O silêncio dos céticos
Resumo
Para melhor entender o silêncio dos intelectuais hoje, é preciso traçar um paralelo entre a filosofia pós-moderna e a corrente filosófica helenista chamada cética. Ela que se estendeu entre os séculos IV a.C. (quando da morte de Aristóteles) ao I a.C., sempre sob a influência de Pirro e seus seguidores.
“Descrença”, “desencantamento”, “desilusão”, “dúvida”, “relativismo”, “pessimismo” – eis palavras normalmente associadas ao ceticismo. Elas, na verdade, descrevem bem a filosofia pós-moderna, que questiona a tradição, sobretudo no que há nela de mais racional, amplo e, assim, efetivo na eliminação de erros. Disso decorreria o fim da adesão da figura do pensador a uma grande doutrina (a exemplo do marxismo), condição para que ele agisse como intelectual. Diferente, o que há hoje é o pensador que adota o silêncio. É, portanto, cético. E isso tanto na filosofia continental quanto na analítica ou anglo-saxônica, cuja grande maioria dos filósofos, de uma maneira ou outra, rejeita a tradição filosófica ou o lugar da tradição crítica, que atingiu o ápice no Iluminismo, a que se seguiram os estabelecimentos da física e da filosofia clássica, que, ao emanciparem o homem de seus preconceitos e superstições, permitiram-lhe conceber um projeto político-social a ser consolidado pela figura do intelectual.
Com a pós-modernidade, esse modelo entra em crise. Mais: ele é visto como ilusório. Tal é o alcance disso que seus fundamentos atravessam a Modernidade até Platão, autor do famoso mito da caverna.
Para que se entenda por que ir tão longe, é preciso comparar a esfera pública a uma caverna penumbrosa, em cujas paredes projetam-se sombras de objetos que estão fora dela e do alcance dos homens, acorrentados no interior dela. O filósofo é quem se liberta e dirige-se à luz, que dissipa a ignorância. O mito não acaba aí; afinal, cabe ainda ao filósofo libertar seus companheiros.
Ou seja: o conhecimento não só habilita e legitima, como obriga a atuar socialmente.
Eis um mito que foi e vem sendo criticado e condenado pela filosofia pós-moderna, sobretudo por Michel Foucault, Jacques Derrida, Richard Rorty e Paul Feyerabend, que assinalam a crise moderna, cujas verdades e razões são meras invenções.
É nesse sentido que se pode tomar Pirro por ancestral de tais filósofos. Afinal, foi ele o primeiro a sustentar que: as coisas são igualmente indiferentes, instáveis e indecididas. Daí que sensações e crenças não são verdadeiras nem falsas. Por isso, não se deve confiar nelas. Nada, portanto, de opiniões, inclinações, hesitações, uma vez que não há “ser” mais do que “não-ser”. Daí que tudo o que há tanto “é” quanto “não é”, bem como “nem é, nem não é”. Decorre disso a “aphasia” (ou silêncio) e, então, a “ataraxia” (ou ausência de perturbação).
Note-se que o silêncio precede a atitude sábia.
Seria o mesmo silêncio a preceder a ação do intelectual?
1. INTRODUÇÃO
Minha contribuição ao ciclo sobre o silêncio dos intelectuais será indireta. Não apresentarei aqui uma reflexão sobre o intelectual e sua atitude na contemporaneidade. O tema é fascinante e da maior importância, e é amplamente tratado pelos demais participantes deste volume. Meu enfoque volta-se para o tema do silêncio que será tratado a partir de uma das correntes filosóficas que lidaram com o assunto: o ceticismo. A minha perspectiva não será a de um intelectual entendido como aquele que, por deter algum saber ou habilidade de análise específica, assume o papel de refletir criticamente sobre as grandes questões da vida pública. A minha perspectiva será, sim, a de um intelectual entendido como aquele que lida com ideias na esfera acadêmica. Apresento-me aqui como um acadêmico em dois sentidos historicamente relacionados.
Em primeiro lugar, como alguém cuja função é desenvolver atividades de ensino e pesquisa na academia. No meu caso específico, na área de história da filosofia, em particular sobre a história da corrente filosófica cética. “Ceticismo” é um termo bastante difundido e particularmente em voga no contexto atual. Um dos objetivos deste texto é me valer da minha atuação acadêmica específica para apresentar o sentido filosófico histórico do termo. O ceticismo surgiu na Grécia antiga no período chamado de helenismo, que se estende da morte de Aristóteles no final do século IV ao início do século I a.C. Havia duas escolas do ceticismo antigo, a escola pirrônica — que deve seu nome ao filósofo Pirro de Elis (c. 365-270 a.C.), um dos céticos sobre quem falarei hoje — e a escola acadêmica.
Esta última é assim chamada por originar-se no interior da academia fundada por Platão quando o filósofo Arcesilau se torna seu líder por volta do ano de 273 a.C.[1]
O segundo sentido em que a minha perspectiva é a de um acadêmico é sua afinidade com esta tradição do ceticismo acadêmico. Considerando que a academia de Platão é a origem mais remota da nossa academia, aí está a relação, que considero ser mais do que apenas histórica, entre os dois sentidos de acadêmico que orientam esta conferência (voltarei a este ponto no final), pois estou convencido da pertinência da postura filosófica da academia cética — que não é o silêncio dos intelectuais tal como o vejo — na crise contemporânea da filosofia.
Voltemos ao sentido comum de “ceticismo” e ao tema do ciclo. Quando faço breve enquete com meus alunos sobre o que entendem por “ceticismo”, as respostas mais frequentes são: “descrença”, “desencantamento”, “desilusão”, “dúvida”, “relativismo”, “pessimismo”. Este campo semântico descreve bem parte de uma tendência filosófica contemporânea que exibe, em várias de suas correntes, um questionamento bastante radical de características milenares da tradição filosófica, basicamente a crença no poder da razão em eliminar o erro, descobrir verdades válidas universalmente e, no que concerne às do campo moral e ético, contribuir para que triunfem em toda a humanidade. Como o engajamento do intelectual nas grandes questões políticas, sociais e econômicas de sua época depende de sua adesão às grandes doutrinas filosóficas (como o marxismo, por exemplo), a tendência filosófica contemporânea de descrédito nessas doutrinas é possivelmente uma das causas do retraimento dos intelectuais. O silêncio dos intelectuais seria devido, portanto, a certo ceticismo.
Comecemos então com um rápido diagnóstico dessa tendência filosófica contemporânea cética. (Abro aqui um parêntese para notar que tratarei muito superficial e genericamente desse segmento da filosofia contemporânea que não pertence à minha área de atuação acadêmica.) Ela se faz presente — e influente — nas duas principais tradições filosóficas ocidentais, a chamada filosofia continental (leia-se, Europa continental) e a vertente da filosofia analítica anglo-saxônica. Tanto Foucault e Derrida, como Rorty e Feyerabend, de uma maneira ou outra rejeitam a tradição filosófica, em particular a pretensão a um discurso capaz de atingir verdades universais cujo domínio legitimaria a filosofia e garantiria ao filósofo um lugar privilegiado na sociedade: o lugar da reflexão crítica.
A pretensão a uma verdade universal da filosofia atingiu o seu ápice na modernidade, que teria se caracterizado pelo rompimento com a obscuridade medieval e o progresso das Luzes. Este movimento começa na Renascença com a recuperação pelos humanistas dos tesouros intelectuais da Antiguidade e com a valorização do homem e do seu potencial racional. Desenvolve-se vertiginosamente ao longo do século XVII com o estabelecimento da física e da filosofia clássica que teria facultado ao homem o verdadeiro conhecimento do universo e de si mesmo, emancipando-o da autoridade e da tradição com os seus preconceitos e superstições que atravancavam o seu florescimento. E se consumaria, enfim, no século XVIII, com a celebração das Luzes e o projeto político-social de emancipação intelectual da humanidade, em suma, com a constituição da figura que o século XIX chamará de intelectual.
