O que é retrofuturismo? – Introdução aos futuros virtuais
por Elie During
Resumo
Fala-se com facilidade do futuro, como se ele fosse um só. Ou: “nosso futuro”, como se o futuro fosse nosso antes do tempo. Mas bem se sabe que o presente é povoado por uma profusão de possibilidades ou estados virtuais que são igualmente presentes, por antecipação, e até mesmo linhas ativas de “futurição”. Os fantasmas futuros são então ecos dos fantasmas passados, como latências, sobrevivências, anacronismos. Essa sobreposição explosiva dos tempos, essa “contemporaneidade do não contemporâneo” foi analisada por Walter Benjamin e Ernst Bloch como sintoma da modernidade. Ela traduz, na ordem da consciência histórica, uma verdadeira metafísica que tange a forma do tempo. Se o presente passa, o tempo em si é justamente o que não passa. Esse tema, que percorre a história da filosofia de Kant a Deleuze – passando, em especial, por Bergson –, é normalmente associado à questão da sobrevivência e da insistência do passado no seio do presente. Seria interessante, pois, retomar a questão do ponto de vista do futuro. Como? Se é verdade que o “curso do tempo” não passa de uma visão degradada da potência plástica do devir, é preciso chegar a contemplar a coexistência, no presente, das diferentes versões do futuro com inúmeros futuros do passado. Não se trata simplesmente de dizer que os futuros trazidos por um presente que passou continuam a desenvolver, ainda que de maneira surda, suas linhas de “futurição”, pois a realidade deve reconhecer, ainda, os futuros que não se realizaram, os que não existiram e jamais existirão a não ser em estados possíveis ou, até certo ponto, fictícios. Melhor ainda, é preciso que os passados alternativos, embora irreais, continuem a agir de uma determinada forma ao longo dos futuros aos quais conduziam. Os verdadeiros fantasmas da história são esses futuros natimortos. Virtuais, são naturalmente também os únicos a permanecerem realmente ativos, pois um futuro que se realiza imediatamente se destrói enquanto futuro. Para dar mais precisão a essas intuições, propõe-se uma dupla operação nos confins da metafísica, da filosofia da história e da ficção científica. Por um lado, distinguir as condições conceituais que permitem pensar o futuro para além da região do tempo ou dimensão da consciência temporal. Isso pressupõe que se relacione a operação do tempo a uma sucessão de realizações de ocorrências futuras. Por outro lado, oferecer modelos concretos do modo de ação desse futuro virtual. E nisso a gramática – tanto a francesa quanto a portuguesa – ajuda, pois, através do “futur antérieur du passé” ou futuro do pretérito composto, pode-se expressar, do ponto de vista do presente, a perspectiva de um passado sobre seu próprio futuro. Isso porque tal tempo verbal é uma retrospecção antecipada, a exemplo de “daqui a pouco terá parado de chover” ou “eu pensava que choveria hoje de manhã”. Trata-se, enfim, do retrofuturismo, assim como observado nas artes; na literatura, sobretudo. Ele que, mais do que dar voz a um presente que teria se realizado se a história tivesse tomado outro rumo, dá voz a um futuro que tal história alternativa teria projetado. Nesse sentido, Bergson mencionava uma “lembrança do presente”, que se desdobraria tanto em sua parte virtual quanto em sua parte atual. Simetricamente, seria possível explorar uma antecipação do presente, que seria a obra do futuro virtual, ou seja, um futuro ainda secretamente ativo no presente atual e, por isso mesmo, ainda possível. Se, por um lado, o futuro do pretérito composto, como mostrou Merleau-Ponty, transforma a história em destino, adotando o ponto de vista retrospectivo do já consumado, ele, por outro, introduz na consciência histórica o espírito do jogo e da vida, sobrepondo, sem melancolia, ao futuro sonhado e muitas vezes temido pelo presente, uma profusão de futuros virtuais ligados a possibilidades irrealizadas.
PRÓLOGO: ANGELUS NOVUS
O Anjo da História avança de costas voltadas ao futuro, soprado por uma deflagração vinda do fundo das idades. Arrastado pela tempestade do “progresso”, a sucessão dos acontecimentos lhe aparece como a continuação de uma única e mesma catástrofe, testemunhada, a seus pés, por um monte de ruínas que se elevam até o céu. Na célebre alegoria inspirada a Benjamin por um quadro de Klee[1], já não há mais tempo de despertar os mortos, de reunir os vencidos; o Anjo mal consegue arrancar, de passagem, algum fragmento ou retalho do passado para levar consigo em sua corrida desenfreada.
Do ponto de vista desse messianismo invertido, o arquivo pode ainda alimentar a paixão historicista, mas apenas com a condição de se apresentar como intrinsecamente “irrecuperável”, como o é, aliás, “a imagem do passado que ameaça desaparecer com cada presente que não se reconheceu como visado nela”[2]. O cronista gostaria que, “de tudo que alguma vez adveio, nada fosse considerado como perdido para a História”[3], mas ele transforma tudo o que toca em relíquia. O arquivo se oferece então, melancolicamente, como o anúncio antecipado de uma ruína futura: “O verdadeiro rosto da História se afasta a galope. Não se retém o passado senão como uma imagem que, no instante em que ela se deixa reconhecer, lança um clarão que nunca se verá de novo”[4]. Se a imagem – arquivo, vestígio ou documento – possui mesmo assim uma energia de reserva, uma energia potencialmente explosiva, é que ela nunca é simples traço ou vestígio: sua feitura mesma manifesta entrelaçamento ou sobreposição de temporalidades que contraria a ideia demasiado simples de um passado que se formaria após ter sido presente. Na meada do tempo, todo arquivo é simultaneamente sobrevivência, anacronismo oferecido ao jogo de retomadas e de transformações das quais pode se valer um messianismo “fraco”, que cultive uma relação irônica com seu próprio projeto. Mas, do passado, o que é que pode efetivamente ser reativado, senão precisamente o embrião de futuro que cada um de seus estilhaços continha – e ainda contém? O futuro, como todos sabem, dura muito mais. Portanto, não se dirá que nada do que devia ou podia advir deve ser considerado como perdido para a História, mas sim que nada do que devia ou podia advir, nada do que estava por vir, está irreversivelmente perdido. O que não implica, evidentemente, que os futuros do passado possam ser apreendidos como futuros em relação ao nosso presente, nem que baste recolocá-los em cena para tenham instantaneamente uma segunda vida.
Aqui uma imagem se oferece a nós, um pouco menos sombria que a que Benjamin formou no núcleo do desastre. Em verdade, o Anjo da História está de frente para o futuro, mas, já que o futuro não existe – pelo menos não existe ainda! -, ele não tem outra escolha senão fixar o vazio entregando-se ao seu sonho desperto, impelido às suas costas pelos futuros de passados pelos quais se sente apenas obscuramente visado. Numa variante mais contemporânea, é preciso representar o Anjo da História como um automobilista: ele não é soprado pelo vento da explosão, não vê se acumular a seus pés um monte de ruínas; ele roda sem visibilidade numa autoestrada montanhosa, acompanhado à sua direita pelos futuros do passado lançados em alta velocidade e cuja imagem brilha por um instante na luz dos faróis antes de desaparecer na noite.
