2009

O transumanismo e a obsolência do homem

por Jean-Pierre Dupuy

Resumo

Através das vanguardas tecnológicas, a missão transumanista é superar a evolução biológica, motivo pelo qual a espécie humana dará lugar a uma era pós-humana, na qual as máquinas cibernéticas inteligentes e conscientes dominarão o mundo.

Essa utopia seria o fim do humanismo ou sua apoteose? O próprio fato de poder perguntar isso já prova o quanto as categorias clássicas do pensamento estão hoje superadas. Se Deus fez o homem à sua imagem, e o fez livre, e, portanto, livre para desobedecê-lo, não seria dever do homem transcender a si mesmo através de seres autônomos? Não seria o auge do humanismo pôr fim ao humano?

Essas questões poderiam parecer dignas de ficção científica, mas ganham considerável atualidade com os avanços extremamente rápidos da técnica. Considere-se, para além da vida artificial, a convergência das nanotecnologias, das biotecnologias, das técnicas da informação e das ciências cognitivas, que suscita loucas promessas.

A proposta é situar os debates atuais na perspectiva histórica das ciências do homem no curso da segunda metade de século XX e suas relações com o conceito de máquina cibernética. Sabe-se que Heidegger tomou-a como o fim do humanismo metafísico, que confia ao homem a missão de tornar-se “senhor e possuidor da natureza” (segundo Descartes).

O paradoxo é que os discípulos estruturalistas e em seguida pós-estruturalistas de Heidegger serviram-se da metáfora da máquina cibernética para desconstruir esse mesmo humanismo metafísico. Não por acaso, para Lacan, “o simbólico é o mundo da máquina”.

Foi a cibernética o auge do humanismo metafísico ou, ao contrário, o auge da sua desconstrução? Ambas as suposições estão certas, e é isso que faz dela uma virada crítica na história das representações humanas do homem.

O objetivo propriamente metafísico das tecnologias atuais consiste em gerar o novo demiurgo, ou, mais modestamente, o “engenheiro dos processos evolutivos”. A evolução, que procede por bricolagem, muitas vezes concluiu seu trabalho – mas será que ela deveria se sentir especialmente orgulhosa de sua última criação? De todo modo, ao que tudo indica, caberá ao homem dar o próximo passo, o que, ao mesmo tempo em que o torna deus fabricante do mundo, condena-o à superação. O orgulho e a desmesura de certo humanismo científico conduzem diretamente à obsolescência do homem. É nessa ampla perspectiva que é preciso sempre repor as assim chamadas questões éticas acerca da engenharia do homem por ele mesmo.


I. Por que é preciso levar a sério a utopia transumanista

Celebramos em 2008 o 50º aniversário de uma das obras de filosofia mais importantes do século XX: A condição humana, de Hannah Arendt, publicada em 1958 em Chicago. Antiga aluna de Heidegger, judia alemã cuja carreira teve os momentos mais importantes nos Estados Unidos, Arendt apresentou nesse livro uma reflexão sobre a condição humana inspirada no pensamento grego, uma reflexão ímpar. Ela, premonitoriamente, antecipava que essa nossa condição, que não construímos, mas que recebemos sem ter nada a ver com isso, seria profundamente colocada em questão pelo progresso das ciências e das técnicas. Ela profetizava:

O mundo – artifício humano – separa a existência do homem de todo ambiente meramente animal; mas, a vida, em si, permanece fora desse mundo artificial, e através da vida o homem permanece ligado a todo.todos os outros organismos, vivos. Recentemente a ciência vem se esforçando por tornar “artificial” a própria vida, por cortar o último laço que faz do próprio homem um filho da natureza. […] Esse homem futuro, que, segundo os cientistas, será produzido em menos de um século, parece motivado por uma rebelião contra a existência humana tal como nos foi dada – um dom gratuito vindo do nada (secularmente falando), que ele deseja trocar, por assim dizer, por algo produzido por ele mesmo.[1]

Passaram-se apenas cinquenta anos desde essa profecia, e a revolta contra o dado da condição humana já se encontra em vias de realização. O movimento intelectual e cultural que se denomina transumanismo tem a clara missão de melhorar fundamentalmente a condição humana pelo uso da razão, sobretudo desenvolvendo e tornando acessíveis a todos as técnicas que permitirão eliminar o envelhecimento e aumentar consideravelmente as capacidades intelectuais, físicas e psicológicas do homem. O objetivo anunciado é o de ultrapassar os limites que constituem hoje a condição humana, entre eles o sofrimento, o envelhecimento e a morte, a inteligência limitada dos seres humanos e de suas máquinas, o fato de que não escolhemos nossa psicologia e nossos afetos, assim como nosso confinamento nos limites do planeta Terra.

Em suma, a palavra transumanismo pertence à língua inglesa, cuja origem está na palavra francesa dessein, que significa o objetivo ou a finalidade de algo fabricado – trata-se de redesenhar a condição humana, ou seja, concebê-la ou fabricá-la, como se faz com uma máquina ou com um artefato.

Transumanismo significa humano em transição, em direção a um estado chamado pós-humano, no qual a espécie humana terá dado lugar a uma outra espécie que ela mesma fará nascer. Os pós-humanos serão, sem dúvida, mais parecidos com máquinas do que com humanos. Não somente estarão desprovidos de todos os males que fazem nossa vida na Terra se parecer com o viver num vale de lágrimas, como também serão capazes de se refabricar à vontade, a cada momento podendo escolher, em função de seus desejos, seu corpo, sua psicologia e suas emoções.

Segundo os números oficiais da associação que os agrupa – a World Transhumanist Association -, existem alguns milhares de transumanistas pelo mundo, espalhados em mais de cem países. Filósofos sérios que se dedicam a pensar sobre o futuro da espécie – Jürgen Habermas na Alemanha[2] e Dominique Lecourt na França[3] – olham para o transumanismo com desdém. Não seria conveniente levar a sério esses tecnoprofetas, mesmo que seus sermões tragam de volta o catastrofismo dos tecnofóbicos. Lecourt reconhece neles, entretanto, uma filiação: eles descendem diretamente da teologia cristã que via na técnica um instrumento de redenção e de salvação.

A meu ver, aqui há um erro sério de análise e de apreciação devido a pelo menos três razões fundamentais.

1. O transumanismo e o poder da técnica

A primeira razão é que alguns desses transumanistas ocupam posições de poder e de influência no que diz respeito a grandes escolhas científicas e técnicas. O chefe intelectual do movimento, que redigiu seu manifesto, é o filósofo de origem sueca Nick Bostrom, que ocupa uma cadeira de filosofia em Oxford, onde dirige o Future of Humanity Institute.[4] Um dos chefes de redação da revista do movimento, que, após ter se intitulado Journal of Transhumanism, se atribuiu recentemente o nome de Journal of Evolution and Technology, sem dúvida julgado mais anódino, é Wiliam S. Bainbridge.

Ele é um personagem muito interessante porque, ainda que seja formado em sociologia e se tenha especializado no estudo de seitas religiosas, está codirigindo um dos programas científicos mais ambiciosos da National Scientific Foundation, em Washington, que sustenta a pesquisa e o desenvolvimento em nanotecnologias. Enquanto isso, ele comanda um orçamento federal de mais de 1,5 bilhão de dólares. Outros líderes do movimento transumanista, como Robin Hansen, ocupam ou ocuparam posições importantes no Pentágono, influenciando, assim, escolhas militares e estratégicas.

O transumanismo se desenvolve em simbiose com as mais avançadas pesquisas científicas e técnicas. Ele se nutre delas e as influencia. Citarei algumas, menos pela preocupação de dar uma descrição exaustiva do movimento e mais na intenção de fazer com que se compreenda o seu tipo de utopia. Começarei pelas pesquisas em inteligência artificial. Trata-se de conceber e de construir máquinas que pensem e tenham consciência de si mesmas. O objetivo não é apenas colocá-las a nosso serviço como robôs, mas principalmente mostrar que pensar e terem consciência de si mesmas são apenas mecanismos de um tipo particular: máquinas que tratam a informação. Pensar, segundo esse paradigma, é simular os fenômenos físicos que ocorrem no mundo, no sentido daquilo que denominamos em informática simulação. Pensar é fazer rodar softwares no hardware do seu cérebro, quer dizer, ativar, no seu cérebro, programas particulares de computação adaptados às tarefas a serem cumpridas.

É fácil zombar dessa redução do pensamento a mecanismos de tratamento de informação, mesmo que a paternidade seja do grande filósofo inglês do século XVII Thomas Hobbes, que escreveu na sua obra maior, O Leviatã (1651), “Thinking is reckoning”, Pensar é calcular. John Searle enfatizou que o principal erro desse paradigma que denominamos hoje cognitivista é o de confundir a simulação com a duplicação. Para retomar seu exemplo favorito, seria absurdo tentar digerir uma pizza fazendo rodar um programa de computador que simulasse os processos bioquímicos que se passam no estômago de alguém que realmente digere uma pizza. Então, pergunta Searle, como não se vê que também é completamente absurdo pretender replicar o funcionamento neurobiológico da mente fazendo rodar um programa de computador que simule ou modele esse funcionamento?