O termo “pós-modernidade” expressa bem o momento atual de crise em que esta visão característica da modernidade é vista como mera ilusão. Mas tal visão grandiosa da filosofia não surge na modernidade. Ela quase se confunde com a origem da própria filosofia. Platão, o fundador da academia, ilustra esta visão numa famosa alegoria, a alegoria da caverna.[2]
Imaginem a esfera pública, onde habitam os homens comuns, como uma grande caverna escura. A escuridão não é total. É possível vislumbrar sombras projetadas nas paredes dos objetos reais que estão fora da caverna. Os objetos mesmos, porém, não podem ser vistos, porque os homens se encontram acorrentados no interior da caverna. É nesta penumbra que o filósofo se ergue, libera-se da corrente que o prendia e dirige-se à plena luz fora da caverna. Note na alegoria que a visão filosófica se contrapõe à visão do homem comum, como a luz à penumbra, a verdade à mera aparência. Mas a alegoria não termina nesta auto-emancipação pelo filósofo dos grilhões que lhe impediam o acesso à verdade, isto é, as paixões, os preconceitos e a ignorância característicos da vida na caverna. O filosofo tem o dever de retornar à caverna para liberar seus companheiros. O conhecimento privilegiado adquirido pelo filósofo não somente o habilita e legitima mas determina a obrigação de atuar na sociedade. Este modelo, paradigmático da tradição filosófica ocidental, vem sendo objeto de severa crítica e contestação por parte significativa da filosofia contemporânea. Limitar-me-ei muito breve e superficialmente aos casos de Derrida, Rorty e Feyerabend.[3]
2. OS CÉTICOS PÓS-MODERNOS
O filósofo francês Jacques Derrida é um dos principais nomes associados à chamada pós-modernidade na filosofia. Derrida desenvolveu sua filosofia ou método de desconstrução contrapondo-se ao estruturalismo, bastante em voga no pensamento francês dos anos 1960. O estruturalismo buscava identificar estruturas conceituais em textos literários, filosóficos e mesmo em culturas. Um ponto importante em Derrida é a crítica que faz ao que chama do mito da presença de um autor e de um sentido (de uma estrutura, por exemplo) num texto filosófico ou literário.
A pretensão por parte do crítico de ter acesso ao verdadeiro sentido de uma obra literária, ou a de um filósofo a uma verdade sobre algum dos grandes temas da filosofia como a mente e sua apreensão do mundo, são desconstruídas através da exibição de violações pelo crítico ou filósofo dos próprios cânones considerados racionais em suas disciplinas. Questionando as oposições clássicas da tradição filosófica entre sujeito e objeto, mente e corpo, verdade e falsidade, realidade e ilusão, discurso racional e discurso retórico, a filosofia da linguagem de Derrida tende a eliminar a distinção entre sentido metafórico e literal, ficção e realidade, literatura e filosofia.
Um aspecto especialmente relevante para o nosso tema é a crítica que faz Derrida ao privilégio concedido pela filosofia ao discurso falado sobre o escrito. Segunda a tradição filosófica, o discurso escrito teria, para alcançar a realidade, de enfrentar uma barreira de representação muito maior do que o discurso falado. Esta seria a razão por que Sócrates e outros filósofos antigos que seguiram o seu modelo, entre os quais vários céticos, nada escreveram. Derrida inverte a posição socrática. Sócrates se recusava a filosofar através de livros por achar que somente o confronto dos interlocutores face a face permitia o desnudamento do interlocutor, sua abertura ao crivo da razão.
Para Sócrates, a escrita introduz um distanciamento entre o comunicador e o receptor que inviabiliza a prática filosófica tal como ele a entendia. A mediação da escrita afasta o contato direto. Além disso, como esclarecer eventuais ambiguidades das palavras quando emissor e receptor não estão presentes? Podemos dizer que Sócrates é a personificação da “presença” atacada por Derrida. Esta presença de um sujeito, de um sentido unívoco, enfim, da razão em busca da verdade, é justamente o que Derrida busca desconstruir ao privilegiar o escrito sobre o falado. É, pois, uma filosofia do silêncio da fala e de um discurso filosófico racional, em nome da legitimidade de uma pluralidade de discursos polissêmicos que foram banidos da e pela tradição filosófica racionalista.
Inserido na tradição do pragmatismo norte-americano e da filosofia analítica, Richard Rorty tem defendido posições que intérpretes têm apontado como próximas das de Derrida. Rorty encontra inspiração no que ele interpreta como uma crítica fundamental da filosofia analítica norte-americana contemporânea a teses centrais do positivismo lógico. Quine e Davidson teriam liquidado com a crença de que a linguagem teria um aspecto semântico que, uma vez purificado de impurezas da linguagem ordinária, poderia fielmente representar a realidade natural. Que haveria, portanto, fatos, de validade universal, que a ciência poderia descrever objetivamente. O ataque de Rorty não se restringe ao positivismo lógico, mas a toda filosofia cujo fim (no sentido de término) ele anuncia na sua principal obra, A filosofia e o espelho da natureza.
Nesta obra Rorty ataca a ideia, central na filosofia moderna, de que a mente é uma faculdade capaz de conhecer a realidade através de representações. Rorty ataca o chamado dualismo cartesiano da mente e do corpo e vários outros correlatos, como conhecimento e opinião. A concepção da mente como espelho do mundo — central na filosofia centrada na epistemologia — não passa de uma metáfora criada em contextos históricos e filosóficos específicos. Um mito a ser desconstruído como os da “verdade”, “razão” e “mundo”. Com Descartes e outros modernos, a filosofia se arvora do papel de fundamentar o discurso científico, que graças à filosofia adquire o status de verdade metafísica e legitima-se socialmente, contrapondo-se e impondo-se aos demais discursos: religioso, mitológico, do saber tradicional etc. O fim da filosofia é o fim deste seu papel de, por deter a razão, servir de tribunal da cultura.
É sobretudo contra o racionalismo da ciência moderna que se volta Paul Feyerabend. Feyerabend se vale muito da abordagem histórica da filosofia da ciência celebrizada por Thomas Khun. Para Khun, as grandes teorias científicas não possuem validade universal. Elas constituem paradigmas, válidos em seu contexto mas incomensuráveis entre si. Outra influência é Karl Popper.[4]
Para Popper, o que é próprio da ciência não é a validade racional e empírica das teorias científicas. Estas são conjecturas oriundas de determinadas tradições desprovidas do status de verdade. O que é próprio da ciência seria a abertura dessas conjecturas ao exame racional, a possibilidade real de elas serem objeto de refutações. Feyerabend radicaliza e estende a tese dos paradigmas de Khun para discursos não científicos, defendendo um relativismo anti-socrático-platônico.
Mantém a ideia popperiana de conjecturas, mas rejeita a de refutações. A ciência não pode ser diferenciada da não-ciência pelo critério da refutação, em primeiro lugar porque este critério é próprio de um discurso específico e datado, o da própria ciência ocidental, que, portanto, não pode servir para se autolegitimar diante de outras tradições. Segundo porque, radicalizando Khun, as teorias criam elas mesmas os dados que as comprovam.
