2009

O que mantém um homem vivo? (II): os novos devaneios sobre algumas transfigurações do humano

por Renato Lessa

Resumo

A indagação “O que mantém um homem vivo?” é a chave para a questão da condição humana. Os humanos, como condição de sua própria existência no mundo, alucinam o presente, pela superposição de tempos que a esse impõem, por força de sua memória, de suas obsessões por repetição ou de sua ansiedade para tornar iminente e imediato o que virá. Tudo isso a serviço, como diria Freud, de um programa, o de tornar o mundo regrado e familiar. Qual a base dessas modalidades de alucinação? A crença.

O humano, para nós modernos, se inscreve na crença a respeito de um interior e de uma vontade. Quando tal crença colapsa, o humano dissolve-se nas indeterminações da heteronomia. Interior e vontade são, pois, condições para a autonomia. Ter um interior implica ter uma linguagem, que, não sendo privada, relaciona-se com uma experiência com o mundo. O modo dessa relação dá-se pelo fato de que o caráter expressivo da linguagem carrega consigo uma teoria do mundo.

Teorias sobre o mundo são um atributo da condição humana e têm como potência deflagradora o domínio da crença. São as crenças que nos vinculam ao mundo, como fixadores em contextos de acolhimento que nos afastam do espectro sempre próximo e possível da condição náufraga. A crença é uma potência de fixação no mundo.

Em David Hume encontramos a descrição dos princípios básicos de operação da crença. Há dois marcadores fortes no argumento humano a respeito da centralidade da crença na experiência de mundo dos humanos: (i) a presença da crença é compulsória, como condição necessária para a vida humana e para a sociabilidade; (ii) a história é o campo de prova no qual o processo de definição e cristalização das crenças tem lugar.

Nossas crenças ordinárias – nas quais estão inscritos diversos conteúdos substantivos particulares – sustentam-se em algumas crenças naturais. O conteúdo das crenças transforma-se com o tempo e com os usos mas parece haver características fixas que constituem o que Hume designa como crenças naturais. Em Hume, uma crença natural carrega os seguintes atributos:

é incapaz de justificação racional;

sua ausência tornaria impossíveis as atividades normais da vida comum;

é universalmente aceita;

Que atos de crença poderiam preencher esse triplo critério? A crença na existência contínua de um mundo exterior e independente de nossas percepções; a crença em que as regularidades que ocorrem em nossa experiência constituem uma base confiável para compreender as que ainda ocorrerão; e a crença na confiabilidade dos nossos sentidos.

Essas três modalidades de atos de crença podem ser tomadas como condições necessárias para crenças na regularidade do mundo, na previsibilidade dos eventos e de suas series, e em nossa consistência epistêmica.

Em David Hume a projeção do presente no futuro – e, por aí, a própria experiência do tempo – parte da suposição inegociável de que haverá regramento e repetição. Trata-se do modo humano próprio de operar no mundo, pelo qual a fixação da crença regula a alucinação, pela instituição de um domínio regrado, sendo ela mesma – a crença – um produto alucinado da experiência com nossas impressões do mundo. Os meandros da crença, portanto, põem-se a serviço de uma vontade de ordem e de previsibilidade. O hábito e a crença operam, ainda, como mecanismos de regulação da potencialidade anárquica que está inscrita em nossos jogos de associação de ideias.

As imagens de Hume a respeito da mente indicam um movimento incessante, no qual a desordem das percepções não encontra nas ideias um receptáculo apaziguador. O notável em David Hume é que não hâ nenhuma sustentação em tal programa, a não ser as crenças e a alucinação. Com Hume, dispomos de uma descrição plausível do que consiste a condição humana, por uma apresentação do que constitui o seu interior.


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Pascal

Eu pressuponho o interior na medida em que pressuponho um ser humano.

Wittgenstein

Sed melius quod interius.

Agostinho de Tagaste

Por que a condição humana importa para a filosofia política?

1. Por que a condição humana importa para a filosofia política?

Toda filosofia política e moral decorre de uma antropologia, isto é, de uma definição do que seja a condição ou a natureza humanas. O cerne do incurável conflito entre as diferentes filosofias políticas e morais produzidas ao longo do tempo pode, em grande medida, ser remetido a essa dimensão originária: diga-me o que são os humanos e direi que tipo de ordem deve abrigá-los, do melhor modo possível; direi, ainda, os valores que podem ser explicados para melhor corresponder à condição humana. A cláusula do melhor modo possível não é secundária: as filosofias políticas e morais inscrevem-se na lógica da promoção do humano, quer pela afirmação do que deve ser a boa ordem, quer, pela crítica dos fatores que proporcionam infortúnio.

Na verdade, o significado da condição humana é sempre fugidio, posto que afetado por uma ampla variedade de formas de determiná-lo. Trata-se de um efeito tanto da antiga e ininterrupta faina da filosofia política e moral, em um conflito sempre reposto e alimentado que se confunde com sua própria história, em definir tal condição, como da própria diversidade das culturas e das formas sociais, a configurar padrões de comportamento humano distintos, materializados em valores, regras sociais e interdições diversas.

O tema das mutações, ou, como tenho designado, das transfigurações do humano, sempre aí esteve implicado. Ao contrário das outras espécies, nas quais a mutação é visível na morfologia dos seus corpos e em seus componentes fisiológicos, tudo indica que as mutações/transfigurações humanas – pelo caráter recente do animal em questão, por certo – dispensaram tal tipo de alteração. As transfigurações humanas se inscrevem nas diferentes formas de construção de mundos praticadas pela espécie: uma espécie de fazedores de mundo, para evocar uma inspirada imagem posta pelo filósofo Nelson Goodman.[1]

A adaptabilidade humana à grande diversidade de nichos naturais e a sempre progressiva capacidade de inventar e reinventar uma segunda natureza – o âmbito da cultura – como nicho particular da espécie acabaram por dar razão à crença de que somos imunes ao mundo natural. Tal imunidade nos protegeria dos efeitos darwinianos exercidos pelo meio natural sobre a história de todas as espécies. Trata-se, pois, de certa trapaça para com a natureza, pela qual os humanos deixam de ser animais adaptativos e, ao contrário, exigem que a própria natureza se adapte às intervenções que eles a ela impõem de modo incessante. Este parece ser um tópico pós-darwiniano interessante: os efeitos dos artifícios humanos sobre a natureza não teriam estabelecido um cenário diante do qual ela, como “variável dependente”, submete-se a um processo de dizimação/adaptação/mutação? É como se os humanos retirassem da natureza o controle do jogo da seleção natural e passassem a exercê-lo sobre ela.