FUTURISMO “RETRÔ” E “RETROFUTURISMO”
“Retrofuturismo”: o aparecimento dessa palavra-valise pode ser datado com precisão. É atribuída a Lloyd Dunn, praticante da colagem sonora, cofundador dos Tape-Beatles e animador da revista experimental Retrofuturism, um rebento neossituacionista do fanzine PhotoStatic, criado em 1983 nos Estados Unidos, cuja marca distintiva era apropriar-se de um código visual e gráfico herdado dos anos 1950 e 1960, com seus entusiasmos ingênuos pela inovação tecnológica. Na mesma época, um grupo pop eletrônico alemão, Kraftwerk, explorava imagens vizinhas, as das vanguardas construtivistas dos anos 1920, para encenar uma música que seria idealmente tocada por máquinas. O termo pegou. Circula há alguns anos em diferentes setores da cultura contemporânea, nos cruzamentos das vanguardas e da cultura de massa, mas também da arte e da tecnologia, designando em realidade coisas bastante distintas que, no entanto, têm a característica comum de procederem a uma montagem temporal entre passado, presente e futuro. Diante do caráter difuso do fenômeno, toda definição parecerá necessariamente arbitrária. Mesmo assim, tentemos. “Retrofuturismo” indica o cruzamento de tecnologias ou formas de vida “futuristas” com outras tidas como caducas ou ultrapassadas; de maneira mais geral, o termo assinala a transposição dessas tecnologias e formas de vida a suportes ou a molduras de outro tempo. Em todos os casos, “retrofuturismo” sugere a interpenetração de visões do futuro e de visões do passado, e a imbricação de umas com as outras. Pois é evidente que as visões do futuro podem ser elas mesmas datadas; na maioria das vezes o são, e é justamente aí que reside toda a questão do retrofuturismo.
Observando as coisas um pouco mais de perto, duas tendências principais se destacam. Para abreviar, haveria, de um lado, um fascínio divertido pelo futurismo “retrô”, pelas imagens associadas às visões datadas do futuro; de outro, o imaginário ucrônico[5] dos mundos do passado, repintados com as cores do futuro: um “retrô” futurizado, se quiserem.
Assim, primeiro haveria um movimento de antecipação retrospectiva, ou de “retrocipação”[6] trata-se de considerar o futuro do ponto de vista do passado, de reencenar, de reproduzir, de reativar o futuro tal como o passado podia imaginá-lo[7]. Pois há uma história das projeções futuristas e de suas mitologias, como indica o título de uma exposição organizada pelo Instituto Smithsonian no começo dos anos 1980: Yesterdays tomorows [Os amanhãs de ontem]. O futuro tem uma história e, portanto, também um passado. Devaneios futuristas e pitorescos de Wells ou de Júlio Verne; projetos grandiosos imaginados pelos arquitetos visionários ou pelos desenhistas de quadrinhos: o futuro é urbano. É Gotham City; mas também a Moscou dos construtivistas, a Tóquio dos metabolistas, a Brasília de Oscar Niemeyer, Manhattan sob o domo geodésico de Buckminster Fuller. Cidades futuras cobertas de domos de cristal, atravessadas em todos os sentidos por carros voadores e dirigíveis (vejam a abertura do filme Fuga no século XXIII). Cidades reais também, enfeitadas de vez em quando por loucuras arquitetônicas que testemunham a paixão do futuro da qual se alimentava, ainda há cinquenta anos, a certeza de um progresso tecnológico em princípio indefinido na América de Eisenhower e, mais tarde, no Japão e na China do boom econômico. Eis o que o futuro poderia ter sido se o passado tivesse sabido traduzir na realidade a força propulsara da imaginação dos homens. Mas, também, eis o que éramos capazes de imaginar, eis o futuro no qual tínhamos a força de acreditar. Numa veia menos fantasmagórica e mais nitidamente tecnológica, pensemos igualmente nas imagens de trens monotrilho de alta velocidade, de carros com rodas esféricas e de aviões-foguetes, que alimentam a paixão fetichista do colecionador. Mesmo as casas se parecem com astronaves ou discos voadores: vejam a casa “Futuro”, de Matti Suuronen. Os recursos digitais e da internet permitem documentar tudo isso: permitem entrever um gigantesco arquivo do faturo, como mostra, por exemplo, o interesse crescente pelas “time capsules” (cápsulas do tempo) nas grandes exposições universais do século XX, em particular as de 1939 e de 1964 nos Estados Unidos. Aliás, foi de forma muito literal que a empresa Westinghouse quis dar, nessas duas ocasiões, publicidade mundial à sua marca, encerrando em cápsulas feitas de metal especial uma seleção de objetos julgados representativos da época e de seus sonhos, em atenção à humanidade futura. Em 1939, a cápsula continha obras de Thomas Mann e de Albert Einstein, mas também um exemplar da revista Life, amostras da imprensa popular (revistas pulp e outras), um telefone, uma máquina fotográfica etc. O caráter trivial do conteúdo dessa cápsula do tempo vinha assim desmentir o dispositivo espetacular empregado para o restante da exposição; alguns verão aí, talvez, o ponto de real ao qual se prende finalmente a fabulação futurista, assim como o enternecimento ligeiramente condescendente diante dessas imagens ou “cenas da vida futura” (como dizia o escritor Georges Duhamel). O interesse pela extrapolação futurista é sempre tingido de um pouco de nostalgia; exprime preocupação e mesmo cuidado particular pelos futuros caducos ou natimortos, cuja possibilidade mesma, parece, deveria ser salvaguardada de uma maneira ou de outra[8]. Não há dúvida alguma de que muitos artistas contemporâneos encontram aí o meio de driblar o imperativo que lhes é feito, tanto hoje como sempre, de ser absolutamente modernos[9].
Isto quanto ao primeiro movimento: o futuro do passado recolhido pelo presente, arquivado e, por que não, refabulado numa atmosfera de nostalgia divertida. Mas “retrofuturismo” designa também, num segundo sentido, o movimento inverso; não do passado para o futuro, mas do futuro para o passado. Trata-se, dessa vez, de reconstruir o passado à luz do futuro, de imaginar, em suma, um passado alternativo, uma ucronia, interpolando o futuro no passado. Para isso, basta retrojetar em tempos distantes certos elementos tecnológicos do nosso presente ou de um futuro pressentido. É a operação sugerida pelo gênero de ficção científica steampunk, um primo distante do cyberpunk, que deve seu nome a um romance célebre de Bruce Sterling e William Gibson, A máquina diferencial.
Publicado em 1990, esse romance desenvolve narrativamente a hipótese segundo a qual o computador teria nascido um século antes, em plena Inglaterra vitoriana, dos poderes combinados da máquina a vapor e da máquina lógica de Charles Babbage. Os computadores soltam fumaça como locomotivas; são transportados em estojos de couro e de madeira, com belos fechos de cobre. Esse princípio de hibridação pode ser estendido a todos os tipos de tecnologias. A série Leviatã, romances de sucesso de Scott Westerfeld, mistura aos combates de trincheiras da Primeira Guerra Mundial exércitos de cyborgs e máquinas do futuro. Artistas, grafistas e estilistas trabalham hoje dentro desse espírito, o que mostra que o steampunk é, mais que um subgênero da ficção científica contemporânea, um verdadeiro estilo, no sentido em que se fala de estilo art nouveau, pop ou art déco. Citemos, no cinema, a série de adaptações de Sherlock Holmes, mas também um filme como As aventuras de Rocketeer, que encena as aventuras de um “homem a propulsão” num cenário art déco, ou ainda a série televisiva The wild wide West e, honra seja feita, o inesquecível filme Brazil, de Terry Gilliam, realizado em 1985.