No seu livro mais famoso, Contra o método, Feyerabend desconstrói o discurso autolegitimador da ciência e da filosofia moderna, argumentando que a nova ciência de Galileu se impôs na cultura não por possuir a verdade ou por usar o método racional adequado para alcançá-la, mas por meio de expedientes condenados pelo próprio discurso filosófico-científico, como o uso da retórica, da propaganda e da manipulação de dados para corroborar teorias. Tudo isso leva Feyerabend — sobretudo no seu livro Adeus à razão — a argumentar que a filosofia e a ciência não podem reivindicar o lugar de tribunal de outras tradições, que devem possuir igual direito de existência em sociedades democráticas. A tradição racionalista da filosofia construiu uma razão abstrata que supostamente é capaz de discorrer sobre verdades universais. Feyerabend busca desmontar esta razão que teria nos afastado — nós ocidentais — de nossa própria humanidade finita, contingente, passional, para a qual é preciso retornar.
Adeus à razão, fim ou desconstrução da filosofia: por meios diferentes, Feyerabend, Rorty e Derrida chegam a um diagnóstico semelhante da crise da filosofia ocidental. As noções filosóficas de verdade, razão etc. são meras “invenções” ou, para citar o Wittgenstein das Investigações filosóficas,[5] construções em um jogo de linguagem contingente.
Para concluir esta seção com Wittgenstein — outra referência central do pós-modernismo filosófico — e trazer a discussão para o tema do nosso ciclo: por que os intelectuais estariam silenciosos? Porque já não se veem falando um discurso de validade universal. Depois da crise das metanarrativas,[6] especificamente, da filosofia tradicional, o intelectual se vê engajado num jogo de linguagem específico cujos interlocutores são outros intelectuais, seus pares, isto é, a academia. Este jogo não tem nenhum privilégio ou ascendência sobre outros jogos de linguagem falados pelos cientistas, pelos religiosos e por membros de outras tribos. No interior mesmo de cada um desses campos teríamos diferentes jogos de linguagem com semelhanças apenas de família entre eles, mas com poucas semelhanças com os jogos dos outros campos.
Ao rejeitarem a tradição filosófica, esses filósofos pós-modernos de fato se valem de uma rica tradição filosófica: o ceticismo. O objetivo principal do que segue não será mostrar eventuais débitos dos céticos pós-modernos com os céticos antigos e modernos.[7] Tratarei agora dos céticos antigos depois dos modernos, apontando algumas afinidades com os pós-modernos, mas sobretudo buscando enfatizar a postura deles sobre o silêncio, a fim de verificar se, do fundo deste silêncio, poderemos extrair uma alternativa ao dilema razão versus desrazão, filosofia versus retórica, enfim, modernidade versus pós-modernidade.
3. OS CÉTICOS ANTIGOS
Das duas escolas céticas antigas, a pirrônica e a acadêmica, tratarei nesta seção da escola cética antiga pirrônica e deixarei a acadêmica para o final A exemplo de Sócrates, Pirro nada escreveu. Nossa principal fonte sobre sua vida e pensamento é Diógenes Laércio, que relata uma série de anedota valendo-se de fontes diversas, com graus variados de credibilidade. Independentemente de sua veracidade, as anedotas são divertidas e, se não genuínas, refletem as percepções da época, tanto as favoráveis como as contrárias ao pirronismo.[8] Diz-se de Pirro que, por duvidar das suas próprias percepções sensíveis, precisava ser constantemente acompanhado por amigos (presumivelmente não céticos) para desviá-lo de precipícios e cães.[9] Esses relatos ressaltam (certamente em muitos casos exagerando ao extremo) tranquilidade e impassividade notáveis em Pirro, que resultariam da sua filosofia cética.[10] Mas qual era precisamente a filosofia cética de Pirro? O fragmento mais informativo que possuímos foi preservado por Eusébio (séculos III e IV d.C.), que citou partes de um livro hoje desaparecido do filósofo aristotélico Aristocles (séculos I e II d.C.), que por sua vez citou uma obra também desaparecida de Timão, discípulo de Pirro.
Nesse fragmento Timão diz que quem quer ser feliz precisa responder a três perguntas: 1a) o que são as coisas por natureza? 2a) que atitude se deve ter em face delas, e 3a) o que resultará para aqueles que adotarem esta atitude? Ainda segundo Timão, Pirro respondeu “que as coisas são igualmente indiferentes, instáveis e indecidíveis, que, por essa razão, nem nossas sensações, nem nossas crenças são ou verdadeiras ou falsas”.[11]
A atitude adequada a esse estado de coisas é então “não confiar” nas sensações e nas crenças, permanecendo “sem opinião, sem inclinação, sem hesitação, dizendo sobre cada uma que não mais é do que não é, ou que tanto é como não é, ou que nem é nem não é”. Enfim, respondendo à terceira pergunta, o resultado desta atitude será, “primeiro, aphasia (literalmente, o silêncio), e então ataraxia (ausência de perturbação)”.
Vemos assim que o silêncio aparece como o resultado inicial de uma atitude filosófica sábia em face da incognoscibilidade das coisas que gera a almejada felicidade. As indagações filosóficas têm por fim último o alcance da felicidade. Mas esta felicidade, entendida como ausência de perturbação, não se dá com o conhecimento da realidade, mas com o reconhecimento de seu caráter incognoscível. Nossas sensações e crenças diferenciam qualidades nas coisas (uma sensação de doçura no mel, por exemplo, uma crença de que ele seja doce) que, segundo Pirro, não correspondem à realidade, tida como indiferenciável. As coisas não podem ser diferenciadas umas das outras, pois não teriam qualidades ou propriedades fixas que permitissem a sua caracterização. Todo o discurso sobre a realidade das coisas seria, portanto, necessariamente inadequado ou insuficiente. Dizer do mel que ele é doce é não mais verdadeiro do que dizê-lo amargo (“não mais é do que não é”), ou que dizê-lo doce e amargo ao mesmo tempo (“tanto é como não é”), ou dizê-lo nem doce nem amargo (“nem é nem não é”).
O único discurso possível minimamente coerente com a realidade indiferenciada das coisas é a asserção simultânea de todos os enunciados possíveis sobre se uma determinada coisa é algo ou seu contrário. Todos estes enunciados são — embora autoexcludentes — igualmente válidos ou inválidos. O enunciado de Pirro é a expressão fonética de um silêncio que expressa a inefabilidade do real, o reconhecimento de que não se pode adequadamente exprimi-lo pela linguagem. Podemos inferir do fragmento que para Pirro a perturbação (a infelicidade) deriva da tentativa, sempre frustrada, de se dizer algo sobre a realidade.
Pirro é sem dúvida um ancestral dos pós-modernos. Mas dois pontos podem ser destacados como distinguindo sua posição, tanto dos céticos contemporâneos como dos seus seguidores na Antiguidade: 1a) Pirro não parece tão cético como estes, uma vez que, apesar do seu silêncio, tem uma resposta positiva não só para a questão do que seja a realidade das coisas, como partilha da crença de que o conhecimento pelo filósofo desta realidade permite a determinação da atitude adequada para se alcançar a felicidade; 2a) ao menos no contexto da questão tratada no fragmento, o silêncio de Pirro não implica a abertura do discurso em outros registros que não pretendam afirmar a natureza do real.
O pirronismo desaparece como escola filosófica depois da morte de Pirro e do seu discípulo contemporâneo Timão, ressurgindo cerca de duzentos anos depois no século I a.C., quando o filósofo Enesidemo restabelece a doutrina. As obras de Enesidemo infelizmente desapareceram, mas permaneceram em sua integridade as obras de um pirrônico do século II d.C., Sexto Empírico.[12] No livro I dos Esboços do pirronismo, Sexto relata como algumas pessoas se tornam céticas ou pirrônicas.[13] Perturbadas pela percepção de alguma anomalia nas coisas, começam a investigá-las a fim de determinar o que é verdadeiro e o que é falso. Essa investigação é a zetesis que dá origem ao nome dos céticos (skepticos).
