2005

Por trás do espetáculo: o poder das imagens

por Francis Wolff

Resumo

Dois tipos de discurso nos mascaram o ser das imagens: o técnico e o moral.

O discurso técnico, isto é, a pergunta “como reproduzir?”, acredita falar-nos de imagens quando não nos fala senão de suportes de reprodução. Ora, cada nova técnica teve seus profetas, seus discursos messiânicos ou suas predições apocalípticas definitivas: a fotografia, o cinema, o computador, tudo isso foi para uns a morte da imagem, para outros, o início das verdadeiras imagens. Mas, de que imagens? Isto é, imagens para quê, e com que finalidade transmiti-las?

Outro discurso assume então a palavra, o discurso moral, a pergunta: “A favor ou contra a imagem?”. Mas do mesmo modo que o discurso técnico reduz a imagem a um dos seus modos, o discurso moral confunde gênero e espécie.

Acreditamos condenar a imagem em geral mas na verdade estamos defendendo algumas contra outras. Tal moralista que se insurge contra as imagens da televisão exalta as pinturas e esculturas que povoam os museus, outrora condenadas com os mesmos argumentos. Platão, que expulsava os pintores e outros fazedores de imagens de sua Cidade, é o autor da imagem mais célebre de nossa condição mortal, a da caverna. Tal teólogo que condena os ídolos, imagens dos falsos deuses – os dos outros – faz apologia dos ícones, intercessores da verdadeira divindade – a sua. Mas ícones e ídolos são duas palavras gregas da mesma raiz que designam a imagem. Quem decidirá quais são as verdadeiras imagens, as que fazem elevar os olhos aos céus ou aquelas diante das quais nos prostramos?

Antes de mais nada, portanto, e a despeito da infinita variedade das imagens, e além da multiplicidade de seus usos e funções, é preciso tentar definir a imagem em geral. Três traços a caracterizam: ela é percebida através da vista – toda imagem é visível; ela representa ou, dito de outro modo, sua presença permite, só a ela, a de outra coisa;  toda imagem é imagem de alguma coisa.

Enfim, o que ela representa é uma realidade, atual ou possível, existente ou fictícia, seja como for, mais real que ela mesma, que não tem senão a aparência exterior: todas as imagens não têm do real senão, justamente, a imagem. Uma imagem é, portanto, a representação visual de uma realidade qualquer. É através do aprofundamento destes três traços que apreenderemos que as verdadeiras diferenças entre as imagens não são as que supõem os técnicos ou os moralistas, mas aquelas entre dois modos do olhar, das funções da representação e dos tipos de realidade a apresentar. Ficará então constatado que não se pode compreender a força da imagem e a fraqueza da imagem senão confrontando-a com seu outro, o outro modo de representação das realidades ausentes que o homem faz: a linguagem.


Raramente as imagens têm estado tão presentes em nossa vida, tanto privada quanto pública. Pensemos nos cartazes, na publicidade comercial e política, nas lojas, nas imagens da televisão, nas imagens informatizadas etc., em suma, naquilo que Serge Daney chamou de ditatura do “visual”. A cada dia são milhares e milhares de imagens que passam sob nossos olhos entediados. Eu gostaria de me perguntar quanto à especificidade das imagens atuais, quanto a seu poder particular, em nossas sociedades mercantis, na hora do desenvolvimento de novas imagens (digitais, virtuais, em 3D) e de novos sistemas de gravação e de transmissão de imagens. Gostaria, sobretudo, de sondar as ilusões próprias de nossa época, que engendram esse volume e esse fluxo de imagens.

Gostaria, portanto, de sondar as imagens de hoje, mas vou fazê-lo de maneira indireta. Tomarei um atalho. O que me interessaria, por trás do espetáculo, seria o poder das imagens em geral, isto é, sobre os homens, qualquer que seja o momento da história ou da civilização a que pertençam. Somente então é que poderemos ver a singularidade das ilusões engendradas pelas imagens de hoje em dia. Não creio, na verdade, que elas tenham mais poder hoje do que no século XIX, na Antiguidade ou na Pré-História. Para poder medi-lo, seria preciso levar em conta ao mesmo tempo, por um lado, a enorme desvalorização das imagens em nosso ambiente, que se tornaram extremamente fáceis de produzir, de reproduzir, de possuir, a coisa menos rara, a mais comum do mundo, e, por outro lado, sua intrusão sistemática em todos os domínios da existência, em todos os recantos de nosso ambiente. Recordo-me de minha primeira viagem a Praga, ainda adolescente: lembro-me do choque que foi não ver, na paisagem urbana, a mínima imagem (devido à ausência de publicidade), ou muito pouca, apenas algumas imagens de propaganda política. Mas imaginemos a vida no século XIX, ou mesmo no século XIV quando as únicas imagens que podíamos ver eram aquelas que decoravam as igrejas e contavam os Evangelhos ou a vida lendária do santo local. Imaginemos o que podia ser ainda o preço de uma imagem (uma pintura “original”, não havia outra!), o que podia ser o sentido, o peso, de uma única imagem, seu enorme poder sobre os homens, uma vez que era um acontecimento extremamente raro, uma coisa extremamente difícil de produzir; imaginemos o poder de fascinação, de dominação, de sedução, exercido pelos afrescos sobre as paredes de uma capela, ou pela estátua de um santo. Creio, portanto, que o formidável lugar que elas conquistaram, em nossa vida cotidiana, em nosso ambiente, fez com que diminuísse sua força — creio que elas, em todo caso, se modificaram radicalmente. Mas creio também que elas engendraram uma ilusão singular, que chamarei de “ilusão imaginária”, esta, na verdade, uma ilusão muito antiga, de origem religiosa, que é, paradoxalmente, a crença de que as imagens não são imagens, que elas são produzidas por aquilo que elas reproduzem. É isso que tratarei de mostrar.

Para tanto, proporei primeiro uma questão bastante geral: de onde vem o poder das imagens? Como podem as imagens, quer dizer, na verdade, cores sobre papel, madeira ou pedra, ter sobre os homens um tal poder, de modo que não há praticamente ninguém que não possa fazer uma imagem de um homem?

