que, nesse âmbito, o pior perigo não é evidente, mas essencialmente imperceptível, uma vez que se disfarça de bom uso. Escreve Jonas: “É justamente o benefício da técnica que ameaça transformar-se em maldição, e isso quão mais for usado”. Por isso é tarefa urgente revelar o perigo contido no desenvolvimento técnico. É em tal contexto que surge a heurística do medo que assim funciona: se o progresso técnico usa como estandarte alguma definição de humanidade, é então que se descobre o real valor dela e a necessidade de preservá-la. Exemplo máximo disso foi dado pela clonagem, que trouxe à tona a importância do ser por ele mesmo. Mais: ela preconizou a ameaça mesma. Eis, então, a primeira dificuldade a enfrentar: como prever objeções que se podem dirigir a um avanço técnico se as mais fundamentais delas são exatamente as mais surpreendentes?
“Quando o perigo é desconhecido, ignora-se o que se deve proteger” – reconhece o próprio Jonas. Ele que, no entanto, defende-se assim: “Se não houvesse mentira, não se conheceria o valor da verdade”.
Ora, a mentira é um mal que, de fato, existe – ao passo que o perigo desconhecido (por vir, por exemplo) não existe como perigo.
Dada tal contradição, natural que, para Jonas, o medo sirva de móvel político. Mais: que assim deva ser. Eis um argumento contestável, uma vez que o primeiro efeito dele é o de humilhar, diminuir a capacidade de autonomia do homem. Certo que Jonas só defende o uso do medo em última instância e que seria injusto atribuir-lhe complacência para com modos ditatoriais de governo. No entanto, ele não hesita em se valer do argumento da nobre mentira platônica contra “as ingenuidades liberais em matéria de veracidade pública”. Não se trata de contrastar tal ponto de vista com o princípio kantiano da publicidade, cuja consistência intelectual e política é vaga. Antes, trata-se de descobrir se o medo concorre para a racionalidade política.
Hobbes é, então, a referência. A começar por ter sido o primeiro a conceber o medo como móvel fundamental em matéria de bem comum. Depois, por racionalizá-lo, ao constatar que ele é um sentimento natural, porque causado por um perigo efetivo ou por uma ameaça presente na experiência; egoísta, porque relacionado à integridade física ou à vida mesma de quem o sente, e mal, porque interfere na satisfação de estar vivo e desejar.
Já em Jonas o medo não se relaciona à própria vida, mas ao futuro da vida. Ele não é motivado por perigo presente. E, enfim, ele não é um mal, mas um bem; um dever até.
Por isso é preciso “salvar-se do mal supremo, em vez de aspirar ao bem supremo”. Eis a outra dificuldade mesma, pois se, para Hobbes, o medo é definido pelo sujeito (seu corpo e a morte), ele é, para Jonas, indefinido, mesmo que – sim – o processo técnico venha trazer consequências desastrosas.
Afinal, como, num mundo submerso em técnica, hierarquizar os perigos?
A referência ao medo é um dos traços mais originais e mais tocantes do pensamento de Hans Jonas. O princípio responsabilidade começa e termina com uma evocação do medo; esse livro é como um aviso — e é lógico que um aviso reflita sobre o medo, até mesmo evoque o medo daquilo de que se deve prevenir.
O medo, segundo Jonas, apresenta-se sob dois aspectos principais. De um lado, ele é princípio de conhecimento, de outro, princípio de prática, e, mais precisamente, um princípio de prática política. Essas duas ideias são poderosas, e o debate que vou propor não pretende de forma alguma contestar a importância disso. Mas essas duas ideias parecem-me implicar dificuldades relativamente grandes. Examinarei sucessivamente os problemas que suscitam os dois tipos de eficácia que Jonas atribui ao medo: a eficácia heurística e a eficácia política. Veremos que essas dificuldades, na verdade, são paralelas. Esse paralelismo é, aliás, uma confirmação paradoxal da coerência do pensamento de Jonas.
Gostaria, enfim, de deixar claro que minha leitura, em certa medida fortemente crítica com relação à ideia do medo em Hans Jonas, não é absolutamente uma avaliação do conjunto desse pensamento. Escolhi clarear um ponto obscuro da ética da responsabilidade, mas não ignoro que, uma vez formulada minha crítica, o problema levantado por Jonas permaneça de pé. Ele mesmo reconhece que o aspecto político de seu pensamento é a parte mais frágil. Minha reflexão inscreve-se no contexto teórico elaborado pelo próprio Jonas.
HEURÍSTICA DO MEDO E ANTECIPAÇÃO DA AMEAÇA
Todo medo é engendrado por uma ameaça, que se remete, ela mesma, a um mal efetivo. O vocabulário aqui tem pouca importância. Fala-se sempre do medo de um mal presente, de uma doença da qual, por exemplo, se sofre. Mas esse uso da palavra “medo” é contestável. Talvez seja melhor retomar o vocabulário estrito de Hobbes[1] e chamar “aversão” o sentimento de rejeição e de combate que nos inspira um mal pelo qual estamos atualmente afetados, e chamar “medo” ou “temor” o sentimento que nos inspira o risco, a possibilidade real de ser afetado por um mal que seja, ele mesmo, real. A aversão é causada por um mal real que nos atinge, o medo é causado pela possibilidade real de ser atingido por um mal que conhecemos por experiência ou por analogia com nossa experiência. É a essa realidade da possibilidade de ser atingido que chamamos de “perigo” ou “ameaça”, com o detalhe extra de que o perigo se remete mais à realidade objetiva dessa possibilidade, e a ameaça, à consciência subjetiva que disso tomamos. O medo é, pois, causado diretamente pela ameaça, e indiretamente pelo mal ameaçador. Psicologicamente, essa distinção não tem um grande alcance. Mas, intelectualmente, a distinção desses níveis de realidade (realidade do mal ou realidade de sua ameaça) se faz importante. Uma vez que, se a presença efetiva do mal, que produz aversão ou rejeição, é uma presença imediata, indiscutível, a ameaça do mal, a consciência do perigo, passa pela mediação de uma representação: sei que posso ser atingido por uma tal doença porque já estive doente ou porque vejo outras pessoas que foram por ela atingidas. O sentimento de medo supõe uma representação do objeto perigoso e ameaçador. Esse sentimento é, então, suscetível aos mesmos graus, às mesmas intensidades e também às mesmas incertezas ou deformações que as representações nas quais se baseia.