Temos assim de saída uma filosofia diferente da de Pirro, marcada em seu próprio nome pela investigação. Essa investigação, entretanto, não termina como a dogmática, encontrando a verdade, mas numa situação de equipolência entre as teses, fenômenos ou doutrinas contrapostas. Uma não aparece ao pirrônico como dotada de mais credibilidade do que a outra. Essa situação o impede de afirmar (de dizer) a verdade de uma ou de outra, suspendendo o juízo sobre a questão examinada. Surpreendentemente, ao suspender o juízo (epoché), ao silenciar sobre a verdade ou falsidade daquilo que examina, o pirrônico se liberta daquela perturbação que o levou a investigar.
O silêncio permanece central neste pirronismo antigo mais tardio. A equipolência a que chega a investigação é uma igualdade no grau de plausibilidade de teses ou doutrinas conflitantes que impede o juízo afirmativo ou negativo sobre qualquer uma delas. A investigação impõe assim o silêncio no que concerne à verdade ou falsidade de qualquer questão examinada pelo pirrônico.
Como inferimos em Pirro, a intranquilidade que o pirrônico evita com o seu silêncio resulta de juízos afirmativos ou negativos próprios da atitude pré-argumentativa do homem comum ou da atitude insuficientemente argumentativa do filósofo dogmático que precipita o seu juízo — fala afirmando ou negando alguma coisa — antes de considerá-la suficientemente. O silêncio cético antigo é marcado pela cautela e pela reação contra discursos desprovidos de rigor racional.
Estas semelhanças com Pirro justificam sua escolha por Enesidemo e seguidores como o fundador da escola. Entretanto, nem o ceticismo nem a natureza do silêncio são iguais em Pirro e em Sexto. Enquanto o fragmento que examinamos relativo a Pirro parece indicar que este tinha uma doutrina sobre a realidade das coisas, qual seja, que elas são indiferenciáveis, portanto indizíveis, tal não encontramos em Sexto. Consequentemente, enquanto o silêncio de Pirro deriva da impossibilidade de a linguagem exprimir uma realidade inefável, o de Sexto expressa uma impossibilidade subjetiva de afirmar algo ou seu contrário.[14]
A equipolência não é a de atributos das coisas — por exemplo, do mel como doce e do mel como amargo —, mas de como as coisas aparecem ao cético. Igualmente, o que é contraposto não são qualidades das coisas, mas aparências. Assim, o silêncio não é proposto como a expressão mais adequada da realidade das coisas, mas como o estado mental, o páthos, resultante da investigação.[15]
Além desta diferença na natureza do silêncio, há também o fato de Sexto apontar para formas não dogmáticas de discurso (o que só com o desenvolvimento da tradição pirrônica poderia ocorrer). Em primeiro lugar, há em Sexto a preocupação de compatibilizar o silêncio cético com a própria exposição da doutrina. Este mesmo caráter que chamei de subjetivo do silêncio de Sexto indica a solução do problema.[16] O cético exprime o que lhe aparece (por exemplo, exprime sua incapacidade de afirmar ou negar a verdade do que examina através da expressão “não mais”) sem pretender estar se referindo à realidade das coisas independentemente de como elas lhe aparecem.[17]
O silêncio é, portanto, restrito a um tipo de discurso, que os céticos denominam dogmático, sendo não só permitido mas mesmo legitimado, o discurso sobre o que aparece, sobre o fenômeno. A contrapartida do silêncio de um determinado tipo de discurso, o discurso filosófico dogmático, é a liberação de outras formas discursivas que não possuem a pretensão de dizer o real.[18]
Essa liberação do discurso sobre a rica variedade do fenômeno aparece claramente nos dez modos. Os modos são maneiras ou caminhos pelos quais o pirrônico estabelece a equipolência que leva à suspensão do juízo. Foram sistematizados por diferentes pirrônicos em conjuntos específicos que se coordenam entre si. O conjunto mais conhecido é o dos dez modos, algumas vezes atribuídos a Enesidemo.[19]
Esses modos relatam aparências contrárias das mesmas coisas em diferentes contextos e circunstâncias e argumentam a ilegitimidade de se dizer de uma dessas aparências que se trata da realidade da coisa. Para ficarmos no nosso exemplo do mel, essa mesma coisa aparece doce para um determinado percipiente em determinada circunstância e amarga para outro, ou para o mesmo em uma circunstância diferente (por exemplo, acabou de degustar algo ainda mais doce).
Essas duas aparências sendo equipolentes, não se pode afirmar ou negar que o mel seja doce ou amargo por natureza. Os dez modos organizam tais experiências em função da variação produzida pela circunstância de o percipiente ser um homem ou outro animal (Primeiro Modo), da percepção ser de diferentes homens (Segundo Modo), por diferentes sentidos (Terceiro Modo), em diferentes condições do percepiente (doente ou sadio, acordado ou sonhando etc.) (Quarto Modo) etc. Na conclusão de todos esses modos, Sexto indica sobre o que precisamos silenciar (sobre a natureza real das coisas, por exemplo, do mel), mas também sobre o que é legítimo pronunciar (sobre o fenômeno, por exemplo, que o mel aparece doce em uma determinada circunstância e que ele aparece amargo em outra). A investigação cética busca silenciar o dogmático, mas justamente ao silenciá-lo legitima uma pluralidade de discursos que foram deslegitimados pelo filósofo dogmático, que os reputa como falsos ou como levando à falsidade.[20] Como observa Caujoulle-Zaslawsky, a fórmula negativa que dá voz ao silêncio cognitivo “não mais isto que aquilo” tem uma contrapartida eloquente “isto e aquilo”. O discurso fenomênico é polifônico, mais amplo do que o do dogmático, monofônico, que se restringe seja ao “isto” seja ao “aquilo”.[21]
4. OS CÉTICOS MODERNOS
Após o helenismo, o ceticismo praticamente desaparece do mundo intelectual até a Renascença, quando — junto com outras escolas filosóficas pouco conhecidas no período medieval — é retomado por humanistas e filósofos.[22] Além do interesse humanista,[23] três circunstâncias propiciaram uma grande disseminação do ceticismo na Europa dos séculos XVI e XVII.
Primeiro, o choque cultural sofrido pelo europeu ao deparar-se no “Novo Mundo” com culturas e costumes bastante diferentes dos seus. Crenças consideradas naturais sobre a religião, a moral, a política e os costumes em geral eram totalmente ignoradas nessas sociedades sem prejuízo — ao contrário, frequentemente com vantagem para o seu funcionamento.
Esta questão do relativismo cultural é bastante explorada pelos pirrônicos antigos, que adotavam como um dos modos que levam à suspensão do juízo a variação de costumes, leis e crenças em diferentes comunidades. Segundo, a crise da filosofia aristotélica com o advento da nova ciência, e sobretudo a crise da sua conciliação com o cristianismo. Para citar o exemplo mais conhecido, Pomponazi mostrou que, segundo os princípios de Aristóteles, não se pode provar a imortalidade da alma. Releituras da filosofia de Aristóteles a partir de chaves interpretativas não-tomistas colocaram em xeque a harmonização entre razão e fé estabelecida por Tomás de Aquino e discípulos.