De qualquer forma, em se tratando dos humanos, sendo única a espécie, nada é o mesmo. Por toda parte sinais de variedade acabam por se impor, mesmo diante de um desenho de mundo que se quer uniforme e necessário, pela ação de processos de mundialização e de configuração de padrões universais de comportamento.[2]Há aqui um desenho a sugerir um curioso quadro de complementaridade:

  • Os humanos parecem ser animais que modificam o ambiente para que permaneçam sempre como são, em sua constituição biológica;
  • As variações intra-humanas, por sua vez, são efeitos de uma série incontável de padrões culturais distintos, o que, no limite, acaba por estabelecer que Os humanos, nunca são os mesmos, em todos, os, lugares.

Em outros termos, o truque da espécie para “iludir” as leis da evolução e fixar um tipo biologicamente perene exige a multiplicação dos atos de invenção simbólica e cultural, o que faz com que, sob a mesma carcaça e massa neuronal, variedades do humano acabem por preencher aquilo que Claude Lefort belamente designou como as formas da História.[3]

Um sabor montaigniano acaba por nos invadir, quando damos conta do contraste entre a unidade biológica – e, por que não dizê-lo, racial – e a incontável diversidade das formas culturais. Com efeito, se tomarmos os termos-chave da antropologia de Montaigne, tal como notou Hugo Friedrich, em seu estudo monumental sobre aquele autor, encontraremos o triplo registro da variedade, diversidade dessemelhança como marcas do mundo montaigniano.[4]

Em seu relato sobre como os humanos lhe parecem ser (“Les, autres, forment l’homme; je le recite”)[5]Montaigne destaca a evidência da variedade e do peso das circunstâncias particulares na composição da sua condição básica. Nos termos precisos de Hugo Friedrich, montaignianamente inspirados, trata-se de criaturas d’une surprenante diversité.[6]

Estará o humano, como conceito, ideia e valor, plenamente contido e dissolvido nesse cenário policêntrico? O caráter irrefutável das evidências de variedade e de relatividade de valores e culturas proíbe-nos de tentar definir – por abstração das diferenças – o que poderia ser pensado como um substrato humano comum, para além da carcaça biológica do bípede em questão? Sei que os riscos da indagação não são diminutos, já que as bordas do abismo do essencialismo estão sempre diante dos que não se satisfazem com um relativismo fácil.

Mas, se optarmos pela negativa diante da pergunta posta, devemos ser consequentes com tal atitude e desistir de qualquer tentativa de indicar o que é desumano ou mesmo o que poderá vir a ser o pós-humano. Devemos eliminar termos tais como humano desumano do estoque de adjetivos que orientam nossos mapas morais.

O que se segue é uma tentativa de circunscrever uma ideia do humano que não refuta ou desconhece a irrecorrível evidência de sua incontável variedade. Ela releva das definições dadas por Ernst Cassirer e Nelson Goodman, a respeito do animal humano como fazedor/utilizador de símbolos e como um imparável world maker.[7]As seminais reflexões a respeito da ideia de crença, desenvolvidas por Fernando Gil, que, desde 2006, não mais está entre nós, serão igualmente úteis, para dizer o mínimo.[8]

Circunscrever uma ideia do humano, em termos analíticos, é condição necessária para dizer daquilo que a destrói, daquilo cuja lógica conspira contra a ideia de manter os humanos vivos. Na chave aqui desenvolvida, os fatores que de modo necessário estarão presentes em qualquer erradicação do humano foram postos na experiência do século XX. Ainda que os fatores derivados da aceleração tecnológica e da aceitação da ciência como atividade autorregulada não sejam de modo algum desprezíveis, devemos investigar na forma das sociedades contemporâneas e nas experiências recentes, em curso da própria história política da espécie, a presença de fatores necessários à erradicação do humano. Mas, para lá chegar, há um certo trajeto a ser feito, que começa pela elucidação do título e pela utilização de algumas metáforas.

2. O que mantém um homem vivo?

O título dá sequência ao ensaio apresentado no ciclo anterior, também organizado por Adauto Novaes, a respeito do tema das mutações. Naquele contexto, publiquei um ensaio com o título “O que mantém um homem vivo”, título de uma canção de Brecht/Weil, incluída na peça de Brecht, a Ópera dos três vinténs.[9]

A letra da canção, de autoria de Brecht, descreve uma humanidade pérfida, impermeável à ação de pregadores reformistas, devotados à regeneração da espécie. Sua frase final é o registro de uma concepção precisa e negativa da condição humana: Mankind is kept alive by bestial acts [A humanidade se mantém viva por meio de atos bestiais]. Na tradução brasileira, encenada em inesquecível montagem dirigida por José Antonio de Souza e pelo genial ator Renato Borghi, em 1973, a conclusão da canção é assim apresentada, como resposta à pergunta-título: Ele vive dos outros. Ele gosta de bater neles, enganá-los, comê-los inteiros se ele puder.

Retirada do contexto originário, tomei a pergunta como possível deflagradora de uma reflexão sobre a condição humana. Uma forma, na verdade, de a deflagrar que traz consigo uma premissa: a de que qualquer desenho da condição humana revela um esforço no existir, uma insistência a manter-se na vida. O vento espinosiano indica que não basta detectar definições estáticas da condição humana, mas investigar o que, nessas definições, a faz perseverar na existência, o que a põe em movimento, o que a mantém viva. Nesse sentido preciso, a indagação o que mantém um homem vivo ganha precedência sobre o que é a condição humana. Essa, por sua vez, não é esterilizada, mas dissolvida em um dos mais básicos atributos básicos do animal em questão: a ação no mundo. Em outras palavras, o que mantém um homem vivo – como enunciado que se refere ao plano da ação – é a chave para a questão da condição humana – como termo que designa uma situação estática.

Há aqui alguma iluminação proporcionada pela ideia espinosiana de conatus, definido como esforço de persistir na existência.[10] Uma insistência inscrita em toda a natureza, em tudo que há. No caso dos humanos – e agora o risco ao dizê-lo é meu (ou seja, Espinosa aqui é inocente) – trata-se, antes de tudo (antes daquilo exigido apenas pelo destino do instinto), de um esforço de sentido e de uma potência de inscrição. Tomo aqui uma direção oposta à sugerida por António Damásio, que ofereceu brilhante interpretação do conatus de Espinosa nos termos da biologia contemporânea: “O conatus é o agregado de disposições presentes em circuitos cerebrais que, uma vez ativados por certas condições do ambiente interno ou externo, levam à procura de sobrevida do bem-estar.”[11]

O que desejo enfatizar é uma ideia de conatus como esforço/vontade de sentido e de inscrição, e que, como tal, se apresenta como dimensão-chave do insister na existência. O par sentido-inscrição indica o modo particular da presença humana no mundo, qual seja o de uma inscrição que se manifesta na busca e na afirmação de sentido. No trajeto que ata o esforço de sentido à inscrição no mundo, é uma passagem para a existência que se configura. A associação sentido/inscrição afasta-se de uma concepção da existência de corte puramente rnentalista, bem abrigada no ambiente de introspecção, proporcionado pela retração ao cogito. Afasta-se, ainda, de uma concepção da existência fundada tão-somente na inscrição prática no mundo, base material, objetiva e necessária para o processo de construção de sentido, a seguir certa tradição materialista.

