1987

Paixão da igualdade, paixão da liberdade: a amizade em Montaigne

por Sérgio Cardoso

Resumo

Já no tempo do filósofo Michel de Montaigne, muito se escrevia como exercício de dissertação. Não ele – para quem todo tema a ser tratado era-o a partir da experiência. A amizade em especial. Daí que, em busca de uma definição para ela, Montaigne decifra-se a si mesmo, traçando “em carne viva seu auto-retrato”. Prática que poderia, hoje, soar banal, não fosse a profundidade e a vitalidade com que ele a realizou, num formato literário até então inexistente: o ensaio.

Na verdade, a amizade está na origem da obra-prima de Montaigne; mais exatamente, a morte de Etienne de la Boétie – o maior amigo do autor. Acontecimento de tamanha magnitude para ele, que escreve: “O mesmo dia trouxe a ruina de ambos”.

De fato, a vida do pensamento tem parte com a morte. Assim, é como se não só no ensaio Da amizade, como no livro todo, Montaigne buscasse reaver a consistência de si, desfeita depois da perda brutal. Nesse sentido, a seguinte citação é exemplar: “Assim como quem quer contemplar-se olha-se no espelho quem quer conhecer-se olha-se no amigo”.

La Boétie morreu em 1563. Em 1571, Montaigne, aos 38 anos, retira-se da vida pública para viver em suas terras, onde escreve, tomado pelo sentimento da proximidade da morte.

Estaria sozinho, não fossem os livros, inclusive os que serviram de referência à Da amizade. Notadamente, Lélio de Cícero, as Confissões de Santo Agostinho e o Phédon de Platão, todos escritos “in memoriam” de um amigo, como se fosse necessário viver a falta para descobrir a existência.

Da amizade destoa, entretanto, da tradição, sobretudo pelo seu tom mais alto e intenso. É que nada que Montaigne leu sobre o assunto compara-se ao que sentia então. Tanto que, diferente do discurso clássico – que trata da amizade em termos de proximidade de almas –, ele a trata como fusão delas. Até porque, para os antigos, mesmo a virtude precisa de limites, de modo que, assim como a coragem não pode passar à temeridade, a amizade à patologia. Do contrário, condiciona-se o equilíbrio de si ao outro.

Pois não é que Da amizade é todo um jogo de condições? Não por acaso Montaigne lança-se à tarefa de relacionar toda a gama de coincidências e relações afetivas que determinam a coexistência humana. Tudo em busca da amizade que viveu e acontece uma vez a cada “três séculos”. É assim que chega à “téléia philia” (união perfeita) aristotélica. Sem brechas nem fissuras. Mas Montaigne quer ir além.

Para começar, é possível dividir o ensaio em dois momentos: o crítico e o construtivo. No primeiro, a ênfase recai sobre os significados da palavra “amizade” e correlatas. A outra consiste na busca incessante da definição exata do que Montaigne sentia por la Boétie.

Neste caso, – de maior interesse –, o que há de mais valoroso e belo é que Montaigne, à medida que recolhe e vê escapar-lhe a amizade – como aconteceu com o amigo mesmo –, ele vai dando corpo a si por meio da “vida extravagante” de um livro que interroga, testemunha, apela.

É como se tudo isso – esse retrato honesto de si mesmo – concorresse para o encontro de um novo amigo real, o que Montaigne amargou até a morte. Não esperava que sua obra entrasse para a história, de modo a estabelecer uma phillia além do tempo e do espaço.


Para Bruninho e Marcela

Os amigos que organizaram este curso por pouco não incluíram esta palestra no último de seus módulos, dedicado à paixão revolucionária. Pois o título que escolhi — “Paixão da igualdade, paixão da liberdade” — não nos parece hoje associar-se imediatamente ao meu tema: a amizade. Antes, as palavras liberdade e igualdade, conectadas, parecem sinalizar-nos, de pronto, o espaço político; e, na perspectiva da História (lembro que, sem nenhuma traição a Montaigne, poder-se-ia juntar a elas a palavra fraternidade), nos remetem aos emblemas e valores centrais mobilizados pelas chamadas Revoluções Burguesas.

Montaigne, certamente, não me perdoaria esta indução ao mal-entendido, o descuido e a indelicadeza de fazê-lo partilhar a companhia — para ele tão incômoda — dos que aspiram a transformações radicais da ordem social e política. Em certos pontos esse homem, sempre tão tolerante e complacente, parece intransigente — intraitable. “Eu voltaria do outro mundo”, diz ele no terceiro livro dos Ensaios, “para desmentir aquele que me fizesse diferente do que fui, ainda que com a intenção de me honrar” (livro III, 9).

Ora, sabemos que, como herdeiro dos papéis de seu amigo La Boétie, renunciou à publicação do Discurso da servidão voluntária, a mais preciosa de suas “relíquias” — “ela serviu de meio a nossa primeira aproximação” —, para não corroborar sua apropriação pelos revoltosos huguenotes, os revolucionários de então. E conhecemos bem a importância desse texto na economia de sua obra. Ele deveria preencher “o mais belo espaço e o centro” do seu quadro, desse grande painel da sua experiência e reflexão sobre a “estranha” condição humana. Seus ensaios nada mais seriam, diz ele próprio, do que o preenchimento decorativo do espaço circundante: a explicitação inesgotável (e fortuita) desse motivo central pelo pincel “ocioso” dos seus devaneios, guarnecendo-o do que Michel Butor chamou um “enquadramento maneirista”.[1] Assim, renuncia à “melhor parte” do seu quadro — “a mais rica, polida e formada segundo a arte” — para não legitimar seu uso “por aqueles que buscam perturbar e mudar o estado da nossa Sociedade (police), sem se preocupar se a corrigirão”, e por recusar-se a dar motivos para comoções sociais maiores (à leur fournir dequoy les émouvoir davantage) (livro I, 28).

Que os menos familiarizados com ele não pensem todavia que há nesse homem — membro do Parlamento de Bordeaux e depois seu prefeito, integrante de missões diplomáticas e, mais de uma vez, conselheiro de Henrique IV — desdém pela coisa pública e pela política. Trata-se apenas de que os valores mencionados — a fraternidade, a igualdade, a liberdade — encontram para ele seu sentido fundamental noutro registro, o da Amizade. E, se é certo que a amizade ilumina a reflexão política, não o é menos que, em Montaigne, ela se diz primeira e propriamente no âmbito das relações particulares e não no domínio público; diz respeito à ética em primeiro lugar, e só por extensão à política.

A reflexão sobre a amizade — e tudo que escreve — não é em Montaigne, como muitas vezes em outros humanistas, apenas exercício num tema clássico de dissertação. Pensa sua experiência da amizade e pensa-se nela. Decifra-a e dicifra-se, traçando, como diz, em carne viva (au vif) seu autorretrato. Mas esta interpretação da vida e da obra — constatação certamente banal relativa a toda atividade literária — atinge nele uma profundidade rara. Aí, mais do que nunca, a obra faz-se a vida, não tira apenas dela sua origem e alimento; pois, na verdade, sua obra nasce da experiência e proximidade da morte. A escrita, aqui, apenas suspende e retarda a morte. Por ela, o instante fatal como que se prolonga e estira, propiciando ao autor um suplemento de vida, vazado de melancolia: “Filosofar é aprender a morrer”, diz. É, pois, esta vida suplementar, vida do pensamento, que nos oferece seu livro. “Tola e fantástica empresa”, diz ele,”[…] tão distante dos usos comuns” (livro II, 8). A madame d’Estissac fala da origem dos Ensaios: “Foi um humor melancólico, um humor portanto tão contrário à minha compleição natural, produzido pelo aborrecimento da solidão que primeiro me pôs na cabeça o devaneio de escrever. E, então, encontrando-me inteiramente desprovido e vazio de qualquer outro assunto, dei-me a mim mesmo como assunto e argumento. Esse livro é o único do mundo em seu gênero, proveniente de um propósito bruto [farouche] e extravagante” (livro II, 8).

É a perda do amigo Etienne de La Boétie que está na origem dos Ensaios e vem dela essa experiência do vazio e da proximidade da morte. Assim se o tema da amizade é central é porque nele se encena o grande cataclismo: a perda do amigo e com ela seu próprio desabamento. Ele próprio, tomando de empréstimo as palavras de Horácio, testemunha: “O mesmo dia trouxe a ruína de ambos” (livro I, 28). Perda e busca tramarão, portanto, juntas essa vida extravagante que se recusa a aderir a si mesma, que não descansa mais numa identidade, e por isso se ensaia sempre, na indeterminação. “Si mon âme pouvait prendre pied, se ne m’essaierais pas” (livro III, 2), diz com a mais tocante simplicidade. De fato, a vida do pensamento tem parte com a morte. Escapa-lhe indefinidamente a firmeza da carne, a lisa solidez da positividade. O pensamento tateia, deseja a resolução do corpo. “Estudo-me mais que qualquer outro assunto. É minha metafísica, é minha física” (livro III, 13). Montaigne busca os contornos de um eu a que aquela amizade, enigmaticamente, parecia conferir consistência.

Leitor de Aristóteles, Montaigne sabe que “não podemos nos contemplar a nós mesmos a partir de nós mesmos”. Mais que ninguém experimentara a profunda observação do filósofo: “Do mesmo modo que quando queremos contemplar nosso rosto fazemo-lo olhando-nos num espelho, assim também quando queremos conhecer-nos a nós mesmos, conhecemo-nos vendo-nos em um amigo. Porque o amigo, dizemos, é um outro nós mesmos”. Só o amigo pode, então, dar corpo e consistência à alma, repouso ao seu fugidio no seu reiterado esforço por fazer sentido? “Apenas ele desfrutava da minha verdadeira imagem e levou-a consigo. É por isso que me decifro a mim mesmo tão curiosamente”.[2] As perdas são sempre muitas. (Afinal, o mundo não é senão mudança e movimento, sob a lua e as fixas estrelas de uma talvez sonhadora teologia!) Só uma, todavia, se revela realmente mortal: a perda do amigo, quando a amizade — sendo verdadeira — sintetiza a multiplicidade fluida e inconstante da própria vida, oferecendo-se como um polo de referência, no espaço e no tempo, da existência que também se deseja em si. O amigo nos espelha e nos identifica. Por isso talvez Aristóteles — que Montaigne acompanha de perto — tenha dito na abertura de sua grande dissertação sobre a amizade que ela “é o que há de mais necessário para viver” (Ética a Nicômaco, VIII, 1, 1155 a, 4).

La Boétie morrera em 1563. Anos depois, em 1571, o senhor de Montaigne, aos 38 anos, retirado da vida pública e instalado em suas terras, tendo transferido para a torre da casa senhorial a biblioteca que herdara do amigo, passa ali “os dias que lhe restam a viver” (pois acredita sempre, desde então, que o fim está próximo: “Sinto a morte que me alfineta continuamente a garganta e os rins”, diz) a pensar, ler e escrever.

Numa das duas inscrições latinas que faz então gravar nas paredes de sua librairie lia-se o seguinte: “Privado do amigo mais suave, o mais caro e o mais íntimo, e tal que nosso século não viu melhor, mais douto, mais agradável e mais perfeito, Michel de Montaigne, querendo consagrar a lembrança desse mútuo amor por um testemunho único de seu reconhecimento, e não podendo fazê-lo de maneira que o exprimisse melhor, consagra a esta memória esse estudioso aparelho de que faz suas delícias”. Entre os livros do amigo vai nascendo seu livro: tributo a sua memória, testemunho da diversidade das formas da sua própria inconstante condição, apelo a um amigo futuro (“Oh un amy”). Neste livro, em seu centro, um dos mais belos elogios da amizade.