A filosofia que os céticos chamam de dogmática — a de Aristóteles, a de Platão, a dos estoicos e a de Epicuro — passa então a ser vista como fonte de heresias. A razão passa a ser objeto de suspeita e desconfiança pelo cristão. Explica-se assim o interesse por parte dos cristãos numa filosofia caracterizada justamente pela crítica da filosofia e da razão. O terceiro fator a propiciar a retomada do ceticismo foi o advento da Reforma. Segundo Popkin,[24] este seria mesmo o principal fator da influência do ceticismo, sobretudo entre os contrarreformadores que combatiam o racionalismo protestante. Buscavam mostrar que o homem desprovido da assistência da tradição da Igreja católica romana não tem a força intelectual necessária para estabelecer os dogmas e sua correta interpretação. Popkin mostra que esta linha de argumentação frequentemente se valeu dos textos dos céticos — sobretudo dos livros de Sexto Empírico – para mostrar a debilidade do entendimento humano.
O uso do ceticismo contra o racionalismo protestante é chamado hoje de fideísmo, a doutrina de que o conhecimento religioso não é obra da razão, mas da fé. Este ceticismo teológico se articulou em alguns casos com a corrente — existente desde o início do cristianismo — da teologia negativa. Basicamente, a teologia negativa sustenta que, dado o absoluto caráter transcendental de Deus, sua total e radical dessemelhança do homem, não podemos falar de Deus positivamente. Uma anedota relatada por Popkin ilustra essa articulação do ceticismo com o fideísmo. Um teólogo contrarreformador, o cardeal Du Perron, foi convidado para jantar por Henrique III, quando apresentou um discurso admirável contra o ateísmo. “Quando o rei manifestou o seu prazer em relação a esse discurso, elogiando Du Perron, este respondeu: ‘Senhor, hoje demonstrei por razões fortes e evidentes que Deus existe. Amanhã, se Vossa Majestade quiser, poderei mostrar e provar que Deus não existe’. O rei, que aparentemente não era um cristão fideísta, ficou aborrecido e expulsou o seu convidado.”[25]
O principal filósofo renascentista a retomar, desenvolver e repercutir fortemente o ceticismo antigo foi Michel de Montaigne. No mais longo dos seus ensaios, a Apologia de Raymond Sebond, Montaigne articula três pontos: a) uma ampla crítica à metafísica tradicional, b) uma crítica ao racionalismo da Reforma, e c) uma defesa do ceticismo e de um catolicismo fideísta com traços da teologia negativa. Montaigne aponta a existência de um fosso intransponível entre a debilidade da razão humana e a grandeza da divindade. “Não podemos conceber condignamente a grandeza dessas alturas e divinas promessas se pudermos concebê-las de alguma forma: para imaginá-las condignamente é preciso imaginá-las inimagináveis, indizíveis e incompreensíveis e totalmente diferentes das de nossa miserável experiência.”[26] O silêncio do cético não se restringe, entretanto, à divindade, pois como “a verdade está em Deus”, a inabilidade da razão para conhecer Deus implica sua inabilidade para a verdade. Não só o conhecimento teológico, mas o conhecimento tout court, é excluído do alcance humano.[27] Montaigne desbanca a razão do lugar em que a tradição filosófica a colocara.
Em Aristóteles, o homem atinge o seu fim natural com o conhecimento da verdade através da sua faculdade mais nobre, a razão. Montaigne argumenta que a razão não é uma faculdade distintiva da espécie humana, pois não há como, sem arrogância e arbitrariedade, atribuir a atividade humana à razão e a animal ao instinto. No que a razão produz um diferencial, este é sempre para o pior, para o extravio e a infelicidade.[28] Todos os esforços dos filósofos para encontrar a verdade sobre as grandes questões metafísicas foram em vão.
Desconhecemos a natureza da própria alma (se é material ou imaterial, perecível ou imperecível) e, se pretendemos conhecer com ela, como podemos saber se conhecemos verdadeiramente se desconhecemos sua natureza? Os princípios supostamente auto-evidentes para a razão não passam de amarras impostas arbitrária e autoritariamente ao pensamento. A moral é objeto de infindável e indecidível controvérsia entre filósofos e homens comuns e o nosso conhecimento da natureza é inteiramente limitado e precário.[29]
Em vez de confiável instrumento para se alcançar a verdade, a razão “é um corpo vazio”, “um instrumento de chumbo e de cera, alongável, dobrável e adaptável a todas as perspectivas e a todas as medidas”.[30] Nós mesmos e nossa razão, como o mundo inteiro exceto Deus, estamos em constante mutação. Tudo que a razão vier a estabelecer será sempre a partir de uma determinada situação, sempre contingente e precária. Nos Ensaios, Montaigne mostra isso nele mesmo. Conta que, quando tomado por uma paixão juvenil, “a imagem das coisas começava a parecer-me diferente da habitual… mas tendo se extinguido aquele fogo, em um só instante, como à luz de um relâmpago, minha alma [retomou] um outro tipo de visão, um outro estado e um outro julgamento. […] Qual mais verdadeiramente, Pirro não sabe”.[31]
O homem impõe a sua forma a tudo que toca, de maneira que não temos o que dizer sobre a realidade em si das coisas. Tudo o que percebemos, percebemos em um estado ou outro, e continuamente mudamos de um para outro. Montaigne diz que isso ocorre no seu próprio texto, os Ensaios, nos quais em vão se buscaria um sentido único, uma consistência.[32] A anedota do cardeal Du Perron mostra justamente essa maleabilidade da razão, igualmente capaz de provar teses contrárias e, consequentemente, como fica evidenciado na reação do rei, a deslegitimização do discurso filosófico.
Entretanto, como indicado no caso de Sexto Empírico, o silêncio do discurso filosófico se acopla à legitimação de outros discursos. Montaigne silencia o filósofo, mas dá voz ao discurso do homem comum, do canibal, e até aos discursos de outras espécies animais. Talvez tenham razão os intérpretes de Montaigne que interpretam o seu ceticismo como precursor do ceticismo pós-moderno.[33] Com efeito, encontramos em Montaigne o reenvio da razão à ordem da contingência e da mera aparência, uma desconstrução das grandes entidades filosóficas, a autodesconstrução do próprio texto, enfim, a negação consciente da própria presença do autor como centro de unidade e coerência no texto.[34]
Os principais discípulos de Montaigne no século XVII que deram continuidade à tradição cética são os chamados “libertinos eruditos”. O adjetivo “erudito” indica o tipo de libertinagem exercida por esses pensadores: não uma libertinagem moral e de costumes — que será própria do século XVIII —, mas uma libertinagem de natureza intelectual. “Libertinagem” porque esses pensadores se recusavam a pensar e a crer presos num quadro doutrinário que de alguma forma limitasse a liberdade do pensamento. Recorriam em particular a obras e reflexões filosóficas pagãs, não-aristotélicas, como o epicurismo e o próprio ceticismo, que eram vistas com desconfiança pela ortodoxia religiosa.[35] Esses pensadores se valem da noção montaigniana de “espírito forte”.
O espírito forte é aquele capaz de agir conforme as regras e convenções sociais sem que o seu pensamento esteja restrito a um determinado paradigma intelectual e sem que adote as crenças normalmente necessárias para regrar a conduta, tipicamente no período, crenças religiosas como a da imortalidade da alma e a da justiça eterna. Esses filósofos desenvolvem um ceticismo extremo a propósito de tais noções e crenças, isto é, um ceticismo que envolve a metafísica tradicional e a religião popular, mas que precisa ser silenciado no espaço público em função do risco que a disseminação de tais posições céticas entre espíritos fracos implicaria para a ordem social. Os libertinos agem e falam como os homens comuns e impõem-se a si mesmos um silêncio sobre o que de fato pensam, dado o caráter potencialmente explosivo de um pensamento cético sobre os fundamentos da política, da religião e da sociedade.