Esse argumento é forte, mas é, a meu ver, insuficiente. Pois que valor ele tem, uma vez que o original, a coisa ela mesma, já é por si só uma simulação? Vou tomar emprestada uma ilustração ao filósofo francês Jacques Derrida, o representante maior do que denominamos desconstrução. Se alguém é um desconstrutor, uma das desmistificações mais tentadoras é a do dinheiro. Sob a forma de papel-moeda, o dinheiro é puro signo, sem valor intrínseco, garantido por um tesouro inexistente. Daí concluir que o dinheiro é “sempre, já” falsa moeda é apenas um passo. O fato de o dinheiro entrar nas trocas resulta unicamente na existência de uma cadeia potencialmente infinita de crenças compartilhadas: se o dinheiro possui (realmente) um valor positivo, é unicamente porque todos acreditam (falsamente) que ele possui um valor positivo. Suponhamos que essa teoria seja verdadeira: deve-se concluir que não há diferença essencial entre uma nota de 1 real impressa pelo Banco Central brasileiro e um real simulado, quer dizer, falsificado. Esse último, ele também, nem mais nem menos do que o real que pretensamente tem “valor legal”, entrará nas trocas enquanto se acreditar que ele tem o valor de 1 real – quer dizer, enquanto não se desconfiar de que ele é falso.

Para os cognitivistas, o que os humanistas e os filósofos da consciência chamam de sentido é “sempre, já” um “falso”. Sua essência nada mais é do que sua aparência. Simular essa essência, por exemplo por meio de um programa informático, é ser fiel a ela, é duplicá-la.

Certos transumanistas inventaram o conceito de “singularidade”. A ideia é que existe um limiar crítico além do qual a inteligência artificial se tornará capaz de se reproduzir, se complexificando sempre mais, sem intervenção nenhuma da inteligência humana, que se tornará completamente obsoleta. O inventor do conceito de singularidade, Vernor Vinge, anunciou em 1993 que, “em trinta anos no máximo, nós teremos os meios técnicos de criar uma inteligência super-humana. Pouco tempo depois, a história humana terá fim”.

Outro conjunto de técnicas tem um papel essencial na utopia transumanista: as nanotecnologias. Elas visam manipular a matéria numa escala molecular e atômica a serviço dos fins do homem. O objetivo desse programa de pesquisas é mudar a bricolagem em que se constituiu até agora a evolução natural e biológica e substituí-la pelo paradigma do intelligent design, quer dizer, da concepção inteligente. Uma etapa obrigatória desse programa está prestes a se realizar: a fabricação de uma forma de vida artificial. O homem já se vê no papel de engenheiro dos processos naturais e vivos. Mas é inevitável que o homem aplique essa engenharia a si mesmo. Daí o projeto de uma autofabricação completa e permanente do homem por ele mesmo, tanto do seu corpo como do seu espírito.

Muitos dos projetos técnicos mobilizados pelos transumanistas fazem parte mais da ficção científica do que das possibilidades reais, ao menos num futuro previsível. Entretanto, a técnica avança rapidamente em domínios tão diversos como a realidade virtual, o diagnóstico genético pré-implantatório, o gênio genético, a farmacopeia da memória, a cirurgia estética, as mudanças de sexo, as próteses, a medicina antienvelhecimento, as interfaces entre homem e máquina. Tudo isso consolida os transumanistas na sua convicção de que seus sonhos não são inatingíveis.

Mencionarei, enfim, as tecnologias de imortalidade; não que eu acredite que elas surgirão um dia, mas porque elas revelam antes de tudo a visão que os transumanistas têm da existência humana. Trata­se de transferir o conteúdo da mente humana para o disco rígido de um desses hipercomputadores do futuro que a inteligência artificial tornada autônoma terá construído. O vocabulário inglês é explícito: da mesma maneira que se fala de downloading quando se recebe e se grava no computador um programa (software) que provém de um servidor central, se fala aqui de uploading, porque se transfere do inferior para o superior. O inferior é o wetware (a substância úmida) do cérebro biológico, o superior é o hardware (a substância rígida) de um computador ou de um robô. A “mente”, nessa concepção, inclui a memória do passado e os traços da personalidade, e está assimilada a um programa de computador (software). Pode-se então conceber simulá-la em um outro suporte material diferente do suporte biológico original, um suporte, esse sim, inalterável.

Os programas (softwares) do futuro provavelmente serão capazes de se reprogramar, segundo o modelo de certas células-tronco adultas que sabemos hoje que podem regredir ao estado de células multipotentes, logo, capazes de se transformar em células diferentes da original. Uma célula da pele pode, assim, tornar-se uma célula de fígado ou uma célula nervosa. Se a existência humana se resume a uma série de bits de informação que constituem as instruções de um programa, então se pode conceber que uma vida humana possa se autorreplicar e distri­ buir suas múltiplas cópias aos quatro cantos do universo, etc.

Como bem notou John Searle, o grande paradoxo desse paradigma que nos chega do materialismo das ciências cognitivas é que se trata, de fato, de um dualismo. O espírito é concebido como independente do suporte material no qual, num dado momento, de modo puramente contingente, ele se encarna. Remeto meus leitores, jovens ou não, a filmes de ficção científica como Matrix.

2. O transumanismo e o humanismo metafisíco

A segunda razão pela qual convém, a meu ver, levar a sério o transumanismo é que seu projeto encarna às mil maravilhas, tendendo à caricatura, uma figura filosófica que está no coração da crítica heideggeriana da técnica. Essa figura é a da coincidência dos opostos: o orgulho e a desmesura de um certo humanismo científico conduzem diretamente à obsolescência do homem.

Os transumanistas se consideram, segundo Nick Bostrom, “humanistas racionais”. É exatamente isso que os faz eminentemente perigosos. Pode-se ainda hoje defender o humanismo contra os excessos da ciência e da técnica? De Copérnico à biologia molecular, passando por Marx e Freud, nós tivemos que diminuir nosso orgulho de que podíamos ter um lugar à parte no universo e admitir que estamos inteiramente submetidos aos determinismos que deixam pouco espaço para o que pensávamos ser nossa liberdade ou nossa razão. As ciências cognitivas concluem esse trabalho de desilusão demonstrando que ali, onde acreditamos sentir o sopro do espírito, há somente redes de neurônios que se acendem e se apagam como em um simples circuito elétrico.

Como se sabe, Heidegger inverteu completamente a maneira de colocar o problema. Com ele, não se trata mais de defender o humanismo, mas, ao contrário, de colocá-lo em posição de acusado. Quanto à ciência e à técnica, ou, antes, à “tecnociência” – expressão que quer significar que a ciência está subordinada a um projeto prático, o da dominação do mundo pela técnica-, longe de ameaçarem os valores humanistas, elas são, para Heidegger, sua mais clara manifestação. Ali onde o pensamento heideggeriano teve influência, tornou-se impossível defender o humanismo, defender a consciência contra a ciência, etc. Esse foi o caso particular das ciências humanas à francesa, estruturalistas, depois pós-estruturalistas, que reinaram como mestres na paisagem intelectual francesa durante muitos decênios antes de encontrarem refúgio nos departamentos de letras das universidades americanas. Ancorados no pensamento dos “mestres da suspeita” da língua alemã, Marx, Nietzsche e Freud, e sobre um fundo comum de heideggerianismo,[5] eles fizeram do anti-humanismo sua palavra de ordem, celebrando ruidosamente a morte do homem. Censura-se nesse infeliz homem, ou, antes, censura-se numa certa imagem que ele tem de si mesmo, de ser ‘”metafísico”. “Metafísico”: ainda uma palavra carregada de sentido e que tem em Heidegger um sentido todo particular. Para o positivismo de um Augusto Comte, os progressos da ciência fazem a metafísica recuar. Para Heidegger, ao contrário, a tecnociência representa o auge da metafísica. E o ponto mais alto da metafísica era, para Heidegger, a cibernética, esse ancestral do paradigma informacional e cognitivo em nome do qual fala o transumanismo. Existem aqui muitos paradoxos que necessitam de esclarecimentos para assim melhor apreciarmos as vicissitudes filosóficas do transumanismo. Para Heidegger, é “metafísica” a pesquisa de um fundamento último de toda realidade relativa à qual tudo se organiza. Ali onde a metafísica tradicional colocava Deus, a metafísica moderna coloca o homem. Eis por que a metafísica moderna é profundamente humanista, e o humanismo, profundamente metafísico. O homem é esse sujeito dotado de consciência e de vontade cujos traços são desenhados pela filosofia de Descartes e pela de Leibniz no alvorecer da modernidade. Consciente, ele é, assim, presente e transparente para si mesmo; voluntário, ele faz as coisas acontecerem à sua vontade. A subjetividade, seja como presença teórica para si mesma ou como domínio prático sobre o mundo, ocupa lugar central, daí a promessa cartesiana de “tornar o homem mestre e possuidor da natureza”. Na concepção metafísica do mundo, tudo aquilo que é é assujeitado às finalidades do homem, tudo se torna objeto para ele, fabricável em função de seus objetivos e de seus desejos. O valor das coisas depende unicamente da capacidade dessas coisas de ajudar o homem a realizar sua essência, que é a de dominar o que é. Compreende-se então por que a tecnociência e a cibernética, em particular, podem ser consideradas o acabamen­ to da metafísica. A cibernética é o governo (no sentido etimológico da palavra) pelo cálculo: é o auge do que Heidegger chama de pensamento calculador, que ele opõe ao pensamento tout court.