Jonas mostra com muita força que nossas avaliações espontâneas das ameaças são, mais frequentemente, inexatas, e que a ameaça mais temível não é necessariamente a mais diretamente perceptível. As promessas imprecisas da tecnologia dissimulam os perigos inerentes de um modo de avanço dos poderes técnicos que ninguém pode, segundo Jonas, controlar ou gerenciar. O importante para o que estamos dizendo é o seguinte: o perigo mais grave aqui não é aquilo que é evidente, mas o que é essencialmente imperceptivel. Isso está ligado a um paradoxo longamente analisado por Jonas: não é apenas a má utilização do poder tecnológico, mas sua própria boa utilização que encerra o mais intenso dos perigos. “São justamente os benefícios da técnica que ameaçam se transformar em maldição, e mesmo porque precisamos cada vez mais deles.”[2] O bem obtido pela técnica é uma “faca de dois gumes”, da qual o segundo gume não se mostra espontaneamente. Aquilo que deveria assustar não assusta; ao contrário, a dinâmica extraordinária da técnica produz uma confiança irrefletida, confiança que se agrega, por sua vez, a essa dinâmica e contribui para torná-la ainda mais irrepreensível. Essa confiança, essa má confiança, culmina na utopia, que é, ao mesmo tempo, caricatura e verdade disso. O primeiro trabalho, segundo Jonas, é então revelar os perigos contidos no desenvolvimento técnico. É nesse contexto que ele fala de heurística do medo. O medo torna-se um instrumento de conhecimento e ele nos revela, ao mesmo tempo, o valor do que está ameaçado e nossa ligação com esse valor.
Mas essa noção de heurística do medo não é de modo algum evidente. É preciso, na realidade, distinguir muito claramente as duas noções de heurística do medo e de antecipação da ameaça, que estão no cerne do pensamento de Jonas. É preciso cuidadosamente distinguir essas duas noções, assim como os dois seguintes problemas: podemos antecipar todas as ameaças,[3] mesmo as mais distantes da nossa experiência? Qual é o valor heurístico do medo em geral, e em particular o de um medo antecipado e, digamos, fabricado? Não tratarei de valor heurístico do medo em geral: a posição de Jonas me parece, sob esse ponto, perfeitamente convincente, desde que deixe de lado o problema da ligação entre a heurística e o projeto de fundação metafísica da objetividade dos valores e dos fins.
O que Hans Jonas chama de “heurística do medo” apresenta uma estrutura, de certo ponto de vista, análoga a de uma situação bem conhecida dos teóricos da argumentação, situação na qual é a objeção do adversário que revela minha adesão a uma premissa escondida do meu próprio discurso; a objeção revela, no mínimo, a intensidade da minha adesão a tal ou tal premissa implícita.[4] Do mesmo modo, segundo Jonas, é quando tal elemento da definição de humanidade é citado pelo progresso técnico que descobrimos o valor desse traço e a necessidade de preservá-lo. Exemplo maior: o valor da surpresa que um ser é essencialmente para ele mesmo, valor descoberto por reação diante da possibilidade de clonagem. Até aqui, as situações argumentativa e ética são análogas. Mas Jonas diz mais do que isso: ele preconiza uma verdadeira antecipação da ameaça. A situação seria, então, comparável a de um filósofo que gostaria de antecipar, produzindo-as ele próprio, todas as objeções que poderiam ser dirigidas a seu sistema. A experiência mostra que esse esforço, plenamente racional em si, rapidamente encontra seus limites; ninguém consegue, seriamente, desligar-se a esse ponto de sua posição fundamental, de modo que possa observar seu próprio discurso com os olhos de um outro. Sabe-se bem que as objeções mais interessantes e mais frutuosas são sempre aquelas que nos surpreendem, aquelas nas quais jamais teríamos pensado, resumindo, aquelas que não podemos antecipar. É esse elemento de surpresa que Jonas parece deixar de lado quando fala de antecipação da ameaça — pelo menos voltaremos a isso, quando se trata de ameaças absolutamente inéditas.
O medo provocado por uma ameaça real é certamente instrutivo; Jonas insiste de maneira justa sobre o tema da visibilidade do mal, da evidência do mal, que ele opõe ao obscurecimento do bem. Não sabemos o que é o bem, mas sabemos o que é o mal — pelo menos quando somos efetivamente confrontados com ele. E Jonas ainda tem razão de atribuir a esse medo real uma potente capacidade heurística. Mas, para antecipar uma ameaça, quer dizer, para nos darmos uma representação concreta e determinada de um mal que ainda não existe, é preciso uma faculdade de imaginação pouco comum. Jonas disse, assim, no Principe responsabilité : “se não houvesse mentira, ignoraríamos o valor da veracidade”.[5] Depois, continua:
[…] é somente a previsão de uma deformação do homem que nos fornece o conceito do homem que é preciso precaver, e temos a necessidade da ameaça, contra a imagem do homem e de tipos totalmente específicos de ameaça, para nos asseguramos de uma imagem verdadeira do homem, graças ao pavor que emana dessa ameaça.[6]
Aqui, pois, Jonas combina antecipação da ameaça com a heurística do medo. Ele junta, enfim, esses dois casos, o da mentira e o da deformação do homem, numa única fórmula: “já que o perigo é desconhecido, ignoramos o que deve ser protegido”.[7] Mas os dois casos evocados não podem ser pura e simplesmente assimilados. Com efeito, a mentira é um mal que existe realmente, do qual efetivamente temos experiência, e essa experiência nos ensina o valor da veracidade. Mas o perigo ainda desconhecido não existe como perigo (mesmo que as raízes desse perigo futuro cresçam no nosso presente) e, por conseguinte, ele não pode nos revelar absolutamente nada, e é ele, justamente, que deve ser revelado, ou de preferência, adivinhado, antecipado, previsto. Talvez a “revolta do sentimento”, como diz Jonas, supere e oriente o saber teórico, mas o sentimento só pode se revoltar diante de um perigo efetivo ou, quando muito, diante de um perigo ainda desconhecido, mas fácil de se conectar, por causalidade ou por analogia, a um outro perigo realmente presente. Em outros termos, é como se existisse um círculo na concepção do valor heurístico de uma ameaça somente antecipada. De um lado, essa antecipação deve nos revelar um perigo, e, portanto, um valor deixado até aqui implícito, para que o protejamos. De outro, a ameaça, porque ela está antecipada, não remete a um perigo já provado, mas a um perigo construído a partir de um valor que se adivinha ameaçado pelo progresso técnico. Para antecipar a ameaça, parece que já se deve presumir o que se supõe que ela nos ensine, o valor do “pôr em risco” pelo perigo ainda não experimentado. Haveria aí como uma pré-compreensão do perigo, esperando e suscitando sua elucidação?