O último cético de quem tratarei é Pierre Bayle. Situado no fim do século XVII e início do XVIII, Bayle é uma figura de transição entre esses dois momentos históricos. Por um lado é influenciado por Montaigne e seus discípulos libertinos do século XVII e, por outro, é visto frequentemente como um dos primeiros dos philosophes, precursor de Voltaire e Diderot, denunciando a superstição cristã e os grandes sistemas filosóficos da tradição que teriam servido de base para a opressão religiosa. Bayle foi vítima da perseguição religiosa na França contra os calvinistas, tendo se refugiado na Holanda, onde também foi perseguido, desta feita pelo partido ortodoxo da comunidade huguenote no exílio, que o considerava ateu. É fundamentalmente esta a visão que os philosophes têm de Bayle, que aparece assim como o arauto da visão moderna do filósofo e do intelectual — aquele que denuncia para a sociedade, em nome da verdade e da razão, o obscurantismo de crenças e políticas opressivas.[36] Se o pirronismo atribuído a Bayle na época de Diderot era fortemente associado a perspectivas racionalistas heterodoxas do cristianismo, e mesmo ao puro ateísmo,[37] hoje, quando vivemos a pós-modernidade, este pirronismo em Bayle é frequentemente visto como um ataque destrutivo à razão mais do que um ataque da (ou pela) razão.
Popkin argumenta que Bayle é o mais radical de todos os céticos por ter sido o primeiro a rejeitar o princípio da não-contradição. Esta rejeição significa um ataque à razão ausente do pirronismo antigo, um “superceticismo”.[38] Brahami radicaliza o superceticismo bayliano em face do antigo, afirmando que há em Bayle uma deliberada destruição da razão que resulta na rejeição do próprio ceticismo como posição filosófica sustentável, uma vez que a razão não é sequer capaz de produzir a equipolência de representações contrárias e, por conseguinte, a suspensão do juízo. Segundo Brahami, “não possuindo a iniciativa do discurso, a razão é submissa ao desejo, às inclinações, às paixões e aos interesses”.[39] De acordo com esta interpretação, a razão em Bayle certamente não seria silenciosa, mas estaria totalmente subjugada ao não-racional.
Este Bayle cético, extremo de Popkin e, sobretudo, de Brahami, parece ainda mais com o cético pós-moderno do que Montaigne, pois teria por projeto filosófico desmontar o discurso autolegitimador que a razão filosófica ocidental teria buscado construir. Mas vejo Bayle de maneira diferente. Não como pirrônico, cujo interesse — segundo uma interpretação recorrente entre os estudiosos contemporâneos — é mais terapêutico do que racional, mas como acadêmico. Não como destruidor da razão, mas como seu fortificador. Não como pós-moderno, mas como moderno. Em alguns aspectos fundamentais, está mais próximo de um Descartes (mas de um Descartes cético e acadêmico como alguns poucos o viram no final do século XVII) do que de um Montaigne (mas de um Montaigne pós-moderno como muitos o veem hoje). Duas grandes obras realizadas por Bayle corroboram esta minha interpretação.
A primeira é o Dicionário histórico e crítico, cujo objetivo é a correção da historiografia da época, excessivamente comprometida com as diversas seitas e portanto destituída de objetividade. O Dicionário é uma obra monumental em que — como bem viu Diderot — Bayle argumenta de forma brilhante contra os grandes sistemas filosóficos, mostrando sempre suas insuficiências e contradições. Bayle denuncia não só a falta de integridade intelectual dos filósofos, mas, sobretudo, a dos teólogos e apologistas que sacrificam a busca da verdade pelo compromisso prévio que têm com seitas filosóficas e religiosas, partidos políticos, Estados etc.
Assim, é verdade que a razão em Bayle não estabelece verdades. Mas o fato de ela sempre ter de operar em relação a algo que lhe é externo determina dois tipos de operação. Num primeiro, a razão busca conferir plausibilidade a uma posição prévia que não foi racionalmente adotada. Bayle chama os filósofos que operam desse jeito de advogados e os associa aos filósofos dogmáticos. O outro uso possível da razão é o inverso, no sentido de criticar a coerência da doutrina previamente adotada, justamente denunciando o seu caráter não-racional. Os filósofos que operam dessa maneira crítica são chamados por Bayle de relatores, que ele associa aos céticos acadêmicos.[40]
Embora o uso justificativo da razão seja o comum (há muito mais advogados do que relatores), o projeto de Bayle no Dicionário histórico e crítico é justamente denunciar este uso, mostrando os preconceitos dos filósofos, historiadores, teólogos e homens comuns.[41] Bayle segue neste ponto o Descartes da dúvida metódica: os preconceitos são arraigados e é muito difícil — mas não impossível, pelo menos como ideal regulativo — livrar-se deles, mas esta é justamente a tarefa da filosofia.[42] Este uso crítico da razão não é nem originariamente cartesiano nem pirrônico, mas proveniente da escola cética antiga, a nova academia. O compromisso fundamental de Bayle é com a integridade intelectual. Há o compromisso supremo com a verdade, mas em decorrência da dificuldade em obtê-la, dada a força das prevenções, da educação etc., evitar o erro torna-se o compromisso supremo: daí a argumentação dialética que leva à suspensão do juízo. O uso dialético da razão visa preservar a integridade intelectual, que, como o próprio nome indica, é o contrário da desintegração ou desconstrução da razão proposta pelos pós-modernos.
A outra obra de Bayle que aponta na direção desta minha interpretação é a Nouvelles de la Republique des Lettres, periódico pioneiro no gênero escrito e editado por Bayle no qual, da forma mais isenta possível, fazia resenhas das obras publicadas nas diversas áreas intelectuais (filosofia, ciência, religião, literatura). Bayle vislumbrou uma república de homens de letras (intelectuais avant la lettre como diz H. Bost),[43] cujo direito à cidadania dependia exclusivamente do interesse pelas ideias, por seu exame e circulação, independentemente da cidadania política e das convicções em matéria de religião e filosofia. Estas convicções, quando presentes, deveriam ser mantidas sob rigoroso controle para que o debate se mantivesse o máximo possível no terreno das ideias. Este modelo é o da academia — a fundada por Platão, que se tornou cética, na qual, segundo algumas fontes, a própria doutrina platônica não era professada para que o discípulo fosse guiado pela razão e não pela autoridade,[44] mas é também o modelo da nossa academia, formada pela universidade e demais instituições de caráter público como revistas científicas e sociedades acadêmicas. A afinidade filosófica de Bayle com a filosofia contemporânea não é, assim, com os céticos pós-modernos, mas com Karl Popper. Para Popper a verdade está oculta e, portanto, o que distingue o discurso científico dos outros não é o fato de este possuir a verdade, mas o fato de se encontrar aberto ao exame racional, à refutação. Como os pós-modernos, Popper nega que seja possível fundamentar o conhecimento, seja por um eventual acesso intuitivo da razão a verdades incontestáveis (contra o racionalismo), seja por um acesso a igualmente incontestáveis fatos empíricos ou dados sensíveis (contra o empirismo). A verdade não é evidente nem aos sentidos nem à razão. A obscuridade da verdade não significa, entretanto, o enfraquecimento da razão. Ao contrário, a racionalidade fica assim liberada, descomprometida, para examinar da forma mais objetiva possível as diversas tradições, crenças e teorias adotadas pelos homens. Assim, se o ceticismo dos pós-modernos pode ser aproximado do pirrônico, o de Bayle e Popper é marcadamente acadêmico.[45]
Para encerrar gostaria de retornar à caverna de Platão. Segundo um estudioso do ceticismo acadêmico, os acadêmicos diferiam de Platão por considerarem a caverna em que nos encontramos mais escura — e a luz do exterior mais transcendente — do que pensava Platão.[46] Neste modelo mais pessimista da alegoria da caverna, o intelectual não sairá para ver a luz para depois retornar e guiar os homens. Ficará na caverna mesmo, junto às demais pessoas, sem pretender o privilégio de ter a verdade. Mas terá um papel que reputo crucial. O papel de Sócrates. O de lembrar aos homens a escuridão em que todos se encontram e, por isso mesmo, a necessidade de jamais abandonar o uso crítico da razão.