Heidegger antecipa a objeção que se poderia fazer a ele. Falar contra o humanismo seria, pelo jogo de uma “lógica” irrefutável, fazer a apologia do inumano e glorificar a barbárie mais brutal.[6] Heidegger se defende atacando. A barbárie não está onde foi colocada. Os verdadeiros bárbaros são os que se pretendem humanistas e que, em nome da dignidade que o homem atribui a si mesmo, deixam atrás de si um mundo devastado pela técnica, um deserto que ninguém pode dizer que habita. Um outro paradoxo nos aguarda. Se a cibernética representa verdadeiramente para Heidegger a apoteose do humanismo metafísico, como explicar então que essas ciências do homem à francesa, sobre as quais disse anteriormente só serem compreendidas com heideggerianismo ao fundo, utilizaram, paradoxalmente, a caixa de ferramentas conceitual da cibernética para, segundo seus próprios termos, “desconstruir a metafísica da subjetividade”?

Um filósofo da consciência como Sartre podia escrever, no início dos anos 1940: “O inumano é simplesmente […] o mecânico.”[7] O estruturalismo e o pós-estruturalismo francês se apressaram em trazer essa definição para sua conta, porém invertendo as valorizações. Para ir mais longe que Heidegger, o inumano começou a reivindicar ruidosamente[8] o inumano, logo, o mecânico. Ora, a cibernética estava lá, disponível, chegada na hora certa para desmistificar o sujeito voluntário e consciente. A vontade? Parecia que uma simples máquina cibernética podia simular e replicar todas as suas manifestações. A consciência? Freud tinha sido levado a postular uma improvável “pulsão de morte”, “para além do princípio do prazer”, corno se o sujeito desejasse exatamente o que o faz sofrer, colocando-se, de modo repetido, em situações das quais só se podia sair vencido e morto. Freud tinha denominado Wíederholungszwang essa pulsão (Zwang) de repetição do fracasso. O psicanalista francês Jacques Lacan traduziu essa expressão por “automatismo de repetição”, substituindo o pretendido desejo inconsciente de morte pelo funcionamento privado de sentido de uma máquina, o inconsciente, de agora em diante, identificado com um autômato cibernético. A aliança da psicanálise com a cibernética não foi anedótica ou fortuita: ela correspondia à radicalização da crítica do humanismo metafísico.

Eu então coloco a questão: a cibernética – e, portanto, o projeto transumanista que é seu herdeiro – foi o auge do humanismo metafísico, corno sustentou Heidegger, ou foi, ao contrário, o auge de sua desconstrução, corno acreditaram certos herdeiros de Heidegger? A essa questão acredito que devemos responder: a cibernética foi ambas as coisas ao mesmo tempo, e esse é também o caso hoje do transumanismo. Para que o homem possa, como sujeito, exercer um poder absoluto sobre si mesmo, é preciso primeiro que ele seja rebaixado à posição de objeto, maleável e submetido a toda espécie de obrigações. Não há elevação sem rebaixamento concomitante, e reciprocamente. Colocando-se na posição do deus que fabrica o mundo, do demiurgo, o homem se condena a se considerar ultrapassado. O transumanismo visa que o homem transcenda a si mesmo em direção a uma outra espécie que o ultrapasse completamente. Não se pode imaginar projeto mais grandioso. O preço a pagar é o desaparecimento da espécie humana.

II. A racionalidade da condição humana

A terceira razão pela qual devemos levar a sério a utopia transumanista é a mais importante, e é ela que vai nos ocupar no restante deste ensaio. Quando estamos prestes a perder algo que sabemos claramente que apreciamos é que compreendemos por que o apreciamos. O transumanismo visa ultrapassar a condição humana, essa existência humana cheia de dores, prometida a um fim próximo, que nos faz prisioneiros de um ponto de vista singular, que é o nosso e unicamente nosso. Mas, o que sabemos nós exatamente sobre a condição humana? Apesar das limitações que ela nos impõe, não há nela qualquer coisa que é fundamentalmente um bem? Para sabê-lo, nada vale mais do que uma experiência de pensamento que consiste em imaginar que estamos privados daquilo que é para nós o valor da existência humana. Sigamos o guia transumanista na sua vontade de aplicar a racionalidade científica e técnica à condição humana para melhor ultrapassá-la, quer dizer, aniquilá-la, e estaremos informados.

1. A experiência do absurdo da vida humana

A tomada de consciência dos limites inerentes à condição humana não conduz apenas ao sentimento de revolta predito por Hannah Arendt e encarnado pelo transumanismo. Uma experiência muito mais universal é o sentimento de que a vida é fundamentalmente absurda. Foram os filósofos existencialistas que exprimiram esse sentimento com mais força, mas estaríamos errados em pensar que ele é ligado apenas a uma filosofia bem particular. Todos nós, mais ou menos, vivemos, no fundo, o pensamento de que talvez a vida não tenha sentido.

O que caracteriza inicialmente a consciência da absurdidade é a distância de sua própria vida e a estranheza do real. A percepção de uma decalagem entre si mesmo e o mundo se exprime tradicionalmente com diferentes queixas: a brevidade da vida humana, a imensidão do universo, a inelutabilidade da morte, o enfraquecimento da memória. Uma outra dimensão consiste na impressão de estranhamento quanto à sua própria vida. Tornamo-nos, de algum modo, os espectadores de nossa existência, como se ela acontecesse separada de nós. Nós a contemplamos sem familiaridade, sob a forma dessa “interrupção da existência” que Tolstói descreveu tão bem. Encontramo-nos projetados longe de nosso ponto de vista particular e pessoal alcançando um ponto de vista impessoal.

Vê-se aqui que o sentimento de absurdidade não é a mesma coisa que a certeza de que a vida é absurda. Ele está intimamente ligado à atitude que adotamos quando paramos de viver com a finalidade de, de alguma maneira, examinar melhor a vida: mantemo-nos a uma distância de nós mesmos, nos olhamos do exterior, colocamo-nos no lugar de um estrangeiro, ocupamos uma posição impessoal. Poderia ser que essa experiência de absurdidade da vida, quando a analisamos e a aprofundamos, nos conduzisse paradoxalmente ao pensamento de que, sim, a vida tem um sentido, e esse sentido nos é dado precisamente pelo sentimento do absurdo.

A resposta de Albert Camus ao desafio dos limites do que representa a experiência de absurdidade da vida é bem diferente: é preciso assumir o absurdo ao extremo. A resposta ao absurdo é amplificar sem cessar o sentimento de absurdidade pelo desafio, pelo engajamento, pela escolha reiterada. É de alguma forma um ativismo do absurdo que recomenda Camus. Ele faz eco à injunção de Aliocha em um dos momentos mais emocionantes do livro Os irmãos Karamázov: “Ame a vida acima de qualquer outra coisa […] Ame-a sem te ocupares da lógica, ela não tem nada a ver com a lógica, é somente assim, então, que se compreende qual é o seu sentido.”

Em uma tal concepção, o fato de nos apropriarmos da nossa vida resulta do próprio ato mesmo de viver. O “Viver ao máximo”, essa palavra de ordem que Camus nos receita em O mito de Sísifo (1942)[9] nos leva a mergulhar na consciência do absurdo, amplificando-a, impondo a ela nossas escolhas, nossos engajamentos, nossos valores, desafiando constantemente o que Camus denomina “a irracionalidade do mundo”. O sentido da vida deve proceder apenas dos projetos que afirmamos como nossos. Nossa responsabilidade é manter o sentimento do absurdo, renovando nossas fortes demandas de sentido, aprofundando e impondo nossas decisões.

O Sartre de “O existencialismo é um humanismo” (1946) está próximo dessa filosofia da ultrapassagem da angústia de viver pela ação, pelo engajamento, pela fabricação de si. A náusea sartriana é o sentimento de abandono que se apodera do homem quando ele reconhece que não é o fundamento de seu ser. O homem é essencialmente liberdade, mas essa liberdade absoluta encontra obstáculo na sua própria contingência: nossa liberdade nos permite escolher tudo, menos não sermos livres. Nós descobrimos que fomos jogados (a Geworfenheít heideggeriana) no mundo e nos sentimos abandonados. Sartre utilizava uma fórmula que ficou célebre para dizer isso: o homem está “condenado a ser livre”.

Para superar essa angústia da liberdade, Sartre antecipava que a liberdade nos empurra a nos apropriarmos daquilo que não é ela, e que o homem, então, faria tudo o que fosse possível para se tornar seu próprio artesão e dever somente a si mesmo sua própria liberdade. Mas esse self-made man metafísico, se isso fosse possível, paradoxalmente teria perdido sua liberdade, então não seria mais um homem. Com efeito, só as coisas são o que elas são, só as coisas coincidem com elas mesmas. Ser livre, para o homem, consiste em estar sempre distante de si mesmo.

Sartre antecipava, então, alguma coisa que se assemelha muito à utopia transumanista: fazer do homem um programa de computador capaz de programar a si mesmo, uma coisa eternamente igual a ela mesma. Tudo menos um homem, tudo menos a liberdade. Aplicando a racionalidade científica e técnica à condição humana para melhor superá-la, perde-se a angústia da liberdade perdendo a liberdade.

2. A racionalidade existencial

Para analisar a condição humana e tentar dar-lhe sentido, é então necessário renunciar à racionalidade? É preciso esquecer a lição dos gregos?

A resposta socrática à questão do sentido da vida, à questão “Como devo viver?”, é bem conhecida: “Uma vida sem exame não vale a pena ser vivida.” Os pensadores gregos procuraram conceber o que poderia ser uma vida humana inteiramente feita pela filosofia, racionalidade, reflexão e exame crítico. É o ideal comum que atravessa o mundo grego, de Sócrates aos pensadores estoicos.