Na verdade, sempre é possível prolongar a “curva de risco” desenhada pelos avanços técnicos que podemos observar,[8] nos seus limites, o método de antecipação da ameaça é legítimo. Para além desses limites, não é seguro. Acrescento que esses limites são muito extensos e desenham um vasto espaço em nossa nova responsabilidade: a experiência de Chernobyl permite antecipar, com precisão, as ameaças bem mais terríveis que as da própria Chernobyl.
Supondo até que tais antecipações sejam possíveis, um problema se coloca: uma ameaça somente imaginada, levada em consideração, pode chegar a se fazer valer? Jonas certamente tem consciência dessa dificuldade. Ele diz, assim, que “o malum imaginado deve então assumir o papel do malum experimentado”.[9] Aqui se estabelecem os dois problemas que distinguimos: pode-se realmente imaginar um mal que a humanidade ainda não experimentou? E, supondo que esse trabalho de imaginação e de antecipação seja efetuado, até onde o mal imaginado pode assumir efetiva e eficazmente o papel, ao mesmo tempo heurístico, ético e político, de um mal experimentado? O que é simplesmente imaginado — e do qual se sabe bem que é apenas imaginado, uma vez que essa própria imaginação supõe um esforço deliberado — pode ter o mesmo efeito do que é vivenciado na experiência? Talvez seja necessário distinguir os casos. Se essa imaginação antecipadora procede espontaneamente de uma experiência, levar isso em consideração torna-se evidente: a própria espontaneidade da antecipação implica a eficácia sobre o espírito do sentimento de ameaça. Por outro lado, uma antecipação não espontânea, voluntarista, corre o risco de ser psicologicamente estéril. Os bons efeitos heurísticos do medo estão ligados à experiência do perigo e da ameaça, e não é seguro que uma ameaça antecipada e, por assim dizer, fictícia, possa produzi-los.[10]
Para resumir minhas reservas com relação a esses dois problemas, diria que não duvido do valor heurístico para a apreciação moral e mesmo para o conhecimento das ameaças realmente experimentadas; também não duvido do valor heurístico das ameaças não experimentadas mas estreitamente ligadas, segundo os princípios de causalidade ou de analogia, com outros perigos efetivamente testados. Mas duvido da possibilidade de estender essa potência heurística a perigos somente imaginados e que não têm nenhuma analogia com nossa experiência real. Ora, é explicitamente o que pede Jonas: a ética da responsabilidade busca “o que deve ser temido, [que] ainda não foi precisamente testado e [quel talvez esteja sem analogia nenhuma na experiência atual ou passada”;[11] essa solicitação de uma antecipação voluntarista (e não espontânea) está conforme as exigências da responsabilidade indefinida; mas não acho que ela possa estar satisfeita. A própria ideia de antecipação implica uma ancoragem na experiência real, por derivação causal ou figuração análoga; na falta dessa ancoragem, a antecipação corre o risco de ser arbitrária, fantasiosa, e de não merecer ser levada em consideração. A validade da heurística do medo não pode, então, ultrapassar os limites da analogia com nossa experiência real; isso lhe deixa, aliás, um campo relativamente vasto, em que ela pode e deve preencher a função que Jonas lhe atribui. Nesses limites, a posição de Jonas é forte e verdadeira: é um dever, para a humanidade, antecipar ao máximo os perigos escondidos em seus comportamentos presentes. Mas antecipar uma ameaça absolutamente inédita não é possível: e no entanto, segundo Jonas, são as ameaças desse tipo que seriam as mais importantes de poder antecipar.[12]
Além do mais, se uma tal antecipação fosse possível, o efeito “salvador” seria talvez muito fraco: não acreditaríamos nisso. Consciente desse problema, Jonas destaca que é um dever moral, e, na realidade, igualmente político (voltaremos a isso), o de suscitar sentimentos para reforçar a eficácia concreta dessas antecipações. Ele diz explicitamente que é preciso mobilizar um temor adequado à representação do que se deve temer, sendo, é claro, que aquilo que se deve temer não é temido por mim, nem mesmo pelos meus próximos, aqui e agora, mas é temido pelos outros, num futuro indeterminado e longínquo.
Não se pode, então, tratar aqui, como em Hobbes, de um medo “patológico”, no sentido kantiano do termo, que se apodera de nós por sua própria força, a partir de seu objeto, mas de um medo do tipo espiritual que, enquanto atitude, é nossa própria obra.[13]
O dever de se representar o mal ainda desconhecido e não experimentado é acompanhado do dever de se fundir nessa própria representação. É o que Jonas chama “a capacidade de ser tomado” pelo dever.[14] O medo representa um papel prático não só no sentido kantiano, mas também no sentido ordinário do termo. O medo é um motivo racional que deve se tornar um móvel sensível. Dito de outra maneira, a antecipação da ameaça dá apenas uma representação, em si, inerte. O elemento do sentimento, que faz do medo uma paixão enérgica e produtiva, deve ser produzido a partir da representação e, por assim dizer, somado à representação.
A RACIONALIDADE DO MEDO EM JONAS E HOBBES
Essa “mobilização”, no sentido literal do termo, esse tornar-se móvel do medo não diz respeito apenas à esfera ética. Ela é, primeiramente, de alçada política. O segundo aspecto do pensamento de Jonas é ainda mais importante que o primeiro, uma vez que recai sobre um direito e até sobre um dever de assustar os outros. Com efeito, o novo imperativo categórico “dirige-se muito mais à política pública que à conduta privada, com esta última não sendo a dimensão causal à qual ele pode ser aplicado”.[15]
As teses de Jonas sobre esse ponto foram contestadas. Existem, na verdade, excelentes razões gerais de se desconfiar do medo como ferramenta política. A humanidade sempre teve a experiência dessa ferramenta, e sabemos bem que o seu primeiro efeito é o de humilhar os homens e de diminuir sua capacidade de autonomia. O próprio Jonas só apresenta o recurso ao medo em último caso, e seria profundamente injusto emprestar-lhe qualquer complacência para com modos ditatoriais de governo.[16] No entanto, ele não hesita em se prevalecer da “nobre mentira” platônica contra aquilo que chama de “ingenuidades liberais em matéria de veracidade pública”.[17] Nobre mentira platônica ou princípio kantiano de publicidade? Minha questão não será essa, por mais decisiva que seja. Não me perguntarei se este último recurso é legítimo, mas simplesmente se ele é pensável, se ele representa uma possibilidade intelectualmente e politicamente consistente. Apoiar-se no medo, na falta de poder se apoiar num improvável “entusiasmo pela moderação”,[18] isso pode ser admitido do ponto de vista da racionalidade política?