Quando falo dos poderes da imagem, faço alusão a alguma coisa bastante geral. Alguma coisa muito simples e, por fim, misteriosa demais.

Penso, por exemplo, na criança que desenha ou modela sistematicamente imagens de seres humanos, desde que tenha papel ou massa nas mãos. Penso na necessidade que têm todas as crianças do mundo de brincar com bonecos, o que quer que sejam — a imagem de seus pais ou delas mesmas. Penso nas magníficas imagens pintadas sobre as paredes das grutas do Paleolítico Superior, imagens de cabritos e bisões, em Lascaux, Altamira, Cosquer, Chauvet (estas últimas datam de 32 mil anos atrás), cuja riqueza cromática, precisão realista, vivacidade estilística ainda provocam nossa admiração. Eis aí um primeiro aspecto do poder da imagem: seu caráter universal. Seja onde for que exista a humanidade, mesmo a mais primitiva, entre as crianças ou na Pré-História, existe a imagem. Em todo lugar, sempre, figuras, desenhos, gravuras, afrescos, estátuas, colossos, bustos, ídolos, etc. Chegamos a crer que o homem se caracterizava pelas ferramentas; sabemos hoje que isso é falso, pois certas espécies de animais também utilizam ferramentas. Diz-se frequentemente que o homem se caracteriza pela linguagem, e isso sem dúvida é verdade: o homem é mesmo um animal falante. Mas também podemos dizer que o homem se caracteriza pelas imagens. É o único animal que utiliza e fabrica imagens. Por quê?

Mas há um segundo aspecto do poder da imagem que deve reter nossa atenção. O homem não se contenta em fabricar imagens de tudo, em todo lugar, sempre, em todas as civilizações. Essas imagens que ele fabrica exercem nele, uma vez que as produziu, uma série de efeitos consideráveis. Por exemplo, o ser humano é sexualmente estimulado pelas imagens, pelas pinturas, pelas esculturas, pelas fotografias, pelos filmes. Mas também “ele as quebra, as mutila, as beija, chora diante delas, viaja durante semanas para vê-las ou reencontrá-las” (pensemos em todas as imagens sagradas de divindades, de deuses, de santos, em quase todas as religiões); “diante delas, ele se acalma, se emociona, é levado à revolta”.[1]  As imagens imploram: pensemos nas imagens votivas. As imagens consolam: entre os séculos XIV e XVII, fabricaram-se na Itália milhares de tavolettes consoladoras, pequenas tábuas pintadas, representando de um lado uma cena da Paixão de Cristo e de outro um martírio mais ou menos relacionado ao castigo reservado ao prisioneiro, destinadas à meditação e à contemplação dos condenados à morte.[2] Há imagens extremamente valiosas, outras quase idênticas e que não valem quase nada. Podemos lutar por imagens, por sua conquista ou sua posse, podemos lutar contra imagens, cuspir no retrato de um inimigo assim como nele em pessoa, derrubar estátuas de um ditador morto como se fosse ele mesmo que estivesse ali para ser derrubado outra vez.

Eis, portanto, um segundo aspecto do poder das imagens. As imagens são capazes de suscitar aos poucos quase todas as emoções e paixões humanas, positivas e negativas, todas as emoções e paixões que as coisas ou pessoas reais que elas representam poderiam suscitar: amor, ódio, desejo, crença, prazer, dor, alegria, tristeza, esperança, nostalgia, etc. Por que tantos efeitos imaginários? Eis o que falta explicar. Uma questão prévia permitirá uma primeira explicação.

O QUE É UMA IMAGEM?

À primeira vista, uma imagem são formas, cores. Poderíamos descrever uma imagem da seguinte maneira: são círculos, quadrados, linhas, pontos, amarelos, vermelhos. Mas, justamente, não descrevemos aí uma imagem, mas somente seu suporte material. A imagem começa a partir do momento em que não vemos mais aquilo que imediatamente é dado no suporte material, mas outra coisa e que não é dada por esse suporte. Algumas linhas são uma flor; três círculos, um rosto; algumas manchas de cor, um coelho. A imagem começa quando paramos de ver o que é materialmente dado, para ver outra coisa, para reconhecer uma figura conhecida. Um quadro abstrato não é uma imagem. Um quadro figurativo não é unicamente uma imagem, é geralmente mais, melhor que uma imagem, e é sempre mais rico que uma simples imagem. Mas é também uma imagem. Diante de uma imagem (uma fotografia, por exemplo, ou uma estátua) de Chaplin ou de Pelé, não digo que são belas cores, mas “olhe, é Chaplin”, ou “é Pelé”. Ou é claro que não é Chaplin nem Pelé. Chaplin morreu, Pelé está longe. É, para falar estritamente, uma imagem de Chaplin ou de Pelé, ou, como se diz, uma representação.

Vamos nos ater um instante a essa ideia de representação. É preciso tomá-la ao pé da letra. Uma imagem representa, no sentido bem simples de que ela torna presente qualquer coisa ausente. Chaplin, Pelé, a Torre Eiffel. Qualquer coisa está presente, a própria imagem, ou seja, um conjunto material visível, pontos, linhas, formas, cores etc. Mas o que está aqui presente torna presente ao mesmo tempo alguma coisa ausente. A imagem é então o representante, o substituto, de qualquer coisa que ela não é e que não está presente. Ela representa o que ela não é (já que ela está presente), ela não é o que ela representa (já que ela não é uma imagem). Não representamos aquilo que está presente, representamos o que está ausente, o que ainda não está, o que não está mais, o que não pode estar presente, e que se encontra então representado: representado, quer dizer, presente na imagem (e não na realidade) e tornado presente pela imagem.

Imagem é a relação necessária que a coisa aqui presente tem de remeter necessariamente à coisa ausente (de vê-la, ou de pensá-la, de evocá-la). Uma imagem não é então uma coisa, é uma relação com uma outra coisa. Toda imagem é uma imagem de alguma coisa. Um desenho ou uma pintura que não represente ninguém pode formar um conjunto de figuras muito decorativas, muito belas, e mesmo muito sugestivas — mas não é uma imagem. É o que acontece se mostrarmos uma imagem a um animal, por exemplo, ele verá formas, mas não uma imagem. Se olho para o céu, posso ver (por acaso), nas formas das nuvens, a imagem de uma pessoa célebre — é uma questão de imaginação. Mas isso não é propriamente falar de uma imagem.