O caso Montaigne na tradição literária da amizade não é propriamente uma exceção. Como os povos felizes — já se disse — não têm história, os sentimentos vitais, contentes e continentes, poucas vezes, enquanto vigem, dublam-se em reflexão e discurso. Por isso, certamente, a clave da perda marca tanto essa literatura e a tinge tão estranhamente de melancolia. (É que talvez os relevos dos grandes sentimentos humanos só se deixem mesmo apalpar pelo avesso: a falta permite, mais facilmente, sondar a profundidade do pleno, a dor do contentamento.) Com efeito, ao pensarmos nos grandes textos sobre a amizade, vêm-nos de imediato à lembrança a bela dissertação do Lélio de Cícero, brotada do interior de seu luto pela morte de Cipião, o sensível capítulo das Confissões de Santo Agostinho dedicado à memória do amigo, ou mesmo o Fédon de Platão e seu relato pungente da morte de Sócrates e de seu impacto sobre aqueles que o filósofo justamente chamava phíloi. Montaigne tem pois predecessores insignes, e, explicitamente, incorpora o seu texto nessa linhagem.

E, no entanto, ao ler seu ensaio (livro I, 28), sentimos que dissoa bastante do andamento mais moderado dessas composições da tradição. Sua dissertação, sentimos logo, engata alturas mais elevadas, vibra de modo mais intenso. Montaigne radicaliza. E ele o sabe: “Os discursos mesmos que a Antiguidade deixou sobre este assunto me parecem frouxos perto do sentimento que tenho”. Com ele, pois, a grandeza daquelas amizades se expande num elemento mais vasto, desafia a moderação, vai ao superlativo. A estreita proximidade das almas que parecia ser o núcleo das grandes amizades aqui se ultrapassa; chega à fusão e assim toca o sublime. “Na amizade de que falo” — diz ele — “elas [as almas] se misturam e se confundem uma na outra, numa mistura tão inteira que apagam e não encontram mais a costura que as juntou” (livro I, 28). É esse o motivo que domina a composição. Ele apenas voluteia e se enriquece pela combinação com outras notas, mas tudo arrasta consigo.

É preciso, porém, confessar que mesmo a emoção que esse motivo inapelavelmente carrega não desarma o entendimento de modo tão fácil. Como esquecer as ponderações dos antigos? Se, como escreve Aristóteles, “a amizade é virtude ou implica virtude” e se esta se efetiva justamente na moderação e na medida, como não desconfiar dessa exacerbação do sentimento, como não temer nela hyperbolé e hybris, o excesso e a desmedida? Mesmo as virtudes, ensinam os clássicos, têm sempre algum limite que não podem ultrapassar. Coragem excessiva, sabemos, é temeridade; a amabilidade extremada desanda em complacência, como a boa modéstia na reprovável timidez. É necessário dosá-las. E só a ação voluntária e racional da alma empresta ordem às tumultuadas paixões e refaz a hierarquia dos fins. O excesso tem parte com o vício. A desmedida indica a “monarquia” — patológica — das afecções passivas e a incapacidade para o equilíbrio e o esclarecido domínio de si. Ora, a amizade a que se refere Montaigne não trocaria esse país temperado da virtude pelo clima instável do inóspito território da paixão? Mesmo quando, enlevados, ouvimo-lo testemunhar sua afeição por La Boétie essa dúvida se acende; sentimos que há aí algo de farouche et extravagant: “Não foi uma consideração especial, nem duas, nem três, nem quatro, nem mil. Foi não sei que quintessência de toda essa mistura que tendo arrebatado toda minha vontade levou-a a mergulhar e perder-se na sua, que tendo arrebatado toda sua vontade levou-a a mergulhar e se perder na minha, com um apetite e uma precipitação semelhantes. Digo ‘perder-se’ propriamente, pois não nos reservava nada que nos fosse próprio, que fosse seu ou meu” (livro I, 28). As vontades se misturam, as almas se confundem; e sua fusão nos confunde também.

Contudo, pensarão alguns, talvez a dificuldade não passe de um problema de sinalização semântica, talvez tenhamos apenas um quiproquó de nominação. Pois o que incomoda o leitor — seja o frequentador dos clássicos ou aquele adestrado apenas nos usos comuns da língua — não parece ser tanto o depoimento — por certo tocante, primoroso e invulgar —, mas o recurso aparentemente abusivo à palavra amizade. O jovenzinho mais inexperiente, a religiosa de coração mais puro ou o homem de espírito mais grosseiro e insensível não reconheceriam todos, nele, a sintomatologia da paixão? O que dizer, por exemplo, deste texto? “Há para além de todo meu discurso e daquilo que eu possa particularmente dizer, não sei que força inexplicável e fatal, mediadora dessa união. Nós nos buscávamos antes de nos termos visto; e pelos relatos que ouvíamos um do outro, que faziam em nossos afetos mais efeito que os relatos podiam explicar, creio que por alguma disposição do céu, abraçávamo-nos por nossos nomes. E, no nosso primeiro encontro, que se deu por acaso em uma grande festa e companhia social, nos vimos tão ligados, tão conhecidos e mutuamente reconhecidos que nada, desde então, nos foi mais próximo que um ao outro” (livro I, 28). Quantos amantes não se reconheceriam em tão belas palavras. Mesmo o clássico coup de foudre, a faísca à primeira vista — que, aliás, aqui também exorbita — nele está presente. Por que não admitir, então, que a palavra amizade despiste aí uma realidade distinta? Fosse pelos motivos mais diversos: por descuido ou estouvamento com o léxico, pela natural miopia psicológica que embaça a visão dos nossos próprios sentimentos, ou ainda por inocente pudor ou compreensível conveniência. Abuso irrefletido ou álibi astucioso… o certo é que o observador destacado reconheceria de imediato, sublimada ou camuflada nessa fraseologia, a trama quase corriqueira — não obstante sua grandeza — do amor-paixão.

O caso Montaigne não se deixa, porém, apanhar facilmente por esta versão fácil e preguiçosa. Desafia o pronto diagnóstico. Não se trata de um equívoco vocabular. Ele dá, sem hesitar, o nome por certo, e sublinha, ao contrário, a excelência e raridade da experiência que seu discurso busca iluminar (“São necessárias tantas coincidências [rencontres] para edificá-la, que já é muito que a fortuna chegue a elas uma vez em cada três séculos”). É esta a empresa, justamente célebre, do capítulo XXVIII, erguido bem no centro do primeiro livro de seus Ensaios. Aí, na esteira dos clássicos, Montaigne esquadrinha toda a gama dos vínculos associativos e interroga a natureza destes laços diversos que atam os homens entre si (o estatuto das diversas philiai, portanto, já que para os antigos esta palavra designa também, mais amplamente, todas as formas de afinidade entre os seres e de suas associações). Ao mesmo tempo ele como que hierarquiza esses vínculos pelo grau da aliança que propiciam, pela sua consistência e solidez, e instala no topo da classificação, reinando soberana, a verdadeira amizade, a amizade acabada — téléia philia, dissera Aristóteles — “união perfeita”, sem brechas ou fissuras. “Divina ligação”, “a coisa mais una e unida”, atada pelos “nós serrados e duráveis” de uma “costura santa”, fusão das almas, são as expressões de Montaigne para essa amizade… amizade que ele afirma ser o estofo da aliança que o associara a Etienne de La Boétie.

As belas histórias, diz nosso autor, “quando são bastante ricas de sua própria beleza e podem se sustentar bem por si mesmas, eu me contento com um fio de cabelo para atá-las ao meu assunto”. Façamos o mesmo. É ele próprio que nos conta:

“Quando Lélio — em presença dos cônsules romanos que, depois da condenação de Tibério Graco, processavam todos aqueles que tinham estado de inteligência com ele — perguntou a Caio Blóssio (que era o principal de seus amigos) o que teria concordado em fazer por ele, este respondeu: Tudo. — Como tudo? Continuou ele. E se te houvesse mandado incendiar nossos templos? — Ele não o teria pedido, replicou Blóssio. — Mas se o tivesse feito? Acrescentou Lélio. — Eu teria obedecido, respondeu ele. Se ele era tão perfeitamente amigo de Graco, como dizem as histórias, não temia ofender os cônsules com essa confissão ousada e cabal, e não podia separar-se da certeza que tinha da vontade de Graco. Entretanto os que acusam esta resposta de sediciosa não entendem bem esse mistério, e não percebem, como de fato ocorria, que ele tinha a vontade de Graco na manga, como poder e como conhecimento. Eles eram mais amigos que cidadãos, mais amigos que amigos ou inimigos do seu país, que amigos de ambição e de revolta” (livro I, 28).

Compreender Montaigne não é fácil. O mistério da amizade, também nós não o entendemos muito bem. Como pensar uma identidade de vontades no espaço das oposições e diferenças, a completude do uno em meio às carências da nossa condição? Como pensar essa “divina ligação” — inteira e perfeita — no mundo efêmero e instável da finitude e do movimento?

O halo da santidade, sabemos, reverbera também nas grandes perversões. Assim, talvez, também aqui. A afirmação do outro em que consiste a amizade não estaria aí desvirtuada e corrompida em sua paranoica contrafação? Poderíamos assim conjecturar que, ao focalizar a amizade não no bem ou prazer que proporciona mas como penhor da própria identidade, Montaigne trairia o delírio narcísico que tantas vezes nos avassala na vertigem do amor. A supressão da diferença — coincidência absoluta, identificação plena — não revelaria, na verdade, apenas uma fantasiosa vitória (e ela poderia ser mesmo, no momento reflexivo do livro, uma simples ilusão retrospectiva) desse ego enfermiço na sua frustrada epopeia em busca de forma e realidade? Ferozmente entrincheirado em si mesmo, acuado e aterrorizado pela “catástrofe” da divisão, o eu muitas vezes simula cruelmente na ilusória simbiose a aventura incontrolável da alteridade. Sendo incapaz, na sua fragilidade, de confrontar o mundo movediço, eternamente plástico, da verdadeira socialidade, e sendo, na sua tirânica impotência, inimigo congênito da fadiga de todo cultivo, produziria este “amigo” — néscio simulacro da socialização — no enganoso conforto de sua solidão. Há, certamente, de que se escandalizar em toda essa história: “Mais amigos que cidadãos!”

No entanto é ainda preciso ter cautela.[3] Devemos resistir, mesmo que provisoriamente, a esta interpretação. Pois, se não nos parece ilegítimo trafegar por este livro no veículo desenvolto da nossa recente psicologia, não podemos esquecer que o autor servia-se do comboio mais pesado — por muitos irremediavelmente abandonado e desprezado — da metafísica e da ética. Antes, pois, de medi-lo “de fora” pelos padrões da literatura psicanalítica, tentemos acompanhar suas próprias razões; e, seguindo o bom preceito metodológico, comecemos por abordá-lo “conforme a intenção do autor”. Poderemos ver, então, no emaranhado dos rumos que nos solicitam, que, se alguns desvios podem nos conduzir a Freud, a estrada principal passa aí seguramente por Aristóteles.

Tomemos, então, o capítulo 28 — “Sobre a amizade” — “o mais belo lugar e meio” do primeiro livro dos Ensaios. Ora, desde o início, sabemos, esta posição honrosa estivera reservada ao Discurso da servidão voluntária de La Boétie, o qual, por razões de circunstância a que já aludimos, Montaigne substitui por 29 sonetos do amigo, “produzidos”, diz ele, “na mesma época da sua vida” (em la même saison de son âge). Estes sonetos, por sua vez, tiveram sua transcrição suprimida — por indicação dele próprio — na edição que se tornou definitiva (1595), certamente, segundo P. Villey, por terem sido objeto de uma publicação independente entre 1588 e 1592, o ano da sua morte. O capítulo sobre a amizade passou assim a ocupar, de fato, o centro do livro. Quase malgrado o autor. Mas, na verdade, a ele cabe o centro de direito, pois é na obra a explicitação privilegiada de sua causa motora e a escavação mais funda de seus alicerces.

Assim a obra acabada dispensa finalmente o expediente astuto da incrustação em seu centro de um paradigma externo como espelho da sua identidade. Fulgura por força própria e espelha a si mesma no seu tributo a La Boétie. (O pensamento realiza no livro — in extremis — seu anseio de ter corpo; ainda que como despojo, e para os outros).