Na prática, é claro, as duas linhas não cessam de se misturar. Starwars, por exemplo, se apresenta como um filme arqueo ou paleofuturista: a space-opera intergaláctica (típica da primeira orientação do retrofuturismo) funde-se ali com grandes temas mitológicos imemoriais (cavaleiro, ciclo do Graal etc.), em cenários que evocam às vezes os tempos medievais (procedimento típico da segunda orientação). As duas orientações se materializam num objeto emblemático, que resume toda a ambivalência dessa construção retrofuturista: o famoso sabre de luz. Segundo o mesmo princípio, os desenhos animados do japonês Miyazaki, como O castelo animado, procedem a uma mistura de retrô Meiji e de máquinas do futuro, sobre um fundo de pós-apocalipse.
Esse tipo de análise tem a vantagem de não encerrar muito rapidamente o fenômeno retrofuturista numa perspectiva que veria nele apenas um efeito de cenário, um código visual ou uma questão de estilo. Os filmes de Jacques Tati, Mon oncle e principalmente Playtime, põem literalmente em cena a interpenetração e mesmo a sobreposição de dois tempos, de dois estados da sociedade francesa. Mencionemos, para abreviar, a sociedade dos anos 1950 e a que se anuncia com a construção do bairro La Défense, em Paris, nos anos 1970-1980. Sob esse aspecto, as cenas de aeroporto, no começo de Playtime, são particularmente interessantes, porque o aeroporto é de todos os lugares o mais claramente “não lugar”, no sentido em que o entende o antropólogo Marc Augé: não lugar suspenso entre as chegadas e as partidas, entre várias destinações; mas também entre vários tempos ou ritmos de atividade. O saguão do aeroporto contemporâneo organiza a coexistência das linhas futuristas, que evocam velocidade e fluidez, e traços anacrônicos das culturas vernaculares: pub irlandês, bistrô parisiense com sanduíche de baguete, lojas de cartões-postais e de souvenires kitsch, torre Eiffel de plástico, foie gras e macarrão… Claro que os aeroportos mudaram. Mas o tratamento que Jacques Tati reserva a esse tipo de espaço, no final dos anos 1960, tem um valor perfeitamente atual. A operação consiste em extrair daí uma espécie de quintessência que se coloque verdadeiramente fora do tempo, ou que pelo menos pertença a uma temporalidade flutuante. Na mesma ordem de ideias, e ainda em Playtime, a cena do drugstore instalado num bairro moderno, às portas de Paris, oferece o tipo daquilo que Deleuze chamou de “situações ópticas e sonoras puras”. O retrofuturismo nos dá um pouco de tempo em estado puro: essa é uma das pistas que as considerações a seguir querem trilhar.
A NOSTALGIA DO PRESENTE
De maneira geral, o que caracteriza o retrofuturismo é manter juntas duas orientações contrárias, a ponto de torná-las indiscerníveis. De fato, o arcaísmo como sobrevivência do passado numa visão presente do futuro não é separável do arcaísmo dessa visão do futuro ela mesma, enquanto produzida pelo passado ou cuja extinção se pode antecipar. O futurismo retrô e o retrô futurizado são como o avesso e o direito. E é certamente com essa ambivalência que jogam os artistas e os criadores quando se apoderam deliberadamente do tema retrofuturista.
Assim, as roupas desenhadas por Courrèges, Pierre Cardin ou Paco Rabanne nos anos 1960 são, ao mesmo tempo, a projeção visionária de um futuro em que a humanidade viveria em casas-bolas e se sentaria em poltronas-bolas, e uma reapropriação brincalhona do tema já datado da era espacial, antecipando assim em algumas dezenas de anos o olhar divertido que os contemporâneos dos anos 2000 dirigiriam a suas criações. A alta-costura e o design de vanguarda juntam à antecipação dos modos de vida futuros o comentário irônico que denuncia a paixão futurista como uma pose, uma atitude, um simples efeito de estilo.
Hoje, um fotógrafo como Ben Sandler realiza para as revistas de moda cenas da vida doméstica muito fortemente marcadas pelo design e pela moda dos sixties americanos. Mas a impressão produzida pelas imagens da série Tomorrowland, no cenário de uma villa de Alvar Aalto, tem algo de indecidível. Esse universo intimista e ao mesmo tempo perfeitamente artificial é espantosamente contemporâneo, como gostam de dizer os críticos de design. Sentimos obscuramente que ele busca dizer alguma coisa de nosso futuro, de um futuro que teria podido, que poderia ser o nosso. Não há dúvida alguma de que parte do fascínio suscitado pelo seriado Mad men traduz um sentimento do mesmo tipo. A despeito do extremo cuidado de realismo e de fidelidade histórica na expressão da textura de uma época – até mesmo a escolha de relógios e canetas -, o prazer de acompanhar os membros de uma agência de publicidade no coração da Manhattan dos anos 1960 procede, em realidade, do mesmo fascínio pelo caráter irreal desse passado que imaginamos facilmente em preto e branco ou na distância do clichê, do estereótipo inscrito nas imagens “cromo” da revista Life, e que redescobrimos como uma versão possível do nosso presente. Pois esse passado, esse impulso futurista dos anos 1960 que conjugava crescimento econômico e liberação dos costumes, é recuperado aqui com a cor e o gosto do presente, como um presente alternativo que poderia duplicar o nosso, a ponto de recobri-lo. O universo de Mad men, seu irreal do passado, é uma proposição do presente. Não são os lançadores de modas que dirão o contrário. Aliás, reencontramos aqui o afeto típico do filme de reconstituição histórica, ou do “filme de nostalgia”, analisado por Fredric Jameson no caso emblemático de Corpos ardentes, filme de Lawrence Kasdan realizado em 1980. Nesse filme, cuja ação se passa numa cidadezinha da Flórida do final dos anos 1970, a poucas horas de Miami, tudo é feito para evitar os sinais que poderiam dar ao espectador uma ligação com a contemporaneidade, tudo no filme está banhado numa atmosfera “anos 1930”, “para além do tempo histórico real”. O conjunto adquire assim “o charme e a distância de uma brilhante miragem”[10].