A imagem é então a representação de uma coisa ausente, que reproduz certos aspectos da aparência visível.

Acrescentemos a isso três condições abordadas pela primeira vez, e notavelmente, por Platão que lançam luz sobre a relação entre a imagem (o representante) e aquilo de que ela é a imagem (o representado).

A imagem, para representar, não deve ter todas as características da coisa, mas apenas algumas. Como explica Platão no diálogo “Crátilo”, se dermos a um quadro todas as cores e formas convenientes, produziremos um bom quadro. No entanto, não convém reproduzir, em uma imagem, “todos os traços do objeto imitado”.

Se alguma divindade, não contente de imitar tua cor e tua forma, como os pintores, reproduzisse também todo o interior de tua pessoa, tal como ele é, lhe desse a mesma nobreza e o mesmo calor, e lhe desse movimento, arte e pensamento, tais como existem em ti, em uma palavra, colocasse a teu lado um duplo de todas as tuas qualidades, haveria, nesse caso, um Crátilo e uma imagem de Crátilo, ou dois Crátilos?[3]

A imagem não pode então ter todos os traços de seu modelo, sob pena de se confundir com ele. Melhor: pode acontecer que, quanto menos traços a imagem tome emprestados do objeto, melhor o represente. É o que afirma Descartes:

Não há nenhuma imagem que deva se assemelhar completamente ao objeto que representa: pois de outro modo não haveria ponto de distinção entre o objeto e sua imagem; mas é suficiente que eles se pareçam em algumas coisas; e ainda assim geralmente sua perfeição depende de fato de que elas não se assemelham tanto quanto poderiam. Como podeis ver que as talhas doces, sendo feitas apenas de um pouco de tinta colocada aqui e ali sobre o papel, representam para nós florestas, cidades, homens, e mesmo batalhas e tempestades, se bem que, de uma infinidade das diversas qualidades que nos fazem conceber esses objetos, não há nenhuma com a qual a figura sozinha tenha semelhança; e ainda assim é uma semelhança bem imperfeita, visto que, sobre uma superfície plana, elas representam para nós corpos diversamente salientes e reentrantes, e que, mesmo seguindo as regras da perspectiva, frequentemente elas representam melhor círculos por meio de ovais do que por outros círculos; e quadrados melhor por losangos do que por outros quadrados; e assim todas as figuras: de sorte que frequentemente, por serem mais perfeitas enquanto imagens, e representarem melhor os objetos, elas não devem a eles se assemelhar.[4]

Dito de outro modo, ocorre geralmente que para melhor representar é preciso não se assemelhar tanto.

Segunda característica da imagem, assinalada por Platão: a imagem é múltipla, o que ela representa é único. Há uma infinidade de imagens possíveis de uma única realidade. E hoje, com a mecanização da imagem, há uma infinidade de imagens absolutamente idênticas da mesma realidade.

Enfim, assinala Platão, a imagem tem uma inferioridade ontológica decisiva em relação ao representado. Ela não é o verdadeiro ser, ela é apenas a imitação: isso não é um verdadeiro homem, isso é um bloco de pedra, isso não é um verdadeiro fogo, são cores sobre uma tela. A imagem é efetivamente real, é nela própria uma realidade, mas não tem a realidade daquilo que representa. Por exemplo, ela é material, a coisa representada é carnal; ela é inerte, a coisa representada é viva, etc.

Em suma, a imagem é um ser menor do que aquele que ela representa, é um falso ser, simples imitação da aparência, é múltipla em lugar de una. De maneira que a imagem é a representação reprodutível de uma coisa ausente única, que lhe empresta alguns traços aparentes e visíveis. Resta saber por que existem imagens.

IMAGEM E LINGUAGEM: O PODER PRÓPRIO DA IMAGEM

A imagem torna presente aquilo que não está presente. De duas maneiras possíveis. Primeiro, o homem dispõe desse poder interno de tornar presente, por si mesmo, em pensamento, a aparência visível das coisas que não estão presentes. Esse poder interno chama-se imaginação. Esse mesmo poder tem um equivalente externo: é o poder de tornar presente a aparência visível das coisas que não estão presentes, porém não mais em seu pensamento, mas na realidade exterior; não mais somente por si mesmo, mas por qualquer outro. Tal é a faculdade humana de fazer e de compreender as imagens.

O homem tem então isto de particular, de único: pode tornar presentes as coisas ausentes, pela imaginação ou pela criação de imagens. Ele tem essa dupla faculdade de convocar aquilo que não está e que não pode estar presente, de anular a distância espacial ou temporal. Para isso, dispõe de imagens que se fazem (imaginação) ou que ele faz (técnica). Mas dispõe de um outro meio que tem, à primeira vista, o mesmo poder: a linguagem.