A composição da dissertação é relativamente simples: um exórdio, o desenvolvimento do tema em dois grandes movimentos e um pequeno epílogo. No início indicações sobre o estatuto dos Ensaios e sobre o vínculo que ata o autor e o livro à obra e à pessoa de Etienne de La Boétie. No epílogo as razões da substituição do Discurso da servidão voluntária pelos sonetos. Já na empresa propriamente dissertativa, uma primeira parte é crítica — dirige-se às significações estabelecidas, discerne e aprecia o leque das atribuições envolvidas pela palavra na tradição —, e a outra, construtiva, vai à verdadeira atribuição; e seu sentido se define nos mesmos traços que contornam a experiência do autor.

No primeiro movimento da dissertação, Montaigne considera a palavra amizade na sua acepção mais ampla e concessiva, segundo um uso consolidado na tradição greco-romana. Nesse sentido lato, philia e amicitia designam todas as formas de vínculo, aliança e sociedade, ou seja, toda manifestação associativa (aqui não atendemos ainda à questão do seu princípio) por oposição aos modos da repulsa, dispersão e rivalidade. Assim, aí, sob o termo amizade, encontraremos agrupados todos os laços que, na expressão de Montaigne, “o prazer, a utilidade, a necessidade pública ou privada forjam e alimentam” (la volupté, le profit, le besoin publique ou privé forge et nourrit): o amor, afeição, camaradagem, vínculos familiares, comerciais ou políticos, ou mesmo as mais frágeis conjunções e simpatias, como as que se estabelecem, por exemplo, entre companheiros de viagem. São, assim, esses vínculos diversos — passados pelo filtro da sua tipologia tradicional — que esta primeira parte da dissertação nos faz, portanto, considerar.

É verdade que a nós o arco dessas atribuições pode parecer de uma abrangência que compromete a coesão do sentido ou desliza mesmo numa mera homonímia.[4] Não é, porém, o que se passa no tempo de Montaigne. Aí, justamente, a oscilação semântica que detectamos nessa incômoda extensão parece dominada de todo. Num movimento contrário ao que se assiste no mundo grego (pois aí o significado da palavra tendera a se restringir e se especializar, por reconhecerem neste domínio dos vínculos e associações dois ou mesmo três princípios), seu alcance e coesão aumentam com a consolidação do império da “Semelhança” como princípio cosmológico da ordem e do movimento. Estamos no século XVI. Lembremo-nos de Foucault.

No seu clássico As palavras e as coisas, ele nos mostra, melhor que ninguém, o papel fundador então representado pela categoria da “semelhança”. Ora, a amicitia, como sabemos, é uma das traves mestras da teia semântica fiada por esse princípio para apreender o mundo. Vem daí seu alcance cosmológico. E podemos mesmo observar que, na “conveniência universal das coisas”, que constitui então o mundo e a trama da natureza, ela representa talvez a força mais ativa. Homóloga da “Simpatia”, a “Amicitia” recorta o grande gênero das atrações, conveniências e afinidades que constitui o princípio maior do movimento no interior do cosmo. Esse movimento, mostra Foucault, aponta na direção do homogêneo e do idêntico (“A Simpatia” — diz ele — “não se contenta em ser uma das formas do semelhante, ela tem o poder de assimilar, de tornar as coisas idênticas umas às outras, de misturá-las, de fazê-las desaparecer na sua identidade”) e é incansavelmente contra-arrestado e moderado pela força oposta da “Antipatia”, o princípio da dispersão e singularização que impede a redução de tudo ao mesmo e permite a perpetuação do cosmo vibrante da “Semelhança”. Assim, também os homens — semelhantes — se unem e se afinam por esta lei da natureza, a atração universal do semelhante pelo semelhante. E a amizade — frequentemente reservada para traduzir a simpatia cósmica no registro antropológico — é então, entre eles, o gênero e princípio de todas as espécies de vínculos, contratos e sociedades e, consequentemente, de toda ordem e de toda paz.

Erasmo, o grande humanista, ilustra bastante bem a transcrição do velho tema diafônico — ou mesmo polifônico — da amizade para o solo monódico da semelhança. Vê nas diversas modalidades de aliança consideradas pelos antigos o desdobramento e aprofundamento progressivo de um parentesco físico e espiritual entre os homens, que os inclina para o amor e aponta a concórdia. Tudo é amizade. E “Aequalitas”, “Similitudo” e “Benevolentia” são os elementos fundamentais das relações humanas. E, se nela está presente a utilidade comum dos amigos, se implica deveres e troca de serviços, não são eles que a explicam, apenas derivam de sua natureza mais profunda. Assim, o universo coberto pelo império da amizade vai dos laços de sangue (cognatio) e semelhança física que une a família ao grande parentesco entre todos os homens, a afinidade natural que alimenta a “philanthropia” — a Caritas generis humani do humanista cristão — e solda os vínculos sociais (“Quero ser cidadão do Mundo”, diz Erasmo, “compatriota de todos ou antes estrangeiro para todos”). É desta simpatia natural em relação ao homem como homem que se destaca a amizade em seu sentido mais restrito. As afinidades especiais de alguns homens particularizam esta grande Similitudo do gênero humano numa verdadeira cognatio spiritualis, que incluindo a deliberação e a escolha refletida — Caritas ex inductione animi — alia suas próprias almas. Esta “consanguinidade espiritual”, no entanto, só atinge sua perfeição no matrimônio; pois, aí, ao vínculo das almas acrescenta-se a indissolubilidade sacramentada pela unção divina que lhe confere a mesma solidez — indefectível — da consanguinidade física.

Se Montaigne parte, como indicamos anteriormente, da acepção mais abrangente da palavra amizade — cujo contexto acabamos de assinalar — é, no entanto, apenas com uma intenção purgativa e crítica. Pois, na verdade, a primeira parte de seu texto, examinando a tipologia tradicional das formas associativas, opera uma redução tão drástica na extensão do conceito que solapa profundamente não só as elaborações humanistas de seu tempo mas também a “opinião dos antigos”. Sem poupar sequer a construção extremamente fina do grande mestre Aristóteles. Aliás, ele esclarece logo de entrada seu propósito, já no primeiro parágrafo, antecipando de maneira admiravelmente concisa — quase lapidar, não obstante sua aparente coloquialidade — o essencial do desenvolvimento do texto.

Montaigne abre esse parágrafo — que segue imediatamente o pequeno prólogo a que já aludimos — com uma sentença que ao leitor menos atento poderia anunciar um verdadeiro mergulho na interpretação cosmológica do tema de que, grosso modo, o seu tempo participa: “Parece — diz ele — que não há nada a que a natureza nos tenha inclinado tanto quanto à sociedade”. Erasmo, sabemos, não seria o único a assumir esse enunciado. Se há dispersão, predomina todavia, já vimos, a força cósmica de associação pela qual a boa natureza, “ministra de Deus e governante dos homens”, segundo a expressão então consagrada, reúne e organiza seus elementos. Mas atenção! O autor diz que “parece”; significando, no entanto, com esta expressão não uma simples precaução ou a hesitação do pensamento mas o bom procedimento de partir do saber estabelecido e da opinião comum. Pois, já na frase seguinte nos faz, suavemente, deslizar do reino da physis — a boa mãe natureza — ao domínio de nómos, ao indicar a amizade como objeto da jurisdição dos homens, como produto de suas decisões e ação: “E diz Aristóteles que os bons legisladores preocuparam-se mais com a amizade que com a justiça”, acrescenta. Enquanto no terreno cosmológico a amizade se ergue como a potência soberana da ordem e unificação, e se opõe imediatamente à dispersão, ao território caótico das rivalidades e conflito, esta observação a faz dividir seu governo sobre as sociedades humanas com as disposições da justiça. Assim, deixando de opor, como se esperaria, amizade e inimizade (simpatia e antipatia no contexto epistemológico da semelhança), e contrapondo amizade e justiça, o texto indica de imediato que as associações dos homens respondem a princípios produtores diversos e manifestam, portanto, realidades distintas.

Já seria, no entanto, suficiente para sinalizar esta operação a evocação do patrocínio de Aristóteles. Também o filósofo na sua grande dissertação sobre a philia — os livros VIII e IX da Ética a Nicômaco — começa por abrir uma brecha na camisa de força da cosmologia para conferir à amizade — restrita ao domínio antropológico — uma dualidade explicativa. Busca inicialmente a inteligibilidade do fenômeno a partir das noções de prazer e utilidade (interesse) que fazem ecoar entre os homens, respectivamente, as disposições da Semelhança (“O semelhante tende para o semelhante”, dissera Empédocles) e da complementaridade dos opostos (“Das dissonâncias resulta a mais bela harmonia”, afirmara Heráclito), explicações divergentes de seus predecessores fisiólogos para a ordem cósmica da natureza.

Porém, se é verdade que o prazer se origina da semelhança e a utilidade da diferença e complementaridade dos contrários, ao inscrever sua investigação no terreno psicológico, Aristóteles nos faz ver que eles não se realizam por uma legalidade e necessidade exclusivamente naturais mas implicam a mediação de uma esfera de dependência da ação humana. Tanto é assim que o prazer só se mantém e se consolida na virtude da amizade (cf. Ética a Nicômaco VIII, 8, 1158b, 8-10, e VIII, 10, 1159b, 3-4), na comunidade de hábitos e gostos que, como “disposição estável”, permite a atividade comum e a partilha da vida a que aspiram finalmente os amigos (VIII, 6, 1157b, 19-24). Do mesmo modo o vínculo pelo interesse: a motivação da utilidade só se mantém e se consolida pela virtude da justiça, na qual as diferenças se organizam por leis de solidariedade recíproca, e pela qual se resolvem os problemas de troca e repartição segundo a proporcionalidade dos méritos e o ideal da equidade. Por isso nos é proposto, logo de início, que “deixemos de lado os problemas de ordem física (pois nada têm a ver com a presente investigação) e [que] examinemos somente o que é humano e que concerne os caracteres e os afetos” (idem, VIII, 2, 1155b, 8-10). A investigação psicológica (prazer e utilidade) remete à Ética (amizade e justiça) e a esteia, ainda que não seja de todo indiferente ao horizonte da cosmologia, ainda que a realização dos diferentes vínculos suponha uma certa interação com as disposições da physis (semelhança e complementaridade). Relembrando pois Aristóteles, Montaigne recusa com ele a tirania da natureza e refere seu tema à esfera da ação humana, à Ética e à Antropologia.

Em todo esse parágrafo de abertura, Montaigne segue Aristóteles de perto. Já sua primeira frase sobre a inclinação natural dos homens à sociedade decalca-se na observação do filósofo logo no início da Ética a Nicômaco sobre a naturalidade que “parece” — diz ele também — atuar sob os afetos paternal e filial bem como sob as relações ditas hospitaleiras, “a amizade mútua que sentem os indivíduos da mesma raça, principalmente na espécie humana” (VIII, 1, 1155a, 18-20). É ainda acompanhando a sequência do mesmo texto — agora explicitamente — que ele introduz a oposição entre a amizade e a justiça e afirma, em seguida, a precedência da primeira sobre a segunda como forma perfeita de sociedade. “Porque — diz — é esta [a amizade] o ponto final da sua [da justiça] perfeição.” (O texto do filósofo faz o mesmo. Chancela o privilégio da amizade observando que “quando os homens são amigos não têm necessidade da justiça, enquanto que quando são justos têm ainda necessidade da amizade, sendo pois a mais alta forma da justiça na opinião geral da qualidade da amizade”, Ética a Nicômaco, VIII, 2, 1155a, 26-8.) Com esta alusão à forma perfeita da associação, Montaigne nos remete à distinção aristotélica entre as amizades fundadas no prazer ou no interesse (sendo as primeiras as amizades propriamente ditas, porquanto a philia, ao ser contraposta à justiça, fica colocada do lado da semelhança) e a téléia philia, a amizade acabada, perfeita, que o filósofo erige em paradigma de todas as relações humanas. É nesta noção de téléia philia que nosso autor vai apoiar sua interpretação da amizade, sua decifração laboriosa da aliança que o unira a La Boétie. Ela funciona como seu ponto de arranque, lhe dá a pista e o rumo da sua interrogação. Vejamos portanto mais de perto seu sentido.