Na associação mencionada, o tema de Nelson Goodman – o da fabricação humana de mundos (que aqui associo ao esforço de sentido) – associa-se ao tema arendtiano da ação, como atributo forte da condição humana.[12] O desejo de inscrição, condição necessária para a dimensão da ação, associa-se, de forma inelutável, ao da fabricação de mundos. É uma metafísica e uma psicologia da experiência humana que se impõem na associação entre esforço de sentido e vontade de inscrição. Em outros termos, para os humanos trata-se de emprestar ao mundo um sentido capaz de ao mesmo tempo modificá-lo e torná-lo um cenário familiar e inteligível para a ação. Uma dupla intervenção que só se torna possível graças à produtividade dos atos humanos de alucinação.

Alucinamos quando trazemos para nós – para nosso instante presente – o passado como condição de inteligibilidade do mundo e de nós mesmos, tanto como reserva nostálgica da boa vida quanto como lugar de eventos traumáticos. Alucinamos quando insistimos em tê-lo conosco. (Trazer o passado na algibeira: não terá sido esse o significado da frase de Fernando Pessoa?) Alucinamos quando procedemos a uma aproximação com o futuro como continuação não problemática da vida tal como nos parece ser ou como projeto e lugar de realização plena do que supomos ou queremos ser.

Os humanos, como condição de sua própria existência no mundo, alucinam o presente, pela superposição de tempos que a esse impõem, por força de sua memória, de suas obsessões por repetição ou de sua ansiedade para tornar iminente e imediato o que virá. Tudo isso a serviço, como diria Freud, de um programa, o de tornar o mundo regrado e familiar. Afinal, Os benefícios da ordem não incontáveis.[13]

Qual a base dessas modalidades de alucinação? A crença, para dizê-lo sem rodeios. Mas sobre isso falaremos mais adiante. Por ora cabe dizer que para esse animal, que executa um programa contido na associação, entre esforço de sentido vontade de inscrição, nada mais inóspito do que cenários representados pela antiquíssima metáfora do naufrágio. Primo Levi, que testemunhou o mais radical dos experimentos de erradicação dos humanos – Auschwitz -, deu a um de seus livros justamente o título de I Salvati e i Sommersi (Os afogados e os sobreviventes).[14]

3. Da metáfora do naufrágio

A primeira aparição dos presentes devaneios, apresentada no ciclo anterior, tomou como imagem central e deflagradora de uma possível reflexão a respeito da condição humana a metáfora do naufrágio. A sugestão decorreu da leitura de um extraordinário ensaio de Hans Blumenberg – Naufrágio com espectador -, para quem os humanos apresentam a totalidade do seu estado no mundo, de preferência no imaginário da viagem marítima;[15]

O homem conduz a sua vida e ergue suas iinstituições, sobre terra firme. Todavia, procura compreender o curso de sua existência na sua totalidade, de preferência, com a metáfora da navegação temerária.[16]

Uma das possibilidades desse jogo metafórico é a da expressão igualmente metafórica de uma ordem que se lhe opõe. O próprio Blumenberg indica-lhe o sentido: a metáfora do naufrágio – na verdade – é uma das possibilidades da metáfora maior da navegação como forma de denominar a própria existência: o naufrágio, nesse campo de representação, é algo como a consequência legítima da navegação.

A presença do duplo metafórico materializado no par navegação-naufrágio, no pensamento ocidental, parece ser imemorial. Os céticos gregos, por exemplo, retiraram do vocabulário da navegação um conceito de felicidade definido como calmaria – galenótes -, um modo alternativo para designar a tradicional ataraxia. Nessa aproximação, a taraché – a perturbação da qual nos livramos pela epoché – tem parte com os sinais da navegação temerária e com os riscos do naufrágio.

No entanto, a despeito da antiguidade vertiginosa, foi em um pensador moderno que encontrei um registro explícito e fecundo da metáfora do naufrágio como um marcador possível da condição humana. No primeiro capítulo de sua obra intitulada Política – publicada originalmente em 1603 -, Althussius, ao falar das Acepções gerais da política, apresenta uma instigante concepção da condição humana.

(…) o homem nasce privado de toda a assistência, desnudo e inerte, como se houvesse perdido todos os seus bens em um naufrágio, fosse lançado nas desgraças dessa vida e não se sentisse capaz de, por seus próprios meios, alcançar o seio da mãe, suportar a inclemência do tempo, nem, mover-se no lugar aonde foi arremessado. Sozinho nesse começo de vida terrível, com tanto prato e lágrimas, seu future se afigura uma ingente e miserável infelicidade. Carente de todo conselho e auxílio de que, não obstante, precisa, ele não tem como ajudar a si próprio senão com a intervenção e socorro de ambos.[17]

Com forte inspiração aristotélica, Althussius associa a viabilidade existencial dos náufragos-humanos ao ímpeto à sociabilidade. De modo explícito, o laço social é apresentado como uma espécie de antídoto dos naufrágios. Tal como afirmei no ensaio ao qual me refiro,

As imagens compostas do naufrágio e do acolhimento podem ser tomadas como antípodas lógicos e como indicadoras de padrões específicos de sociabilidade. A definição do que é humano dependerá da gravitação exercida sobre nossas crenças por esses polos opostos. Por certo, na metáfora de Althussius, o acolhimento é complementar ao naufrágio: ali não se vislumbra a hipótese da terminalidade do naufrágio absoluto. A salvação, dessa forma, é um corolário do naufrágio. Há, pois, otimismo teleológico na série: navegação, naufrágio, acolhimento.[18]

Sustentei, ainda, no “episódio” anterior, que a metáfora-hipótese do acolhimento – em oposição ao naufrágio – constitui o mito de origem comum de toda a filosofia política.

A razão parece-me relativamente simples: por ser ela uma tradição intelectual constituída por diversas imagens positivas de vida social, a hipótese do naufrágio incurável é logicamente inconsistente. A própria diversidade no campo da filosofia política e moral diz respeito a formas distintas de, de modo imaginário, erradicar ou, ao menos, mitigar a condição náufraga.[19]

4. Do que nos fixa no mundo

O naufrágio dos humanos é o abismo da filosofia política. Trata­ se, na verdade, de um duplo abismo: (i) o que se impõe pela própria impotência da filosofia diante do fracasso de suas prescrições de ordenamento do mundo e (ii) o que sobrevém do silêncio do abismo para dentro, instalado no interior de cada um dos naufragados.