O modelo, ou pelo menos o que está em segundo plano de uma tal concepção, é logicamente o pensamento de Hobbes, ao qual Jonas se remete explicitamente, reconhecendo-lhe o mérito de ter descoberto no medo o primum movens em matéria de bem comum.[19] Ele próprio marca a diferença principal entre as duas concepções: ao medo egoísta de Hobbes se opõe o medo desinteressado de Jonas. Ora, toda a questão se baseia precisamente nessa diferença: a racionalidade política do medo, supondo que uma tal racionalidade exista, não ocupa o status essencialmente egoísta, essencialmente pessoal, do medo?
Um desvio até Hobbes faz-se então necessário. A racionalidade do medo em Hobbes está ligada a três fatores fundamentais. Primeiramente, o medo é egoísta, ele diz respeito à minha própria vida e à minha integridade física. Segundo, o medo é natural, quer dizer indeliberado, ele é causado por um perigo efetivo, por uma ameaça presente em minha experiência, assim como a aversão é causada por um mal efetivo.[20] Terceiro, o medo é um mal, um entrave à satisfação de estar vivo e de viver segundo o movimento de seus desejos, e, como todo mal, o medo deve ser evitado ou limitado.
Esses três elementos são essenciais à racionalidade do medo. Associado à razão, o medo vai trabalhar não em seu próprio desaparecimento (que não é possível), mas na sua máxima redução. O medo em Hobbes é, ao mesmo tempo, motor e parâmetro principal do cálculo político. O artificialismo político supõe a naturalidade de seu material, o medo. O medo é um dado da condição humana, e é porque ele é um dado sólido e resistente que podemos nos basear nele, que ele pode ser instrumentalizado na edificação do “deus mortal” que é o Leviatã. A construção racional do corpo político é a elaboração, a transformação desse material, em que, aliás, nunca falta o medo. A renúncia dos indivíduos a seus jus in omnia alivia-os, ao mesmo tempo, de um medo indefinido, e o substitui pelo medo perfeitamente definido, e perfeitamente previsível, que suscita o soberano pelas sanções explícita ou implicitamente contidas em suas leis.[21] O medo faz, então, o papel de uma força natural artificial e mecanicamente canalizada; ele é racional apenas porque é trabalhável, e ele só é trabalhável porque é natural. Cabe pensar que, para Hobbes, um medo artificial seria um medo antipolítico. O medo que o soberano inspira no sujeito permanece medo natural, assim como o poder do soberano não provém de uma transferência de direito, mas de uma renúncia dos indivíduos a seu próprio direito; somente o soberano conserva o jus in omnia, fonte do temor que ele pode fazer nascer. Mas esse medo, cuja fonte é natural, também é político: o sujeito está em pax se ele respeita as leis, leis que precisamente o protegem dos danos causados pelos outros. O que é político, e portanto artificial, no medo em estado de sociedade, é que ele está concentrado sobre a pessoa e a vontade do soberano, e, por conseguinte, sobre um ponto único. O que nele permanece natural é que ele carrega a segurança individual e a proteção da integridade física do indivíduo.
Essa tese, a meus olhos decisiva, aparecerá mais claramente se compararmos o medo natural com uma forma de medo artificial que Hobbes descreveu e criticou: o medo religioso. A estrutura do De cive aqui é luminosa: a primeira parte se baseia no medo natural, a segunda, no medo político, a terceira, no medo religioso.[22] Esse medo religioso é rebelde a qualquer racionalização política, precisamente por que ele não se baseia na vida nem na integridade física do indivíduo, mas numa salvação que não é objeto de experiência; por isso esse medo religioso, medo do inferno, medo dos espíritos, ou dos fantasmas, medo do juízo final, esse medo religioso, então, é indefinido, incontrolável, e finalmente destrutivo do que é benéfico na sociedade civil. O Levi atai o diz claramente: “é impossível que uma República subsista onde alguém mais, além do soberano, tenha o poder de conferir recompensas maiores do que a vida e de infligir castigos mais fortes do que a morte”.[23] Para que o medo conserve sua potência de racionalidade política, é preciso que ele tenha um máximo não ultrapassável, que é, para Hobbes, a morte de meu corpo. Daí os esforços teológicos de Hobbes para destruir a ideia de um Inferno que seria realmente mais terrível que a própria morte.[24] De maneira geral, Hobbes dedica muita energia, no De cive e sobretudo no Leviatã, para refutar toda tese teológica que conclua a existência de um mal pior que a morte física. Não se trata de reconfortar a imaginação de seu leitor, mas de proteger a sociedade civil contra o maior dos perigos:
Com efeito, se a lei comanda alguma coisa sob pena de morte natural e se uma outra vem defendê-la sob pena de morte eterna com tamanha autoridade, acontecerá que os culpados tornar-se-ão inocentes, que a rebelião e a desobediência se confundirão, e que a sociedade civil ficará completamente às avessas. Já que ninguém pode servir a dois mestres, e não se pode temer menos, até mesmo devemos preferencialmente obedecer mais àquele que ameaça de uma morte eterna do que aquele que não estende os suplícios para além dessa vida.[25]
Essa posição remete, logicamente, à tese central que Hobbes destaca na conclusão do Leviatã, a “relação mútua que existe entre proteção e obediência”.[26]
Vê-se facilmente o quanto a percepção de Jonas é incompatível com a de Hobbes. Em Jonas, o medo não diz respeito a minha própria vida, mas a das gerações futuras. Além do mais, ele não é motivado por um perigo presente, mesmo, se a tecnologia atual é potencialmente perigosa, esse perigo possível não pertence sempre à esfera de nossa experiência e de nosso saber: alguns desses perigos são sossegadamente antecipáveis, e é um dever dar-se com relação a isso uma representação precisa, mas outros são tais que suas raízes talvez estejam presentes sem que nos seja possível adivinhá-los. Terceira diferença, enfim: esse medo não é um mal, mas, ao contrário, um bem e até um dever.
O atestado dessas divergências prova alguma coisa? Com efeito, não é pertinente julgar a problemática de um filósofo com os conceitos e com os argumentos de um outro. Mas aqui a situação é um pouco diferente: a ligação do medo com a política é de proveniência hobbesiana, como Jonas destaca; é justo com esse pensamento que deve se confrontar toda concepção de uma eficiência política do medo.
Poder-se-ia, certamente, refutar qualquer valor normativo à concepção hobbesiana da racionalidade do medo, por rejeição de sua definição da razão. E Jonas recusaria, talvez, a concepção puramente calculadora e individualista da razão que propõe Hobbes: o platonismo de Jonas o convida a ver na razão a, capacidade metafísica de compreender os fins, os valores, e, em última instância, o Bem. Minha resposta a essa objeção feita a Hobbes seria a seguinte: há uma ligação intrínseca entre a concepção da razão como cálculo dos meios que permitem escapar do mal, para limitar, no final das contas, esse mal de segundo grau que é o medo. A razão, diz Hobbes, é a faculdade de tirar consequências, e essa tese está perfeitamente clara.[27] Ao contrário, o leitor de O princípio responsabilidade não discerne sempre em qual concepção Jonas tem razão.