Ela ocupa um lugar central na reflexão de Aristóteles e tem, como já vimos, um estatuto muito especial. Não se funda na utilidade ou no prazer, mas tem sua causa na virtude, na disposição de caráter dos verdadeiros amigos para o bem. Nela se manifesta portanto um terceiro princípio dos vínculos, que por sua própria natureza indica a excelência destas associações. No entanto Aristóteles justifica com mais sutilezas seu privilégio e completude. Eles se devem não apenas à própria bondade e santidade dos fins que, sendo virtuosos, visam a estes amigos, mas devem-se ao fato de que a origem de sua relação está “neles mesmos”; ou seja, de que aí o princípio é imanente à própria relação. Mais simplesmente: aqui, mostra o filósofo, os amigos se aproximam em razão de si mesmos e não em vista das vantagens (a utilidade ou o prazer) que eventualmente proporcionem um ao outro, caso em que “esses amigos não se amam um ao outro; amam apenas seu interesse” (Ética a Nicômaco, VIII, 5, 1157a, 15). Nesta relação busca-se, pois, o amigo por ele mesmo, “por ser ele o que é”, já que a virtude que aí faz o vínculo é algo que adere a sua compleição, constitui seu caráter. Assim, enquanto na amizade interessada ou agradável a relação com o outro é acidental (pois subordina-se a fins exteriores à própria relação), nesta o bem que se procura é interno, imanente ao vínculo: a téléia philia encerra em si o seu fim; encontra seu bem na sua própria existência. Ora, é exatamente esta reflexão de Aristóteles que Montaigne resume na sequência daquele suscinto parágrafo: “Porque em geral — diz — todas aquelas [sociedades] que o prazer [volupté] ou o interesse [profit], a necessidade [besoin] pública ou privada forja e alimenta são tanto menos belas e generosas, e tanto menos amizades, quanto misturam outra causa, fim e fruição na amizade que ela mesma”. Tanto menos amizades, pois, quanto não têm em si, como a amizade perfeita, seu próprio motivo. E podemos perceber assim que já quase se antecipa aqui o grande ápice de sua dissertação. Já pressentimos a proximidade de seu texto mais famoso: “Se me forçam a dizer porque o amava, sinto que isso só se pode exprimir respondendo: porque era ele, porque era eu”.

Mas, se Montaigne já nos remete nesse momento à questão da natureza da téléia philia, devemos reconhecer que esta indicação é suplementar e que a intenção explícita de sua proposição não é esta. Detenhamo-nos nela ainda um instante: “[…] tanto menos amizades quanto misturam outra causa, fim e fruição na amizade que ela mesma”. Seu propósito fundamental, podemos ver, é recusar a todas as demais formas de associação o nome “amizade”; é reservá-lo apenas a sua forma perfeita. E aí está na verdade o ponto crucial. Pois Montaigne, com esta frase, leva a seu termo o movimento nítido e decidido que desenha todo o enxuto desenvolvimento desse primeiro parágrafo: o movimento progressivo de redução do universo subsumido na palavra amizade. Como vimos, o texto começa com sua atribuição implícita a todas as formas associativas; em seguida o faz partilhar esse vasto domínio com as relações fundadas na complementaridade e referidas ao horizonte da justiça, para enfim, agora, confinar seu poder de significação ao terreno exíguo da virtude no qual os indivíduos associam-se “por si mesmos”, unem-se “neles mesmos”, por sua compleição e caráter. E a amizade já não cobre, então, a totalidade dos vínculos e nem mesmo as afinidades dos indivíduos aparentados e próximos (oikeioi), mas se reserva apenas às associações entre os que são verdadeiramente semelhantes (homoioi), aqueles, segundo Aristóteles, identificados na mesma disposição virtuosa, soldados pela unidade do bem, que, pela virtude, se imprime em seu próprio caráter. A frase seguinte, a última do parágrafo, já se faz portanto esperar: “As quatro espécies antigas: natural, social, hospitaleira e venérea, não convêm a ela [amizade] nem particularmente, nem conjuntamente”. Mas, se esse fecho é um corolário do movimento anterior, se sacramenta a operação realizada, também resume e antecipa por sua vez o sentido do empreendimento crítico que se seguirá.

Ora, podemos perceber facilmente que sob esse movimento explícito de redução da extensão do universo coberto pela amizade atua uma intenção mais funda. Na verdade, o que se estreita progressivamente aí são os limites do território da semelhança à qual Montaigne vai recusar finalmente qualquer vigência no âmbito da Natureza. Pois, ao tomá-la como princípio explicativo tão somente da amizade virtuosa e perfeita — que é o que faz ao restringir o termo amizade à téléia philia —, ele a confina ao terreno da ação e da vontade, o espaço do movimento e atividade propriamente humanos, o que vai lhe permitir exilá-la, definitivamente, de sua terra natal, a cosmologia: Só haverá para ele verdadeira semelhança entre vontades, e sua semelhança se fará por sua virtude própria, por elas mesmas, sem a necessidade de qualquer mediação exterior (sequer, como veremos, do Bem).

Poder-se-ia arguir que Aristóteles antecipa esta empresa. De fato já vimos que sua doutrina da amizade parte justamente da preocupação de retirar esse tema da jurisdição da cosmologia. Sabemos também que sua investigação sobre a vontade responde à necessidade de circunscrever um domínio específico da responsabilidade humana, de subtrair a “ação” do constrangimento seja da necessidade natural, seja da pura apreensão intelectual dos fins (o que é o caso da perspectiva socrática que faz da ação quase um destino determinado pelo conhecimento e justifica o vício pela ignorância). No entanto, se tudo isso é verdade, se na sua reflexão a ação humana, como se diz hoje, “conquista seu espaço” (se não somos meros joguetes dos deuses ou da necessidade natural, mas nós mesmos princípios de movimento, princípios de futuro), é preciso também lembrar que Aristóteles continua grego, que mantém os créditos da ordem natural e a ideia da ordenação divina do cosmo pelo Bem e que é dentro dela que a autonomia e responsabilidade da ação humana se exercem. É Jean-Pierre Vernant que nos lembra que, “se Aristóteles afirma que o homem é o princípio e causa (no sentido de causa eficiente) de suas ações, escreve também que “o princípio de nossas ações é o fim ao qual nossas ações estão ordenadas” (Ética a Nicômaco, VI, 1140b, 16, cit. in Mito e tragédia, Duas Cidades, p. 60). Para ele e para o pensamento grego, a função desejante do sujeito, sua “vontade”, é toda passiva; seus fins lhe são impostos e a dirigem “como que do exterior”.[5] A margem da ação virtuosa reduz-se, assim, à escolha dos meios, e como escolha dos meios ela permanece submetida à inclinação para o fim, à aspiração pelo Bem, sem a qual, diz outro comentador, P. Aubenque, “ela perde sua razão de ser”. Não obstante, pois, sua preocupação em definir um espaço específico da ação humana, em livrá-la da tirania cosmológica, ele a mantém submissa à ordenação natural do mundo segundo o Bem. Por isso a Semelhança natural é conservada nas duas pontas da cadeia de sua classificação das associações humanas; como semelhança imediata nos vínculos de sangue, e mediatizada, na téléia philia, pela virtude, como manifestação do Bem. Ora, é nesse ponto que Montaigne radicaliza; como, aliás, percebe-se logo no seu comentário da tipologia clássica das associações.

De fato toda a primeira parte do capítulo sobre a amizade — o que designamos como seu movimento crítico — é uma grande interrogação dessa tipologia fixada pela tradição. E Montaigne faz aí política de terra arrasada, como veremos agora… Embora o sentido final dessa operação só se esclareça pela análise da amizade perfeita (a qual, em contrapartida, dificilmente poderia ser entendida sem esse trabalho de redução realizado no nível da tipologia). Comecemos, pois, por seguir a empresa “negativa”.

O texto cita de início — em passagem a que já nos reportamos — quatro espécies de sociedade: natural (o vínculo cognático), social (as associações civis), hospitaleira (a filantropia) e venérea (a paixão erótica), as que serão tematizadas na primeira parte do ensaio, no seu movimento crítico. A elas acrescentam–se porém, na segunda parte, as amizades propriamente ditas: a amizade comum, companheirismo e camaradagem (a hetaireia dos gregos), e a amizade virtuosa (presente na literatura antiga no tema recorrente da amizade dos sábios), a téléia philia aristotélica, porém depurada. Para ressaltar a originalidade do tratamento que recebem podemos lembrar, sumariamente, as classificações desses termos nos pensamentos a que nos referimos até aqui: a posição de Erasmo, aquela que o ensaio atribui difusamente aos “antigos”, e a de Aristóteles.

Nas mãos de Erasmo, já vimos, esses diversos tipos são inteiramente passados pelo funil da semelhança, e tudo resolve-se em amizade. Estamos, portanto, nos antípodas de Montaigne, e podemos atribuir-lhe o inverso da proposição com que este abre suas considerações: para ele, as quatro espécies antigas (natural, social, hospitaleira e venérea — que se traduz no matrimônio) convém à amizade, seja particular, seja conjuntamente. Já para os “antigos” podemos dizer — de modo necessariamente esquemático, visto que essa posição parece traduzir uma espécie de amálgama de perspectivas diversas fixado na tradição greco-romana — que a Semelhança, o princípio estrito da amizade, tende a cobrir as relações familiares (os vínculos cognáticos) e hospitaleiras (o vínculo dos homens como gênero) bem como as amizades propriamente ditas, comuns e virtuosas, enquanto as relações sociais e a atração erótica surgem marcadas fundamentalmente pelo princípio da complementaridade.

Em Aristóteles a questão é mais complexa. Não só por tratar-se de uma reflexão mais sutil e elaborada mas também porque o filósofo parece menos preocupado em classificar (em desembaraçar e esquematizar o emaranhado dos fatos apresentados pela experiência) do que com a análise da natureza, consistência e propriedades desses diversos vínculos. Ou seja, parece mais empenhado na construção do cânon do que na sua operação e no desenvolvimento de suas possibilidades heurísticas. De outro lado, no seu trabalho, as diversas espécies parecem muitas vezes realizar combinações dos princípios (o que se deve, aliás, a razões mais profundas, já que os gêneros não deixam de apresentar uma certa comunicação entre si), de modo que seu estatuto nem sempre parece muito nítido. No entanto, não é impossível chegar a um certo quadro, pois, numa aproximação mais atenta, aparece com razoável clareza em cada um dos casos o princípio que domina.

O amor que une pais e filhos, por exemplo. Ainda que Aristóteles considere a desigualdade das partes e as relações hierarquizadas que vigem na família — o que introduz nela o princípio da utilidade e faz sua comunicação com as relações políticas —, funda-o essencialmente na semelhança. “Os pais amam os filhos — diz ele — como eles mesmos (os seres que deles procedem são como outros eles mesmos, ‘outros’ em razão de sua existência separada), enquanto os filhos amam os pais como tendo deles nascido, e os irmãos amam-se uns aos outros como tendo nascido dos mesmos pais, porque sua identidade com estes últimos os faz idênticos entre si; de onde vêm as expressões ser do mesmo sangue, da mesma cepa e outras parecidas [por exemplo, diz-se hoje: sangue não é água]. Os irmãos são portanto, num certo sentido, a mesma coisa, embora em indivíduos distintos” (Ética a Nicômaco, VIII, 14, 1161b, 28-33). Não poderia ser mais claro! E veremos também a camaradagem (hetaireia) explicar-se pelo mesmo princípio. Aristóteles faz mesmo dela um modelo para as relações familiares, já que os companheiros normalmente apresentam menos diferenças e, portanto, partilham de forma mais intensa a vida, o prazer da intimidade e da atividade comum. Tanto que na família são em geral os irmãos os que são mais amigos.