Na verdade, voltemos à nossa primeira análise. Um ser está ausente. Para evocá-lo, para convocá-lo, para torná-lo simbolicamente presente, ainda que ele não possa estar física e realmente presente, disponho de três meios. Tomemos um exemplo: meu amigo está longe, ou morto. Posso contemplar uma mecha de seus cabelos que conservei como lembrança: é um indício de sua pessoa. Posso olhar seu retrato: é uma imagem de sua pessoa. Posso pronunciar seu nome: é um símbolo de sua pessoa. Outro exemplo: para me referir a um gato, ainda que não haja nenhum gato nos arredores, posso também fazer um desenho de gato ou dizer a palavra “gato”. Cada procedimento tem suas virtudes, seu interesse, sua força, seus limites. Os indícios são sinais que remetem naturalmente à coisa ausente, porque são partes dela, elementos materiais isolados, que a ela pertencem. Por exemplo, não vejo o fogo, mas vejo a fumaça, que é dele um indício certo e natural. Os animais compreendem os indícios. Vamos deixá-los de lado. O que os animais não compreendem, o que eles ainda menos podem fazer, mas que todos os homens, de todas as civilizações humanas, podem compreender e fazer são os símbolos linguísticos e as imagens. Enquanto símbolos, são representantes da coisa ausente, puramente convencionais, e não têm nenhuma relação de similitude com ela: não há nenhuma relação entre a palavra “gato” e um gato, isso porque há dezenas de milhares de línguas. Enquanto imagens, são representantes da coisa ausente e estão em relação de similitude e semelhança com ela. Os homens, mais ou menos à época da evolução e do processo de hominização, desenvolveram esses dois sistemas extremamente potentes para representar as coisas (as pessoas, os acontecimentos, as ações, os objetos): um sistema sonoro, a linguagem, pelo qual eles se comunicam entre si, quer dizer, tornam comuns seus pensamentos, tornam comum sua experiência do mundo, tornam mutuamente presentes as coisas uns dos outros, e tornam-se mutuamente presentes uns para os outros. Assim, as coisas que estão presentes para uns (em seus ambientes ou em seu pensamento) podem tornar-se presentes para todos. E, por outro lado, um sistema visual, as imagens, pelo qual eles tornam presentes para si mesmos, individual ou coletivamente, as coisas que são ausentes para todos.

Um escolheu o meio sonoro, o outro o meio visual. Um facilita a troca de uns pelos outros, o outro facilita a representação coletiva. Um é temporal, o outro é espacial. Mas, sobretudo, a imagem parece remeter necessariamente e como que naturalmente àquilo que ela representa (já que há uma relação de semelhança, ao menos parcial, entre a imagem e a aparência da coisa), ainda que a palavra remeta, convencional e arbitrariamente, àquilo que ela representa. Não obstante, notemos que, a despeito das aparências, o vínculo de semelhança entre a imagem e seu modelo não tem nada de absolutamente natural: nenhum animal reconhece uma imagem se não houver ao menos algum indício (partícula material, odor, etc). Notemos enfim que o poder representativo da imagem é analógico, e o da palavra é global: as partes da palavra “gato” não remetem às partes do gato, ao passo que as partes do desenho de gato referem-se às partes do gato. Enfim, a palavra não representa nada por si mesma. Ela representa fora de si mesma, por convenção, e por diferença de todas as outras palavras do léxico. Pelo contrário, a imagem remete diretamente à coisa (um para um), representa por ela mesma. O vínculo é unívoco e direto do representante ao representado, da imagem do cão ao cão. Sendo a palavra arbitrária, remete apenas à coisa por meio de um sistema (a língua), que supõe um vocabulário e uma sintaxe. Ela remete imediatamente à coisa, porque pertence a um conjunto estruturado (um código). Por isso é que uma imagem com frequência é suficiente por si mesma, e uma palavra jamais o é.

Eu não me arriscaria a comparar os respectivos méritos da linguagem e os das imagens, ou a opor as civilizações, as religiões, as épocas do Livro e as da Imagem. Há sempre alguma coisa um pouco artificial e um pouco moralista nessas comparações. Eu gostaria apenas de apresentar a seguinte tese: o que faz a própria potência da imagem, o que explica os poderes de captação que ela tem sobre o homem, não são suas próprias virtudes, mas, ao contrário, seus defeitos. Podemos explicar o formidável efeito das imagens sobre os homens a partir daquilo que elas não podem fazer nem dizer, e que a linguagem pode fazer ou dizer.

Com relação à linguagem, a imagem tem na verdade quatro defeitos. Existem quatro modalidades essenciais do ser que a linguagem, sim, pode dizer (que ela não pára, aliás, de dizer), e que a imagem jamais pode dizer: o conceito, a negação, o possível, o passado e o futuro. E são precisamente essas quatro impotências que fazem toda a potência da imagem. Vejamos.

A imagem ignora o conceito. Ela é irracional. Podemos representar Pierre, mas não o homem. Podemos representar um animal, mas não a animalidade; podemos representar um ser vivo, mas não a vivência. Não podemos representar a generosidade, o tempo, a história, a linguagem, enquanto tais; podemos apenas tentar ilustrar, por imagens, exemplos de um ato generoso ou do passar do tempo, que, talvez (não é certo), venham a sugerir a ideia de generosidade ou de tempo, a quem os vir. Se eu pensar “homem”, pensarei em um ser que não é nem macho nem fêmea, nem moreno nem loiro, nem grande nem pequeno, nem vestido nem nu, etc. Tente formar uma imagem disso! Impossível. Aquilo que você desenhar será necessariamente um indivíduo particular, concreto, macho ou fêmea, moreno ou loiro, etc. Podemos certamente recorrer a pictogramas (para a oposição homem/mulher, por exemplo), ou a símbolos (a balança, para a justiça), mas eles são muito limitados, e sobretudo em grande parte codificados e convencionais. Não dispondo de conceito, a imagem não pode então raciocinar, comparar, induzir, deduzir; ela não pode sobretudo explicar nada. Ao contrário, ela sempre deve ser explicada por outra coisa que não imagens, portanto, pelo discurso. Sua impotência para o conceito tem uma contrapartida. A linguagem, por si, tem dificuldade para descrever o indivíduo naquilo que ele tem de único, tal pessoa, tal paisagem, tal ato, tal acontecimento; são necessárias longas descrições incompletas e inexatas; ela é impotente para descrever tal cor, tal luz, tal impressão de conjunto. A imagem pode mostrar isso com um simples olhar.

Tal é a verdadeira superioridade da imagem: sua irracionalidade. O que ela pode mostrar nada pode dizê-lo. E, sobretudo, aquilo que vemos, vivemos, sentimos, experimentamos, nós o vemos, vivemos, sentimos, experimentamos no singular. Se quisermos tocar, emocionar, provocar uma reação imediata, não controlada, de admiração, de identificação, de atração, ou, ao contrário, de medo, de compaixão, de repulsa, nada vale tanto quanto a imagem. Um artigo sobre a fome que tenha causado 100 mil mortos na África é uma informação, uma estatística, interessa à pessoa, mas não a deixa indignada. Uma foto de uma única criança africana morrendo de fome não informa, não diz nada, não explica nada, mas pode provocar piedade, indignação, revolta.