Examinar sua vida é se colocar questões do tipo: como os seres humanos consideram sua própria vida? Como explicar o caráter frequentemente incerto, às vezes precário e instável, das razões com as quais tentamos explicar nossas decisões e nossas ações? Por que agi assim? Não devia eu agir de outro modo? Quais serão as consequências da minha decisão? Não seria eu uma outra pessoa se tivesse agido de outra maneira? Tais são as razões que invocamos para dar sentido ao que fazemos. São razões sólidas, porque buscamos fazê-las tão coerentes e justificadas quanto possível. Mas são também razões frágeis, porque essas razões pertencem somente a nós mesmos. Ora, em determinadas circunstâncias nós as questionamos. Como é possível? Que razões são essas que representam ao mesmo tempo nosso melhor recurso para tornar nossas vidas inteligíveis a nossos próprios olhos e uma

expressão renovada de nossa finitude?

A atitude existencialista considera que a resposta ao sentido da vida nada tem a ver com o trabalho da racionalidade ou, mais precisamente, com a busca das razões. Como se a inteligência só pudesse entrar em jogo para descrever o mundo tal como ele é, enquanto só o exercício da liberdade se ocuparia do sentido da existência. Nessa perspectiva, a pretensão à objetividade e à racionalidade pertenceria exclusivamente ao ponto de vista exterior, que podemos denominar o ponto de vista da terceira pessoa, enquanto a liberdade seria a única habilitada a dar um sentido à vida, um sentido ligado ao ponto de vista dito de primeira pessoa, do indivíduo ele mesmo.

Essa atitude existencialista não é satisfatória. Com efeito, ela deixa o terreno livre ao empreendimento de conquista que conduz à racionalidade científica e técnica sob a forma, por exemplo, do projeto transumanista. Porque essa racionalidade científica e técnica só conhece as coisas e ignora a liberdade, a razão prática. É uma racionalidade da terceira pessoa. Fiel à lição grega, a reflexão sobre a vida humana merece algo melhor do que deixar o monopólio da razão para essa racionalidade.

O ideal seria conceber uma forma de racionalidade própria ao exame da vida humana que incluísse a experiência do absurdo sobre a qual repousa a atitude existencialista, sem renunciar por isso às exigências do exame racional. Essa racionalidade existencial seria evidentemente irredutível à racionalidade científica e técnica.

Esse programa de trabalho ambicioso é o que se propôs a filósofa francesa Monique Canto-Sperber. Eu a seguirei aqui em alguns dos seus desenvolvimentos.[10]

Quais são os maiores traços presentes nas razões e nas justificações que buscam dar um sentido à vida humana? Um primeiro traço é a irredutibilidade da singularidade das pessoas. Toda reflexão sobre a existência é sempre a reflexão de um sujeito singular e coloca frequentemente em cena outros sujeitos singulares. Além disso, a reflexão sobre as razões que explicam as decisões e os engajamentos graves de nossas existências não termina com a tomada de decisão. Essas justificações às vezes mudam em função de acontecimentos ulteriores. Enfim, nossas justificações existenciais estão estreitamente ligadas ao tempo. Elas são limitadas por um horizonte de mortalidade que caracteriza nossa condição. Elas são de qualidade diferente à medida que se avança na existência. O passado pesa mais e mais sobre essa.

A presença desses traços traz numerosas consequências no que se refere às justificações sobre as quais nos apoiamos na existência. Na verdade, suas presenças bastam para fazer com que as justificações tenham qualquer coisa de “estranho”. Com efeito, como conceber que uma justificação possa depender da relação a um sujeito singular? Como imaginar que uma justificação seja sensível aos acontecimentos ulteriores e possa ser corroborada ou invalidada segundo o caminho que tomam esses acontecimentos? Como falar de justificação se essa não é independente do momento temporal em que se encontra? Todos esses traços nos conduzem a uma concepção da justificação muito distante do que denominamos habitualmente uma justificação. Porque uma justificação, stricto sensu, é não relativa ao sujeito, não dependente dos acontecimentos ulteriores, não submetida a modificações segundo o momento da sua vida em que ele se encontra. Com a justificação existencial, nós estamos certamente em presença de uma justificação, mas de uma justificação deslocada com relação às justificações que se referem a domínios diferentes do da existência humana, como por exemplo quando se trata de desculpar alguém de uma acusação sem fundamento.

Com Monique Canto-Sperber, eu queria mostrar com alguns exemplos que não se pode fazer muito melhor do que propor esse tipo de justificações deslocadas, em matéria de raciocínio sobre a vida humana. A exigência de racionalidade deve permanecer inteira, mas quando a racionalidade se aplica à vida, parece que só poderá se tratar de uma racionalidade “ao lado” da racionalidade clássica. Isso significa que no coração mesmo da mais clara reflexão sobre a vida humana nós continuamos sempre a perceber nossa condição através de uma experiência de absurdidade. Será fácil mostrar que a aplicação brutal da racionalidade científica e técnica à questão do sentido da vida, à maneira dos transumanistas, ignora completamente o que faz a especificidade de uma vida humana conforme a exigência socrática.

2.1. Não há justificação existencial impessoal

Quando nos interrogamos sobre nossas vidas – “Por que agi assim?”, “Como eu poderia ter feito de outro modo?”-, nossas demandas de inteligibilidade estão estreitamente referidas a um sujeito bem identificado. As justificações que dou de minhas ações não são impessoais, mas provêm diretamente de quem eu sou. As razões que tive para agir como o fiz ou de tomar tal decisão não são provavelmente aquelas que uma outra pessoa, colocada nas mesmas circunstâncias que eu, teria adotado, mesmo se essa outra pessoa tivesse os mesmos traços de caráter e de personalidade que eu. Nesse sentido, a justificação existencial é, de maneira característica, uma justificação relativa ao agente na sua identidade singular, independentemente, assim, de seu caráter ou de sua personalidade. Por que eu o fiz? Porque era eu. Não é meu caráter que determina minha ação, é minha ação que revela meu caráter, formado-o.

É essencial compreender que dizer isso não é renunciar nem à objetividade nem à racionalidade. É preciso simplesmente admitir que há no “mobiliário ontológico” do mundo, para falar o jargão dos filósofos, existências humanas irredutíveis a seus traços materiais. Não ter isso em conta é que seria irracional. Eu posso refletir sobre a vida dos seres humanos em geral, mas não posso refletir de maneira impessoal à minha própria vida. Da melhor maneira, posso me entregar a reflexões impessoais sobre o valor para o mundo da minha presença neste mundo ou da minha ausência. Quando Édipo exclama: “A maior infelicidade é ter nascido…”, ele quer dizer simplesmente que ter nascido é uma infelicidade para aquele que nasceu, ele não diz nada sobre aquele que não nasceu. Quem pode preferir não ter nascido a ter? A velha troça judaica “Quantos têm a chance de não ter nascido? Nem 1 sobre 100 mil.” revela bem a incoerência de uma queixa que demanda ser compreendida de modo impessoal quando a relatividade do agente na sua identidade singular é a única perspectiva que lhe dá sentido.

Esse paradoxo é ainda mais perturbador quando nos interrogamos sobre a justificação de sentimentos tais como o amor e a amizade. O jovem apaixonado que diz “Por que eu a amo? Porque é ela” não renunciou nem à racionalidade nem à objetividade. Ele espera da apresentação de uma singularidade individual, “ela”, que lhe forneça a razão que justifica seu amor. Mas aí também é preciso compreender bem que as características físicas e mentais da mulher amada não são a causa do amor. Se fosse o caso, uma outra mulher que apresentasse exatamente os mesmos traços desencadearia um amor idêntico. A singularidade do amor é que, precisamente, não é o caso, como mostra claramente o mito de Anfitrião. Para seduzir a mulher de Anfitrião, Alcmena, e passar uma noite de amor com ela, Zeus toma a forma de Anfitrião. Todas as razões que Alcmena tem para amar Anfitrião, ela as tem para amar Zeus, que tem a aparência de Anfitrião, pois que Zeus e Anfitrião só se distinguem numericamente: eles são dois em lugar de um. Entretanto, é Anfitrião que Alcmena ama e não aquele que tomou sua forma. Como dar conta, senão incluindo nas razões de amar “alguma coisa” que não é precisamente nem uma coisa nem uma causa e que é a singularidade existencial do ser amado?[11]
Quando se ama um ser não se ama uma lista de características, ainda que essas características possam ser tão exaustivas que seriam suficientes para distinguir o ser em questão de todos os outros. A simulação mais perfeita deixa ainda escapar alguma coisa, e é essa “alguma coisa” que é a essência do amor, essa pobre palavra que diz tudo e não explica nada. Eu temo muito que a ontologia espontânea desses que se querem os fabricadores ou os recriadores do mundo não conheça nada diferente dos seres senão listas de características. Se a utopia transumanista viesse a se encarnar na realidade, não haveria mais nenhum lugar para o que nós chamamos ainda hoje de amor.

2.2. O peso dos acontecimentos e a sorte moral

Uma vida humana é feita de acontecimentos, entre os quais muitos, sejam felizes ou infelizes, parecem surgir do nada: nada os anunciava, eles eram completamente imprevisíveis. O sentido de uma vida, esse sentido que aparece quando se faz a narrativa, a si mesmo ou a outros, é feito desses acontecimentos. Isso é tão verdadeiro que frequentemente o acaso e o destíno parecem se confundir. Desse drama que nada permitiu prever, somos tentados a pensar que não podia não se produzir, “estava escrito”.