Quanto à filantropia, destoando da opinião que a alinha ao lado dos vínculos cognáticos (essa perspectiva ele a lembra logo no início de sua dissertação, cf. Ética a Nicômaco, VIII, 1, 1155a, 16-22. E ele mesmo não deixa de aproximá-los, do mesmo modo que recorre à imagem da prazerosa solidariedade que une os viajantes e que a aproxima do companheirismo), Aristóteles não tergiversa sobre seu estatuto fundamental: explica-a pelo princípio da complementaridade e a aproxima, assim, pela sua origem, dos vínculos sociais, conjugais e eróticos que realizam modalidades diversas desse princípio. Lembra com realismo que os hóspedes estão entre aqueles amigos que “só se afeiçoam um ao outro na medida em que têm a expectativa de algum bem” (idem, VIII, 3, 1156a, 30); e põe, explicitamente, a relação com os estrangeiros ao lado daquela que une os membros de uma comunidade, cidade ou tribo a qual repousa sobre convenções, ou seja, implica a mediação de um fim que congregue os diversos interesses (cf. idem, VIII, 14, 1161b, 13-6). É esta última, aliás, o paradigma das “amizades úteis”, o vínculo social, a solidariedade mútua dos cidadãos mediada pela justiça.

Também no tocante à aliança conjugal, Aristóteles insiste com clareza no princípio da complementaridade: divisão de tarefas, ajuda mútua, capacidades diversas a serviço de uma obra comum, a serem, em consequência, ordenadas e reguladas pela justiça (idem, VIII, 14, 1161b, 13-6). É verdade que nesta composição de interesses a semelhança se insinua de modo sorrateiro; através da convivência e o tempo vem o prazer da partilha das atividades e mesmo sentimentos comuns, os quais o interesse dos cônjuges na educação dos filhos manifesta de modo mais claro. E mesmo, por fim, no vínculo erótico domina o interesse. Aristóteles reconhece, evidentemente, que “o sentimento amoroso releva da paixão e tem por fonte o prazer” (idem, VIII, 3, 1156b, 2). Entretanto, na medida em que os amantes não encontram seu prazer nas mesmas coisas — o amante amando pelo prazer e o amado geralmente pela utilidade (idem, VIII, 5, 1157a, 7-9 e IX, 1, 1164a, 7-8) —, torna-se claro que buscam um ao outro apenas como meio para a obtenção de um fim — um certo bem ou um certo prazer (“não é, com efeito, a pessoa nela mesma que eles amam, mas as vantagens que dela esperam”, diz ele, idem, IX, 1, 1164a, 10) —, o que é a definição mesma do útil (idem, VIII, 2, 1155b, 19), que se manifesta, assim, como a explicação fundamental dessa relação e leva a sua classificação sob o princípio da complementaridade.

Vamos agora às considerações de Montaigne. Seu propósito em toda a primeira metade do Ensaio, repetimos, é, como ele próprio anuncia, mostrar que, e por que, as quatro espécies de sociedade (natural, social, hospitaleira e venérea) não convêm à amizade propriamente dita (não se esteando, portanto, na semelhança). Certamente todo o trabalho de sapa das significações estabelecidas que aí realiza é bastante importante, pois podemos perceber a intensidade do abalo que registra na já tão agitada sismografia do pensamento de seu século. No entanto, podemos de imediato constatar que o momento mais aguerrido da crítica está no assalto à cidadela mais resistente da semelhança natural, a dos laços de sangue (ao lado da qual se entrincheira a camaradagem), o bastião, nesta tipologia, frente ao qual se rendera o combativo Aristóteles. Aqui, de fato, parece difícil não recuar; pois neles a semelhança de compleição física e de caráter ou a conjunção espontânea de hábitos e gostos parece o solo evidente da conjunção. Não é, no entanto, o que pensa Montaigne. Ele vai desmontar essa evidência. Com um bisturi afiado.

A referência é sempre Aristóteles. Para ele, como vimos, o paradigma das relações fundadas na semelhança (em que se inclui a família) é a camaradagem. Os companheiros apresentam sempre uma igualdade básica de condições (idade, condição social, interesses ou costumes comuns), partilham as mesmas atividades e a mesma vida, são íntimos, espontâneos na comunicação e sinceros entre si, mesmo nas críticas. Ora, o que se vê entre pais e filhos? Disparidades e diferenças de toda ordem, responde Montaigne. “Dos filhos para com os pais — começa dizendo ele — há sobretudo respeito. A amizade [camaradagem] se nutre de uma comunicação que não pode se encontrar entre eles, pela sua enorme disparidade […]. Nem todos os secretos pensamentos dos pais podem se comunicar aos filhos para não se criar uma intimidade inconveniente, nem as advertências e correções, que são um dos primeiros deveres (offices) da amizade, poderiam se exercer dos filhos em relação aos pais.” Mesmo entre os irmãos — cujo companheirismo é ressaltado por Aristóteles — o que se passa? Sua aparente comunidade oculta geralmente a diversidade de interesses e os desentendimentos mais nítidos; pois “[…] essa mistura de bens e partilhas [veja-se o caso das heranças], e que a riqueza de um seja a pobreza de outro, tudo isso destempera enormemente e afrouxa a solda fraterna. Os irmãos tendo que conduzir o progresso de seu avanço no mesmo caminho e no mesmo passo [veremos adiante que a conveniência entre eles, de si, é apenas espacial, está fundamentalmente na contiguidade] é forçoso que se acotovelem e se choquem frequentemente”. Como pois pensar aqui na prazerosa partilha de interesses e atividades comuns? Como pensar que os pais e filhos são, como dizia Aristóteles, “a mesma coisa em indivíduos distintos”? “O pai e o filho podem ser de compleições inteiramente diversas, e também os irmãos. É meu filho, é meu parente, mas é um homem grosseiro, um malvado ou um tolo”, completa Montaigne. E vai buscar o testemunho de outros filósofos, talvez menores, mas nesse ponto mais argutos que o grande Aristóteles, em apoio a suas observações: “Houve filósofos — diz — desdenhosos dessa costura natural como comprova Aristipo: quando lhe cobravam a afeição que devia aos filhos, por terem saído dele, pôs-se a cuspir, dizendo que também aquilo dele havia saído e que também engendramos pus e vermes. E também aquele outro que Plutarco queria levar a conciliar-se com seu irmão: ‘Não faço maior caso dele’, disse, ‘apenas por termos saído do mesmo buraco’”.

Os exemplos, devemos reconhecer, são irreverentes e parecem comprovar a propensão do autor para o cinismo. Por que não ressaltar, contestar-se-á, os ternos valores da fraternidade e desdenhar assim a piedade filial? Os argumentos de Montaigne ferem, com certeza, as consciências delicadas. Mas ele se antecipa com suavidade aos seus compreensíveis pruridos. Não se trata disso. Que não o suspeitem tão apressadamente de depravação. Ele reconhece, pois experimentou ele mesmo — “tenho tido o melhor dos pais e o mais indulgente até sua extrema velhice, e sendo de uma família famosa e exemplar, de pai para filho, no que concerne à concórdia fraterna” —, a ternura desses vínculos, e, como diz, fez ele mesmo, com La Boétie, a solda de seus laços com a palavra irmão. Trata-se apenas de mostrar que é impossível atribuir essa afeição às disposições da natureza, à inclinação espontânea e virtude própria da relação. Pobres dos pais que confiam na naturalidade do afeto para com seus filhos. Pois, se uma justa solidariedade ou uma verdadeira amizade não o sustenta, provavelmente não farão com eles vínculo algum. Que se lembrem apenas — valiosa e derradeira lição da experiência — que “houve nações em que, de costume, os filhos matavam os pais e outras em que os pais matavam seus filhos para evitar empecilhos que eles frequentemente representam uns para os outros, pois naturalmente um depende da ruína do outro” — grifos nossos.[6] Hobbes não parece distante. O importante, porém, é perceber que a proximidade natural (a velha convenientia atribuída à semelhança e que tinha na família sua imagem mais sustentada) reduz-se agora a ela mesma: não conjuga e não ajusta, é pura contiguidade. A família, como tal, na sua naturalidade, nada mais designa que esse grau zero de toda relação, a proximidade espacial, comunidade de situs, na sua forma mais originária: encontramo-nos postos, situados, no mundo mais próximos de uns que de outros.

A ocasião se oferece aqui para prevenir um possível equívoco. Devemos ver que Montaigne nega um papel à semelhança natural na antropologia das associações (o que acarreta sua negação como princípio universal de ordem) mas não, evidentemente, a existência ocasional de semelhanças naturais, dadas, entre os homens. Isso fica bastante claro na sua análise das amizades comuns, a camaradagem, que é o vínculo paradigmático da semelhança para Aristóteles. O texto a tematiza na sua segunda parte, em contraponto constante com a amizade perfeita, a verdadeira conjunção pela semelhança que, como indicamos, vai emigrar da natureza para concentrar-se toda na comunhão de vontades dos verdadeiros amigos. Vejamos o que se passa com a semelhança dos companheiros.

Todo o comentário desenha-se em contraste com o pano de fundo aristotélico da “partilha da vida”, a determinação principal da hetaireia. Pois, o que nos vai sendo indicado é que aí tudo é efêmero, volátil e frágil… panta rei, nada se mantém. Montaigne mostra esses vínculos como familiaridades superficiais (superficille accointance), sempre “estabelecidas por alguma ocasião ou comodidade”, de modo a sugerir que resultam finalmente em pura proximidade (ocasião) ou se mantêm pelo apoio que tomam na complementaridade dos interesses, na utilidade (os exemplos que lhe acodem são, aliás, significativos: as relações com seu médico, advogado ou lacaio, os convivas da mesa e a “sociedade de discurso”). Frágeis semelhanças portanto, que nos atam apenas “por uma ponta” (uma pontinha: confederations qui ne tiennent que par un bout; enquanto na amizade verdadeira estamos inteiramente em causa, tudo conta, pois ela “não deixa resto”), quando tudo o mais separa, é oposição e desconfiança: “a ligação — diz — não se ata de modo que não se tenha que dela desconfiar. Amai, dizia Quílon, como tendo algum dia que odiar, odiai como tendo que amar”. O vínculo não toma forma, não faz corpo. Aplica-se pois aqui, diz, “o dito tão familiar a Aristóteles: Oh meus amigos, não há nenhum amigo”. Sutil ironia: Montaigne chama o filósofo como testemunha. Contra ele mesmo.

Enfim, no tocante às outras espécies de aliança — social, hospitaleira e venérea — o ensaio seguirá fielmente a perspectiva dos clássicos, sobretudo a de Aristóteles, que conduzira da maneira mais penetrante e abrangente a investigação sobre o princípio da utilidade. Aqui, portanto, o sextante da crítica aponta uma praça mais próxima, e também menos guarnecida: o castelo da semelhança, cosmológica ou teológica, do humanismo cívico e cristão.

Montaigne começa pelo vínculo erótico, que apresenta de forma bastante tradicional: complementaridade dos contrários, atração pelo que nos falta, paixão irrefletida (“fogo temerário [inconsiderado] e volátil, agitado e diverso, fogo de febre, sujeito a acessos e calmarias”), apelo fortemente corporal e sujeito à sociedade: la jouissance le perd. Porém, atentemos a um pequeno detalhe, um ínfimo deslocamento. Montaigne refere-se a ele como “a afeição em relação às mulheres”, quando toda a sua tradição literária privilegiara a imagem da pederastia. Ora, curiosamente, a esta será dedicada outra página, um pouco mais adiante, de modo que para o leitor toda a tipologia anunciada começa a se embaralhar. E nos damos conta então, de súbito, de que todo o comentário consagrado às associações complementares se arma de modo surpreendente. Onde esperávamos a análise dos laços sociais surge o matrimônio, onde esperávamos a consideração da filantropia e hospitalidade surge a homofilia. O texto parece esquecer sua pauta e enveredar-
-se de forma desvencilhada pelos caminhos do seu bel-prazer. Como entender tudo isso?