O procedimento traduz, segundo Jameson, o “declínio de nossa historicidade, de nossa capacidade vivida de fazer ativamente a experiência da história”. Mas o procedimento mesmo do “simulacro” é interessante pela maneira como consegue tornar a interpolação das épocas quase imperceptível, para melhor intensificar a nostalgia sentida em relação a um presente invadido por eflúvios do passado, ou que se recupera ele próprio na forma da retrospecção. Existe aí algo de análogo à “lembrança do presente” descrita por Bergson: o recobrimento imediato da percepção presente por sua própria lembrança, a recuperação do presente como passado – como o passado que ele já é[11]. Da formação dessa imagem virtual, banhada numa atmosfera de passado genérico, os programas de tratamento digital de fotografia, como Hipstamatic ou Instagram, oferecem uma analogia concreta quando dão instantaneamente a uma fotografia a qualidade ou a tonalidade de fotografia de época, amarelecida pelos anos, à maneira das velhas polaroide. O efeito Instagram consiste em produzir de imediato um ersatz de cápsula do tempo, um pseudoarquivo do presente, um vintage instantâneo. A polaroide tradicional já obtinha, por meios analógicos, essa inscrição fotográfica de uma lembrança do presente. Mas o Instagram enfraquece o punctum fotográfico caro a Roland Barthes, ou, mais precisamente, retira-lhe a ponta e o faz flutuar numa temporalidade sem referência. O afeto próprio ao “isso foi” fotográfico – a ideia de que o que se apresenta em imagem é irremediavelmente findo, passado – se dilui numa duração vaga, indefinível, que vem engrossar o presente colando-se nele. É um presente imediatamente transfigurado, não na distância brumosa da lembrança, mas em seu equivalente perceptivo, que o estilo polaroide materializa aqui, com sua pátina típica: qualidade degradada, cores enfraquecidas, efeitos de saturação ou de solarização etc. O afastamento irreversível, o processo de decantação da lembrança, tudo isso nos é dado de uma só vez sob a forma de uma cápsula do tempo instantânea, como se diz do café instantâneo, que poupa o lento trabalho de percolação de um bom café espresso. Envelhecimento acelerado, retrospecção antecipada. O Instagram substitui o “isso foi”, ou sua transposição no futuro anterior (‘isso terá sido”), por algo como um imperfeito do presente: “isso era agora”. É uma qualidade difusa, mas evidente, que se liga agora ao presente. O que queremos fixar é aquilo que, do presente, é imediatamente apropriável sob a forma de imagem-lembrança. Um suvenir do presente, portanto. Como se diz: souvenir de Paris, souvenir de Nova York. Na verdade, é ainda mais complicado. A lembrança do presente descrita por Bergson mobiliza apenas a forma pura do passado, um passado genérico que é o índice da lembrança pura contemporânea da percepção. Mas, no caso do vintage instantâneo, não se trata de qualquer passado. O passado é inteiramente datável: corresponde justamente à idade de ouro da polaroide. O ponto de referência se situa em alguma parte entre os anos 1960 e os anos 1980. De modo que, desse ponto de vista, não é a imagem que reflui ao passado indefinido para alcançar de forma antecipada as relíquias do passado (papéis amarelados, cores enfraquecidas); ao contrário, é antes a época particular à qual associamos essa qualidade fotográfica, são os anos polaroide que refluem no presente, o qual aparece de repente como o futuro – um futuro possível – daquele passado. Portanto, o que a magia do meio digital efetua é uma estranha conversão, uma troca imperceptível dos tempos em favor da qual o presente é repetido por uma espécie de futuro virtual. A tonalidade geral da imagem, sua pátina, abrem uma temporalidade fictícia que visa nosso presente como faturo, segundo um movimento de futurização que se apoia diretamente no elemento do passado, na capacidade desse passado de nos divisar, por assim dizer, pelas costas – divisar nosso presente como seu futuro, um futuro que teria ainda o gosto e a cor daquele passado. Não é mais o presente visto como passado (o imperfeito do presente); é o presente visto como futuro, pelos olhos de certo passado, que insiste e se prolonga estranhamente no núcleo mesmo de nossa contemporaneidade.
A INTUIÇÃO RETROFUTURISTA
Esses exemplos permitem agora precisar uma intuição. A ambivalência do retrofuturismo, como dissemos, se deve ao duplo circuito que ele institui: do passado em direção ao futuro e do futuro em direção ao passado. Passadização do futuro, futurização do passado. Ora, esses dois movimentos, aparentemente tão distintos por suas orientações respectivas, poderiam em realidade ser uma coisa só. Ou, o que dá no mesmo, esses movimentos talvez sejam apenas efeitos de perspectiva sobre um fenômeno mais fundamental cuja característica é perturbar o escalonamento familiar dos planos temporais (passado, presente, futuro) que dá suas referências à nossa situação histórica.
Esse fenômeno, para dizer de maneira simples, seria o de um retrofuturismo do presente. Esse retrofuturismo se distingue pela capacidade de o presente carregar uma imagem dele mesmo como futuro; mas também, simultaneamente, como passado: passado desse futuro que ele carrega e retarda, passado que remete, certamente, a um passado mais profundo, a um passado imemorial do qual nosso presente seria como a projeção ou o sonho desperto.
Graças a um curioso movimento de torção sobre si do presente, a consciência se apoia no passado para projetar no presente um espectro ou um fantasma do futuro, verdadeiramente Unheimlich [inquietante]. Ela dispõe assim um circuito paralelo ao tempo histórico. É como se houvesse um futuro do passado que acompanhasse a cada instante a percepção presente. Não é a lembrança do presente que Bergson descrevia, a lembrança imediata que acompanha virtualmente cada percepção: é o presente duplicado pela projeção de um futuro do passado que, a rigor, não pode ter outro conteúdo senão o próprio presente. É esse caso puro que o efeito lnstagram ilustra: o presente como remanência ou eco atenuado do passado na forma genérica do futuro. Haveria assim uma antecipação ou uma projeção do presente, um eco futuro do presente, como há, segundo Bergson, uma lembrança do presente. O presente poderia ser antecipado ao mesmo tempo em que é vivido; poderia ser apreendido como porvir, projetado ao mesmo tempo em que se faz – mas projetado, de certo modo, às nossas costas, como o eco de um tempo findo.
O FIM DA UTOPIA
Admitamos que essas fórmulas têm algo de misterioso. Pode-se tentar esclarecê-las evocando outro exemplo tirado do livro deJameson, no capítulo intitulado, justamente, “A nostalgia do presente”. Esse exemplo difere sensivelmente do de um filme de nostalgia e de moda “retrô”. Baseia-se num romance de Philip K Dick intitulado O homem mais importante do mundo, publicado em 1959, e cujo argumento lembra um pouco o do filme de Kasdan, mas com a diferença de um detalhe de orientação. De fato, dessa vez a ação parece se desenrolar claramente numa cidadezinha no final dos anos 1950. Mas, numa veia muito representativa da tradição paranoica encarnada por Dick, um acúmulo de detalhes aberrantes leva o leitor a compreender que o quadro é, em realidade, o de um simulacro concebido em 1997, ou seja, no futuro (em relação à época em que o autor escrevia). Jameson identifica no romance de Dick um “excesso de futuro anterior”, isto é, uma estratégia de desfamiliarização que passa pela “apreensão do presente como passado de um futuro específico”[12]. O futuro é evidentemente aqui um pretexto: desempenha no romance um papel inteiramente secundário, a questão sendo produzir uma descrição maximamente “realista” do presente no modo da lembrança ou da reconstituição. Aos olhos de Jameson, porém, essa estratégia falha. Aliás, ela está estruturalmente ligada à descrição do passado como presente, que era o procedimento característico do filme de nostalgia. Futuro anterior e passado composto (com o presente) testemunham, cada um à sua maneira, nossa incapacidade de alimentar um verdadeiro projeto utópico. É ainda o que sugere Jameson num outro livro, Archeologies of the future, especialmente no capítulo intitulado “Progress versus Utopia. Can we imagine the future?”[13] Compreende-se aí que a ficção científica, em suas orientações mais recentes, sobretudo em sua tendência retrofuturista – embora Jameson não a considere com esse nome -, é o sintoma de uma mutação de nossa relação com o tempo histórico em geral. O olhar distante, ao mesmo tempo irônico e nostálgico, voltado às figuras do passado, não traduziria apenas uma desilusão ante os ideais tecnocientíficos do progresso, ou uma desconfiança ante as derivas totalitárias da imaginação utópica. A ficção científica exprimiria, mais fundamentalmente, algo de nossa relação com o futuro em geral e da nossa incapacidade de alimentar um verdadeiro projeto utópico. Assim compreendida, a ficção científica não é uma máquina de produzir “imagens” do futuro – e isso vale evidentemente para as imagens retrofuturistas -, mas antes uma máquina para nos desfamiliarizar, uma máquina para reestruturar nossa relação com o próprio presente em nós, remetendo a imagem do nosso presente à de um “longínquo passado de um mundo futuro”[14]. Nesse sentido, os futuros imaginados pela ficção científica buscam sempre fazer de nosso presente “o passado particular de uma época ainda por vir”, “o longínquo passado de um mundo futuro”. A ficção científica passadiza o presente, acelera sua obsolescência. Mas ao mesmo tempo encoraja uma autorreflexividade patológica que é o avesso da atrofia da imaginação utópica. Trata-se, em suma, de dramatizar nossa incapacidade de imaginar o futuro trabalhando essa barreira ideológica pelas bordas, através da variação dos possíveis, mobilizando, se necessário, os recursos da ucronia e da história conjectural.