Aquilo que é profundamente hobbesiano em Jonas, o que autoriza e até impõe a comparação com o autor do Leviatã, é a convicção de que a determinação negativa contra o mal é, em prática, superior a uma impossível determinação positiva pelo bem. É preciso “se salvar do mal supremo” e não buscar o bem supremo, diz Jonas.[28] Mas, contrariamente a de Hobbes, a posição de Jonas faz do mal supremo alguma coisa que é para mim indeterminada. Já que o eventual desaparecimento da humanidade depois de mim não é meu mal. Para Hobbes, o mal supremo é a perda da minha vida ou da minha integridade física;[29] para Jonas, é tudo o que tornaria impossível o prolongamento indefinido da existência de uma verdadeira humanidade sobre a terra. Assim, salvar-se do mal supremo tem um sentido definido em Hobbes, um sentido indefinido em Jonas. O temor hobbesiano é naturalmente definido, quero dizer, definido pela natureza do sujeito que teme, eu e meu corpo, e do objeto do qual se deve temer, a morte; o temor, segundo Jonas, não pode ser definido. Não sabemos mais do que se deve temer, não podemos hierarquizar racionalmente os perigos. Com efeito, as consequências em longo prazo dos progressos aparentemente menos discutíveis da tecnologia podem se revelar desastrosas, Jonas diz várias vezes.
Uma observação aqui deve ser feita. Jonas descreve, às vezes, a ação humana em termos de aposta, e detalha os tipos de apostas que são absolutamente proibidas de ser feitas: aquelas em que o risco está baseado na integralidade dos interesses dos outros, da humanidade que está por vir.[30] Esse princípio é muito marcante, e Jonas tira daí um imperativo ético de poder assustador: a simples possibilidade de que a existência ou a essência do homem seja empregada numa ação deve proibir absolutamente essa ação. Minha tese é a de que esse imperativo é poderoso demais. Esse princípio tem o poder do modus tollens, ou, como chama a atenção o próprio Jonas, o da dúvida hiperbólica cartesiana:[31] a simples possibilidade, mesmo que pouco provável, de uma deterioração da existência ou da essência do homem é razão suficiente para se proibir a ação em questão. Intuitivamente, temos vontade de experimentar esse imperativo de prudência hiperbólica, tanto o esforço é suscitado; principalmente porque Jonas esclarece numerosas vezes que ele não tem a intenção de louvar um imobilismo que rejeitasse qualquer avanço técnico. Mas, ao mesmo tempo, esse princípio hiperbólico corre o risco de ficar puramente formal, na falta de uma determinação precisa da noção do possível.[32] Pois Jonas indica igualmente mais de uma vez que não se pode nunca saber se em longo prazo uma certa inovação tecnológica ou medicamentosa não terá efeitos altamente indesejáveis para nossos descendentes. Receio que, levado à risca, esse princípio hiperbólico proíba qualquer inovação, e impeça de sequenciar e hierarquizar os perigos.
Suponhamos, no entanto, que um saber concreto sobre os perigos futuros seja possível. Aquele que sabe, por antecipação da ameaça, que tal progresso não deve absolutamente ser seguido, deve então impor o medo correspondente àqueles que não sabem. O que sabe é aqui o representante dos homens que estão por vir, seu “encarregado de negócios”, seu dever é o de impedir o mal que ameaça se tornar realidade. O medo que ele experimenta é paradoxal: ele não procede de um mal que ele acha que ameaçaria a humanidade futura. Nem aquele que sabe, nem aqueles que não sabem não estão pessoalmente ameaçados: é o paradoxo do “temor desinteressado”.[33]
A ação, ou a abstenção de ação, não beneficia o ator. Ele está nessas condições bem difíceis pela simples razão de persuadir os indivíduos que devem renunciar às conquistas do progresso técnico. E o apelo ao medo é, no fundo, em Jonas, a consequência de um fracasso da razão argumentativa: é por que não se pode convencer os indivíduos de autolimitar seus desejos e sua exploração da natureza, que é preciso assustá-los. Mas, e essa observação parece-me decisiva, que o medo em Jonas seja um último recurso basta para indicar que ele não saberia ser racional como o é em Hobbes, em que, ao contrário, ele está primeiro. O medo em Jonas não saberia ser fonte de racionalidade, uma vez que, ao contrário, ele não o evoca senão a partir de um certo fracasso da razão. Trabalhar um medo natural para transformá-lo, como na problemática hobbesiana, ou provocá-lo deliberadamente, como em Jonas, isso absolutamente não dá no mesmo, e, com todo o respeito, a segunda posição é até o inverso da primeira.
Para ir ainda mais longe, a confrontação, longe demais talvez, poder-se-ia dizer que o mal supremo, segundo Jonas, é precisamente aquilo que Hobbes recusava, ou seja, o inferno. Não o inferno religioso dos suplícios intermináveis, mas o inferno laico, de uma natureza de recursos esgotados, de uma natureza devastada, privada de seus equilíbrios e inviável para os homens. Ao paraíso utópico de Ernst Bloch, Jonas opõe o inferno de uma natureza destruída, no homem e fora dele. Supondo que minha comparação seja aceitável, eu diria confortavelmente que o medo do inferno, como Hobbes o demonstrou, não pode ser um critério da ação racional, mas, preferencialmente, o que destrói a racionalidade política do medo. O medo do inferno é um medo grosseiro do qual nada se pode tirar.
O MEDO PODE SER UMA BOA FERRAMENTA POLÍTICA?
Juntemos as duas críticas fundamentais que propus. Nos dois casos, heurística do medo fundada numa antecipação da ameaça ou racionalidade política do medo, a dificuldade insiste paradoxalmente na ausência do mal na experiência. Ausência de um mal totalmente inédito que seria preciso antecipar no primeiro caso; ausência de um mal não experimentado que seria preciso, de qualquer modo, impedir de acontecer no segundo caso. O drama dos perigos imperceptíveis, Jonas tem razão plenamente nesse ponto, é que eles não provocam nenhum medo, como essas doenças graves que se desenvolvem muito tempo sem fazer sofrer. Esse atestado é intolerável para aquele que mede o perigo. Ele deve alertar. Mas como pode atingir o comportamento dos outros? O pressuposto fundamental de Jonas é que podemos, e até devemos, compensar essa ausência do mal, moldando um medo ad hoc. Minha crítica tem, até o presente, consistido em mostrar, por assim dizer a priori, que esse medo seria irracional e antipolítico; eu gostaria, para concluir essa reflexão, de dar um argumento a posteriori, mostrando que uma política desse tipo não deve ser aceita.