Na verdade Montaigne não se descuida de seu plano; e não é difícil percebê-lo. Vejamos o caso do vínculo conjugal. O que é o casamento senão um contrato, uma aliança civil? Ele não une interesses complementares e sacramenta uma troca de serviços? Não envolve muitas vezes problemas de partilha que exigem a regulamentação do direito quando falha a virtude da justiça? As indicações do texto são precisas: “[…] o casamento é um mercado que só tem livre a entrada (sendo sua duração obrigatória e forçada, depende de um alhures que nosso próprio querer) e mercado que comumente se faz em vista de outros fins” (outros fins que a relação ela mesma, que a amizade portanto; pois lembra logo em seguida que “na amizade não há negócio nem comércio que dela mesma”). Observemos que a própria indissolubilidade que muitas vezes o acompanha — costume frequentemente contestado de modo tão leviano — manifesta-se como imagem privilegiada da santidade dos pactos, do caráter obrigatório e forçoso de seu cumprimento, sem o que parece impossível pensar a constituição de um direito no registro das trocas e não se constitui qualquer mercado. Assim, Montaigne opera o deslocamento com extremo rigor, já que, aos próprios olhos da opinião, o casamento surge entre os vínculos civis como sua forma mais completa. Mas há certamente nisso de que escandalizar seus contemporâneos, leitores do Institutio Christiani Matrimonii de Erasmo… E, convenhamos, muitos também dos nossos.

Quanto à substituição dos laços de hospitalidade, fundados na filantropia, pela homofilia, devemos começar por lembrar que a esta imagem privilegiada do erotismo associam-se na literatura antiga outros temas, e que são eles que serão ressaltados aqui. Lembremos assim, em primeiro lugar, a ligação dessa prática ao symposion, o banquete, o espaço por excelência da prazerosa hospitalidade. Lembremos depois que a própria articulação de seus termos, a disposição dos amantes, a faz, segundo a tradição, propícia à pedagogia da virtude. Pois, devendo o amado — diferentemente do amante que busca a beleza corporal — julgar a beleza interior do amante, “nele nasce”, diz Montaigne, “o desejo de uma concepção espiritual por intermédio de uma espiritual beleza”; tanto que o amante, devendo “esforçar-se para tornar-se aceito pelas boas graças e beleza de sua alma”, usa como meios de sua conquista, diz ele, “instruções filosóficas, ensinamentos de reverência à religião, de obediência às leis, morte pelo bem da pátria, exemplos de valentia, prudência e justiça”. Daí seu alcance político (“foi nos países que aceitaram em seu uso a principal defesa da equidade e da liberdade, como testemunham os salutares amores de Hermódio e Aristogíton”) no sentido mais amplo; pois na virtude e na justiça encontra-se o verdadeiro ideal da universalidade e, portanto, a filantropia. Recorrendo pois à pederastia Montaigne a busca não nas suas manifestações, mas nas suas próprias condições de possibilidade.

Todavia esse jogo de substituições tem finalmente um alcance mais amplo. Depois de afastar a semelhança e fundar todas essas associações na complementaridade, mantendo os laços venéreos e exigindo, como paradigma do social e da filantropia, o matrimônio e a homofilia, Montaigne na verdade os erotiza todos, procura ressaltar o alcance sobre o mundo dos homens dos poderes de Eros. E, não bastasse pois sua crítica à semelhança, é no interior da própria complementaridade (que monopoliza agora os pendores naturais) que ele faz um caminho original e se desvencilha da perspectiva aristotélica que mantém a eminência da questão das trocas e repartições e privilegia assim o vínculo civil. Aqui tudo se erotiza, os interesses se combinam não discretamente, mas sintetizados e unificados, totalizados como desejo, o que lhes dá no plano empírico e imaginativo algum parentesco com o que a amizade faz num registro puro e superior. Mas lembremos principalmente o contraste desse empreendimento em relação ao humanismo cristão. Lembremo-nos de Erasmo, que, medindo todos os laços pela semelhança, exclui de sua classificação a atração erótica, querendo excluir do mundo “o furor inspirado pelo filho de Vênus”, a turbulenta “febre” do amor.

É todo calcado na experiência, emoldurado pela lembrança do amigo, que se arma o comentário da amizade perfeita na segunda parte da dissertação. Seu ponto central é posto logo de início no parágrafo que rememora seu primeiro encontro com La Boétie e no seguinte, dedicado à história de Caio Blássio a que já nos reportamos. É neles, através desses relatos, que Montaigne introduz o tema da comunhão das vontades, que constitui o núcleo da sua questão. Vêm, em seguida, dois temas derivados, que a tradição literária em que se esteia o trabalho dificilmente permitiria omitir: aquele dos deveres da amizade, dos serviços que se devem os amigos, seus officia, e aquele do número dos amigos, pois toda a literatura debate a possibilidade de ser amigo de todos, de alguns ou de apenas um. Nos dois casos, a preocupação de Montaigne é referi-los ao núcleo mesmo do problema e fazê-los explicitar o alcance e o estatuto da fusão das almas que se realizam nessa amizade. Tanto que sua primeira preocupação é mostrar, por exemplo, que os officia não constituem eles mesmos — como o entende uma parte da tradição — o tecido da amizade mas que decorrem dele, necessariamente, como de sua causa, do mesmo modo que a questão do número de amigos se decide em vista da própria natureza da relação.

No tema dos deveres, sua formulação é simples, ainda que original. Os amigos “não podem nem se prestar [favores, serviços] nem se dar nada (ny prester ny donner rien)”. Por que razão? Porque, responde, “a união de tais amigos sendo verdadeiramente perfeita, ela lhes faz perder o sentimento de tais deveres e odiar e rechaçar as palavras que indicam divisão e diferença: favor, obrigação, reconhecimento, pedido, agradecimento e outras tais, tudo sendo, com efeito, comum entre eles […]”. O próprio casamento, buscando muitas vezes “alguma imaginária semelhança com essa divina ligação”, não se quer pensar como sagrado, não só arrogando a si a indissolubilidade mas proibindo, muitas vezes, como lembra o texto, doações e partilhas entre marido e mulher “para significar — diz — que tudo deve ser de cada um deles e que nada têm a dividir e repartir entre si”? Na amizade, pois, se há serviço e favor, os termos comuns desta relação se invertem: é o benfeitor o beneficiado, e o que recebe o benefício, o liberal, já que “concede ao amigo a alegria de lhe fazer o que mais deseja”, seu bem.

Quanto à questão do número Montaigne é também radical e taxativo: “As amizades comuns podem ser partilhadas [entre vários amigos]. Pode-se amar neste a beleza, no outro a flexibilidade dos costumes, em outro a liberalidade, naquele a paternidade, neste a fraternidade, e assim por diante. Porém, essa amizade que possui a alma e a governa com toda a soberania, é impossível que seja dupla”. Ela é indivisível, conclui. Pois, aí, “cada um se dá tão inteiramente a seu amigo, que nada lhe sobra a repartir com outros”. A razão não é difícil de entender. Se nela a comunhão das vontades é perfeita, esteando-se essa coincidência no empirismo, no terreno da positividade, é impossível que seja compatível com a diferença que aí introduziria um outro amigo, necessariamente, portanto, diverso do primeiro. Se o amigo deseja o que seu amigo deseja, se é tão seguro da vontade do amigo como da sua própria, a hipótese da multiplicidade dos amigos compromete a unidade da própria vontade, justamente a grande dádiva da amizade. “Já é um grande milagre”, conclui, “duplicar-se, de modo que não percebem o alcance disso os que falam em triplicar-se.” Assim, acreditamos, o problema aqui não está em aceitar a lógica do raciocínio, mas em compreender-lhe as premissas, o “milagre” da comunhão das almas. Pois não são apenas os interlocutores de Blóssio, como dizíamos no início, que “não entendem bem esse mistério”. Talvez ninguém o compreenda “muito bem”.

Mistérios se acolhem com reverência, não se devassam. E aqui, certamente, temos um verdadeiro, e não forjado pela imaginação. No entanto, não é sacrilégio iluminá-los, tentar circunscrever seus contornos, sondar sua profundidade. Não é outra coisa o que faz o próprio Montaigne: tentar perscrutar o enigma dessa “divina ligação”, dessa “costura santa” das almas que, na ligação com La Boétie, vivera como a verdadeira vida, logo ofuscada pela separação e a morte. Mas é preciso aprender a morrer. E esse longo aprendizado ele o faz a cada instante experimentando o excesso dessa vida face às possibilidades do conhecimento. Assim, ao aproximar-se do santuário de sua busca, do núcleo deste mistério — vacilando quase em ir adiante (si on me presse de dire pourquoi je l’aimais) —, o pensamento tateia e avança com cautela.

Começa ponderando os limites de suas forças, a inadequação dos recursos do conhecimento face à magnitude do objeto. “Há para além de todo o meu discurso e de tudo o que eu possa particularmente dizer dela não sei que força inexplicável e fatal mediadora dessa união.” A constituição desse vínculo, sua razão, parece estar portanto para além das explicações que dele se possam dar. Abraçavam-se por seus nomes antes de conhecerem-se, “creio — diz ele — que por alguma disposição do céu”. Porém, atenção! Pois, apenas de dizer isso, de testemunhar a resistência desse vínculo à empresa do discurso, seu irredutível resíduo de mistério, faz brilhar sobre ele uma primeira centelha. Já nos faz entrever que o princípio produtor desta ligação (“mediador dessa união”) está para além de todas as razões positivas que pretendamos lhe atribuir (“para além de tudo o que eu possa dela particularmente dizer”). Ou seja: não se explica como produto de uma causa ou causas determinadas (uma “força inexplicável”), mas parece impor-se com a brutalidade do fato, como factum e fatum, dado e destino (uma “força fatal”). Impossível, na verdade, explicar sua experiência da amizade, dar-lhe motivos e razões, podemos apenas “clarificar” essa experiência, localizá-la e pontuá-la.

É exatamente essa consideração que o final do parágrafo confirma, pois — comentando seu encontro com La Boétie — a retoma de maneira explícita: “Não foi uma consideração especial, nem duas, nem três, nem quatro, nem mil [para além de tudo o que eu possa dizer particularmente dos motivos dessa união], foi não sei que quintessência de toda essa mistura [força inexplicável] que, tendo tomado toda minha vontade, levou-a a mergulhar e perder-se na sua, e tendo tomado toda sua vontade levou-a a mergulhar e se perder na minha [força fatal], com um apetite e precipitação semelhantes”. Atendamos bem portanto a isto: essa amizade não é, como as vulgares, a conjunção e coincidência de vontades determinadas. Ela se faz pela catalisação de todas as nossas vontades em uma “quintessência” que as compreende todas, as unifica e conjuga num elemento “inefável” e singular.

Ora, marcados pela tradição greco-romana, e lembrando–nos principalmente da constante referência aristotélica do texto, somos então imediatamente tentados a reconhecer nesta “quintessência” a marca da atuação — divina — da virtude e do Bem. Pois sabemos que são eles, sobretudo para Aristóteles, o princípio da unidade da vontade, os responsáveis pela unificação da personalidade do sábio e pela sua harmonia interior. O sábio, tendo o sentimento do que deve a si mesmo, deseja não uma multiplicidade de bens, mas os bens verdadeiros, isto é, o que é bom. Isso unifica sua vontade no singular. Por isso, mostra o filósofo, ele toma consciência de si não como múltiplo e fragmentado, mas toma consciência da sua existência unificada e, então, a deseja, desejando pois, fundamentalmente, a própria vida. Ou seja: desejando virtuosamente, o sábio deseja antes de tudo viver, pois não age contra si movido por fins e sentimentos contraditórios. É essa unificação da vontade que favorece o bom entendimento e propicia a amizade. “É preciso — diz — esforçar-se para ser homem de equidade, pois assim podemos nos comportar como amigos de nós mesmos e tornarmo–nos amigos de outro” (Ética a Nicômaco, IX, 4, 1166b, 28-9). Desejando pois, pela sua virtude, a própria vida, e fazendo-se a vida do amigo, igualmente pela virtude, semelhante à sua, o sábio a deseja também. Os amigos se aproximam portanto através da unidade da virtude e do Bem.