Segundo defeito da imagem. A imagem mostra. Mas ela conhece apenas uma maneira de fazê-lo: pela afirmação. Ela ignora a negação. Toda imagem diz uma única palavra: “vejam!”. Ou: “aí está”. A imagem de um cachimbo diz, sem o dizer: “isto é um cachimbo”. Nenhuma imagem, de cachimbo ou de outra coisa, pode dizer: “isto não é um cachimbo”. Tudo o que está na imagem está apresentado. Como no mundo de Parmênides, o mundo da imagem não pode dizer “não é”. Ignorando a negação, ela ignora o debate, a dialética, a discussão, a oposição das opiniões, o verdadeiro e o falso. Tudo é verdadeiro, ou tudo é falso. Dá na mesma. Ela só conhece o mundo da apresentação, tudo é posto no mesmo plano, o plano do “é real”, do “é assim”. Mas, se eu quiser dizer que não é assim, a única coisa que posso fazer é opor uma outra imagem que diga, ela também, “é assim”. Tal é o dogmatismo da imagem.

Mas esse defeito da imagem tem uma contrapartida positiva. Pois, precisamente, se ela não pode dizer o nada, a falta, o defeito, o ninguém, o “não”, ela diz, melhor que a linguagem, o “é”. Uma imagem de cachimbo é um cachimbo. Daí o caráter particularmente estranho, atordoante, humorístico, do “isto não é um cachimbo” de Magritte. Escrever sob uma imagem de um cachimbo “isto não é um cachimbo” é brincar com o ser da imagem. Pois justamente a imagem, sem o dizer, “diz” sempre “é”. Com certeza, em “isto não é um cachimbo”, o texto tem razão, já que isto é um desenho de cachimbo, uma imagem de cachimbo, uma representação de cachimbo, não um cachimbo real, de madeira, com o qual se possa fumar. No entanto, a imagem de um cachimbo diz ela mesma, silenciosamente, implicitamente, “é um cachimbo”, “é isso, um cachimbo”. Dizer “isto não é um cachimbo” é dizer com o texto aquilo que a própria imagem não pode dizer por si, pois a imagem não apenas não pode dizer a negação, como também não pode a fortiori dizer dela mesma que é uma imagem e que não é, portanto, o que ela mostra. (Voltaremos a isto.) Eis então sua força: ela é pura afirmação, e é por isso que todos os sistemas políticos totalitários, todos os pensamentos monolíticos repousam e se apoiam em imagens.

Daí seu terceiro defeito. Ela não só conhece apenas um tipo de declaração, a afirmação, como também só conhece um modo gramatical: o indicativo. Ela ignora as nuances do subjuntivo ou do condicional. “É”, ponto, é tudo. Jamais um “se” nem um “talvez”. Defeito do qual ela ainda tira sua força. Pretendendo representar o real sem nuances, sem julgamentos, pondo o possível e o real no mesmo plano, ela dá esse sentimento de realidade que a linguagem não dá. “É isso, é exatamente isso.” Quando olho o retrato do ente querido, ele está lá, presente, tal como ele é, imediatamente. A imagem tem o poder de tornar absolutamente presente, porque não pode “modalizar” o real, relativizar, dizer mais ou menos o real. Daí sua força de convicção aparente. Uma imagem… e tudo está dito, nada a pode contradizer, nem a discutir: “é”. Não apenas ela não sabe dizer “não”, mas não se lhe pode dizer “não”. Os mais belos discursos, eles sim, podem sempre ser contraditos, as mais finas argumentações podem ser refutadas. Mas não podem nada contra a prova (real ou aparente) apresentada por uma imagem, uma única imagem, que está sempre no indicativo.

Mas, se ela só conhece um modo, ela também só conhece um tempo, o presente, é esse seu terceiro defeito: ela ignora pretérito e futuro. Ela não pode representar o tempo. Tudo se dá no presente na imagem, tudo é co-presente. Tente representar um acontecimento passado e um acontecimento presente, nada distinguirá as duas imagens. Olhe uma fotografia de um homem: está vivo? está morto? Nada na imagem pode dizer isso. Ela representa o passado como o presente e o futuro, e representa sempre a mesma coisa, os vivos como os mortos, os mortos como os vivos. Vimos que a imagem não pode dizer daquilo que ela representa: “não é”. Mas do mesmo jeito ela não pode dizer “não foi” ou “será”, pois diz sempre: “é”.

A fraqueza da imagem, porém, sua incapacidade de distinguir o tempo, é o que faz sua força mágica, religiosa. A imagem faz reviver os mortos e mostra o tempo passado não como passado, mas como sempre presente. As imagens religiosas da vida do santo nas paredes da igreja são apresentadas como sempre atuais, fazendo parte da vida de todos os dias. Mesmo as imagens da vida e, sobretudo, da morte de Cristo, que são as imagens por excelência no Ocidente, mostram um acontecimento que não é (ou não apenas, não essencialmente) passado, mas presente, sempre presente, dado na eternidade do nunc stans, do agora eterno, que é o próprio tempo da imagem.

É exatamente por isso que a humanidade inventou dois sistemas de representação: a linguagem, sonora, temporal, fruto da inteligência, instrumento extremamente sutil, aperfeiçoado, que pode dizer todas as nuances do tempo, do pensamento, do julgamento, todas as modalidades da abstração e da generalidade, mas que não pode tornar verdadeiramente presentes os verdadeiros ausentes, os mortos e os deuses; e o outro sistema, a imagem, visual, espacial, fruto da imaginação, muito mais rudimentar, mas surpreendente e impressionante, e que tem o poder mágico de fazer viver os mortos e fazer existir o céu sobre a terra.