Desde os filósofos matemáticos do século XVII na França, entre eles Pascal, a racionalidade científica e técnica pretendeu dominar esse acaso, logo, eliminar o acontecimento pelo cálculo das probabilidades. A racionalidade implica atribuir probabilidades a todas as consequências possíveis de escolha que se faz e a escolher a opção que maximize o valor provável das consequências. Quando se faz uma aposta racional nesse sentido e se perde, porque a sorte terá sido contrária, não há o que lamentar: teve-se razão de fazer essa aposta mesmo quando se perdeu. O acontecimento está completamente elimi­ nado da justificação.

O sentido filosófico dessa supressão do acontecimento é colocado perfeitamente por Hannah Arendt quando ela escreve: “Agir no sentido do fazer, raciocinar no estilo do ‘cálculo das consequências’, é deixar de lado o inesperado, o próprio acontecimento, uma vez que seria pouco razoável ou irracional esperar o que não passa de ‘improbabilidade infinita’. Mas, como o acontecimento constitui o tecido mesmo do real no domínio dos negócios humanos onde o improvável ocorre regularmente, é extremamente pouco realista não o levar em conta.” E Arendt conclui, a respeito do pensamento do cálculo que domina a época moderna: “Seu racionalismo é irreal, seu realismo é irracional, o que resulta em dizer que o real e a razão se divorciaram.”[12]

A justificação existencial racional deve levar em conta o acontecimento. De que maneira? O filósofo inglês Bernard Williams, que morreu em 2003, propôs o conceito de moral luck (sorte moral), que ele ilustrou com um exemplo que ficou famoso.[13] Um pintor chamado Gauguin decide, em um certo momento da sua vida, partir para o Taiti porque somente lá ele encontrará a inspiração necessária à sua obra futura. Para realizar esse projeto, ele abandona a família, rompe um compromisso assumido e cria a infelicidade dos que dependem dele. A condenação moral é sem apelo: ele tinha rompido um compromisso e causado dano a outrem.

Entretanto, a vontade de Gauguin de se tornar um grande pintor se relaciona com um valor, mesmo de um estrito ponto de vista moral.

Ninguém sonharia em dizer: “Gauguin teria se tornado um grande pintor, ele renunciou por dever -, está bem, está certo.” Um tal veredicto, “Está bem, está bem, ponto final”, choca, porque arruína em parte a ideia que nós temos do sucesso de uma vida humana. Está “bem”, seguramente, renunciar a um prazer pelo dever, mas está bem renunciar àquilo que dá sentido a toda sua vida, renunciar à esperança de ser um grande artista? Nada pode esconder que tal renúncia, nesse tipo de situação, corresponde a uma perda em matéria de realização pessoal e humana. Seria adotar uma concepção restritiva da justificação de uma vida pretender que a questão não se coloque em termos de conflito de bens, entre o bem moral estritamente definido e os outros bens humanos.

Porém, o caráter mais singular de um tal conflito é que ele só aparece como conflito, uma vez que os principais acontecimentos que dependem da decisão se produziram, uma vez que se terá sabido se Gauguin se tornou um grande pintor. É só então que se compreende ex eventu o que se teria perdido se Gauguin tivesse decidido renunciar, por dever, a partir para o Taiti. Se ele morresse acidentalmente ou se fracassasse em se tornar um grande pintor, seria fácil dizer: “O que esse homem, Gauguin, fez deixando sua família é ruim, está errado, é mau, ponto final.” Por outro lado, se sabemos que Gauguin triunfou e se tornou um grande pintor, não poderemos nos contentar em dizer que sua decisão de partir para o Taiti era moralmente deplorável.

Esse exemplo nos incita a aceitar a ideia de que as justificações relativas às decisões graves da vida podem ficar incompletas até que acontecimentos ulteriores lhes deem seu verdadeiro valor. Essa ideia é um verdadeiro escândalo para aquele que só sabe enfrentar a incerteza do amanhã em termos de cálculo de probabilidades, em termos de aposta racional.

Eu temo que um partidário do transumanismo não possa compreender nada do que acabo de explicar. A imortalidade do espírito é, para ele, como vimos, a reencarnação da sequência de bits de informação que compuseram uma vida na “carne”, digamos assim, de máquinas inteligentes e conscientes. Como tais espíritos reencarnados para a eternidade poderão interagir entre si, eu nem ouso dizer, se amar? Qual será o sentido do imprevisto para eles? O horror que essa utopia me inspira já foi antecipado em 1940 pelo genial Adolfo Bioy Casares, o amigo e cúmplice de Jorge Luis Borges, na sua obra-prima, A invenção de Morel. Nesse romance premonitório, o herói, um fugitivo procurado pela polícia política do seu país, encontra refúgio em uma ilha que ele acredita estar deserta, abandonada pelos seus habitantes depois de uma terrível epidemia. Ele descobre rapidamente que não é bem assim, que seres humanos povoam essa ilha, e, entre eles, uma mulher, Faustine, por quem ele fica loucamente apaixonado. Entretanto, ele não quer se aproximar dela, nem de seus companheiros, por medo de ser denunciado. Acontecimentos dramáticos, que o herói segue a distância, se produzem, mas seu espanto é grande quando ele descobre que esses acontecimentos se repetem de modo idêntico a cada semana. O herói descobre que esses seres que ele pensou serem humanos eram, de fato, imagens animadas em três dimensões, projetadas por uma máquina inventada por Morel, um dos fantasmas que povoam a ilha. Morel filmou a última semana de vida do grupo, portanto da sua vida, para ficar unido a Faustine para sempre, numa repetição eterna. O herói decide deslizar para a máquina e se tornar, ele mesmo, uma imagem, na esperança de que um dia a técnica lhe permita penetrar na alma de Faustine.

2.3. O tédio da imortalidade

Serei mais sintético sobre o sofrimento, a morbidade, a infelicidade e a morte, todos esses elementos que constituem as provas mais duras que toda existência humana deve afrontar e que o transumanismo considera simplesmente outros dentre tantos problemas que a técnica deve resolver, suprimindo-os. Já falei amplamente disso em Mutações: ensaios sobre as novas configurações do mundo. Posso resumir meu propósito de então em uma frase: suprimindo-se a infelicidade, suprime-se, ao mesmo tempo, a capacidade de confrontá-la, integrando-a no sentido que se dá à sua existência, e, por isso mesmo, suprime-se também a capacidade de gozo das coisas boas da vida. É preciso ser um utilitarista primário para não ver isso.[14]

Numerosos são os filosofos que sublinharam que a perspectiva da morte podia contribuir para dar um sentido à vida. É porque ela acaba que pode ser lida como uma narrativa. A morte nos confronta com um paradoxo que é parte integrante da reflexão que aplicamos a nossas vidas. A certeza de que nossa existência vai terminar um dia – e, portanto, que essa vida é a única que temos – confere um valor absoluto a essa existência. Mas, por outro lado, esse mesmo limite afeta de precariedade as expectativas de sentido e as demandas de justificação que exprimimos. Cada vez que articulamos a razão de uma decisão ou de um projeto, escutamos uma voz que nos diz: “Para que, se tu morrerás?”

Em um ensaio intitulado “The Makropoulos Case: Reflections on the Tedium of Immortality”,[15] Bernard Williams analisa a condição em que se encontra a heroína da ópera de Janacek, “The Makropoulos Case”. Elina Makropoulos, nascida no século XVI, já tem 342 anos. Seu pai, médico, experimentou nela, quando ela tinha 42 anos, um elixir de imortalidade. Assim, com a idade de 42 anos, ela viveu mais 300 anos. Acabrunhada de tédio e de indiferença, esgotada de viver, ela se recusa a tomar ainda o elixir e vem, enfim, a morrer. As razões que Elina tem para viver dependem dos seus desejos, que, à medida que sua vida passa, estão mais e mais congelados, cada vez menos acordados pelo que acontece. Tudo o que ela vive, de certa forma, ela já viveu. O tédio e a repetição matam o desejo. O desejo de viver progressivamente dá lugar ao desejo categórico de acabar com a vida. Elina termina por cansar de si mesma.[16]

Um transumanista poderia replicar que, tratando-se de um ser pós-humano, ele será como um programa de computador capaz, a todo instante, de se reprogramar à vontade, e, dessa forma, a ameaça de tédio não pesará sobre ele. Mas faltará então a esse ser alguma coisa que os gregos consideravam uma condição essencial da reflexão sobre a vida humana: a busca de unidade e de coerência. O tédio e a repetição do tédio só serão evitados pela dissolução do eu numa sucessão de personalidades diferentes.[17]

2.4. O sentido do passado

No Diário de Kierkegaard, em 1843, lê-se:

É perfeitamente verdadeiro, como dizem os filósofos, que a vida deve ser compreendida mantendo os olhos, voltados, para trás. Mas, eles esquecem a outra proposição, que ela deve ser vivida olhando para a frente. E se refletirmos sobre isto, torna-se mais e mais evidente que a vida jamais pode ser realmente compreendida no interior do tempo simplesmente porque jamaís posso encontrar, em nenhum momento, o ponto em que eu me deteria e de onde eu poderia tentar compreendê-la – os olhos voltados para trás.