É verdade que Montaigne busca apoio nessa reflexão de Aristóteles. No entanto, já um passo adiante, vai nos privar do conforto inteiro dessa interpretação. Narra-nos a bela história de Caio Blóssio, que frente aos cônsules romanos, instado por Lélio, testemunha sua amizade por Tibério Graco, já condenado por subversão. Vimos há pouco esse relato. “— E se ele [Graco] te houvesse mandado atear fogo a nossos templos? — Ele não me teria ordenado, replicou Blóssio — Mas se o tivesse feito? Acrescentou Lélio. — Eu teria obedecido, respondeu ele.”

Montaigne comenta que, se essa resposta ofendeu os cônsules, é porque não podiam entender “que ele tinha a vontade de Graco na manga, como poder e como conhecimento”. E acrescenta, um pouco mais adiante, que “eles tinham perfeitamente as rédeas da inclinação um do outro”. Já podemos perceber aqui um pequeno deslocamento no interior da moldura clássica. Se as vontades desses amigos coincidem, sua conjunção não é explicada tanto pela semelhança de seus desejos ou atos virtuosos, por visarem e realizarem ambas os mesmos fins, mas enfatiza-se o momento produtor dessas vontades: Blóssio tem na manga, como poder e como conhecimento, a determinação da vontade de Graco, tem o comando das suas inclinações. Ele não obedece ao amigo em vista da bondade mesma de sua ordem, mas simplesmente por emanar dele, por proceder do amigo. O curioso exemplo que Montaigne forja em seguida corrobora e explicita essa indicação: “[…] a quem me fizesse — diz — a seguinte pergunta: Se tua vontade te ordenasse matar tua filha, matá-la-ias? Eu responderia que sim”. Isso, continua ele, não significaria evidentemente um consentimento em praticar esse ato, mas testemunharia apenas a segurança e certeza da sua própria vontade, como cada um as tem da sua. Há uma adesão da vontade ao sujeito da qual não lhe é possível se apartar. Cada um assume seus atos e desejos por procederem de si, por serem justamente seus. Ora, é essa mesma imediata adesão, essa mesma proximidade e certeza que têm os amigos perfeitos em relação à vontade um do outro, como vai então mostrar o texto: “Não está no poder de todos os discursos do mundo desalojar-
-me da certeza que tenho das intenções e juízos do meu [amigo]. Nenhuma de suas ações poder-me-ia ser apresentada, qualquer face que tivesse, da qual eu não encontrasse incontinenti o motor (ressort)” (grifos nossos). Vemos, assim, que a realização desta conjunção perfeita recusa a exterioridade e busca o abrigo da interioridade mais íntima, o lugar mesmo de produção das vontades, da certeza de si; ela vai, diz o texto, “jusques au fin fond des entrailles l’une de l’autre”.

O registro e o sentido da conjunção das vontades deslocam–se portanto sutilmente. Se a virtude e a razão continuam sendo o penhor dessa unidade, elas são agora tomadas, podemos ver, não como formas determinadas da vontade (“não importa a face que apresentem”), mas como determinantes, como seu móvel, mola ou motor. Ou seja: a amizade perfeita continua sendo uma amizade virtuosa (philia kat’aretèn) mas a união que realiza se faz num registro anterior às decisões da vontade (já que é impossível que os amigos possam coincidir em todas as suas decisões), assenta-se na sua pura disposição para a virtude e a razão. Ou ainda: o que a torna possível — e é agora o estofo da aliança — é tão somente a disposição dos amigos para a interrogação e a busca do bem. Só assim a confiança e a segurança mútuas dos amigos sobre suas inclinações são perfeitas; e eles se fundem e confundem-se num vínculo sublime, e “não se encontra mais a costura que os juntou”.[7]

Perceberemos melhor o alcance desta reflexão se voltarmos um pouco à história de Blóssio. Veremos, então, que o que escandaliza os cônsules romanos na audaz resposta do amigo de Graco (como certamente escandaliza também a resposta de Montaigne a seu fictício interlocutor) é justamente esse distanciamento inédito do ressort, da mola fundamental, destas vontades em relação às suas determinações, ou “conteúdos”. E não se trata de uma bagatela! Ao admitirem que poderiam atear fogo ao templo (atentar contra o princípio de ordenação do cosmo, contra Deus), ou matar a própria filha (atentar contra as inclinações “naturais”), caso sua vontade assim determinasse — pois não importa fundamentalmente “a figura que ela possa tomar” —, atentam justamente contra a ideia de uma ordem divina ou natural como princípio das ações virtuosas. De modo que o que escandaliza é sua confissão tácita e extrema de que é impossível fixá-las numa moral. Cícero, de cujo Lélio Montaigne retira sua bela história, multiplica as advertências contra as “palavras abomináveis” e o crime de Blóssio, elogiando a Quinto Tuberon, o amigo que abandona Graco nas suas “loucuras” e “insensatez”. A virulência do comentário do Ensaio se ressalta, pois, face ao preceito clássico: “Que seja uma regra bem estabelecida na amizade a de nada pedir e nada conceder que seja contrário à moral” (Cícero, Da amizade).[8]

Nada mais distante dos “devaneios” de Montaigne que a pretensão de constituir uma doutrina normativa. Onde, com efeito, encontrar no seu livro qualquer intenção de legislar sobre o bem e o mal ou o justo e o injusto, de ensinar a virtude ou o caminho da felicidade? É verdade que, num determinado momento, escusando-se por não saber fazer nada que pudesse ter serventia para alguém, admite que se prestaria a uma coisa: para vigiar os costumes daquele a quem servisse (“contrerroler ses meurs”). Mas logo acrescenta: “Não no atacado, por lições escolásticas, que isso não sei fazer (e não vejo nenhuma verdadeira reforma nascer naqueles que o sabem), mas observando-os passo a passo, em cada oportunidade, e julgando-os a olho, parte por parte, simples e naturalmente”, livro III, 13. (“Ainsi à mes amys je descouvre, par leur production, leur inclinations internes”, dissera um pouco antes, no mesmo contexto.) Impossível, de fato, encontrar nos seus Ensaios um sistema de fins e valores fundamentais destinados a guiar as ações ou apreciar os sentimentos. Ele nos lembra Cícero: “Só a sabedoria fecha-se completamente em si. E eu — continua — deixo isso aos artistas, sem saber se eles, numa coisa tão misturada, tão miúda e fortuita, conseguem arranjar as partes dessa infinita diversidade de aspectos, e fixar nossa inconstância e ordená-la” (livro III, 13). É essa a marca do humano, sua natural “inconstância”: “O que se comenta como raro no rei Perseu da Macedônia, que seu espírito, sem se prender a nada, caminhava errante por todo gênero de vida, apresentando modos tão destrambelhados e vagabundos que não era conhecido nem dele mesmo nem de qualquer outro homem, parece-me convir aproximadamente a todo mundo” (livro III, 13).

É por isso que ele, psicólogo às antigas, tudo analisa (“j’estudie tout”): examina as condutas, esquadrinha os movimentos e as paixões da alma, interroga as convenções e os costumes, alinhava anedotas. E vai traçando um entrecruzamento de linhas que compõe o quadro interminável da estranha — grotesca[9] — complicação da natureza humana. Quando elogia os historiadores o faz pelo fato de colocarem em evidência no homem “a diversidade e variedade de suas condições internas, no atacado e no varejo, a variedade dos meios de sua conjunção (assemblage) e dos acidentes que a ameaçam” (livro II, 10); pois, então, o homem aparece “mais vivo e mais inteiro”. É sempre, fundamentalmente, esse desejo de desintrincação do complexo que o ocupa, a interrogação do seu valor e sentido. Assim, se há respostas e apreciação, elas são sempre provisórias, variáveis, adequam-se à diversidade das situações e ao sopro dos ventos.

Se se é tentado, no entanto, a fazer dele o precursor dos “moralistas”, do gênero de ciência moral praticado tão amplamente nos séculos XVII e XVIII, é importante lembrar-se que o que está aqui em questão não é apenas a variação infindável dos mores e sua incontornável contingência (que, elas, levariam Montaigne de um lado à afirmação da relatividade das normas, e de outro, conforme diz P. Villey, a sua “fé na dócil observação dos fatos”). É preciso ir mais fundo. Menos que a diversidade e contradições da experiência, seu excesso contínuo sobre a capacidade de conhecimento do sujeito, o que está em causa no seus testemunhos é, em primeiro lugar, uma experiência interna da própria variação, a inconstância e fluidez constitutivas da sua experiência de sujeito. Não se trata apenas para ele de adaptar-se a cada instante ao imprevisível sopro dos ventos, mas de reconhecer que “somos vento por todos os lados”. (E ele acrescenta: “O vento ainda, mais sabiamente que nós, gosta de rugir, de se agitar, e se contenta com suas próprias funções, sem desejar a estabilidade, a solidez, qualidades que não são suas”, livro III, 13.) O que ele chama sua “compleição investigadora” (une complexion estudieuse), mais que responder, pois, à complexidade do mundo, testemunha a impossibilidade daquela adesão a si que os homens procuram no saber e na crença. Não é o mundo na sua infinita variedade que o ultrapassa, é ele próprio que não se fixa. No ensaio sobre a Glória encontra a formulação mais primorosa desse sentimento, quando, passando de uma observação a outra, diz intempestivamente: “Nós somos, não sei bem como, duplos em nós mesmos, o que faz que aquilo que cremos não o creiamos, e que não possamos nos desfazer daquilo que condenamos” (livro II, 16). Nada se mantém na asserção, no sim ou no não. Toda estabilidade e solidez aí se dissolvem na interrogação. Sua complexion studieuse espelha sua compleição de filósofo.

O belíssimo capítulo final dos Ensaios — “Registre des essais de ma vie” —, a que recorremos aqui (“De l’experience”), manifesta mais nitidamente que qualquer outro o sentido e o alcance dessa “inconstância”: “Quem se lembra — diz — de ter sido tantas e tantas vezes enganado por seu próprio juízo, não seria um tolo se não desconfiasse dele para sempre? Quando me convenço pelos argumentos de outro de que minha opinião é falsa, não aprendo tanto o que ele me diz de novo e esta particular ignorância — seria uma aquisição bem pequena — mas aprendo minha fragilidade e a traição de meu entendimento, do que tiro a necessidade da reconsideração de tudo […]. Saber que se disse ou fez uma tolice não é nada, é preciso aprender que somos tolos, pois esse ensinamento é bem mais amplo e importante” (livro III, 13).

Esta velada referência a Sócrates torna-se expressa homenagem já no parágrafo seguinte desse último ensaio. O “conhece-te a ti mesmo” (“que o Deus da Ciência e da luz fez afixar no portal de seu templo”), lembra ele, nada mais é que a prescrição do conhecimento da própria ignorância. “Significa — diz — que naquilo em que cada um se vê seguro e satisfeito, naquilo que pensa ser suficientemente entendido, não sabe absolutamente nada.” E é esta socrática fragilidade, mostra então, a causa da sua inclinação para a modéstia e de seu “ódio a esta arrogância importuna e belicosa, inimiga capital de toda disciplina e de toda a verdade, dos que creem e se fiam completamente em si”. Conjuração reiterada da obstinação da opinião e da cegueira da crença. “É assim”, “foi sempre assim”, dizem sempre; e a estas expressões impõem a aura do natural e do divino. É o que mostra Montaigne em continuação: “Ouvi-os ditar regras; as primeiras tolices que dizem já o fazem no estilo em que se estabelecem as religiões e as leis [não nos esqueçamos de que, então, as leis se legitimam fundamentalmente pelo hábito, enquanto inclinatio naturalis]”. Opiniões e crenças — esses pequenos deuses despóticos e rixentos —, os homens as criam e projetam fora de si como um absoluto que os domina, já o mostrara agudamente o Discurso da servidão voluntária de seu amigo La Boétie. Elas tudo fixam, tudo solidificam e estabilizam numa segurança ilusória e servil.