O humano, para nós modernos, se inscreve na crença a respeito de um interior e de uma vontade. Quando tal crença colapsa, o humano dissolve-se nas indeterminações da heteronomia. Interior vontade são, pois, condições para a autonomia. O primeiro é condição para a autorreflexividade e para aquilo que Starobinski, a propósito de Montaigne, designou como um território pessoal e privado[20]a segunda é condição para a ação, para a presença na vida pública, para a atribuição de marcas no mundo e pela aspiração a transcender por elas a finitude das biografias. Só a vontade, assim posta, é capaz de ultrapassar a finitude das biografias individuais.

O tema, com efeito, já havia sido posto por Agostinho de Tagaste: “Dirigi-me, então, a mim mesmo, e perguntei-me ‘E tu quem és?’ ‘Um homem’, respondi. Servem-me um corpo e uma alma; o primeiro é exterior, a outra interior. (…) A parte interior (…) é a melhor (sed melius quod interius)”.[21] Em outra chave, Ludwig Wittgenstein disse a uma certa altura: eu pressuponho o interior na medida em que pressuponho um ser humano[22]Mas, o que pode significar ter um interior?

Um sinal engenhoso das nossas dificuldades nessa matéria pode ser encontrado no filósofo contemporâneo Alasdair Maclntyre, que dá bem a conta da dificuldade de obter uma definição a respeito do significado de ter um interior. Há mesmo um interior nos humanos, distinto do que aparece em seu um exterior? Em seu belo livro Justiça de quem? Qual racionalidade?, Maclntyre trata do problema a partir da apresentação de três traduções dos versos do livro I da Ilíada (189 – 192), nos quais Homero descreve a resposta de Aquiles ao discurso de Agamemnon, que reivindica como prêmio a escrava Briseida, destinada a Aquiles, apenas para mostrar a esse o seu mais-poder.[23] Aquiles hesitou, por um momento, entre puxar a espada e controlar sua fúria, seu thymos. Vejamos os exemplos, seguidos das elucidações proporcionadas por Maclntyre:

Exemplo 1: tradução feita por George Chapman, em 1598:

Thetis’son at this stood vext. His heart

Bristle his, bosome and two waies, drew his discursive part – he, should [make

Room about

Atrides’ person slaughtering him, or.sit his anger out

And curb his spirit.

While these thoughts striv’d in his, blood and mind…

If, from this thigh his sharpe sword drawne.

Elucidação 1: George Chapman, educado em Cambridge, estava familiarizado com a Ética a Nicômaco, “no auge do aristotelismo renascentista”. Por isso, “atribui a Aquiles uma ‘parte discursiva’ e ‘pensamentos’ rivais em sua ‘mente”‘.

Exemplo 2: tradução feita por Alexander Pope, em 1715.

Achiles, heard, with grief and rage opprest,

His Heart swell’d high, and labour’d in his Breast.

Distracting Thoughtt by turns his Bosom rul’d,

Now fir’d by Wrath, and now by Reason cool’d:

That promps his Hand to draw the deadly Sword,

Force thro’ the Greeks, to pierce their haughty Lord;

This wispers soft his Vengeance to controul,

And Caim the rising Tempest of his Soul.

Elucidação 2: “De acordo com Pape, Aquiles está dividido, ao modo do século XVIIIentre razão e paixão.”

Exemplo 3: tradução de Robert Fitzgerald, em 1974.

A pain like a greif weighed on the son of Peleus,

and in his shaggy chest this way and that

the passion of his heart ran: should he draw

long sword from hip,stand off the rest, and kill

in single combat the great son of Atreus,

or hold his rage in check and give it time?

Elucidação 3: “Fitzgerald retrata Aquiles no estilo psicológico atual, como sujeito a impulsos alternantes de paixão.”

Maclntyre conclui:

Cada tradutor usa um idioma familiar a seu próprio tempo, pressupondo alguma visão contemporânea, bem articulada, dos fatores que determinam a ação e a psicologia correspondente atribuída ao agente. O grego homérico, entretanto, nada diz a respeito de “parte discursiva” ou de “razão” competindo com “paixão” ou mesmo qualquer ‘paixão de seu coração’ em um sentido moderno. Homero fala de coração (étor) e, algumas, linhas, abaixo, de diafragma (phrén) como órgãos físicos. Em Homero, toda psicologia é fisiologia.[24]

O que é, portanto, ter um interior? É possível configurá-lo? É factível a tarefa de defini-lo?

Proponho que sigamos um caminho sugerido por António Marques em seu excelente ensaio O interior: linguagem e mente em Wittgenstein.[25] Partamos de um princípio de natureza lógica. A ideia de interior pressupõe a ideia de opacidade. A visibilidade absoluta de um interior implica a sua descaracterização como tal, já que as fronteiras entre interior e exterior ficaram indistinguíveis.

Tomemos o exemplo, proposto por António Marques, de uma caixa de aço, preenchida por um gás que aquece e arrefece e cujas temperaturas são atestadas por um termômetro exterior. Trata-se de um caso de indistinção entre exterior e interior. Imaginemos um termômetro avariado, ou um gás cujo comportamento não pode ser detectado por instrumentos de mensuração. Nesse caso, põe-se a distinção entre interior e exterior e criam-se condições lógicas para que se suponha um interior.

Quando eu pergunto: “o que se passará no interior de Zorg, o meu cão?”, eu começo a gerar uma noção de interior. Um interior que só tem sentido, posto por um exterior. Esse parece ser o sentido do que disse Wittgenstein: “Um ‘processo interior’ necessita de critérios exteriores.”

A noção de interior exige, pois, a descontinuidade entre expressão o que é expresso. Nos humanos, a expressão estará associada indelevelmente à linguagem. A novidade representada pela filosofia de Wittgenstein não releva tanto do papel por ele conferido à linguagem quanto do fato de que aquilo que chamamos de interior atua pela linguagem sob a forma privilegiada de expressão ou do uso expressivo da linguagem. A linguagem exprime o interior, o exterioriza, e é condição de dizer do interior, mesmo para aquele que fala e supõe não possuir um interior. Voltamos ao ponto: o fato da linguagem impõe que o interior seja descrito por critérios exteriores a ele.

Os termos postos por António Marques mais uma vez ajudam-nos a elucidar o ponto: o interior é uma pseudo-entidade que se deve assocíar não à imagem de uma caixa a que apenas o próprio tem acesso, mas sim a formas linguísticas expressivas que introduzem assimetrias inultrapassáveis entre a perspectíva da 1ª pessoa (isto é, que diz “eu tenho uma dor”) e a da 3ª pessoa (que diz “ele tem uma dor”).[26] A autoridade da 1ª é inteiramente distinta da 3ª. A 3ª poderá duvidar que tenho dor; eu jamais poderei dizer “duvido que meu ouvido direito está a doer”.[27]

Fixemo-nos no tema das formas linguísticas, expressivas, presentes nos jogos de linguagem que definem, descrevem e tornam familiares os itens que compõem nossa experiência da vida comum. Delas vamos saltar para o tema da crença.