A reflexão sobre a existência humana não está orientada apenas em direção ao futuro, na antecipação dos efeitos de nossas decisões e de nossos projetos. Ela deve se inclinar ao passado, porque esse dá os critérios do que é importante, possível ou desejável na nossa vida. No fundo de nossa reflexão sobre a existência está sempre a narrativa que construímos do nosso passado.

Ora, essa narrativa não é fixa. Na meditação existencial, nós sempre interpelamos o passado. Não mais do que o futuro, o passado não está escrito de uma vez por todas. A influência entre a compreensão do passado e a explicação do presente é recíproca. O passado orienta a reflexão existencial do sujeito, mas, reciprocamente, ele é colocado em perspectiva, até mesmo modificado por essa reflexão. O poder que temos sobre o passado é a contrapartida do poder que nós mesmos conferimos a ele.

Essa dialética complexa entre o passado e o futuro, que faz a temporalidade de nossa existência, torna-se completamente impossível pela utopia transumanista. Uma vida que seria apenas o equivalente de um programa, mesmo que esse seja capaz de se reprogramar, conheceria apenas o tempo linear da leitura de uma sequência de símbolos inscritos sobre uma fita.

Aqui também, a grande literatura antecipou os horrores do projeto transumanista. Um dos Contos plausíveis de Carlos Drummond de Andrade se chama “A imagem no espelho”. Eis aqui:[18]

Aos 20 anos escreveu suas memórias. Daí por diante é que começou a viver. Justificava-se:

Se eu deixar para escrever minhas memórias quando tiver 70 anos, vou esquecer muita coisa e mentir demais. Redigindo-as logo de saída, serão maís fiéis e terão a graça das coísas verdes.

O que viveu depois dísto não foi precisamente o que constava do livro, embora ele se esforçasse por viver o contado, não recuando nem diante de coisas desabonadoras. Mas os fatos nem sempre correspondiam ao texto. e, para ser franco, direi que muitas vezes o contradiziam.

Querendo ser honesto, pensou em retificar as memórias à proporção que a vida a contrariava. Mas isto seria falsificação do que honestamente pretendera (ou imaginara) devesse ser a sua vida. Ele não tinha fantasiado coisa alguma. Pusera no papel o que lhe parecia próprio de acontecer. Se não tinha acontecido, era certamente traição da vida, não dele.

Em paz com a consciêncía, ignorou a versão do real, oposta ao real prefigurado. Seu livro foi adotado nos colégios, e todos reconheceram que aquele era o único livro de memórias totalmente verdadeiro. Os espelhos não mentem.

O homem que coloca em cena esse conto irônico fixou de uma vez por todas o sentido de sua vida numa narrativa escrita quando ele tinha 20 anos. Ele esqueceu que, mesmo vivendo conforme esse programa (palavra que significa “escrito antes”), seus desejos, suas aspirações, o sentido mesmo que ele dá ao que lhe acontece, se transformam e têm de volta um impacto sobre o sentido que ele dá aos seus engajamentos passados. Como diz Sartre, é o futuro que dá sentido ao passado. Só os mortos, que não têm mais futuro, têm um passado fixo. No sentido sartriano do termo, e mesmo se ele vivesse indefinidamente a partir do modelo dos tristes heróis de Huis clos, é um morto que Drummond coloca em cena. A vida eterna que nos prometem os transumanistas é a dos mortos.

IlI. Um corpo que cai (Vertigo)

O transumanismo nos oferece uma experiência de pensamento inestimável que nos permite, por contraste, compreender melhor o valor, para nós, de uma vida humana refletida e, portanto, segundo a lição grega, digna de ser vivida. É esse o interesse dessa utopia, e, sem dúvida, seu único interesse.

Para concluir, eu gostaria de apresentar uma outra experiência de pensamento que tem o mesmo mérito e que, contudo, não faz intervir a técnica. É a história de uma neurose que dá ao passado um peso exorbitante, nega a morte, nega a singularidade existencial e faz do amor uma impossibilidade. Quero falar da obra-prima de Alfred Hitchcock, talvez o maior filme de todos os tempos, Um corpo que cai. Esse filme data de 1958, e nós festejamos, portanto, seu cinquentenário[19] ao lado de A condição humana, de Hannah Arendt. Agrada-me muito reunir os nomes de Arendt e Hitchcock.

Por necessidades ligadas às circunstâncias de minha exposição, vou resumir o filme, o que implica cometer um duplo crime. Primeiro porque eu vou retirar de alguns dos meus leitores o prazer, digo, o choque traumático da primeira vez. Mas, sobretudo porque, por razões profundas que aparecerão mais adiante, Um corpo que cai, um objeto complexo, não se resume.

Tentemos, entretanto. Scottie Ferguson (interpretado por James Stewart), antigo detetive licenciado da polícia por causa de sua tendência a vertigem, é encarregado por um de seus velhos amigos, Gavin Elster, de vigiar sua mulher, Madeleine (interpretada por Kim Novak), cujo comportamento estranho faz temer seu suicídio.

Depois de muitas reticências, Scottie aceita vigiar Madeleine Elster. A razão de suas hesitações é a extraordinária beleza dela.

[Scottie vê Madeleine de perfil pela primeira vez no restaurante Ernie’s de São Francisco, com a música de Bernard Herrmann, inspirada no Prelúdio do Terceiro Ato de Tristão e Isolda, de Wagner.]

(Scottie vigia Madeleine.)

[Madeleine sai de seu imóvel no alto de Nob Hill e Scottie a segue de carro.]

Em um dos momentos mais fortes do filme, Scottie salva Madeleine de um afogamento voluntário aos pés da ponte Golden Gate.

[Madeleine no momento de se jogar na água.]

São nessas circunstâncias dramáticas que Scottie e Madeleine se conhecem. Scottie compreende que Madeleine está obcecada pelo espectro de Carlotta Valdes, sua bisavó, que se suicidou depois que sua filha (a avó de Madeleine) lhe foi retirada pelo seu rico amante.

Scottie fica loucamente apaixonado por Madeleine, mas ele não conseguirá, por causa de sua vertigem, impedi-la de se jogar do alto de um campanário.

[A cena representa a última vez que Scottie e Madeleine se falam. Eles se encontram na relva da missão franciscana de San Juan Bautista, a mais ou menos 70 quilômetros ao sul de São Francisco. Madeleine está prestes a se precipitar em direção à igreja, subir até o alto do campanário e saltar no vazio. Scottie, que não pôde segui-la até o alto, verá, impotente, o corpo de Madeleine cair e se chocar contra o telhado da igreja. Eis seu último diálogo, quando então eles se encontram abraçados um ao outro.]

Scottie: Eu te amo, Madeleine.

Madeleine: Eu também te amo. É tarde demais, tarde demais.

Scottie: Não, estamos juntos…

Madeleine: É tarde demais. Devo fazer algo.

Scottie: Não tem que fazer nada. Não tem que fazer nada. Não está possuída por ninguém. Eu a protejo.

Madeleine: Não, é tarde demais.

(E ela foge em direção à igreja, Scottíe correndo atrál, dela. Ele a alcança.)

Madeleine: Tarde demais. Não era para ter sido assim.

Scottie: Era. Nós nos amamos.

Madeleine: Me solte!

Scottie: Não, ouça!

Madeleine: Acredita no meu amor?

Scottie: Sim.

Madeleine: Se me perder saberá que eu o amo e para sempre amarei.

Scottie: Não vou te perder.

Madeleine: Me deixe ir à igreja sozinha.

Scottie: Por quê?

(Ele responde beijando-a)

Sentindo-se responsável pela morte de Madeleine, Scottie é tomado por uma depressão nervosa. Depois ele retoma, aparentemente, uma vida normal, ainda que obcecado pela lembrança da morte, até o dia em que ele encontra na rua uma sósia tosca de Madeleine. A mulher diz se chamar Judy. Ela é carnal e vulgar na mesma medida que Madeleine era fina e sofisticada.

[Judy Barton, papel igualmente interpretado por Kim Novak.]

Com uma audácia extraordinária, Hitchcock nos faz penetrar no espírito de Judy. Nós aprendemos, então, alguma coisa que Scottie levará todo o resto do filme para compreender. Judy era Madeleine. Ela era não a mulher, mas a amante de Gavin Elster. É a mulher legítima de Elster que foi jogada, já morta, do alto do campanário. Os amantes diabólicos montaram essa maquinação para fazer desaparecer a verdadeira Madeleine Elster – “a esposa de verdade”, diz o roteiro – levando em conta a doença de Scottie, que o impediria de seguir a falsa Madeleine até o alto do campanário.

O resto do filme nos mostra Scottie, mais e mais alucinado, transformar Judy em Madeleine: as roupas, o penteado, o porte, tudo se apresenta aí, nos mínimos detalhes. Nós, espectadores, compreendemos que é a segunda vez que Judy é transformada em Madeleine: a primeira vez foi por Elster, a segunda por Scottie. Judy está inicialmente horrorizada. Depois, por amor, ela consente. Quando a transformação está completa e Scottie tem diante de si aquela que ele acreditava morta, um detalhe falha: Judy/Madeleine guardou o colar que ela trazia na sua primeira encarnação, o colar que tinha pretensamente pertencido a Carlotta Valdes, sua ancestral. Scottie compreende que Judy era Madeleine. Ele a leva a San Juan Bautista, o lugar do crime, e a conduz à força ao campanário. Desta vez ele supera sua vertigem.

[Judy se transforma em Madeleine pela segunda vez] [Os cinco últimos minutos do filme.]