Se a evocação do impulso futurista dos tempos passados é algo mais que simples efeito de estilo, um cenário para novas fábulas, se não se restringe simplesmente à denúncia um pouco boba das derivas totalitárias da utopia, gênero do qual se vale a ficção científica distópica, é que não estamos reduzidos à constatação tristonha de nossa dificuldade presente de simplesmente desejar o futuro. No retrofuturismo, na atração pitoresca exercida pelas “cenas da vida futura”, há algo mais que um sintoma de “presentismo” como mal do século[15].
É evidente que a reciclagem nostálgica das visões passadas do futuro traduz algo mais que um julgamento distanciado sobre o futurismo. O retrofuturismo não se contenta em ver no futurismo “retrô” a expressão de uma adesão ingênua ao grande relato da modernidade, ao mito do progresso como convergência feliz do desenvolvimento técnico e do projeto político. Tampouco se contenta em apontar os indícios perturbadores de seu avesso distópico, o pressentimento inquieto das sociedades totalitárias e das catástrofes por vir. Seria passar ao lado da torção que o retrofuturismo submete à consciência histórica construindo um hfürido, uma quimera histórica de um novo tipo: os futuros paralelos ou virtuais. É disso que devemos falar agora.
FUTUROS FLUTUANTES
A análise de Jameson é conduzida com muita força, mas conseguiria explicar os aspectos mais interessantes do fenômeno retrofuturista, especialmente em sua expressão na ficção científica? Seu diagnóstico não faria pouco-caso da tonalidade punk que adquire com frequência, na prática, a suposta nostalgia retrofuturista? De fato, diz-se que o futuro não é mais o que era porque não somos mais capazes de pensar e de viver à altura de uma visão do futuro, porque não somos mais capazes de acreditar nele. Segundo a poderosa imagem de Walter Benjamin já evocada, o Anjo da História avança de costas viradas ao futuro, soprado e projetado por uma deflagração que vem do fundo das idades. Mas, justamente, essa melancolia tendencial da consciência histórica não é senão uma dimensão do fenômeno. Ela não deve fazer esquecer o caráter bricoleur e lúdico de uma consciência histórica que remonta o tempo e reativa, graças aos recursos de uma imaginação informada, possíveis residuais e futuros natimortos no domínio das técnicas ou das formas culturais em geral.
Não é inútil dar aqui alguns elementos de contexto histórico. O retrofuturismo emerge nos anos 1970 e no começo dos anos 1980, no momento preciso em que as perspectivas de abundância e de progresso econômico e social indefinido aparecem cada vez mais bloqueadas. É o fim da era espacial, da reestruturação dos projetos da NASA, dos dois choques petrolíferos e suas consequências, mas também do advento do ciberespaço no lugar do espaço, fonte de novos temores e de novos fantasmas. Sob esse aspecto, o afeto nostálgico do “retrô” cumpre uma função mais positiva, ao fazer ouvir uma reivindicação de arcaísmo acompanhada de uma vontade de bricolagem, de livre apropriação das tecnologias de ponta. É o que resta do espírito do punk no steampunk: conecta-se o computador a uma máquina a vapor ou a um trator, como num projeto do artista Jeremy Deller. De maneira geral, é interessante observar que a reapropriação punk (steampunk, dieselpunk, clockpunk) dos motivos da ficção científica “tradicional” (isto é, tradicionalmente futurista) apenas exprime, numa ordem particular, um fenômeno mais geral. O escritor de ficção científica Brian Aldiss explicava que a ficção científica se torna possível somente a partir do momento em que as mudanças de fundo de uma sociedade são capazes de ser vividas no espaço de uma única vida humana ou de uma única geração. Essa ligação entre a aceleração vivida das transformações sociais e o desenvolvimento da ficção científica como gênero é inquestionável. Aliás, é impressionante que o horizonte temporal da antecipação tenda, aqui como alhures, a se encurtar. O futuro projetado pela exposição universal de 1939 já não ultrapassava o século XX: projetava-se nos cinquenta anos seguintes, tendo em vista, para começar, a exposição de 1964. Os relatos de antecipação mais recentes não necessitam mais que alguns anos de separação com o presente para compor as histórias de um “futuro próximo” (“a not too distant future”). Ao que se pode acrescentar: quando a evolução tecnológica torna sensível o fato de o futuro se anunciar realmente diferente do presente, abre-se também a possibilidade de contornar seu imperativo imaginando linhas de evolução de natureza muito distinta. Desse ponto de vista, o retrofuturismo ativo, assumido, aparece como uma variedade da contrautopia no contexto particular da revolução digital. É nessa perspectiva que convém considerar um movimento geralmente associado ao retrofuturismo: a corrente “retronics”, adepta da reciclagem criativa, que afirma, no espírito da revista Make e do Faça você mesmo, a vontade de retraduzir tecnologias contemporâneas em materiais pobres ou obsoletos. Voltaremos mais adiante a esses aspectos do fenômeno.
Certamente não se pode criticar Jameson por não evocar tudo isso: em 1982, quando ele publica seu texto sobre a imaginação do futuro, o gênero cyberpunk era balbuciante e mesmo a palavra “retrofuturismo” ainda não fora inventada. Mas os limites da análise, ou seu alcance crítico, se devem claramente a um postulado fundamental relativo ao próprio futuro. É a ideia de que o bom paradigma para abordar a questão do futuro, da nossa relação com o futuro, do modo de existência e de presença do futuro, é o da utopia. Ora, nessa perspectiva, que é a da teoria crítica e dos estudos culturais, o futuro é imediatamente indexado aos atos de uma consciência (individual ou coletiva) que define o futuro segundo o modo do projeto. Quando não é trivialmente o que será – presente em reserva, suspenso à condição de sua realização, de sua efetuação -, o futuro é desde o início compreendido como um conjunto de representações, de crenças, de motivos práticos capazes de infletir a evolução histórica de uma sociedade ou, ao contrário, de paralisá-la. Ele é o que projetamos: uma expressão do estado presente de nossas expectativas, de nossos desejos, de nossas capacidades de crer, de esperar, de assumir um destino coletivo etc. Ora, desse ponto de vista, como já assinalava Santo Agostinho, não há senão o presente: “o presente do presente, o presente do passado, o presente do futuro”.