Ter um interior implica, pois, ter uma linguagem. Ou melhor, existir em uma linguagem, que, não sendo privada, relaciona-se com uma experiência com o mundo. O modo dessa relação dá-se pelo fato de que o caráter expressivo da linguagem, para além de regras gramaticais que lhe são próprias, carrega consigo uma teoria do mundo, um conjunto de suposições de natureza ontológica. Quando digo: em alguns minutos terminarei minha fala, a sensação de alívio sentida por vocês decorre de uma teoria sobre um estado de mundo no qual tal alívio é possível.

Teorias sobre o mundo são um atributo da condição humana e têm como potência deflagradora o domínio da crença. São as crenças que nos vinculam ao mundo, como fixadores em contextos de acolhimento que nos afastam do espectro sempre próximo e possível da condição náufraga. A crença é uma potência de fixação no mundo. Em termos antropológicos, o ponto decorre da perspectiva claramente posta por Michel de Montaigne – e devidamente explorada em trabalho seminal de Fréderic Brahami[28] -, presente na ideia do homem como um animal que crê. A perspectiva da crença indica uma alternativa de fixação da condição humana, apresentada pelos céticos, que dispensa o recurso a uma natureza pré-reflexiva e ao salto em direção a seu antípoda usual e super-reflexivo, a reta razão. Por localizar-se, por assim dizer, a jusante da natureza e a montante da razão, a crença apoia-se em um instante intermediário constituído pela ação humana.

Se coube a Montaigne a originalidade indicada, em David Hume encontramos a descrição dos princípios básicos de operação da crença[29]. Há dois marcadores fortes no argumento humano a respeito da centralidade da crença na experiência de mundo dos humanos;[30] (i) a presença da crença é compulsória, como condição necessária para a vida humana e para a sociabilidade; (ii) a história é o campo de prova no qual o processo de definição e cristalização das crenças tem lugar.

Nossas crenças ordinárias – nas quais estão inscritos diversos conteúdos substantivos particulares – sustentam-se em algumas crenças naturais. O conteúdo das crenças transforma-se com o tempo e com os usos, por certo, mas parece haver características fixas que constituem o que Hume designa como crenças naturais. Seguindo ainda Hume, uma crença natural é portadora dos seguintes atributos: (i) é incapaz de justificação racional; (ii) sua ausência tornaria impossíveis as atividades normais da vida comum; e (iii) é universalmente aceita;

Que atos de crença poderiam preencher esse triplo critério? Três parecem adequar-se à figura à perfeição: (i) crença na existência contínua de um mundo exterior e independente de nossas percepções; (ii) crença em que as regularidades que ocorrem em nossa experiência constituem uma base confiável para compreender as que ainda ocorrerão; (iii) crença na confiabilidade dos nossos sentidos.

Essas três modalidades de atos de crença – todas situadas em camadas profundas da condição humana – podem ser tomadas como condições necessárias para crenças na (i) regularidade do mundo; na (ii) previsibilidade dos eventos e de suas séries e (iii) em nossa consistência epistêmica.

A conexão entre crença hábito é direta. O hábito, em sua dimensão mais básica, é um hábito de agir e de crer. Ambos, hábito e crença, são, pois, compulsoriamente constitutivos da common life e de um padrão de regularidade e estabilidade que circunscreve a experiência humana no mundo. Mundo que não se constitui por nenhum desígnio sobrenatural ou determinação naturalística, mas pela operação da história. Essa, por sua vez e tal como nos aparece na monumental History of England, escrita por Hume, pode ser definida como o conjunto dos esforços humanos para simular e criar formas de estabilidade, através das crenças e do hábito.

A mesma inspiração, no que diz respeito ao papel crucial da crença na configuração do mundo humano, será encontrada no século XIX no filósofo Charles Sanders Peirce, fundador do pragmatismo. Peirce retomou uma inspiração forte, emanada do “Clube Metafísico” – círculo criado em Cambridge, do qual fazia parte -, ali introduzida por Nicholas St. John Green. Green, segundo o próprio Peirce, enfatizou a importância da definição de crença, desenvolvida por Alexander Bain, filósofo e psicólogo escocês que se ocupou do tema das relações entre crença e atividade prática.[31] Em chave nitidamente humiana, Bain havia definido a crença como um “hábito de ação”, ou como “o que constitui a base sobre a qual um homem se dispõe a agir”.[32] Ao citar essa definição, Peirce acrescenta que o pragmatismo “não passa de um corolário”.[33]

Para voltarmos à chave originária de tudo isso, em David Hume a projeção do presente no futuro – e, por aí, a própria experiência do tempo – parte da suposição inegociável de que haverá regramento e repetição. Trata-se do modo humano próprio de operar no mundo, pelo qual a fixação da crença regula a alucinação, pela instituição de um domínio regrado, sendo ela mesma – a crença – um produto alucinado da experiência com nossas impressões do mundo. Os meandros da crença, portanto, põem-se a serviço de uma vontade de ordem e de previsibilidade.

O hábito e a crença operam, ainda, como mecanismos de regulação da potencialidade anárquica que está inscrita em nossos jogos de associação de ideias. É que a mente, para Rume, não é uma câmara secreta, acessível a seu portador como um espaço no qual se inscrevem ideias claras e distintas, e cujo fundamento não dispensa certa regressão mais do que metafísica, na direção da teologia.

Com efeito, no Tratado da natureza humana, há três momentos nos quais os temas do self e da mente são considerados:

  1. (…) aquilo que chamamos uma mente não é senão um feixe ou coleção de diferentes percepções unidas por certas relações, e as quais supomos, embora falsamente, serem dotadas de uma perfeita simplicidade e identidade.[34]
  2. À parte alguns metafísicos (…), arrisco-me, porém, a afirmar que os demais homens não são senão um feixe ou uma coleção de diferentes percepções, que se sucedem umas às outras com uma rapidez inconcebível, e que estão em perpétuo fluxo e movimento.[35]
  3. (…) o eu, ou seja, aquela sucessão de ideias e impressões relacionadas, de que temos uma memória e consciência íntima.[36]

As imagens de Hume a respeito da mente indicam um movimento incessante, no qual a desordem das percepções não encontra nas ideias um receptáculo apaziguador. Essas, por sua vez, encontram-se vinculadas a inúmeros modos associativos possíveis. É como se tais modos constituíssem uma dimensão imanente ao humano e encontrassem apenas na trama “objetiva” e exterior das crenças e do hábito limites externos e dutos por meio dos quais a alucinação humana se põe a serviço de um programa de construção de sentido e de inteligibilidade da experiência.

O notável em David Hume é que não hâ nenhuma sustentação em tal programa, a não ser as crenças e a alucinação. Com Hume, dispomos de uma descrição plausível do que consiste a condição humana, por uma apresentação do que constitui o seu interior. Um interior vazio de significados, mas como que espremido entre dois imperativos. O primeiro deles representa a força do que Hume define como a própria natureza humana, presente na proposição de que ela nos obriga tanto a respirar como a julgar (e crer). O segundo é o imperativo das circunstâncias históricas e culturais, nas quais o esforço de sentido e a vontade de inscrição encontram seu lugar próprio e irrecorrível de ocorrência.