Notas
[1] Por isso esta escola cética é também conhecida como “nova academia”, para diferenciá-la da velha academia de Platão. Ver Marco Túlio Cícero, Cuestiones Académicas, trad. Julio Pimental Alvarez, México, Universidad Nacional Autónoma de México,1980, I.43, em que Cícero nega que haja uma distinção fundamental entre a academia de Platão e a chamada nova academia do helenismo.
[2] Platão, República, trad. Pietro Nassetti, São Paulo, Martin Claret, 2002.
[3] De Derrida, ver L’Ecriture et la différence, Paris: Editions du Seuil, 1967, e Gramatologia, trad. Miriam Schnaiderman e Renato Janine Ribeiro, São Paulo, Perspectiva, 1973; de Rorty, A filosofia e o espelho da natureza, trad. Antônio Trânsito, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1994, e Objetivismo, relativismo e verdade, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1997; de Feyerabend, Contra o método, trad. Octanny S. da Mota e Leônidas Hegenberd, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1977, e Adeus à razão, trad. Maria Georgina Segurado, Lisboa, Edições 70, 1991
[4] Feyerabend foi um dos maiores críticos de Popper, mas, tendo sido inicialmente seu discípulo, foi bastante influenciado por algumas das posições popperianas fundamentais. Ver, de Popper, Conjecturas e refutações, trad. Sérgio Bath, Brasília, Editora da UnB, 1972.
[5] Ludwig Wittgenstein, Investigações filosóficas, trad. José Carlos Bruni, Coleção Os Pensadores, São Paulo, Editora Abril
[6] Jean-François Lyotard, A condição pós-moderna, Rio de Janeiro, José Olympio, 2000.
[7] Alguns deles francamente o admitem (como Feyerabend). Sobre as afinidades de Foucault e Derrida com os pirrônicos antigos, ver David Hilley, Philosophy in question. Essays on a Pyrrhonian theme, Chicago, Chicago University Press, 1988. Hilley observa que esses filósofos contemporâneos, assim como os pirrônicos antigos, estariam imbuídos de motivos terapêuticos: apontar as deficiências dos grandes sistemas filosóficos e reconduzir o filósofo às tradições da vida ordinária.
[8] Esta questão está sendo objeto de dissertação de mestrado de Gabriela Guimarães Gazzineli, sob minha orientação.
[9] Diógenes Laércio, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, trad. Mário da Gama Kury, Brasília, Editora da UnB, 1987, XI.62.
[10] “Quando em certa ocasião Anaxarcos caiu num pântano, Pirro continuou a caminhar sem ajudar” (DL XI.63). “Conta-se ainda que quando lhe foram aplicados medicamentos cáusticos ou teve de sofrer incisões ou cauterizações por causa de algum ferimento, não contraiu sequer a sobrancelha” (DL XI.67).
[11] Cito com pequenas modificações a tradução do fragmento feita pelo professor Roberto Bolzani, da USP. O texto original em uma tradução para o inglês está publicado na antologia editada e traduzida por A. A. Long e D. N. Sedley, The Hellenistic philosophers, 2 vols., Cambridge, Cambridge University Press, 1987.
[12] Ver Sexto Empírico, Outlines of Pyrrhonism and adversus mathematicos, 4 vols., traduzido do grego para o inglês por R. G. Bury, Loeb Classical Library, Harvard, Mass.: Harvard University Press, 1933. O livro I dos Esboços do pirronismo foi traduzido para o espanhol por J. P. Pomerada e publicado nos Cuadernos de Filosofia y Letras de Bogotá, vol. 10 (1989), pp. 5-48. Os primeiros capítulos deste livro foram traduzidos para o português por Danilo Marcondes de Souza Filho e publicados na revista O que nos faz pensar. Cadernos do Departamento de Filosofia da PUC-Rio 12 (1997), pp. 117-22. Até o trabalho recente de Richard Bett (ver seu comentário à tradução que fez do livro de Sexto Contra os éticos, publicado em 2000 pela Oxford University Press), o ceticismo de Sexto era considerado basicamente semelhante ao de Enesidemo.
[13] O termo cético surge com o pirronismo, sendo equivalente a pirrônico. Ver Sexto Empírico, PH I.7.
[14] Comentando o sentido em que emprega a expressão “não mais”, tradicional dos pirrônicos como vimos no fragmento de Timão sobre Pirro, Sexto diz que, ao pronunciá-la, o cético não está tentando descrever a realidade das coisas (por exemplo, que o mel é não mais doce do que amargo), mas “manifestar nosso páthos (sentimento): por causa da equipolência dos objetos contrapostos terminamos em equilíbrio. (Por “equipolência” entendemos igualdade no que aparece plausível para nós, por “contraposto” significamos, em geral, em conflito, e por “equilíbrio” significamos não assentimento a qualquer das alternativas)” (PH I.190).
[15] Pirro parece ser o alvo do comentário de Sexto sobre uma das expressões céticas, justamente a aphasia (literalmente, “silêncio”, comumente traduzida como “não-asserção”): “Não usamos a não-asserção no sentido de querer dizer que as coisas são em sua natureza tais que nos levam necessariamente à não asserção, mas para manifestar que agora, quando a pronunciamos, experimentamos este páthos (sentimento) a propósito destas questões em investigação” (PH I.193). Sobre a diferença entre o ceticismo de Pirro e o de Sexto, que implica diferentes sentidos da fórmula “não mais” num e noutro, ver Richard Bett, Pyrrho, his antecedents and legacy, Oxford, Oxford University Press, 2000.
[16] Por “subjetivo” aqui não se deve entender a subjetividade moderna, de origem cartesiana, que exclui o corpóreo.
[17] “Ao enunciar estas frases os céticos dizem o que é aparente para eles e relatam seus sentimentos (páthos) sem adotar crenças, nada afirmando sobre objetos externos” (PH I.14).
[18] Este tema é tratado em perspectivas diferentes, mas ambas interessantes e esclarecedoras, por Oswaldo Porchat Pereira, “Sobre o que aparece”, Revista Latino-americana de Filosofia 17, 1991, e incluído no livro Vida comum e ceticismo, São Paulo, Brasiliense, 1993, pp. 166-212, e Danilo Marcondes, “Autenticidade do discurso cético: o problema da autorrefutação do ceticismo”, O que nos faz penar, 8, 1994, pp. 131- 44.
[19] Ver PH I.36-163. Estes mesmos modos são citados em uma numeração parcialmente diferente por Diógenes Laércio em Vidas XI.78-88. Sobre os dez modos, ver Julia Annas e Jonathan Barnes, The Modes of Scepticism, Cambridge, Cambridge University Press, 1985.