Quer o imaginemos como um existente em reserva (um possível) ou como uma realidade simplesmente projetada (um projeto), o futuro é sempre determinado como presente por vir. E essa subordinação ao presente, como foi sugerido na primeira parte, leva inelutavelmente a desvalorizar o futuro como um modo do irreal. Mas tudo muda se, ao contrário, nos preocupamos com o modo de existência singular do futuro, na medida em que ele implica mais que o simples fato de não ser ainda. O futuro, de certo modo, não nos espera: ele já é ativo, e de mil maneiras, para além das representações que fazemos dele, para além das promessas e dos temores. O retrofuturismo ilustra isso de inúmeras formas: o futuro é uma força insinuante que não cessa de desfazer a evidência do presente. Não estamos condenados a definir o futuro ora como um inexistente, um presente por vir, ora como a forma assumida pelo conjunto de nossos projetos. Entre um estado de coisas objetivo mas indeterminado (o que será mas que não se conhece, o presente por vir) e um estado de coisas determinado mas subjetivo (uma representação, um projeto, um ato intencional), não há o que escolher. O futuro pode ser objetivo e determinado, contanto que o relacionemos à sua operação própria num tempo mais desprendido que o de nossos calendários ou de nossas crônicas históricas. Sob a Paris de Haussmann, Benjamin descobria nos anos 1920 a Paris de Baudelaire, mas também a de Granville e Daumier em seus momentos visionários, isto é, o futuro daquela Paris: toda uma estratificação de imagens, de devaneios, de fantasmagorias que um olhar atento pode captar na ordem das representações, mas também na cultura material e nos processos históricos. O presente encerra, assim, no estado de sobreposição, propostas de futuros disjuntivos ligados a passados de profundidade diferente. Cada exposição universal recapitula a seu modo os futuros de todas as outras, acrescentando-lhes o seu. Esse tema da simultaneidade do não simultâneo é bem conhecido, como o é o da imagem dialética – imagem explosiva, montagem de tempos disjuntivos. Limitemo-nos a reter a seguinte ideia: o que vale para sobrevivências arcaicas ou estados anacrônicos da imagem deve valer também para futuros do passado, considerados não apenas como resíduos pitorescos de projetos e de sonhos abandonados, mas como indícios de uma presença efetiva, de uma atividade surda e contínua de interpolação do próprio tempo. Esse tempo espera, ele também, seu modo gramatical: não o futuro anterior (future perfect, em inglês), mas o futuro anterior do passado (past fature perfect).
No inconsciente de uma sociedade flutuam assim concreções de futuro, linhas de futurização errantes, liberadas da ordem linear dos presentes sucessivos. Sempre ligadas por algum tênue fio ao processo histórico, elas derivam à medida que se distancia a perspectiva de sua realização. O dirigível, objeto retrofuturista por excelência (vejam o de Panamarenko ), seria uma metáfora bastante boa disso, assim como as estruturas infláveis em geral. Esses futuros flutuantes – no limbo, de certo modo – nem por isso estão totalmente desativados. Mesmo furtivos, estão carregados de uma energia de reserva. Seu modo de presença admite intensidades variáveis e, para disseminar seus efeitos, apenas esperam que os divisemos deliberadamente sob a forma do projeto.
MUNDOS PARALELOS
Em suma, o futuro não está diante de nós como o que ainda não é. Ele não é anterior, é contemporâneo ao presente. Pelo menos, é a perspectiva aberta pelo futuro do passado. Seu modo de existência é, de certo modo, paralelo ao do presente. É preciso, num primeiro momento, tentar ouvi-lo, literalmente. Como escreve William Gibson: “The fature is already here-just not evenly distributed”. O futuro já está aí, apenas não está distribuído de forma homogênea. Com o risco de agravar o paradoxo, poderíamos completar essa fórmula precisando que, se o futuro já está aí, é porque ele ainda está aí, sob a forma de um enxame de futuros propulsados pelas épocas passadas. A citação de Gibson adquire um relevo particular se remontarmos ao que constitui, certamente, uma das fontes primitivas do gênero steampunk: um conto publicado em 1981, retomado na coletânea Burning Chrome e intitulado “O continuum de Gernsback” (The Gernsback continuum), em homenagem a Hugo Gernsback, criador de Amazing Stories, a primeira revista de ficção científica[16] (17). O conto de Gibson desenvolve a hipótese clássica de mundos ou de histórias paralelas, introduzindo a possibilidade – não menos clássica – de interferências, de curto-circuitos ou de efeitos de sobreposição na trama do tempo. Mas o achado consiste em ligar esse tema batido a uma questão que tem a ver com a história das formas arquitetônicas, com seus efeitos de latência e de sobrevivência. Trata-se, mais precisamente, de um estilo arquitetônico bem identificado hoje, que tem seus aficionados e seus especialistas: o estilo Googie. Esse estilo neo-art déco, amplamente praticado nos anos 1950 na costa oeste dos Estados Unidos, na região de Los Angeles, distingue-se do estilo anos 1930 (o Streamline Modern) por uma mudança de paradigma tecnológico: o impulso não é mais fornecido pela evocação do barco ou do avião a hélice, mas do foguete. Estamos na época da conquista espacial, na era do átomo, do Sputnik e das primeiras viagens no espaço. As formas são enfáticas, arrojadas, espetacularmente angulosas; há um gosto pelos arcos autoportantes de concreto, pelas luzes de neon, pelo vidro, pelo cromo combinado aos materiais plásticos e às cores vivas. A exposição universal de Nova York, em 1964, mostra ainda essa tendência associada aos cafés de beira de estrada ou aos terminais de aeroporto. Pense-se, por exemplo, no Theme Building do aeroporto de Los Angeles, com seu aspecto de disco voador. A ideia do futuro apregoada pelo estilo Googie certamente nunca se realizou, mas mesmo assim tinha bastante existência ou consistência na época para se inscrever concretamente na paisagem urbana de cidades como Los Angeles e sua periferia, e para definir o que é visto hoje como a época de ouro do design retrofuturista, depois reciclado nos galanteios irônicos da arquitetura pós-moderna. Observemos, aliás, que o caso do estilo Googie se aparenta ao dos criadores da alta-costura evocados anteriormente. É que esse estilo, justamente por se apresentar como tal, não se define como retrofuturista por um efeito de retrospecção, na perspectiva de um presente que lhe sucede; define-se desde o início dessa maneira. Sua dimensão “retrô” é de certo modo assumida no seio mesmo do impulso futurista. Seria um retrofuturismo sem retrospecção, imediatamente eficaz. No entanto foi preciso que William Gibson – o mesmo que escreveu Neuromancer e que introduziu mais tarde o gênero steampunk com Bruce Sterling – se interessasse pelo caso para que essa tendência maneirista da arquitetura americana encontrasse sua designação exata. De fato, deve-se a ele a expressão “Raygun Gothic”, que se pode compreender literalmente como o gótico (da era da) arma a laser.
Qual a relação entre a história de ficção científica policrônica e esse caso arquitetônico? Basta nos reportarmos à sinopse: “O continuum de Gernsback” conta de que maneira uma reportagem fotográfica que supostamente documentaria alguns aspectos da arquitetura norte-americana dos anos 1950 – os “fantasmas semióticos” (“semiotic ghosts”) de um sonho futurista bruscamente interrompido – adquire um caráter alucinatório à medida que progride, o personagem principal sendo assaltado por visões de um mundo paralelo no qual o futuro sugerido pelo estilo Raygun teria efetivamente se realizado. O livro que deve resultar dessa reportagem fotográfica intitula-se, no conto, The Airstream Futuropolis: The tomorrow that never was. E é seu editor que introduz a expressão Raygun Gothic. As alucinações do fotógrafo acabam por desaparecer, mas a realidade alternativa, por um momento entrevista, continua a se manifestar à maneira de fenômenos entópticos, sob a forma de fragmentos incertos que persistem no campo periférico da visão. Na pura tradição do fantástico, tal como o define Tzvetan Todorov, a história permanece suspensa entre duas leituras possíveis, a do realismo e a do maravilhoso, a que atribui ao fotógrafo um episódio psicótico (alucinação) e a que vê em sua aventura uma profecia fantástica, uma revelação inquietante da instabilidade intrínseca da realidade, sua capacidade de fazer existir fora das consciências os fragmentos de um inconsciente histórico que reproduz a história oficial – inconsciente neofascista, no caso, como o sugerem as alusões repetidas à arquitetura monumental de Albert Speer. Não é indíferente, por certo, que o personagem principal seja um fotógrafo: a primeira revelação de outra América, no entanto contemporânea, recompensa longas horas passadas a examinar a superfície de um prédio à espera do momento propício, da exposição ao sol que dará a melhor distribuição de sombra e de luz. A um desvio do olhar, um grande objeto voador faz de repente sua aparição, propelido por 12 potentes motores. Mais tarde, é uma cidade inteira que se revela por alguns instantes no retrovisor do veículo, com seus templos dourados, zigurates, estradas de cristal suspensas no ar, o rumor incessante dos girocópteros riscando o céu. Dessa Futurópolis, a arquitetura Raygun ou retrofuturista oferece, de certo modo, a maquete ou o modelo reduzido, do mesmo modo que o filme Blade Runner, realizado por Ridley Scott na mesma época, oferecia de Los Angeles uma variante como em anamorfose, ao mesmo tempo distópica e estranhamente plausível.