Montaigne opõe, portanto, a esta suficiência e arrogância a penúria e a fragilidade de seu espírito errante, que vaga e extravaga, interroga e se ensaia, experimenta e fantasia. “Sem se prender a nada”, como o de Perseu. Nenhum ponto fixo, nenhuma referência certa, derivando “sans règles […] et à tastons”. Assim seu apoio está apenas na sua própria atividade, sua adesão a si tão somente no fio tênue e delicado do exercício da interrogação. Porém, podemos constatar que nesta fragilidade está também sua força; pois, se a nada se submete, encena sua autonomia e delimita, então, um espaço verdadeiramente humano: o mundo do cultivo e das culturas, forjado por este ativo desejo de liberdade que tanto aborrece à natureza e à religião.

Montaigne termina este parágrafo em que lembra o “mestre dos mestres”, como diz, com uma pequena anedota certeira e profunda: “O filósofo Antístenes dizia a seus discípulos: ‘Vamos todos ouvir Sócrates, lá serei discípulo como vocês. E sustentando esse dogma de sua seita estoica que a virtude bastava para tornar uma vida plenamente feliz, sem necessidade de qualquer outra coisa, ele acrescentava: Senão da força de Sócrates’”. O texto não comenta esta história, usa-a como fecho, pois por si mesma nos faz compreender a mudança fundamental: desloca-se o registro da virtude, porque a força de Sócrates — sua ignorância —, sobrepondo-se ao dogma da seita, desaloja os deuses que do alto a pretendiam comandar. É assim que ao seu lado todo filósofo se faz discípulo, porque já não há guia seguro 
que no-la possa ensinar. E, então, só quem admite atear fogo aos próprios templos e sacrificar os próprios filhos (a lei natural não é ela própria uma criação dos homens?) realiza a verdadeira virtude, aquela que, assemelhando os homens na sua insuficiên-cia e penúria, os aproxima na comunicação e amizade e os faz partilhar a vida de uma criação comum. Não são as posses mas as carências que atam as amizades perfeitas; não é a segurança, mas a busca e a interrogação.

Que não se pense porém que essa amizade se constrói ape-nas como a identidade e comunhão do caráter racional dos amigos — simples partilha desta atividade teorética (e ética, sendo esta o domínio das escolhas refletidas) —, substituindo apenas a sabedoria e a virtude fundadas até então na ordem subsistente do Bem por uma interpretação puramente formal do fundamento desta unidade que a faz repousar na aspiração e na busca do bem. O que se passa aqui é algo de mais decisivo. Se, tradicionalmente, a condição da amizade perfeita foi sempre a necessária unificação da personalidade do sábio pela virtude (pois, como vimos em Aristóteles, esta unidade leva o sábio, que deseja a própria vida, a desejar também a de outro homem virtuoso, multiplicando assim o prazer de sua própria existência ao associá-la à do amigo), Montaigne, afastando o sistema subsistente dos fins — já não há ordem natural e divina que comande do alto a virtude —, atribuirá justamente à amizade essa função de unificação da personalidade virtuosa, fazendo-a aceder à identidade apenas pela mediação de seu semelhante. Só o amigo dá identidade ao amigo, e lhe dá vida; o eu só toma forma na associação. Pois, aprendendo-se agora como fluidez e instabilidade, experimentando a impossibilidade de, por sua própria força, fixar-se no positivo e na afirmação, esse homem studieux buscará no outro o ponto de apoio e referência em meio à névoa do seu constante estranhamento e variação.

No seu comentário à história de Blóssio — o momento central de sua dissertação sobre a amizade — Montaigne explica, já vimos, que a confiança existente entre os amigos virtuosos vem do conhecimento que têm do motor ou da mola propulsora (ressort) das suas ações, “da certeza de suas intenções e juízos”. E vimos também que é nesta identidade de disposições virtuo-sas, na semelhança do móvel de suas decisões, que repousa a possibilidade de sua perfeita coincidência e união. Ora, no registro dos próprios atos (e não mais das disposições), no registro positivo, podemos ver agora, restabelece-se entre eles uma dissimetria. Montaigne, é verdade, para nos fazer compreender a adesão que se tem em relação às decisões e atos do amigo, compara-a à adesão que se tem em relação aos próprios atos e decisões (por procederem de si). Já sabemos todavia, sobejamente, o quanto essa adesão a si é precária e efêmera, tomada que é continuamente na vertigem da interrogação. No entanto — e aqui está o centro da questão — essa experiência interna da desestabilização sem trégua das próprias decisões (práticas ou intelectuais), essa experiência incessante da dúvida, não atinge do mesmo modo as do amigo, pois não está imediatamente ao alcance do sujeito os caminhos (cálculos e deliberações) que levam seu amigo a suas decisões. Isso, justamente, as preserva, em alguma medida, do redemoinho da “inconstância”. Conhecendo-lhes a fonte (o ressort) mas não todos os motivos — os alvos próprios da dúvida — torna-se propenso a assumi-las como tais, por procederem do amigo, pela segurança que tem da bondade da sua disposição. Por isso Montaigne termina seu comentário dizendo que conhece a alma, o caráter, do amigo como a sua, “mas — acrescenta — no que se refere a mim mesmo, de bom grado confiaria mais nele que em mim”. (Afirmação semelhante reaparece no ensaio “Da experiência”, livro III, 13, no que se refere à confiança na memória: “em matéria de fatos eu buscaria sempre a verdade mais na palavra de um outro que na minha”, desde, evidentemente, como indica, que o outro seja de boa fé.) Assim, o amigo, pelo seu caráter virtuoso, funciona no registro positivo dos atos e decisões como polo imediato de uma certeza que em si próprio não se pode encontrar. Por isso a adesão ao amigo é total — intière et parfaite —, e não se realiza primordialmente como vínculo intelectual mas afetivo. “E se ele te houvesse mandado atear fogo aos nossos (portanto “teus”) templos? […] — Eu o teria obedecido, respondeu”.

É, por conseguinte, mediante esta adesão inteira ao amigo — que o totaliza no seu caráter virtuoso e também nos seus atos, pois a coincidência das vontades que se dá originalmente no elemento puro da disposição para o bem, como que transborda por esse raciocínio psicológico para a positividade — que se tem, por espelhamento, a experiência de alguma unificação. E esta “comunhão das vontades”, realizando-se assim, propicia aos amigos o gosto breve de prendre pied, de identificar-
-se, a experiência fugaz da solidez e da própria “encarnação”. Experiência fugaz porque posta no tempo. Montaigne, que vive a perda, o sabe bem: “Pois, na verdade — diz —, se comparo todo o restante da minha vida que, com a graça de Deus, foi suave, confortável e, salvo a perda de tal amigo, isenta de aflições graves e cheia de tranquilidade de espírito […], se a comparo toda, dizia, aos quatro anos em que me foi dado fruir da doce companhia e sociedade dessa pessoa, ela não é senão fumaça, noite escura e tediosa. Desde o dia que o perdi apenas perambulo languescente […]. Eu já estava tão moldado e acostumado a ser dois em tudo que tenho agora a impressão de ser apenas metade” (livro I, 28).

Melancólico fantasma em busca de corpo e consistência, o pensador vai traçando, na falta do amigo, a vida extravagante do livro, “autant qu’il y aura d’encre et de papier au monde”, enquanto houver no mundo tinta e papel. Livro interrogação, livro testemunho, mas também livro apelo. Ele próprio o confessa: “Além do proveito que tiro de escrever sobre mim espero ainda um outro: se acontecer que meus humores agradem e convenham aos de algum homem de bem antes que eu morra ele me procurará […]. E, se eu soubesse por sinais claros de alguém que me conviesse, certamente iria buscá-lo, ainda que bem longe, pois a doçura de uma conveniente e agradável companhia nunca, a meu ver, se pagará caro demais. Ah! Um amigo!” (livro III, 9). Oh un amy! (Marie de Gournay ainda está por chegar.)

Notas

[1] Cf. Butor, Michel, Essais sur les Essais (Paris, Gallimard, 1968), no qual se encontra uma belíssima análise do “estilo” — a “solução maneirista” — e da disposição dos diversos ensaios. Aqui a referência específica é aos capítulos 16 e 17.

[2] Este texto é o final de um parágrafo (livro III, 9) presente na edição de 1588 mas riscado por Montaigne no chamado “exemplar de Bordeaux”. Ver sobre isso comentário de M. Butor no último capítulo de seu livro já indicado (p. 215).

[3] Não faltam leitores e intérpretes contemporâneos para sinalizar nos Ensaios essa direção. Francesco Alberoni, por exemplo, no seu recente best-seller, L’amicizia (Milão, Garzanti, 1984), encontra um Montaigne “fascinado pelas formas de amizade homossexual dos gregos”. Poderemos ver mais adiante como se torna difícil chancelar sua interpretação. De qualquer modo, muitos outros leitores, avisados pela psicanálise, parecem fortemente tentados por esse caminho.

[4] No entanto, esse uso amplo e equívoco do termo não nos é também estranho. Falamos na amizade dos pais e filhos, na dos irmãos, colegas de escola ou trabalho, ou de correligionários políticos. Ouvimos também dizer que tais pessoas são “amigadas”, que tais outros são “muito amigos”, ou, ainda, que fulano “tem um amigo no Ministério”.

[5] É interessante reconstituir o contexto dessa citação do artigo de J. P. Vernant: “O que põe o sujeito em movimento é sempre um ‘fim’ que orienta, como que do exterior, a sua conduta: seja o objeto para o qual tende espontaneamente seu desejo, seja o que a reflexão apresenta ao seu pensamento como um bem. Num caso, a intenção do agente parece ligada e submissa ao desejo, no outro é impelida pelo conhecimento intelectual do melhor. Mas, entre o movimento espontâneo do desejo e a visão poética do bem, esse plano não aparece onde a vontade poderia encontrar seu campo próprio de aplicação e o sujeito poderia, no e pelo querer, constituir-se em centro autônomo de decisão, fonte verdadeira de seus atos” (op. cit., p. 47).

Em meio à extensa bibliografia sobre esta questão podemos destacar o belo livro — já clássico — de Pierre Aubenque, La prudence chez Aristote (Paris, puf, 1963)

[6] Sobre este tema é fundamental consultar também o capítulo “Da afeição dos pais aos filhos” (livro II, 8). Ver-se-á aí, com maiores nuances, o trabalho sutil de crítica da opinião comum relativa ao problema.

[7] Montaigne reinterpreta assim, de modo radicalizado, o tema aristotélico da imanência do fim ao próprio vínculo na téléia philia a que já nos referimos anteriormente. Aqui não é o próprio fim visado pela vontade (ou seja, a virtude, que enquanto adere ao caráter do amigo, à sua compleição, o faz amado por si mesmo) que faz o vínculo mas é a forma da sua determinação.

[8] Cícero vai ainda mais longe: “É preciso, portanto, prescrever às pessoas de bem que, se o acaso as faz cair por falta de discernimento em uma amizade desta espécie, não se creiam ligadas a ponto de não poder abandonar seus amigos gravemente culpáveis. E é ainda preciso fixar uma pena para os cidadãos inconscientes, não menos severa para os [amigos] que seguem que para aqueles que tomam a iniciativa de um sacrilégio” (Lélio ou Da Amizade).

[9] “Desde os Logges de Rafael, a pintura do fim do século XVI, ‘maneirista’, dá inúmeros exemplos deste tipo de composição: um quadro central contornado por uma guirlanda de ‘grotescos’, que devem seu nome ao fato de serem considerados imitações livres das decorações descobertas nas ruínas, ou grotas, da casa dourada de Nero, hoje completamente deterioradas, mas cujo equivalente pode-se encontrar em muitas pinturas romanas” (Butor, M., op. cit., p. 67).

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