[20] Cito alguns exemplos. Concluindo o Primeiro Modo: “Se os animais irracionais não são mais convincentes do que nós quando se trata de julgar as aparências, e se diferentes aparências são produzidas dependendo das variações entre animais, então poderei ser capaz de dizer como cada objeto existente aparece para mim, mas por estas razões deve ser forçado a suspender o juízo a respeito de como é por natureza” (PH I.78). Concluindo o Quarto Modo: “Já que há tantas anomalias dependendo das condições, e já que em momentos diferentes as pessoas encontram-se em diferentes condições, é sem dúvida fácil dizer o que cada objeto existente parece ser para cada pessoa mas não dizer o que ele é, dado que as anomalias são indecidíveis” (PH I.113). Concluindo o Quinto Modo, que mostra a variação da aparência dos objetos em função da posição e do lugar nos quais é percebido, Sexto diz “que somos sem dúvida capazes de dizer o que cada coisa parece ser nesta posição ou desta distância ou neste lugar, mas não podemos afirmar, pelas razões expostas, o que ele é em sua natureza” (PH I.123). Concluindo o Décimo Modo, que trata da variação das leis, costumes, crenças míticas e dogmáticas: “Deste modo, já que tanta anomalia foi mostrada nas coisas também por este modo, não devemos ser capazes de dizer o que cada coisa é em sua natureza, mas somente como aparece relativamente a uma dada persuasão ou lei ou costume etc.” (PH I.163).
[21] Françoise Caujolle-Zaslawsky, “La méthode des sceptiques grecs”, Revue Philosophique de la France et de l’Etranger 172 (1982), p. 376.
[22] Questões epistemológicas céticas foram examinadas na filosofia medieval. Entretanto, o pirronismo enquanto escola filosófica permaneceu praticamente desconhecido, e o conhecimento do ceticismo acadêmico era quase que restrito ao Contra os acadêmicos de Santo Agostinho. Sobre a retomada do ceticismo na Renascença, ver Richard H. Popkin, História do ceticismo de Erasmo a Spinoza, trad. Danilo Marcondes de Souza Filho, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 2000, cap. 2, pp. 49-87; Charles B. Schmitt, Cicero Scepticus. A study of the influence of the Academica in the Renaissance, Haia, Martinus Nijhoff, 1972; e Luciano Floridi, The transmission and recovery of Pyrrhonism, Oxford, Oxford University Press, 2002.
[23] Os livros de Sexto Empírico constituem um manancial precioso de informações sobre doutrinas e escolas filosóficas cujas principais obras desapareceram.
[24] Ver Popkin, op. cit., cap. 1, pp. 49-87.
[25] Popkin, op. cit., p. 143. Popkin cita um diário de Henrique III publicado em 1888 por Pierre d’Estoile.
[26] Michel de Montaigne, Ensaios, 3 vols., trad. Rosemary Costhek Abílio, São Paulo, Martins Fontes, 2000, vol. II, cap. XII, p. 278.
[27] Frédéric Brahami destaca este ponto mostrando que o ceticismo aí resultante é bem mais radical que o antigo. Ver seu livro Le scepticisme de Montaigne, Paris, PUF, 1997.
[28] Segundo Montaigne, a razão é causa de inconstância, irresolução, incerteza, dor, superstição, ambição, avareza, ciúme, inveja e apetites desregrados, entre outros males. Ver Montaigne, op. cit., pp. 229-30
[29] Montaigne argumenta que não temos certeza alguma sobre o mundo natural, pois não se acreditou por milhares de anos — na confiança dos sentidos enganosos — que a Terra estava parada e que o Sol girava ao seu redor? Pois quem garante se esta nova teoria de Copérnico também não cairá por terra no futuro? Ver Montaigne, op. cit., p. 356
[30] Montaigne, op. cit., p. 349.
[31] Ibidem, pp. 354-5.
[32] Ibidem, p. 350.
[33] Esta é a tendência das interpretações de Frédéric Brahami e de Sylvia Giocanti em Penser l’irrésolution. Montaigne, Pascal, La Mothe Le Vayer. Trois itinéraires sceptiques, Paris, Honoré Champion, 2000, com as quais não concordo plenamente, mas cuja crítica não cabe aqui.
[34] Na História da loucura, Foucault aponta a exclusão da loucura da dúvida de Descartes como sintomática de sua exclusão arbitrária da modernidade. Num belo ensaio sobre este livro de Foucault e o cogito cartesiano, Derrida concorda com Foucault que tal exclusão não seria jamais feita por Montaigne, que é assim associado ao pós-modernismo: “Remarquons avec Foucault que ce décret d’exclusion qui annonce le décret politique du grand renfermement, ou lui répond, ou le traduit, ou l’accompagne, qui en est en tous cas solidaire, ce décret eût été impossible pour un Montaigne, par exemple, dont on sait combien il était hanté par la possibilité d’être ou de devenir fou, dans l’acte même de sa pensée et de part em part”. Derrida, L’Ecriture et la différence, p. 74.
[35] A obra clássica sobre este movimento intelectual é a de René Pintard, Le libertinage érudit dans la prémiere moitié du XVIIe. siècle, Paris, Boivin, 1943. A principal obra em português sobre o tema é a organizada por Adauto Novaes, Libertinos libertários, São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
[36] Os iluministas viram Bayle como um cético, mas o ceticismo para eles já não tinha as associações religiosas da Renascença — e que perduram ainda no século XVII. O “Sceptique ou Pyrrhonien” da Enciclopédia, redigido por Diderot, detalha a vida e a obra de Bayle mais do que a de qualquer outro cético, antigo ou moderno.
[37] Bayle foi possivelmente o primeiro filósofo a defender a virtude do ateu e a viabilidade de uma sociedade de ateus. Ver o seu livro Pensées diverses sur la comète, 2 vols., Paris, Nizet, 1984. A interpretação de um Bayle ateu foi recentemente renovada por Gianluca Mori e tem sido bastante influente entre os estudiosos de Bayle. Ver Gianluca Mori, Bayle philosophe, Paris, Honoré Champion, 1999.
[38] Richard H. Popkin, The history of Scepticism from Savonarola to Bayle, Oxford, Oxford University Press, 2002.
[39] Frédéric Brahami, Le travail du scepticisme: Montaigne, Bayle, Hume, Paris, PUF, 2000, p. 117.
[40] A distinção é introduzida na “Dissertação sobre o projeto de um Dicionário” e na nota G do artigo “Crisipo” do Dicionário Histórico e Crítico. Para mais detalhes ver Maia Neto, “O ceticismo de Bayle”, Kriterion 93 (1996), pp. 77-88.
[41] John Christian Laursen observa que esta minha interpretação precisa ser qualificada, pois há determinadas correntes religiosas, como o milenarismo, contra as quais Bayle milita como um advogado. Ver “L’anti-millénarisme de Bayle: la menace de ceux qui prétendent connaître l’avenir”, em Antony McKenna e Gianni Paganini (orgs.), Pierre Bayle dans la république des lettres. Philosophie, religion, critique, Paris, Honoré Champion, 2004, 198, n. 2. Talvez esta atitude seja necessária para estabelecer equipolência em relação a uma doutrina fortemente dogmática.
[42] Elisabeth Labrousse atribui a Bayle o método cartesiano “reduzido à primeira regra, cortada dos seus prolongamentos metafísicos”. Ver Pierre Bayle, hétérodoxie et rigorisme, Haia, Martinus Nijhoff, 1964, p. 57.
[43] Hubert Bost, Un intellectuel avant la lettre: le journaliste Pierre Bayle. L’actualité religieuse dans les Nouvelles de la République des Lettres (1684-1687), Amsterdã, APA, 1994.
[44] Luculus indaga “quais são estes sagrados segredos de vocês [acadêmicos], ou ‘porque sua escola esconde sua doutrina como algo vergonhoso!’ ‘A fim de que’, responde, ‘nossos ouvintes sejam guiados pela razão e não pela autoridade’”, em Cícero, Academica, II.60.
[45] Para outras afinidades entre Bayle e Popper, ver Thomas Lennon, “Bayle’s anticipation of Popper”, Journal of the History of Ideas 58 (1997), pp. 695-705.
[46] Carlos Levy, Les philosophies hellénistiques, Paris, Librairie Générale Française, 1977, pp. 186-8.