A partir de Hume dispomos, ao mesmo tempo, da possibilidade de imaginar o abismo implicado na refutação daqueles atributos básicos. Em outros termos, a imagem de um mundo no qual as crenças e o caráter expressivo da linguagem são suprimidos pode nos aparecer como a mais radical refutação do humano. Como veremos, tal cenário não está inscrito apenas no domínio dos possíveis, mas estabeleceu-se como o grande contributo do século XX à história dos humanos.

5. Já conhecemos a experiência da destruição do humano

Segundo Wittgenstein, “um ‘processo interior’ necessita de critérios exteriores”.[37] Sendo assim, o que dizer de um estado de mundo no qual o exterior implica a destruição inapelável do interior? Um estado de mundo no qual toda a capacidade/utilidade de crença foi suprimida, e com ela as perspectivas de instauração de sentido e de inscrição no plano da experiência; um estado de mundo no qual a distinção interior/exterior se esvai, pelo simples fato de que nada significa ou apazigua dizer “só há um interior, diante de um exterior”.

Nesta seção do texto pretendo considerar um cenário no qual a crença como atributo humano necessário encontra um estado terminal. O campo de extermínio, tal como se depreende da narrativa de diversos sobreviventes, pode ser considerado um experimento de erradicação das crenças básicas e ordinárias de suas vítimas, para além da destruição de seus corpos.[38]

As crenças comuns nada valem em Auschwitz, já que se reportam a um passado suprimido, e perderam toda a capacidade de sustentar expectativas críveis a respeito do futuro. O aspecto da destruição das crenças ordinárias das vítimas não escapou aos que sobreviveram ao campo para dar seu testemunho. Bruno Betelheim, por exemplo, mencionou o desencontro entre as crenças habituais dos prisioneiros – cidadãos europeus do planeta Norbert Elias, respeitosos da justiça e de seus agentes – com o fato de estarem sob intenso regime punitivo:

(…) mesmo nos campos, a crença no poder e na justíça encarnados, pela polícia era tão forte que os prisioneiros, não se dispunham a acreditar que eram ínjustamente perseguidos, (…) eles, voltavam-se para suas mentes para nela.s encontrar alguma culpa em si mesmos.[39]

Como em tempos ordinários, as vítimas associavam punição a culpa, e em assim o fazendo procediam como animais humanos básicos, ávidos por sentidos e explicações causais. Não era exatamente a culpa que perseguiam, mas o sentido. Na mesma chave, a expressão de David Rousset é pungente: o campo é habitado por des hommes porteurs de croyances détruites.[40] O relato de Primo Levi – em particular em seu é É isto um homem?, publicado originalmente em 1947 – é o que melhor descreve o processo de aniquilamento das crenças ordinárias dos que foram submetidos ao campo de extermínio.[41]
O estado de mundo descrito por Levi possui a marca da imprevisibilidade. O que a sustenta é uma completa ausência de regularidade causal. Um dos eventos mais pungentes de É isto um homem? descreve justamente um experimento de suspensão de causalidades ordinárias. Ele é narrado em um capítulo significativamente designado como “No fundo”.[42]

Primo Levi acaba de chegar a Auschwitz e passa pelos rituais de iniciação, como diriam os antropólogos. Acaba de ser transformado em um Häftling – “aprendi que sou um Häftling” -, cujo “nome” passa a ser 174517, marca tatuada no braço para sempre. A seguir, uma longa sessão de espera. Todos de pé, por cerca de 12 horas. Empurrado pela sede, descobre no lado de fora de uma janela um pedaço de gelo. Abre a janela, arranca o gelo e dirige-o à boca. Mas, antes que o ato natural se consume, o guarda do campo tira violentamente o objeto cobiçado de sua mão. Diante do gesto brusco, a atitude de Primo Levi é típica e basicamente humana: pergunta, em seu “pobre alemão”, ao guarda: Warum? A resposta vale por uma iniciação à ontologia do campo de extermínio: Hier ist kein warum (Aqui não há porquê).

Estamos diante de uma das passagens mais notáveis de toda a obra de Primo Levi. Ela exibe algo impensável: um mundo onde não há “porquê”. Impensável, posto que os humanos são animais movidos pelo esforço de sentido e pela vontade de inscrição, o que os faz, por definição, inventores de explicações a respeito do mundo. Um mundo onde não há porquê é um domínio no qual tais narrativas não podem ter lugar. A supressão do porquê é, ainda, evidência da ausência de sistema, ou de qualquer regularidade minimamente cognoscível. A ordem do acontecer resulta de uma precipitação permanente no imprevisível, em uma fenomenologia avessa a causalidades ordinárias.

A certeza da dor é o único lastro de ordem possível e constitui um regime de irrecorrível evidência da realidade do mundo. A certeza da dor não pode ser considerada, contudo, substituto ontológico apaziguador para um novo regime de evidências, já que diante dela as crenças ordinárias das vítimas perdem qualquer capacidade cognitiva, vale dizer, qualquer utilidade. Um novo regime de crenças exigiria um mínimo de regularidade causal, para que as mais simples associações de ideias e reconhecimentos de repetições e concomitâncias pudessem constituir uma nova base epistêmica.

Tal possibilidade é sistemicamente negada, e, quando constituída, nos interstícios da vida no Lager, indica a presença larvar de formas de resistência. Mas, para o habitante típico do Lager – o “muçulmano” -, a incognoscibilidade do mundo imediato resulta dessa falta básica de sentido, dessa ausência de regularidade causal. Em termos diretos, a supressão das causalidades ordinárias constitui o gesto mais radical na direção de uma desumanização da vida social. Trata-se do requisito existencial mais básico que sustenta a possibilidade do aniquilamento geral.