Por “política do medo”, podemos, na verdade, entender algumas coisas relativamente diferentes. Vou apresentar duas possibilidades, com a segunda se subdividindo em dois.
Primeira possibilidade: o medo é pura e simplesmente o que inspira o governo e seu aparelho repressivo. Neste caso, o próprio objeto que o governo se propõe a realizar, quer seja outra coisa completamente diferente, não tem relação intrínseca com o medo, supondo até que se conceda que o medo seja um meio impreciso, apto a servir qualquer política; seria preciso, aliás, neste caso, falar mais de terror do que de medo. Tal concepção não é compatível com a ideia de um controle dos governantes pelos governados; por conseguinte, um tal sistema dependeria inteiramente da virtude dos governantes, com a qual não saberíamos contar.
Segunda possibilidade: o medo está baseado num objeto realmente perigoso, designado por quem sabe, quer dizer, pelos governantes. É o caso considerado por Jonas. Mas, novamente, dois casos são possíveis nessa hipótese:
Ou bem o governo quer impor aos indivíduos, em nome dessa ameaça, uma modificação radical de seus modos de vida (uma redução drástica do consumo de energia per capita, por exemplo). Jonas evoca, às vezes, a ideia de uma “tirania bondosa”, de um tipo de conspiração no topo em vista do bem.[34] O medo suscitado pelos governantes serve, então, para fazer com que sejam aceitas essas modificações impostas com base na preocupação com o futuro. A eficácia de tal política supõe que a avaliação das ameaças escapa do debate público: a menor dúvida com relação às bases das medidas restritivas seria fatal.[35] Tal concepção é, também, incompatível com o princípio representativo-pluralista de nossas sociedades desenvolvidas. O custo de tal política é elevado demais (já que seria necessário sacrificar, gradualmente, um bom número de liberdades fundamentais, e até a possibilidade de discutir publicamente a gravidade dos perigos); e o ganho seria, na melhor das hipóteses, incerto, com a propensão à ineficácia dos governos não-controlados sendo pouco contestável. O mais provável neste exemplo é, na verdade, uma formidável regressão política da humanidade.
Ou bem o governo compreende simplesmente influenciar os comportamentos dos indivíduos. É a versão mais aceitável da política do medo. Mas mesmo essa versão parece-me que deve ser repelida. Minha tese é a de que o medo é um péssimo meio de influenciar os comportamentos dos indivíduos. É aqui que aparece o elemento a posteriori, ou empírico, da minha crítica.
Farei, em primeiro lugar, uma observação geral: no pior é sempre muito difícil de acreditar. O mal mais assustador, mesmo quando é real, choca-se com um forte ceticismo, com um ceticismo tão grande, quanto mais se considerar esse mal. Ninguém ignora que um dos sofrimentos mais paradoxais que chocaram os sobreviventes dos campos de concentração foi o de que não se acreditava neles, e que eles mesmos haviam antecipado que não acreditaríamos neles. Primo Levi, entre muitos outros, descreveu com muita força e sobriedade esse fenômeno.[36] Essa incredulidade diante da realidade e da profundidade do mal talvez seja um traço preferencialmente encorajador da natureza humana; mas esse traço não vai no sentido de uma política fundada sobre o medo, quer dizer, sobre a crença na possibilidade real de um mal muito grande.
Dessa magra eficácia do medo como meio político, nossas sociedades têm a experiência no âmbito da saúde pública. Não sou especialista nessas questões, e não duvido que a eficácia das campanhas de saúde pública sejam difíceis de ser avaliadas; parece-me, porém, que certas lições podem ser daí extraídas. Penso nas campanhas destinadas a diminuir o consumo de tabaco ou de álcool, nas campanhas em favor da segurança nas estradas, mais recentemente nas campanhas de sensibilização aos perigos da Aids. Em todos esses casos, trata-se de influenciar o comportamento dos indivíduos sem se ater à sua liberdade de decisão; de incitá-los a modificar este ou aquele hábito potencialmente perigoso para as pessoas. Em todos esses casos, igualmente, o risco de morte está na perspectiva dos comportamentos em questão. O que se constata? Primeiro, que há diferentes idiossincrasias, diferentes tipos de reação, e, por conseguinte, que é necessário desenvolver campanhas diversificadas. Esse ponto não é essencial para nosso propósito atual, salvo na medida em que ele destaca o perigo das generalizações, sobretudo quando a questão da morte está presente. Em seguida, e isso é capital, pudemos constatar, ao menos na França, que, de todas as estratégias utilizadas até agora, a pior delas é a que joga principalmente com o perigo de doença ou de morte para tentar influenciar os comportamentos individuais. Diante de tal estratégia, muitos indivíduos pura e simplesmente recusam-se a gravar a mensagem, a levá-la em consideração.[37]
O apelo indistinto do cuidado para consigo mesmo revela-se largamente mais contraproducente.
Parece-me que situações desse tipo são exemplares: contrariamente à aparência, elas não são hobbesianas. O indivíduo não experimenta aí o sentimento de estar em perigo. Ele não experimenta por ele mesmo o medo que talvez deveria experimentar, uma vez que essa seria a condição sine qua non de um uso racional desse medo; ou então ele experimenta uma angústia difusa, parecida mais com o terror do que com o medo, e por si só completamente estéril. Para modificar seu comportamento, queremos inspirar-lhe esse sentimento de medo: ora, ele se recusa precisamente a experimentá-lo. Trata-se, porém, realmente de sua vida individual, e de perigos definidos cujas campanhas em questão postulam precisamente que podemos nos proteger. Ora, nessas condições a priori ideais, o medo que os poderes públicos querem provocar não chega a “pegar”—ou, em certos casos, produz, ao contrário, um pânico tão irracional quanto a indiferença, ou seja, o seu contrário. A experiência parece, assim, mostrar que as campanhas ditas positivas são as mais produtivas. É preciso não fazer temer a cirrose do fígado, mas sugerir que o verdadeiro apreciador de vinho beba pouco e saiba degustar, e mostrar que a moderação é a condição do gosto; não é necessário fazer temer o contágio do vírus HIV, mas mostrar no uso do preservativo uma prova de carinho e de amor; até mesmo, para certos públicos, erotizar pura e simplesmente o preservativo e seu uso. É lógico, trata-se de política de saúde pública e não de dever moral que se possa individualmente fazer esta ou aquela pessoa compreender que está pondo em perigo sua própria vida.