Eis o diálogo:

Scottie: Parece com Madeleine agora. Suba a escada. Suba a escada! Suba, Judy… eu a seguirei.

(Os dois começam a subir a escada.)
Scottie: Só cheguei até aqui. Mas você… continuou, lembra? O colar, Madeleine. Foi seu erro. Eu me lembrei do colar.

Judy: Me solte!

Scottie: Não, vamos torre.

Judy: Não pode! Você tem medo!

Scottie: Veremos. Veremos. Esta é a minha segunda chance. Você sabia que eu não poderia segui-la. Elster e a esposa estavam lá?

Judy: Sim.

Scottie: E foi ela que morreu. A esposa de verdade, não você. Você era a cópia. Ela estava viva quando…

Judy: Morta! Ele quebrou seu pescoço!

Scottie: Ele não quis se arriscar, hein? Quando chegou lá, ele a empurrou. Mas você gritou. Por quê?

Judy: Quis impedir! Por isso corri!

Scottie: Impedir? Por que gritou, se já tinha me enganado tão bem? Representou muito bem a esposa. Ele a mudou, não foi? Como eu fiz. Só que melhor. Não só roupa e cabelo, mas atitude e palavras e seus lindos transes. Se atirou na baía. Aposto que nada muito bem. Não é? Depois, o que ele fez? Treinou você? Ensaiou? Disse o que dizer e fazer? É uma aluna muito capaz, não é? Competente! Por que me escolheu? Por quê?!

Judy: Seu acidente!

Scottie: Meu acidente? Foi uma trama, não é? A testemunha sob medida…

(Scottie consegue superar sua vertigem e leva Judy ao alto do campanário.)

Scottie: Eu consegui! Consegui!

Judy: Que vai fazer?

Scottie: Vamos olhar o local do crime. Vamos, Judy. Foi onde aconteceu. Vocês se esconderam ali e esperaram. Depois voltaram à cidade. E depois? Era namorada dele? Que aconteceu? Ele te deu o fora? Com o dinheiro da mulher, livre e poderoso…te deu o fora. Que lástima. Ele sabia que você não podia falar. Te deu alguma coisa?

Judy: Algum dinheiro.

Scottie: E o colar. O colar de Carlotta. Foi o seu erro. Não se guarda lembranças de assassinatos. Não devia ter sido… tão sentimental.

(Scottie caminha em direção à Judy.)

Scottie: Eu te amava muito.

Judy: Eu estava a salvo quando me achou. Não podia provar nada. Mas quando te vi, não pude fugir porque te amava. Enfrentei o perigo e te deixei me mudar porque te amava! Por favor. Você me amava. Me ame. Me proteja.

Scottie: Tarde demais. Não podemos ressuscitá-la.

Judy: Por favor.

Uma análise aprofundada de Um corpo que cai nos conduziria a retomar e a ilustrar cada um dos temas que tratamos aqui. Nós veríamos, então, que a neurose obssessiva de Scottie não deixa nada a dever à utopia transumanista na sua obstinação em destruir aquilo que faz da existência humana, como ela nos foi dada, um bem.

Eu me limitarei ao essencial: o modo de existência de Madeleine e a natureza muito particular de sua “morte”; a questão do desejo e o peso do passado.[20]

Como todo mundo, eu chamo “Madeleine” o primeiro personagem interpretado por Kim Novak, por quem Scottie fica apaixonado. Como todo mundo, eu cometo esse erro, porque é bem um erro. Existe, na ficção criada por Hitchcock e chamada Um corpo que cai, uma só Madeleine, e é Madeleine Elster, a mulher de Gavin Elster, aquela que Scottie, perto do desfecho, designa a esposa de verdade. O personagem que nós chamamos de “Madeleine”, e que deveríamos chamar “a falsa Madeleine”, “a pseudo Madeleine”, ou “a Madeleine entre aspas”, é um personagem fictício. Vamos nos entender: um personagem fictício na ficção que nós denominamos Um corpo que cai.

Madeleine é um personagem fictício, fictício na ficção. Sua morte nos esclarece sobre o seu modo de existência. A morte de Madeleine não põe simplesmente um fim à sua existência. Ela produz esse efeito inverossímil de que Madeleine nunca teria existido – mesmo que, antes de morrer, como todo ser real, como todo ser de ficção, tenha sido verdade que ela existiu.

“A morte transforma toda vida em destino”: talvez seja, em geral, verdade, mas no caso de Madeleine a morte faz do passado (e do amor que foi) não alguma coisa que aconteceu e que não acontece mais, mas alguma coisa que nunca aconteceu.

No momento de se lançar sobre a relva de San Juan Bautista em direção àquele que a fez, no sentido de fabricada – made over -, Madeleine sabe disso. É o momento mais impressionante do filme, em que, a meu ver, tudo está em jogo. Para aceitar essa tese, é preciso admitir que o personagem principal do filme é Madeleine, não Scottie. As feministas que acusam Hitchcock de fazer um cinema de homem não teriam como se enganar mais. Madeleine sabe que sua morte iminente vai fazê-la entrar em um nada mais absoluto que aquele da morte. Suas últimas palavras – as últimas palavras que Madeleine jamais pronunciará – devem ser compreendidas como a tentativa ingênua e desesperada de conjurar a angústia infinita que dela se apodera diante do abismo. Eu retomo essas palavras para que as analisemos mais em profundidade:

Madeleine: Acredita no meu amor?

Scottie: Sim.

Madeleine: Se me perder saberá que eu o amo e para sempre amarei.

Scottie: Não vou te perder.

Nessas frases que Madeleine pronuncia, que são as primeiras e as últimas que ela diz do fundo do coração, as primeiras e as últimas a não figurarem no script escrito por Elster, o elemento problemático, é o referente do pronome pessoal da primeira pessoa: “I”, em inglês, “Eu” em português. Este “I” não pode se referir a Judy, que Scottie não conheceu. Só pode se referir a Madeleine, mas essa que pronuncia as palavras sabe que não é Madeleine, do mesmo modo que a atriz que encarna Julieta sabe que não é Julieta, qualquer que seja o ardor com o qual ela declare seu amor por Romeu.

A morte tem isso de doce, a pessoa do morto continua a viver no espírito daqueles que se lembram. De um amor morto, pode-se ao menos dizer, quaisquer que sejam as amarguras, a cólera ou o ressentimento que sucedam seu falecimento, que ele foi. O filósofo francês Vladimir Jankélévitch, um dos mais profundos pensadores do século XX, disse da morte: “Aquele que foi não pode mais, daqui em diante, não ter sido: daqui em diante este fato misterioso e profundamente obscuro de ter sido é seu quinhão para a eternidade.”[21]

Entretanto, isso é falso no caso de Madeleine. Sua morte torna falsa a frase que Scottie pronuncia quando ele caminha em direção a Judy no alto do campanário: “Eu te amo, Madeleine.” Foi verdade que Scottie amou um ser chamado Madeleine. Agora que ela está “morta”, não é verdade que Scottie tenha amado Madeleine.

No alto do campanário, Judy, transformada de novo em Madeleine, suplica a Scottie, que sabe agora que Judy foi Madeleine: “Me ame. Me proteja.”

Esse “me” se refere a Judy, para quem Scottie mostra apenas desdém e crueldade, ou a “Madeleine”, Madeleine 2, somos tentados a dizer, na qual Judy se metamorfoseou?

Mas Scottie responde com um murmúrio dirigido a si mesmo: “Tarde demais. Não podemos ressuscitá-la.” Dessa vez, se refere, sem ambiguidade, a Madeleine, esse fantasma, esse espectro.

“Não podemos ressuscitá-la”: o sentido dessa frase não é o de que não se retorna de “entre os mortos”, como no romance de Boileau e Narcejac que serviu vagamente de trama aos cenaristas de Um corpo que cai. É antes o de que não se retorna do nada ontológico.

Falta a Madeleine a singularidade existencial que faz o preço da vida humana, como tentei mostrar. Entretanto, houve um tempo em que Madeleine, essa ficção na ficção, constituiu uma simulação dessa singularidade. Mas essa simulação resultou mais do amor de Scottie do que da maquinação de Elster.

Pode-se amar um personagem de ficção e assim dar a ele uma existência? Pode-se fazê-lo no interior de uma ficção, já que se pode fazê-lo na vida. Todo apaixonado por Um corpo que cai me compreenderá.

Eu tinha 16 anos e fiquei louco de amor por Madeleine. Foi um amor súbito. A primeira vez, fiquei preso na minha poltrona três sessões seguidas, como se podia fazer então, sem ter que sair da sala para pagar de novo. Retornei para saciar minha paixão uma dezena de vezes nas três semanas seguintes. Nos cinquenta anos que se seguiram, reencontrei Madeleine umas trinta vezes, talvez. Só há um remédio para esse tipo de obsessão: como o narrador de A invenção de Morel, entrar no filme, tornar-se personagem, se fazer imagem no meio das imagens.

Não podendo fazer isso, eu me interessei por Kim Novak. Febrilmente me informei sobre ela o melhor que pude, nessas revistas populares. Fatalmente, eu cometi o erro de categoria que comete Scottie procurando Madeleine em Judy.

Madeleine só existe pelo amor de Scottie. A autenticidade desse amor é, entretanto, duvidosa. Por que Scottie ama Madeleine e quer possuí-la? Porque, sendo ela possuída por Carlotta Valdes, ele não pode, assim, possuí-la. Por que ele é fascinado por ela a ponto de perder a razão? Porque ela é, ela mesma, fascinada pela morte. Nós estamos muito perto aqui do mito de Tristão e Isolda tal como foi analisado por Denis de Rougemont no seu grande livro O amor e o Ocidente.[22] O desejo de possessão e de controle se deteriora, necessariamente, no seu contrário, na impotência.