Podemos notar também que, na maior parte das sociedades tradicionais, na Antiguidade greco-romana, em um grande número de antigas civilizações orientais, e no Ocidente cristão até o fim da Idade Média, a maior parte das imagens produzidas são imagens religiosas, seja de mortos, seja de deuses, às vezes de mortos que também são deuses. As primeiras imagens são funerárias. Em latim, “imagem” se diz simulacrum, que designa o espectro. Ou imago, que designa um molde em cera do rosto dos mortos,[5] que o magistrado usava nos funerais e colocava em casa sobre uma estante. A religião romana era em parte fundada sobre o culto dos ancestrais, e isso sobreviveu em suas imagens e por elas. Em grego, imagem se diz eidôlon ou eikôn. Eikôn designa o retrato ou o reflexo. Eidôlon, antes de significar imagem e retrato, designava o fantasma dos mortos, o espectro. O eidólon arcaico designa a alma dos mortos que deixa o cadáver, o duplo, cuja natureza tênue, mas surpreendente, é ainda corporal. Como diz Fustel de Coulanges: “Foi à vista da morte que o homem teve pela primeira vez a ideia do sobrenatural e passou a ter esperança em algo além do que via […] A morte eleva o pensamento do homem do visível ao invisível, do passageiro ao eterno, do humano ao divino”.[6]

Antes de continuar, meditemos um instante sobre essa hipótese. As primeiras imagens criadas pelo homem foram, sem dúvida, imagens de deuses e de mortos; era isso toda a sua metafísica. As primeiras palavras do homem foram, sem dúvida, grosseiras, espreitadas pelo perigo, pressionadas pela privação, premidas pelas necessidades de troca imediata. As coisas mudaram bastante. Hoje as palavras servem às mais altas especulações — à prece, à ciência, à filosofia —, ao passo que as imagens são destinadas ao consumo imediato e à perda instantânea.

A imagem é, portanto, um modo de re-apresentação do ausente. Vimos como ela se distingue da linguagem. É de seus defeitos em relação à linguagem que ela tira seu próprio poder. De agora em diante, convém medir o poder de representar e avaliar as ilusões que ela carrega.

OS TRÊS GRAUS DO PODER DA IMAGEM

Há três graus de ausência. Há por consequência três graus de poder da imagem para medir o tipo de coisa que ela é capaz de tornar presente.

Existe primeiro aquele que está acidentalmente ausente, quer dizer, aquele que, no presente, está longe de mim, longe de nós, mas que poderia estar presente, que, aliás, estará novamente, outro dia, outra vez, em outras circunstâncias. Por exemplo, estou no Brasil, longe de meu amigo Jean. Tenho saudade. Vejo uma imagem dele, por exemplo, uma fotografia, “para matar a saudade”. “Vejam, é ele, é ele mesmo.” Sorrio para a imagem, como se ele estivesse presente.

Há depois aquilo que está substancialmente ausente, que está irreversivelmente ausente, quer dizer, aquilo que está sempre longe de nós, que não pode voltar nunca, que nunca mais poderá estar novamente presente. É o caso do passado, e notadamente dos mortos. Olho para a estátua de um presidente célebre, De Gaulle ou Tancredo Neves. Ou, ainda, olho uma fotografia do Rio de Janeiro há vinte anos. Vejo, presente na imagem, aquilo que nunca mais estará presente na realidade. Olho a imagem: “sim, é isso, foi assim”.[7] O efeito é o inverso daquele do caso precedente. Em lugar de aplacar minha nostalgia, a imagem me dá nostalgia. Na verdade, no primeiro caso, a imagem torna presente aquilo que não está, mas que ainda pode estar, ela me proporciona um substituto da presença real que aplaca a falta que sinto. No segundo caso, a imagem torna presente aquilo que não mais está, faz me tomar consciência daquilo que nunca mais estará, e é por isso que cria em mim a falta desse passado, desse ser que não está e que não pode estar novamente.

Há enfim, no terceiro grau, aquilo que está absolutamente ausente, quer dizer, aquilo que nunca pode estar presente, que jamais poderia nem poderá estar presente, porque é por essência ausente deste mundo: os do além, e os seres sobrenaturais, transcendentes, os deuses, até mesmo o próprio Deus. No cristianismo, por exemplo, são as imagens dos santos, da Virgem, de Cristo, etc. Graças às imagens, o mundo do além toma-se presente aqui embaixo, o transcendente se toma imanente, penetra neste mundo. Inversamente, graças à imagem, graças às imagens, o olhar que as contempla eleva-se deste para um outro mundo.

Há evidentemente uma gradação na ausência, entre os três representados possíveis, que corresponde respectivamente aos três tipos de poder de representação da imagem. Em um primeiro grau, a imagem pode representar — quer dizer, tornar presente —, a qualquer momento, o ausente ocasional, mas que poderia estar presente, em um segundo grau, a imagem pode representar o ausente definitivo, aquele que não pode estar presente, mas esteve, em um terceiro grau, a imagem tem o poder (ou a pretensão) de representar aquele que não pode absolutamente estar presente. No mais baixo grau, a imagem é o representante visível de uma outra coisa visível, que apenas ocasionalmente é invisível. No mais alto grau, aquele da representação divina, a imagem visível tem o poder de representar o invisível — é a maior ambição da imagem (ou sua maior ilusão, conforme o ponto de vista). Mas, entre os dois, as imagens visíveis têm o poder de representar as coisas passadas ou os seres defuntos, que não são nem inteiramente visíveis nem inteiramente invisíveis. E é nesse nível que há concorrência entre dois tipos de imagens nas crenças populares: as verdadeiras imagens feitas pela mão do homem e que têm o verdadeiro poder de representar os mortos, e as imagens ilusórias, com as quais imaginamos que os mortos se apresentem. Na verdade, de um lado, os homens fazem imagens dos mortos para torná-los novamente visíveis na memória e na imaginação. Mas, de outro, nas crenças populares, nos contos infantis, em numerosos mitos, os mortos frequentam o mundo dos vivos, como espectros. Segundo essas crenças, os mortos são geralmente neste mundo simples imagens: não são mais que formas e cores desencarnadas, são puras visibilidades sem corpos. Percebemos de onde vêm essas estranhas crenças. A imagem pintada pela mão do homem, o retrato, tem o poder de tornar visível aquilo que foi visível e não pode mais sê-lo imagem, quer anular a morte. Eis por que o ser que emprestamos espontaneamente aos próprios mortos, a essas existências sem vida, é justamente aquele das imagens, puras visibilidades transparentes e sem carne. As imagens dão novamente vida aos mortos (está aí seu poder), isso porque a vida dos mortos é a das imagens (aí está a ilusão). A necessidade de imagens nasce da preocupação do homem de fazer com que novamente seja, em simples aparência, aquilo que não pode mais ser, o passado ou a morte. Mas, assim que ele consegue, assim que o retrato fica semelhante, é como se o passado ou o morto tivessem eles mesmos o poder de existir em imagens. É como se a imagem saísse diretamente da própria coisa, é como se fosse a realidade (o morto, por exemplo) que se apresentasse ela mesma na imagem, em imagem, em simples imagem. Eis então como o poder da imagem é criador de ilusões. Ela tem o poder de representar o ausente. Ela pode também criar a ilusão de que é o próprio ausente que se apresenta. A ilusão que cria a imagem não consiste exatamente, como se diz às vezes, em se confundir com a coisa, em se assimilar à coisa: ninguém confunde o ser vivo com o fantasma. Segundo Platão, frequentemente criticamos a ilusão (e, portanto, a imagem) dessa maneira. Os homens confundem imagem com realidade, dizemos, e tratam a primeira como a segunda. Mas não é o caso, ninguém confunde o ser e a aparência. Não, a ilusão de que se trata é mais sutil e mais temível. Ela é como a crença popular em fantasmas.