Esses dados produzem ceticismo com relação à eficácia política de um apelo ao medo; a fortiori, quando se trata de um medo concernente não à minha vida, mas à possibilidade da manutenção de uma existência humana sobre a Terra. Aliás, não contesto — muito pelo contrário — que a evocação da discussão desses problemas possa ter um eficácia prática: mas essa eficácia repousará diretamente sobre o sentido da responsabilidade, e somente indiretamente sobre o medo. Acrescento que um elemento de medo (mas um elemento apenas, difícil de quantificar) encontra-se sempre na origem de uma tomada de consciência; assim o medo pode, certamente, exercer, como pensa Jonas, uma influência sobre a emergência de um sentimento de responsabilidade. Mas o medo não pode substituir a responsabilidade, ele não pode lhe servir de substituto ético ou político.
Gostaria, para concluir essa discussão, de destacar a raiz de meu desacordo com Jonas, que insiste na concepção que faz da razão o autor do Principe responsabilité. Parece-me que falta a Jonas uma consideração específica da racionalidade política. Levantei, acima, certas ambiguidades do discurso de Jonas: ora a razão aparece “platônica”, ela é escuta do bem e compreensão do ser; ora ela aparece “kantiana”, ela decreta imperativos absolutos; ora ela gostaria de ser “hobbesiana”; e evidentemente sua dimensão tecnológica, sua estrutura técnico-científica, faz objeto de uma crítica “heideggeriana”. Unificar esses diferentes aspectos, por exemplo, tornar compatível o formalismo kantiano com a compreensão metafísica do bem, parece-me muito difícil, e é patente que Jonas não o tenta. Ele manifestamente valida o modelo científico e o modelo metafísico da razão. Mas nada disso permite pensar a racionalidade como própria à política representativa e pluralista. Jonas considera certamente o medo como uma ferramenta política de segunda linha, como uma ferramenta que seria melhor poder deixar de lado. A ferramenta política de primeira linha seria, se não o entusiasmo, ao menos a aceitação de certa moderação.[38] Jonas lamenta não ter podido contar com essa ferramenta de primeira linha. Mas não seria por falta de ter levado em consideração a racionalidade argumentativa, “dialética” no sentido de Aristóteles, e, ousemos a expressão, a racionalidade parlamentar?
É relativamente tocante que o Principe responsabilité não dê nenhum lugar à razão argumentativa, e me pergunto se a superestima do poder político do medo não insiste nesse silêncio sobre a razão argumentativa, e, numa certa indecisão, quanto ao status da razão em geral. Se tal fosse o caso, a via seria aberta por uma consideração que escaparia ao impasse que me parece ser a ideia de uma política cujo motor fosse o medo.
* Estudo publicado em Gilbert Hottois (org.), Aux fondements d’une éthique contemporaine, H.Jonas et H.T Engelhardt (Paris: Vrin, 1993), pp. 107-125.
Tradução de Marcelo Gomes.
Notas
[1] Cf. Human Nature, capítulo VII, 2; Leviatã, VI, trad. F. Tricaud, pp. 47 e 51; XIII, pp. 124-125; De cive, capítulos 1, 2 e observações.
[2] Hans Jonas, “Technique, morale et génie génétique”, trad. R. Brague, em Communio, n° IX, nov.- dez. de 1984, pp. 52, 53, 57, 63.
[3] A própria expressão “antecipação da ameaça” é curiosa, mas precisa. A ameaça já é a antecipação de um mal real, ela é consciência da possibilidade de ser atingido por um mal real. O que Jonas chama de “antecipação da ameaça” é a antecipação de um mau sentimento possível, mas realmente possível; é a representação de um mal que ainda não existe e que pode acontecer.
[4] Chaïm Perelman, entre outros, insistiu muito nesse ponto.
[5] H. Jonas, Principe responsabilité, trad. J. Greish (Paris: Cerf, 1990), p. 49. 0 texto de Hans Jonas aqui referido se encontra publicado no Brasil como O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica (Rio de Janeiro: Contraponto/Editora PUC-Rio, 2006). (Nota do tradutor.)
[6] Ibidem
[7] Ibidem
[8] Cf. H. Jonas, “Technique, morale et génie génétique”, cit., p. 57; e Principe responsabilité, cit., pp. 256-257: necessidade de antecipar os limites críticos (para a poluição dos lençóis freáticos, por exemplo).
[9] H. Jonas, Principe responsabilité, cit., p. 50.
[10] Um exemplo de antecipação espontânea: Chernobyl permite conceber uma situação em que um tal drama acontecesse na França, por exemplo, até mesmo em diversas usinas ao mesmo tempo; ou uma situação em que as tentativas de controle das usinas acidentadas fracassassem. Mas tentar imaginar uma terra cuja humanidade pode totalmente desaparecer (após uma catástrofe nuclear, por exemplo) não pertence á esfera da antecipação espontânea. É um exemplo de antecipação voluntarista.
[11] H. Jonas, Principe responsabihté, cit., p. 50 (grifos meus); cf. p. 301: “objeto inédito”, “ameaça antecipada do mal de um tipo novo”.
[12] Minha objeção está baseada na possibilidade de uma passagem, no máximo, em matéria de antecipação da ameaça. Jonas pensa que essa passagem é possível e até necessária, e isso é lógico: as piores ameaças são precisamente aquelas nas quais não pensamos, porque jamais as experimentamos. Parece-me que a antecipação joga aqui sem regra, sem ligação com o real (por hipótese) e que, por conseguinte, a antecipação aí perde, ao mesmo tempo, seu valor heurístico e persuasivo.
[13] H. Jonas, Principe responsabilité, cit., p. 51.
[14] Ibid., p. 124. Está claro que esse problema só pode ser colocado em casos de antecipações voluntaristas. As antecipações espontâneas trazem nelas mesmas seus sentimentos.
[15] Ibid., p. 31.
[16] Cf. a entrevista de Jonas para Jean Greish e Erny Gillen em Esprit, nº 171, maio de 1991, sobretudo pp. 12-14 e 18-19.
[17] Ibid., pp. 203 e 219. Essa referência à “nobre mentira” platônica está em consonância com a retomada de Jonas da tese platônica “o Bem é Causa” (ibid., p. 123); assim como a rejeição do princípio kantiano de “veracidade pública” está em consonância com a rejeição da problemática da autonomia da vontade. Jonas toma explicitamente partido pela heteronímia da “interpelação” pelo ser. Ibid., p. 130. Cf. também nota 28.
[18] H. Jonas, Principe responsabilité, cit., pp. 202-203.
[19] Ibid., p. 301, nota 30; cf. também p. 51.
[20] Ver as referências indicadas na nota 1.