Diante de um mundo assim constituído, os sistemas mentais apegados à pergunta humana básica a respeito do “porquê” das coisas perdem todo o sentido. Um ceticismo fundo resulta de tal supressão:

Diante desse complicado mundo infernal, as minhas ideias estão conjusas; será mesmo necessário elaborar um sistema e praticá-lo? Ou não será mais salutar tomar consciência do fato de não termos um sistema?[43]

Mas, se nos livra da busca de um sistema geral de interpretação e explicação, tal decisão filosófica é insuficiente para abolir a ordem do acontecer. Em outros termos, mesmo sem sistema, esse mundo insiste em aparecer para mim e impor-me o seu errático sofrimento. A invisibilidade do fundamento não elimina sua dimensão fenomenológica. E diante dela, por mais errática que seja, surge um ânimo, a crermos em Primo Levi, surpreendente: o da curiosidade. Um ânimo frequente no Läger, lugar de seres com “fome de pão e também de enten dimento”.[44]

Auschwitz vale, assim, como a mais radical refutação do mundo humano; apresenta-se como um experimento no qual as crenças ordinárias de seus internos são suprimidas, assim como seus nomes e histórias pessoais. Supressão que tanto se deve à inutilidade prática das crenças, produzidas em um mundo que já não existe e para o qual não se retornará, quanto à progressiva destruição dos seus portadores. Ao perguntar “é isto um homem”?, Levi tem diante de si um ser no qual desapareceu o sujeito, condição necessária para a operação do mecanismo da crença, ou, nas palavras de outro sobrevivente, Paul Steinberg – em Speak you also-, um Homo läger.[45]

Primo Levi descreve a estrutura do caos humano: a transfiguração do humano não estará, nesse caso, inscrita nos processos de aceleração tecnológica e nas utopias e distopias científicas, mas nos próprios (des)arranjos sociais que constituem ilhas cada vez mais alargadas de indeterminação e risco. Universos insulares que bem podem ser descritos como uma das imagens mais fortes do químico judeu italiano, a de complexidade do estado de desgraça. A narrativa de Primo Levi é vital para a exploração tanto do tema da erradicação das crenças naturais e das crenças substantivas ordinárias como para a da destruição da linguagem comum. Em termos diretos, são os contornos de uma antropologia negativa que se apresentam.[46]

Destruição das crenças, morte da função expressiva da linguagem, eliminação do passado e do futuro como horizontes do presente: eis a moldura que envolve o abismo no qual se inscreve o avesso da condição humana.

Apêndice: uma teoria da injustiça

Por fim, da antropologia negativa, passo a uma teoria da injustiça, fundada no desenho lógico do pior dos mundos possíveis. Se John Rawls pode imaginar uma teoria da justiça fundada em uma condição original na qual ignoramos nossas identidades, o campo de extermínio – via Levi, Antelme e outros rescapés – permite-nos pensar em uma teoria da injustiça, como em uma condição terminal na qual aquelas identidades foram destruídas. Uma das vantagens inestimáveis de uma teoria da injustiça é a de que, com ela, evitamos a querela insuperável a respeito do melhor dos mundos possíveis. É inerente ao jogo de linguagem no qual as teorias da justiça estão inscritas a possibilidade da ultrapassagem irrestrita. Em outros termos, qualquer desenho de uma boa ordem pode ser superado por algo ainda melhor, desde que não sejamos dogmáticos anselmianos.

As possibilidades de uma teoria da injustiça exigem a apresentação de um estado de coisas diante do qual uma atitude anselmiana negativada se apresenta como condição necessária: algo cuja malignidade seja submetida à cláusula “nada de maior”. Para tal, é necessária a definição do que pode ser tomado como o pior dos mundos possíveis. Passo à apresentação do argumento.

A premissa necessária para a inteligibilidade do argumento estabelece que, quaisquer que sejam, as interações humanas mobilizam pelo menos duas dimensões necessárias sem as quais não se pode falar em laços sociais significativos: (i) presença de recursos, de retaliação (dimensão I) e (ii) padrões de previsibilidade (dimensão II).

Para fins esquemáticos e dicotômicos, podemos supor que a distribuição dos recursos de retaliação entre os participantes de uma interação social podem estar dispersos, ou concentrados. Os valores polares correspondem, pois, a situações nas quais, pela dispersão, há igualdade na posse de recursos de retaliação ou, pela concentração, há monopólio com relação a esses recursos. Por analogia, os padrões de previsibilidade podem ser altos, ou baixos. Os desenhos possíveis deixam entrever formas de ordem fortemente regradas, marcadas por altos padrões de previsibilidade, e seu oposto, experimentos nos quais tudo é possível.

Imaginem, agora, uma figura composta por quatro celas, na forma abaixo. Na linha vertical da figura está disposta a dimensão previsibilidade. Na linha horizontal localiza-se a dimensão distribuição de recursos, de retaliação.

Distribuição de Recursos de Retaliação

I II

\

III IV

+

Previsibilidade

Concentrados Dispersos

Quatro combinações resultam da associação entre ambas as dimensões:

IV: combinação entre baixa previsibilidade e desconcentração de recursos de poder: trata-se de uma situação típica de estado de natureza hobbesiano, caracterizado pela ausência de regras e de normas internalizadas e pela igualdade de recursos entre os envolvidos nas interações;

I: saída hobbesiana do estado de natureza: um quadro de previsibilidade alta com concentração de recursos de poder; trata-se de uma saída da imprevisibilidade constitutiva de IV, por meio da concentração dos recursos de retaliação nas mãos de um soberano (pode ser denominada, ainda, a cela Jean Bodin ou Hobbes;2 );

II: desdobramento virtuoso de I: a soberania apresenta-se de modo menos concentrado, enquanto os padrões de previsibilidade permanecem elevados; o cenário corresponde às passagens de regimes autoritários, com soberania concentrada, para regimes mais abertos com incorporação popular, regramento institucional e estado de direito;

III: o pior dos mundos possíveis: concentração de recursos de poder cum alta imprevisibilidade. Aqui a cela dos genocídios contemporâneos e de sua máxima expressão, o campo de extermínio (cela Auschwitz).

Distribuição de Recursos de Retaliação

I

Soberania Una e Indivisível (Cela Bodin)

II

Estado de Direito Democrático

III

Cela Auschwitz

IV

Estado de Natureza (Cela Hobbes)

+

Previsibilidade

Concentrados Dispersos

A cela III vale como expressão de uma teoria da injustiça: se o enunciado básico da teoria da justiça, em versão ralwsiana, é o da justiça como equidade, o da teoria da injustiça poderia ser injustiça como assimetria e imprevisibilidade. À sua moda, ela encerra um nec plus: ultra: além dela, em nada de pior se pode pensar. A negatividade de Auschwitz acabou por aparecer como fundação e fundamento da tipificação do genocídio como crime contra a humanidade. Nesse caso, a emergência de algo que pode ser percebido como um mal absoluto pode ser tomada como ponto de partida para uma das mais relevantes facetas da moderna definição de Bem Público, a parte do Direito Público Internacional que trata dos crimes contra a Humanidade e seu caráter extraterritorial.