Essa maquete faz entrever uma patologia temporal de um tipo particular, com a qual os leitores de Philip Dickjá estão familiarizados. Não é a melancolia do presente contemplado na perspectiva do futuro anterior; é a paranoia de um futuro virtual contemporâneo do presente num mundo paralelo. Ora, esse procedimento ficcional nos permite captar ao vivo o modo de operação do retrofuturismo. O que interpretávamos espontaneamente como um efeito de transposição do passado ao futuro, ou do futuro ao passado, aparece agora sob sua verdadeira luz. O retrofuturismo não é mais uma qualidade que se atribui, retrospectivamente, a certos aspectos do imaginário tecnológico ou político do passado. Não se reduz mais a uma remontagem pitoresca dos estilos em que as épocas se interpenetram. O retrofuturismo é uma fantasmagoria do presente, não um devaneio sobre o passado. E essa fantasmagoria é efetiva; não é uma simples projeção, mas uma tendência objetiva que opera no núcleo mesmo do presente. Quanto aos futuros que lançam até nós suas linhas de desenvolvimento paralelas, pode-se atribuí-los a fenômenos de anacronismo ou de sobrevivência, com a condição, porém, de não perder de vista o essencial: por mais que sejam virtuais e mesmo furtivos, esses futuros são ainda plenamente ativos, embora em graus de intensidade variável; se são presentes, é de fato enquanto futuros, e isso apesar de trazerem necessariamente a marca do passado, e apesar de o presente não poder se relacionar a eles diretamente como a seu próprio futuro, que de toda maneira não existe. Deve-se concluir daí que eles são de direito disponíveis, portanto suscetíveis de ser incorporados ao processo de realização pelo qual o futuro a cada instante se constitui no presente.
Se o futuro não espera que a percepção se enfraqueça para se formar à maneira de um arquivo ou de um vestígio, se ele se forma – era a hipótese de Bergson – ao mesmo tempo que a percepção, como seu duplo virtual, se o passado não é o presente que passou, se é algo mais que uma espécie de pele morta do presente, um resíduo da passagem do tempo, se a rigor, enfim, ele nunca foi presente, deve-se dizer a mesma coisa do futuro, simetricamente. O futuro goza de um modo de existência sui generis. Ainda que nunca se realizasse num presente, ele já existe plenamente como futuro do passado; ele atua desde agora, e o que chamamos nosso futuro – o futuro do presente – alimenta-se de todos os futuros do passado, dos quais talvez não seja mais que a sedimentação ou o precipitado.
“RETRONICS” E “RETRO GAMING”
Repetimos, o futuro não é anterior ao presente; como futuro do passado, o contemporâneo ao presente. Tal seria a conjectura de Gernsback (ou de Gibson). Aliás, ela encontraria uma aplicação direta em registros bem diferentes, como o das técnicas, por exemplo. Um estudo atento dos pontos de desligamento entre linhas de evolução tecnológica põe em evidência um fato que McLuhan teorizou: o aparecimento e a difusão de um novo meio revelam com frequência, ao mesmo tempo, a especificidade e a persistência obtusa de um meio antigo (a fotografia no cinema, o cinema na televisão, o telefone na era da internet etc.). Não por acaso Bruce Sterling, coautor de A máquina diferencial, está na origem do Dead Media Project: esse projeto, lançado em 1995, buscava constituir na internet um vasto arquivo dos meios de comunicação residuais, acometidos de obsolescência pelo progresso técnico[17]. Os exemplos são muitos. Sterling cita, indiscriminadamente, o fenacistoscópio[18], o telharmonium [primitivo instrumento musical eletrônico], o rolo de cera de Edison [precursor do vinil], o estereoscópio, o telefone Hirmondo, as inúmeras variantes da lanterna mágica, o sistema de troca de informação por tubos pneumáticos… O projeto, que devia culminar na edição do Dead Media Handbook, não sobreviveu mais que alguns anos, o que não deixa de ser irônico. Algumas centenas de páginas de notícias e de documentação, reunidas pelo meio um tanto antiquado da mailing list, testemunham, mesmo assim, o interesse que lhe deram alguns apaixonados pela história das técnicas. Sterling via no projeto Dead Media uma maneira de aclimatar o antigo gênero da pintura das vaidades aos novos formatos do ciberespaço. Sua intenção, claramente apregoada, era lançar uma advertência aos tecnófilos e incitá-los a um exercido de melancolia por antecipação: chegará o dia em que o computador pessoal e a própria internet nos parecerão meios rústicos, gastos e cobertos de pátina, como os objetos Wabi-Sabi que os japoneses tanto prezam.
Numa veia bem menos melancólica e mais experimental, inspirada pelo espírito “Faça você mesmo”, o movimento Retronics reúne aficionados de equipamentos vintage e apaixonados por bricolagem. A ideia é reapropriar-se criativamente dos meios obsoletos, fazendo da restauração, da reciclagem e da hibridação uma norma construtiva. Essa variedade do steampunk (cujo emblema histórico, lembremos, é o computador a vapor) nos interessa mais pelo movimento de “retroização” no qual arrasta as tecnologias contemporâneas, do que por sua tentativa de ressuscitar, mediante remendos e enxertos, objetos e dispositivos técnicos que pareciam relegados ao museu dos Dead Media. A pulsão paleontológica e arquivista do colecionador-bricoleur é, de fato, contrariada por uma forma de arte bruta ou de primitivismo tecnológico que é o verdadeiro lugar da operação retrofuturista. Essa contratendência se exprime, em particular, pelo fato de as tecnologias avançadas serem mobilizadas fora de seu emprego usual, de maneira mais simplificada, reduzidas, em suma, ao estado de protótipos. Não se trata de voltar aos velhos amplificadores, ou de conectar o iPod num sistema desse tipo, mas de utilizar, por exemplo, a capacidade de cálculo de um computador de última geração para animar um jogo como Pong [antigo videogame da Atari] num osciloscópio. O fasánio atual pelo retro-gaming, no domínio vídeo-lúdico, certamente se explica em parte pelo encanto particular do low-fi (ou do low-res [baixa resolução]), mas pode-se ver aí, mais profundamente, a expressão de uma vontade de transformar um meio “frio” (como o telefone ou as mensagens via internet) num meio “quente” (como o rádio ou o vídeo em streaming), ou seja, de liberar a energia de reserva das tecnologias ultrapassadas no centro mesmo dos dispositivos mais contemporâneos.