[21] Thomas Hobbes, De cive, capítulo XIV, 8; Leviatã, capítulo XVII: o objetivo dos homens no estado civil é o de “arrancar-se desse miserável estado de guerra que é, eu o mostrei, a consequência necessária das paixões naturais dos homens quando não há poder visível para os manter em respeito, e de ligá-los, pelo temor dos castigos, tanto na execução de suas convenções quanto na observação das leis da natureza” (trad. F. Tricaud, p. 173; grifos nossos); “Uma vez que, em virtude dessa autoridade que ele [o Leviatã] recebeu de cada indivíduo da República, o emprego lhe é conferido de um tal poder de uma tal força que o pavor que eles inspiram lhe permite modelar as vontades de todos, em vista da paz no interior e da ajuda mútua contra os inimigos do exterior” (p. 178, grifos meus).
[22] É a estrutura do De cive que é notável aqui; já que, no que diz respeito à análise propriamente dita do medo religioso, os textos do Leviatã são muito mais ricos.
[23] Thomas Hobbes, Leviatã, cit., p. 472 (grifos meus). Hobbes insiste principalmente em outro aspecto do medo religioso: o poder do padre sobre as almas introduz uma dualidade no Estado, dualidade prejudicial para o Estado e para a paz civil. Esse ponto é muito conhecido, mas me parece importante destacar, mais do que o próprio Hobbes talvez, que o medo religioso não pode concorrer com o medo político (e então introduzir uma dualidade prejudicial) só porque ele é indefinido e irracional (um bem “maior que a vida”, um mal “mais forte que a morte” não podem ter nenhum sentido na problemática hobbesiana).
[24] Ibid., pp. 634 e 645-646.
[25] Thomas Hobbes, De cive, VI, 11, tradução Sorbière retocada.
[26] Thomas Hobbes, Leviatã, cit., p. 721.
[27] Ibid., pp. 38-40.
[28] H. Jonas, Principe responsabilité, cit. p. 60: “Uma vez que podemos viver sem o bem supremo, mas não com o mal supremo”; o “hobbismo” de Jonas é difícil de conciliar com seu “platonismo”, que expressa, por exemplo, a ideia de que a responsabilidade é “resposta ao chamado do bem” (ibid, p. 123), assim como seu “kantismo”. Cf também nota 17.
[29] Thomas Hobbes, De cive, cit., pp. 7 e 18.
[30] H. Jonas, Principe responsabilité, cit., p. 58.
[31] Ibid., p. 62; notar-se-á também, no mesmo lugar, a discussão da aposta de Pascal.
[32] Permito-me remeter em relação a esse ponto meu estudo sobre “Hans Jonas e a ética da responsabilidade”, em Esprit, outubro de 1990, p. 81, nota 11.
[33] H. Jonas, Principe responsabilité, cit., p. 219.
[34] Ibid., p. 200.
[35] Um governo pode impor reduções drásticas de nível de vida se a população estiver convencida de que elas foram impostas pelas circunstâncias. Na hipótese que examinamos, essas “circunstâncias” justificativas não são claramente conhecidas, mas construídas a partir de um raciocínio complexo. Se se apoiar na responsabilidade imprecisa da população, o debate público será impossível; mas se (é a hipótese de Jonas que examinamos) essa responsabilidade “entusiasta”, ou ao menos resignada, para a moderação for excluída, se somente o medo for possível, então está claro que o debate público é impossível.
[36] Cf. Primo Levi, La trêve, Coleção Les Cahiers Rouge (Paris: Grasset , 1966); e Les naufragés et les rescapés, Quarante ans après Auschwitz (Paris: Gallimard, 1989): “As primeiras informações sobre os campos de concentração nazistas começaram a se difundir em 1942, ano crucial. Elas eram vagas, mas se alinhavam, entretanto, em esboçar a imagem de um massacre de dimensões tão vastas, de uma crueldade levada tão longe, com motivações tão complexas, que o público tinha tendência a repudiá-las em razão justamente de sua enormidade. […] Curiosamente, esse mesmo pensamento (‘mesmo se contarmos, ninguém acredita’) de profundo desespero dos cativos aflorava sob forma de sonho noturno: […] eles se viam de volta para casa, contando com paixão e alívio seus sofrimentos passados, dirigindo-se a um ente querido, mas não acreditavam neles, não eram nem mesmo ouvidos” (pp. 11-12).
[37] Além do mais, a consciência de que se trata de um procedimento contribui largamente para diminuir a eficácia. Acrescento, no entanto, (e é o sentido da restrição “ao menos na França”) que as situações são muito variáveis de um país a outro: as campanhas de segurança nas estradas da Inglaterra são muito mais duras que na França, elas trabalham fortemente com o medo. Há aí uma diferença cultural que, na minha consciência, não se faz sempre objeto de uma explicação satisfatória. Essa diferença “nacional” não exclui de modo algum a existência de outras diferenças também fortes, “sociológicas” ou “psicológicas”, por exemplo, a consideração do indivíduo, como parâmetros de suas escolhas e de seu comportamento, de um saber ou de uma crença sobre sua própria mortalidade, sendo a coisa menos antecipável que existe. Além do mais, a consideração dessas diferenças (“nacionais” ou “psicológicas”) fornece um novo argumento contra o uso político do medo: se é verdade que um medo deliberadamente suscitado pode provocar reações do comportamento variando completamente, então o medo é uma má ferramenta política, mesmo se ela pode, eventualmente, ser uma ferramenta psicológica às vezes eficaz.
[38] Seria, por exemplo, moderada a decisão de limitar a expansão do poder técnico ao que é não apenas controlável, mas igualmente reversível (o critério da reversibilidade é um daqueles cuja consideração é a mais fecunda, hoje, seja no âmbito da gestão dos detritos nucleares seja no da restauração de quadros ou de monumentos). Essa indicação deveria, é claro, ser detalhada. B. Manin propõe uma rigorosa definição da moderação em Le regime social-démocrate (Paris: PUF, 1989), em colaboração com A. Bergounioux: “Eu defino a moderação de um ator como o fato de que este não faz tudo o que poderia fazer em virtude das regras gerais aplicadas a suas ações. O ator moderado é aquele que faz menos do que estaria autorizado a fazer. O conceito de moderação é puramente forma, ele não indica nada sobre o conteúdo substancial da decisão: ele designa simplesmente a existência de uma distância entre o ato finalmente cumprido e o poder inicialmente acordado. O conceito não implica nenhum julgamento de valor: uma política moderada pode muito bem ser mal ou injusta” (p. 47). Esse conceito de moderação, definido por B. Manin em termos de “autorização a ser feita”, de “poder acordado”, pode tranquilamente ser transposto em termos de “capacidade técnica” de “poder retido”; a moderação seria, então, o fato de não explorar todo o poder de nossas capacidades tecnológicas.