Notas

  1. Ver, em especial, o belo livro Ways of World Making. Indianapolis: Hackett Publíshing Company, 1978. 
  2. Tratei de forma mais demorada dessa questão em Renato Lessa, “O mundo depois do fim, ou da filosofia política e das crenças”. ln: TORRES, Anália; BAPTISTA, Luís (orgs.), Sociedades contemporâneas: reflexividade e acção. Porto: Edições Afrontamento, p. 61-81. 
  3. Cf. LEFORT, Claude. Les Formes de l’Histoire: essais d’anthropologie politique. Paris: Gallimard, 1978 (há edição brasileira, pela Editora Brasiliense, 1979, traduzida por Marilena Chaui e Luiz Roberto Salinas Fortes). 
  4. Cf. FRIEDRICH, Hugo. Montaigne. Paris: Gallimard, 1968, p. 14. 
  5. Cf. MONTAIGNE, Michel de. Essais Pierre Villey (org.), Paris: Presses Universitaires de France, 1992, III, 2, p. 804 
  6. Cf. FRIEDRICH, Hugo, op. cit., p. 15. 
  7. Em especial, refiro-me a dois textos de Ernst Cassirer – Filosofia das formas simbólicas (São Paulo: Martins Fontes, 2004) e Ensaio sobre homem: introdução a uma filosofia da cultura humana (São Paulo: Martins Fontes, 2005) – e o livro de Goodman já citado. 
  8. O tema da crença foi tratado por Fernando Gil em vários momentos de sua obra. Ver em especial Modos da evidência. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1998 e A convicção, Porto: Campo das Letras, 2003. 
  9. Ver LESSA, Renato. “O que mantém um homem vivo: devaneios sobre algumas transfigurações do humano”. ln: NOVAES, Adauto (org.). Mutações: ensaios sobre as novas configurações do mundo. Rio de Janeiro: Agir; São Paulo: Edições SESC-SP, 2008. 
  10. Cf. ESPINOSA. Ética. Lisboa: Relógio D’Água, 1992, Parte III. 
  11. Cf. DAMÁSIO, António. Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos Sentimentos. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 44-45. 
  12. Cf. ARENDT, Hannah. A condição humana, Rio de Janeiro: Forense, 1981. 
  13. Cf. FREUD, Sigmund. Mal-estar na cultura. ln: Freud. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Cal. Os Pensadores). 
  14. Para a edição brasileira, ver Primo Levi. Os afogadoa e os sobreviventes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004. 
  15. Cf. BLUMENBERG, Hans. Naufrágio com espectador. Lisboa: VEGA, 1990, p. 22. 
  16. Ibid. p. 21. 
  17. Cf. ALTHUSSIUS, Johanes. Política. Rio de Janeiro: Liberty Fund/Topbooks, 2003. p. 103-104. 
  18. “O que mantém um homem vivo: devaneios sobre algumas transfigurações do humano”. ln: NOVAES, Adauto (org.), Mutações: ensaios sobre as novas configurações do mundo, p. 130. 
  19. Idem, p. 131. 
  20. Cf. STAROBINSKI, Jean. Montaigne em movimento. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 20. 
  21. Cf. Santo Agostinho. Confissões. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2006, Livro X, 7, p. 222-223. 
  22. Cf. WITTGENSTEIN, Ludwig. Last Writings on the Philosophy of Psychology. Vol. 2. G. H. von Wright and H. Nyman (org.). Oxford: Basil Blackwell, 1982, p. 84. 
  23. Cf. MACINTYRE, Alasdair. Justiça de quem? Qual racionalidade?. São Paulo: Loyola, 1991, p. 28-29. 
  24. Cf. MACINTYRE, Alasdair, op. cit., p. 29. 
  25. Cf. MARQUES, António. O interior: linguagem e mente em Wittgerutei.J,n. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003. 
  26. Cf. MARQUES, António, op. cit., p. 13. 
  27. Elaine Scarry, em seu excelente The Body in Pain: the Making and the Making of the World (New York: Oxford University Press, 1985), sugere que a experiência pessoal da dor é o que mais nos aproxima da certeza filosófica, enquanto a ideia de dor dos outros é o que mais se aproxima da dúvida filosófica. Essa é uma das implicações da distinção entre as perspectivas da 1ª e da 3ª pessoa. 
  28. Cf. BRAHAMI, Fréderic. Le travail du scepticisme: Montaigne, Bayle, Hume. Paris: Presses Universitaires de France, 2001. 
  29. O “material” básico dessa investigação encontra-se no Livro I, do Tratado da natureza humana. Cf. HUME, David. A Treatise of Human Nature (Ed. Selby-Bigge). Oxford: Clarendon Press, 1987. Há edição brasileira: HUME, David. Tratado da natureza humana (Trad. Déborah Danowski). São Paulo: Unesp, 2000. 
  30. Retomo aqui os termos do tratamento da questão da crença por mim desenvolvidos em Renato Lessa, “Cepticismo, crenças e filosofia política”. ln: GIL, Fernando; CABRAL, João de Pina; LIVET, Pierre (orgs.). O proceuo da crença. Lisboa: Gradiva, 2004, p. 29-49. 
  31. Cf. BAIN, Alexander. The emotions and the Will (1859), apud COMETTI, Jean-Pierre, Filosofia sem privilégios. Porto: Edições ASA, 1995, p. 12-13. 
  32. Idem, p. 12-13. 
  33. Idem, p. 13. 
  34. Cf. HUME, David. Tratado da natureza humana. Livro I, parte IV, Seção II, p. 240. 
  35. Idem, Livro I, Parte IV, Seção VII, p. 285 
  36. Idem, Livro II, Parte I, Seção II, p. 311. 
  37. Cf. WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. São Paulo: Abril Cultural, 1986 (Cal. Os pensadores). 
  38. As referências mínimas e compulsórias para tal estão em diversos textos de Primo Levi – notadamente Se questo è um uomo, Torino: Einaudi, 1984 e I sommersi e I salvati, Torino: Einaudi, 2003 – e no livro de Robert Antelme L’Espèce Humaine, Paris: Gallimard, 1957. Procurei desenvolver a questão em diversos ensaios, tais como “David Hume e Primo Levi em Auschwitz: notas sobre um experimento de supressão das crenças ordinárias”, ln: Manuel Villaverde Cabral, José Luís Garcia e Helena Mateus Jerônimo (orgs.), Razão, tempo e tecnologia. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, zoo6 e “Pensar a Shoah”, ln: FUKS, Samuel; GEIGER, Paulo (orgs.), Tribunal da História, Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2005. 
  39. Cf. BETELHEIM, Bruno. Surviving and Other Essays New York: Knopf, 1980, p. 329-330. 
  40. Cf. ROUSSET, David. L’Univers concentrationnaire. Paris: Minuit, 1965, p. 13. 
  41. Cf. LEVI, Primo. É isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco, 1988. 
  42. Idem, p. 30-35. 
  43. Idem, p. 40. 
  44. Cf. LEVI, Primo. “Auschwitz, cidade tranquila”. ln: LEVI, Primo. O último Natal de guerra. São Paulo: Berlendis, 2002, p. 56. 
  45. Cf. STEINBERG, Paul. Speak You Also. London: Penguin, 2002. 
  46. Desenvolvi o ponto em “O silêncio e sua representação”. ln: SCHWEIDSON, Edelyn (Ed.). Memória e cinzas. São Paulo: Perspectiva, 2009 (no prelo). O texto está disponível em <http://www.estudoshumeanos.com/pdf/o-silencio-e-sua-representacao.pdf>. 

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