Os jogos vetoriais (vector games), desenvolvidos entre 1977 e 1985, definem uma idade de ouro do videogame, sua idade arcaica ou neolítica mais do que pré-histórica (pois a história dos videogames remonta mais acima, aos anos 1960)[19], abrangendo ao todo quarenta jogos – 42, para ser exato. Entre os mais célebres, podemos citar Star Wars, Battlezone, Tempest ou Asteroids. Essa espécie difícil de proteger está hoje em via de extinção devido à rarefação dos monitores x-y (tipo osciloscópio) que lhes serviam de suporte: esses monitores, especialmente frágeis, são cada vez mais difíceis de consertar, e os fóruns na internet regurgitam de mensagens de jogadores desamparados, possuidores de jogos que não podem mais fazer funcionar por falta de monitor. O grande interesse da exibição vetorial em monitor de coordenadas x-y é que ele permite, quando dois pontos são dados na lista de comando (dois pares de coordenadas do tipo x,y), traçar imediatamente a linha fosforescente que liga um ao outro, como se houvesse um pincel eletrônico. Os adeptos do desenho vetorial conhecem as vantagens desse procedimento, que garante uma expressão de extrema clareza em todas as escalas. É que o programa não recombina mais pixeis, mostrados na tela segundo um procedimento de varredura linha a linha; ele combina diretamente elementos lineares, vetores de luz. Traçados em detalhe, combinados em figuras poligonais, eles se destacam sobre o fundo negro da tela com uma intensidade, fluidez, grau de clareza e de precisão inigualáveis. Em vez de inscrever na tela cada pixel, renovando a imagem trinta vezes por segundo, o feixe eletrônico traça diretamente as linhas úteis e deixa repousar o resto no escuro. Donde a beleza gótica do estilo “filar”, com seu grafismo ao mesmo tempo depurado e exuberante. Os objetos se deformam, se desfazem e se multiplicam à vontade, riscam a noite como nuvens de vaga-lumes. O acréscimo de “cenários” recortados diretamente na superfície da tela, de tramas plásticas translúcidas, de filtros e de espelhos, de luzes negras ou fluorescentes, intensifica o espetáculo e faz pensar nos jogos de tiro eletromecânicos dos parques de diversões e dos fliperamas, ou ainda no pseudo-3d ligeiramente alucinatório do estereoscópio. Compreende-se que, quando surgiram no mercado no final dos anos 1970, os jogos vetoriais tenham se imposto rapidamente como o nec plus ultra: esses jogos eram os verdadeiros jogos do futuro. Se tomarem a hipótese retrofuturista a sério, é preciso afirmar que eles ainda o são.
Claro, a glória dos jogos vetoriais não terá durado aparentemente mais de cinco anos. Na prática, o jogo vetorial morreu há muito, arrastado pela onda pop e colorista de Mario Bros e seus alegre comparsas, definitivamente suplantado pelo console de sala e pelo monitor de imagem matricial. O fato, no entanto, é que esses jogos, cada vez mais difíceis de encontrar, continuam exercendo um poderoso fascínio que vai muito além da nostalgia do ex-combatente. Fascínio que se deve à capacidade que esses jogos possuem – e filmes como Tron, que retomam seus códigos na época – de sugerir, no presente, um futuro possível que não está completamente morto, uma linha de futurização que continua a persistir no núcleo mesmo do atual. É desse ponto de vista que convém, talvez, considerar hoje os jogos vetoriais: menos por sua capacidade de nos revelar um estado originário do videogame que por seu potencial ucrônico. Com a seguinte consequência: não é certo que a morte natural dos jogos vetoriais tenha eliminado a tendência profunda do videogame que se manifestava através deles. Outros dispositivos estão sendo inventados neste momento. Basta pensar em Child of Eden, a ópera sinestésica realizada por Tetsuya Mizuguchi, o autor de Rez: ali reencontramos, numa encenação que beira o kitsch, todos os elementos do estilo gótico e linear dos antigos jogos vetoriais. Mais que um piscar de olho aos aficionados do gênero, é a prova de que o futuro do jogo vetorial – o futuro que era ou podia ser o dele – continuou a levar uma existência surda e paralela ao longo dos anos 1990 e 2000.
POR UM RETROFUTURISMO OBJETIVO
As observações precedentes, a despeito de seu curso meandroso, tinham por finalidade, no fundo, introduzir uma ideia bastante simples em seu prinápio: o retrofuturismo pode ser considerado uma propriedade absoluta, e não um efeito de perspectiva temporal ligado ao enraizamento histórico da consciência num presente necessariamente transitório. Trata-se, em suma, de defender a hipótese de um retrofuturismo objetivo, portanto não nostálgico, um pouco à maneira como Stendhal podia dizer de Shakespeare que ele era, já em sua época, plenamente romântico, e isso antes mesmo do aparecimento do romantismo histórico. Do mesmo modo, pode-se dizer que um estilo arquitetônico, um filme, um romance, um projeto de artista, é retrofuturista nele mesmo, pela maneira como assume o presente com seus futuros virtuais. O retrofuturismo não se reduz a esse movimento segundo o qual o presente se volta com nostalgia ou condescendência às antecipações formadas pelos homens do passado: ele pode ser produzido diretamente no presente, em consideração – por que não? – de tempos futuros.
Tradução de Paulo Neves.
Notas
- Walter Benjamin, “Theses sur la philosophie de l’histoire”, Essais 2, trad. M. de Gandillac, Paris: Denoël, 1983, p. 198. ↑
- Idem, ibidem, p. 197 (tradução modificada). ↑
- Idem, ibidem, p. 196. ↑
- Idem, ibidem, p. 197. ↑
- Isto é, tal como poderia ter ocorrido, segundo o termo ucronia, criado pelo filósofo francês Charles Renouvier (1815-1903). (N. T.) ↑
- É o termo introduzido por Arnauld Pierre em Futur antérieur: art contemporain et rétrocipation, Paris, M19, 2012, p. 19. ↑
- Sobre esse tema, Elizabeth E. Guffey, Retro: The Cult of Revival, University of Chicago Press, 2006. Sobre o “retrô” em geral, Simon Reynolds, Pop Culture’s Addiction to its Own Past, Nova York: Faber&Faber, 2011. ↑
- Arnauld Pierre, Futur antérieur, op. dt., p. 48. ↑
- Ver igualmente: Rétrofaturisme, steampunk et archiomodernisme. Catalogue de l’exposition Futur antérieur à la galerie du jour Agnes B. à Paris, du 24 mars au 26 mai, Paris: Le mot et le reste, 2012. ↑
- Fredric Jameson, Le Postmodernisme ou la logique culturelle du capitalisme tardif, trad. francesa F. Noveltry, Paris: École Nationale des Beaux-arts de Paris, 2007, p. 62. ↑
- Henri Bergson, Le souvenir du présent et la fausse reconnaissance, Paris: Presses Universitaires de France, 2012. ↑
- Fredric Jameson, Le Postmodernism… , op. cit., p. 396. ↑
- Fredric Jameson, Archeologies of the future, Londres: Verso, 2005; trad. francesa Archéologies du futur II. ↑
- Fredric Jameson, Penser avec la science-fiction, op. cit., p. 19. ↑
- Ver François Hartog, Régimes d’historicité: présentisme et expériences du temps, Paris: Seuil, 2003. ↑
- William Gibson, Burning Chrome, Londres: Harper Voyager, 1995. ↑
- Disponível em: <http: www.deadmedia.org>. ↑
- Instrumento com desenhos de um mesmo objeto, em posições ligeiramente diferentes, distribuídos por uma placa circular lisa. Quando essa placa gira diante de um espelho, cria-se a ilusão de uma imagem em movimento. (N. T.) ↑
- Elie During, “Éloge du style vectoriel”, Voir les jeux vidéo, Paris: Bayard, 2012. ↑