AS IMAGENS SAGRADAS E A ILUSÃO IMAGINÁRIA

No entanto, no segundo grau, no nível da representação dos mortos, a imagem ilusória (o fantasma) não é verdadeiramente problemática, pois é inteiramente distinta da imagem real (o retrato). Ninguém confunde um retrato com um fantasma. O retrato vem do trabalho real de representação de um homem, artista, artesão, que imita a coisa. A outra, a imagem ilusória, supõe-se que venha da própria coisa representada, ela é uma emanação. Mas é no terceiro grau, aquele da imagem sagrada, que a verdadeira ilusão da imagem aparece mais claramente. Pois, nesse nível, as duas imagens (a imagem feita da coisa e a imagem feita pela coisa) confundem-se. A imagem sagrada, feita, contudo, pela mão do homem, ainda que represente adequadamente o deus ou o santo, emana, imagina-se, diretamente daquilo que ela representa, o deus ou o santo, e não daquele que a fez. É como se os dois tipos de imagens, o retrato e o fantasma, se confundissem.

Podemos assistir, “ao vivo”, se é que podemos dizer assim, ao momento em que a imagem muda bruscamente de estatuto, momento em que tudo se inverte, o humano torna-se divino, o profano torna-se sagrado, a manifestação do poder do homem de fazer imagens de deuses torna-se manifestação do poder dos deuses de manifestar-se em imagens aos homens. É o instante da “consagração das imagens”. É a última etapa da realização de uma imagem porque ocorre no momento em que ela recebe os últimos toques; mas ela inaugura igualmente o novo estatuto da imagem que instalamos em seu santuário ou em qualquer outro contexto sagrado. “Como todo rito de consagração, trata-se ao mesmo tempo de um rito de acabamento e de inauguração; marca essencialmente a passagem do objeto inerte, fabricado pelo homem, ao estado de objeto dotado de vida”.[8]

“O melhor exemplo […] é provavelmente a ‘cerimônia dos olhos’ dos budistas cingaleses do Theravada, durante a qual os olhos da estátua de Buda, que eram o que lhe faltava, são enfim pintados, ato supremo pelo qual a estátua chega à vida.”[9]

“Antes que os olhos sejam feitos, ela não é considerada como um deus, mas como um fragmento de metal comum, e fica no atelier sem requerer mais consideração que qualquer outro objeto […] Formados os olhos, ela é doravante um deus.”[10]

A cerimônia é considerada pelos executantes perigosa e é cercada de tabus. Ela é consumada pelo artesão que fabricou a estátua, ao fim de muitas horas para se assegurar de que nenhum mal lhe advirá. O artesão pinta os olhos em um momento propício e fica só, no templo fechado, apenas com seus ajudantes, enquanto cada um, no exterior, se mantém a distância da porta. Por outro lado, o artesão não se arrisca a olhar a estátua no rosto, mas se vira e pinta de lado, ou por baixo do ombro, olhando por um espelho que capta o olhar da imagem à qual confere vida. Assim que termina a pintura, o olhar do próprio artista torna-se perigoso. O homem é então levado para fora com os olhos vendados, e a venda só é retirada depois que seu olhar possa se deter sobre um objeto que ele então destrói simbolicamente, com um golpe de espada.[11]

Duas coisas devem ser notadas aqui: o fato de que é o acabamento da imagem, o último gesto do artesão, que imediatamente a faz mudar de estatuto, e, por assim dizer, de autor. O artesão é a única causa de todos os gestos que formam a estátua, mas o último desses gestos, aquele pelo qual a estátua, terminada, imediatamente se torna uma imagem, é um gesto não mais originado por ele, e sim o gesto pelo qual a estátua cessa de ser originada por ele para ser originada pelo deus que ela representa. O artesão faz, sucessivamente, tudo aquilo que leva à imagem, mas não faz a imagem como um todo; isso é feito, e de um só golpe, por aquele que ela representa uma vez terminada. O artesão faz todas as partes, mas não o todo. Todas as partes constitutivas são, por assim dizer, a causa eficiente da imagem, mas não sua causa real, que é o deus do qual ela é a imagem, causa formal ou “ideal” que está na imagem e que só pode aparecer no momento em que ela estiver terminada, já que só aí a imagem representa mesmo o deus. Mas ela o representa tão bem, que, então, não é mais a imagem que representa o deus, é o próprio deus que se apresenta em imagem.

A segunda coisa a notar é o acabamento que inverte os papéis e a pintura dos olhos. Com certeza, os olhos são para a imagem aquilo que a anima e que lhe dá vida. É, portanto, normal que a passagem do estatuto de matéria bruta para o de corpo vivo se faça no momento em que é pintado esse sinal de vida. Mas há mais. Há essa inversão significativa.