O pesadelo de Scottie atingiu seu apogeu quando, tendo transformado Judy em Madeleine 2, tendo enfim feito dela sua criatura, quer dizer, um ser que ele criou inteiramente, que fabricou, ele compreende que nada tinha feito senão refazer, exatamente, nos menores detalhes, até sua forma da nuca, o que Elster fez da mesma Judy. O escândalo dessa revelação nos faz submergir no abismo quando nós, espectadores, compreendemos no mesmo momento que esse automatismo de repetição que leva Madeleine para a morte por duas vezes é, ele mesmo, desencadeado pela operação inicial que Hitchcock efetuou em Kim Novak com a crueldade, para não dizer o sadismo, que sabemos.

O grito de raiva e de despeito que Scottie não pode reprimir no momento em que ele compreende o que nós, espectadores, sabemos desde que penetramos na alma de Judy, esse grito é tão medíocre e desprezível como eram perturbadoras as palavras de angústia e de amor de Madeleine quando ela se preparava para entrar no nada: “Representou muito bem a esposa. Ele a mudou, não foi? Como eu fiz. Só que melhor.”

O que comove Scottie neste momento de revelação não é que Judy era a amante de Elster – Scottie não se importa com Judy! -, mas que ele, Scottie, refez de forma pior o que Elster já tinha feito. A inveja, essa paixão destrutiva, toda a inveja do mundo se encontra condensa­da nesse “Só que melhor”. A “Madeleine” que Scottie fez é apenas uma cópia medíocre da Madeleine que Elster conseguiu fazer, ela mesma uma pálida imitação da única “esposa de verdade”, Madeleine Elster. A Madeleine de Scottie é apenas uma cópia de cópia da mulher real, que em nada interessa a não ser pela fortuna que ela traz pelo seu suicídio presumido. Que “Madeleine” não tenha sido nada além de uma imagem, Scottie sabe agora porque descobre tê-la copiado servilmente. A vida eterna de Madeleine, seu recorrente surgimento, porém, cada vez mais falsificado, do nada onde ela reside, é o modelo da vida eterna que nos prometem os transumanistas.

É na relação com o passado que a neurose de Scottie assume seu caráter mais invalidante. Completamente prisioneiro do passado, ele só sabe fazê-lo reviver duplicando-o no idêntico. O encontro com Judy, essa mulher autêntica, cúmplice certamente de um crime, mas uma verdadeira mulher, poderia ser sua salvação, sua abertura para o futuro. Ele apenas vê nela o passado, ele apenas vê nela “Madeleine”. Scottie e Judy fazem um pacto, provavelmente com o diabo, para viajar no passado, voltarem a ser “Scottie e Madeleine” e salvar esse amor, quando a essa altura, entretanto, já deveria estar claro aos olhos de ambos que ele nunca existiu. Não sem protestos e resistência da parte de Judy, o fim da viagem foi alcançado, sem que se tenha necessitado de uma máquina para voltar no tempo. O desejo obsessivo de controle absoluto de Scottie impulsionando-o foi amplamente sufciente para fornecer toda a energia necessária. É nesse momento que surge um objeto que impede o fechamento causal do círculo temporal. O pretenso colar de Carlotta deveria ter desaparecido com Madeleine, pois é, pelo princípio de causalidade, impossível que Judy-retornando­ Madeleine o carregue ainda. Eis por que a verdadeira forma de Um corpo que cai não é um círculo, mas precisamente o círculo que quer se fechar sobre si mesmo sem conseguir; é a espiral descendente, o mergulho rodopiante no abismo.

[Os créditos iniciais de Um corpo que caí. A partitura de Bernard Herrmann e as animações de Saul Bass para a abertura possuem a mesma estrutura em espiral, formas circulares rodopiantes que não se fecham nunca sobre si mesmas.]

Agradeço calorosamente a Monique Canto-Sperber, cuja reflexão profunda sobre a vida humana e seu sentido me forneceu a trama filosófica deste ensaio; e a Ana Szapiro, que, como de hábito, o traduziu excelentemente do francês.

Tradução de Ana Maria Szapiro

Notas

  1. ARENDT, Hannah. The Human Condition. Chicago: The University of Chicago Press, 1958,

    p. 2-3. Obs.: na tradução brasileira: ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 10. 

  2. HABERMAS, Jürgen. The Future of Human Nature. Cambridge: Polity Press, 2003. 
  3. LECOURT, Dominique. Humain, posthumain. Paris: PUF, 2003. 
  4. Ver seu site http://www.nickbostrom.com/ 
  5. Esse ponto foi colocado claramente em evidência por Luc Ferry e Alain Renaut no livro La Pensée 68. Essai sur l’anti-humanisme contemporain. Paris: Gallimard, 1985. 
  6. HEIDEGGER, Martin. “Lettre sur l’humanisme”. Orig. Brief über den Humanismus, Bem, 1947. 
  7. Essa frase se encontra na apreciação crítica que Sartre fez em 1943 de O estrangeiro de Albert Camus. SARTRE, Jean-Paul. “Explication de ‘L’Étranger”. ln: Situations I. Paris: Gallimard, 1947. 
  8. “Rendre la philosophie inhumaine”, tal é a tarefa que em 1984 Jean-François Lyotard se colocava. 
  9. Em português, O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Record, 2004 (nota acrescentada pela tradutora). 
  10. Ver seu livro importante Essai sur la vie humaine. Paris: PUF, 2008. 
  11. CANT-SPERBER, Monique. “Amour”. ln: Dictionnaire d’Ethique et de philosophie morale. 4. ed. Paris: PUF, 2004. 
  12. ARENDT, Hannah. Condition de l’homme modeme, p. 338. Em português: A condição moderna, p. 313. N.T. Trecho traduzido aqui, por opção, pela tradutora da conferência. 
  13. WILLIAMS, Bernard. Moral Luck. Cambridge: Cambridge University Press, 1982. 
  14. Um dos fundadores do movimento transumanista é o inglês David Pearce, que se apresenta como “utilitarista hedonista”. Seu programa, pode-se dizer simplesmente: eliminar completamente o sofrimento do mundo animal, humano e não humano. 
  15. ln: Bernard Williams, Moral Luck, op. cit. 
  16. Trata-se de uma peça de Karel Capek, com estreia em 1922, que Janacek transformou em ópera. 
  17. David Lynch ousou, no seu filme Estrada perdida (Lost Highway), colocar em cena um personagem que se torna uma outra pessoa diferente dele mesmo no meio da narrativa. 
  18. ANDRADE, Carlos Drummond de. Contos plausíveis. 7ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2006, p. 30. 
  19. Organizei na Universidade de Stanford, de 15 a 18 outubro 2008, um Colóquio Internacional celebrando o cinquentenário de Um corpo que cai (Vertigo). 
  20. É possível solicitar o texto com uma análise mais completa (em inglês) de Vertigo por meio de [email protected]
  21. JANKÉLÉVITCH, Vladimir. La Mort. Paris: Flammarion, Champs, 1981. 
  22. ROUGEMONT, Denis de. L’Amour et l’Occident. Paris: Plon, 1972 [orig. 1938]. 

    Tags

  • ampla perspectiva
  • apoteose
  • atualidade
  • auge da desconstrução
  • auge do humanismo metafísico
  • avanços da técnica
  • biotecnologia
  • bricolagem
  • categorias clássicas do pensamento
  • cibernética
  • ciências cognitivas
  • ciências do homem
  • conceito de máquina cibernética
  • concluir
  • conclusão
  • convergência
  • debates atuais
  • Descartes
  • desconstrução
  • desmesura
  • desobedecer
  • Deus
  • deus fabricante do mundo
  • dever
  • discípulos
  • dominação do mundo
  • dominar o mundo
  • engenharia do homem por ele mesmo
  • engenheiro dos processos evolutivos
  • era pós-humana
  • espécie humana
  • Estruturalismo
  • estruturalistas
  • evolução biológica
  • extrema velocidade
  • ficção científica
  • fim do humanismo
  • fim do humanismo metafísico
  • Heidegger
  • homem
  • homem à imagem e semelhança
  • humanismo científico
  • humanismo metafísico
  • Lacan
  • liberdade
  • livre
  • loucas promessas
  • máquina cibernética
  • máquinas cibernéticas inteligentes
  • metáfora
  • missão
  • mundo da máquina
  • nanotecnologia
  • novo demiurgo
  • objetivo metafísico
  • obsolescência do homem
  • orgulho
  • orgulhosa
  • orgulhoso
  • paradoxo
  • perspectiva histórica
  • pôr fim ao humano
  • pós-estruturalismo
  • pós-estruturalistas
  • próximo passo
  • questão
  • questão ética
  • questões
  • questões éticas
  • relações
  • repor
  • reposição
  • segunda metade do século xx
  • senhor e possuidor da natureza
  • ser autômato
  • seres autômatos
  • simbólico
  • superação
  • superar
  • suposição
  • suposições
  • técnicas da informação
  • tecnologias atuais
  • trabalho
  • transcendência
  • transcender
  • transumanismo
  • última criação
  • utopia
  • vanguardas tecnológicas
  • velocidade
  • vida artificial
  • virada crítica na história das representações humanas do homem