A imagem, em lugar de ser isso que vemos, torna-se aquilo que vê. É o homem que se torna visível sob o olhar do deus. Mais geralmente, notaremos, na verdade, que a imagem sagrada, que supostamente é a manifestação visível do invisível, é frequentemente invisível, escondida, ocultada aos olhares, no interior de um nicho, no fundo de uma tumba, para não ser profanada pelo olhar impuro.

Diremos: tudo isso é idolatria! O monoteísmo justamente sucedeu ao paganismo substituindo o culto das imagens, quer dizer, das estátuas de pedra adoradas pelos pagãos, por um verdadeiro deus, imaterial, invisível, irrepresentável. Mas será simples assim?

É certo que o nascimento do monoteísmo é marcado pela luta contra o culto das imagens. A realidade absoluta, o além, o Deus bíblico são puras palavras. Deus é transcendente, inteiramente diferente dos homens e dos vivos, sem figura sensível. Daí a proibição das imagens no segundo mandamento. Entretanto, tudo muda com o cristianismo, porque Cristo é Deus, mas é também um homem visível. “Jesus lhe disse: Aquele que me viu viu o Pai” (João, MV, 8-9). E Paulo, na Epís­tola aos Colossenses (I, 15-20), vai ainda mais longe: “O Filho é a imagem do Deus invisível”. Desde então, toda a história das imagens no Ocidente confunde-se com as diferentes interpretações possíveis dessas palavras. Daí a luta sangrenta, e secular, entre iconófilos e iconoclastas, os que aceitam as imagens sagradas e aqueles que as destroem como profanas, uns e outros se tratando mutuamente de idólatras. Após diversos concílios iconoclastas, o Segundo Concílio de Nicéia, em 787, decide em favor das imagens, mas o debate perpetua-se ainda até o Cisma entre a Igreja do Ocidente e a do Oriente, em torno da questão dos ícones; e continuará até a época clássica, com Calvino, novo iconoclasta, que acusará a Igreja de ser retrógrada, idólatra, com seu culto às imagens da Virgem e dos santos. Como já observamos, se a questão das imagens é central na história do cristianismo, já que as duas outras grandes religiões monoteístas (judaísmo e islamismo) pura e simplesmente rejeitaram as imagens divinas, e por consequência as imagens sagradas em geral, e mesmo toda forma de figuração profana, dito de outra forma, todas as imagens, é porque o mistério da Encarnação (que é o fundamento do cristianismo) reproduz o mistério, ou melhor, o mecanismo da imagem. Cristo é o Deus-Homem, é Verbo e Carne ao mesmo tempo; é o Filho visível do Pai invisível, duas naturezas em uma só pessoa, como a própria imagem — como toda imagem, qualquer que seja. Um quadro tem todas as propriedades da matéria graças à qual ele representa, e ao mesmo tempo todas as propriedades da ideia que ele representa. Eis por que, no Ocidente também, para o cristianismo, e não somente nas religiões primitivas ou orientais, a imagem por excelência é a imagem sagrada, e a imagem sagrada está no centro de todas as manifestações religiosas, pelo menos em países católicos (e não protestantes).

É por isso que encontramos no cristianismo (e não somente no paganismo) o fenômeno da consagração de imagens, pelo qual uma imagem, feita pelo homem, torna-se uma imagem sagrada emanando de seu modelo. Na religião católica romana, os retábulos, por exemplo, são bentos (com prece e aspersões de água benta) antes de poderem tornar-se objeto de devoção e de veneração. Mas isso é ainda mais nítido na Igreja Católica Ortodoxa, fundada em 843, no que diz respeito ao culto de ícones, que se apóia sobre a doutrina segundo a qual “a honra e a veneração endereçadas à imagem remontam ao protótipo”.[12] O ícone é uma imagem santa, feita por um artesão, o iconógrafo, que, segundo um procedimento absolutamente estereotipado, cercado de preces, reproduz um arquétipo (não se diz “pintar” um ícone, mas “escrever” um ícone), sempre o mesmo, sobre uma tela estendida em uma prancha de madeira, quer dizer, uma imagem do corpo de Cristo ou de um santo, centrada no rosto, sempre do mesmo modo, cercada de ouro. “Toda a atenção é atraída pelo olhar dos olhos, por vezes imensos, que se voltam para o espectador.”[13] Além disso, “a perspectiva é em geral inversa: a linha de força vai do interior do ícone para o olho do espectador. Por meio do ícone, as verdades da fé irradiam-se para aquele que o contempla. O ponto de fuga transporta-se então para ele”.[14] Notemos aí esse ponto, que lembra o olhar das estátuas sagradas dos budistas cingaleses, ao qual voltaremos. Em suma, tudo indica, aí ainda, a mudança de natureza da imagem uma vez terminada e consagrada, e a inversão de sua causa: ela deixa de ser feita para representar o divino, ela se torna divino, que se apresenta a si mesmo.

Tal é a ilusão imaginária gerada por certas imagens. Na verdade, essa ilusão pode ser gerada por qualquer imagem, mas torna-se mais e mais sensível à medida que cresce a ambição de representação da imagem: quanto mais a imagem se esforça em tornar presente o ausente, mais ela tenta representar o irrepresentável, tornar visível o invisível, mais ela gera a ilusão de não ser imagem. Nós a encontramos em qualquer imagem, mesmo na mais banal. É essa ilusão que permite à criança considerar seu boneco coisa diferente de um pedaço de pano e de tratá-lo como uma verdadeira pessoa — com a diferença de que a criança não é idiota e sabe que está brincando, que está fingindo, que isso não é “verdade”. É essa ilusão que está na origem de todos os rituais mágicos: age-se na imagem para se agir sobre a pessoa. A não ser pelo fato de que a crença na magia é excepcional e não engloba o conjunto de condutas cotidianas — sob risco de loucura, novamente. Na imagem da morte, ou melhor, dos mortos, a imagem feita para representar, o retrato, avizinha-se da crença (mágica) na imagem que emana do próprio representado, seu fantasma. Mas, na imagem do absoluto, as duas imagens, a causada por um representante e a causada pelo representado, são confundidas, “como por magia”: a imagem, para poder representar o divino real e adequadamente, não deve ser considerada originada diretamente pelo homem, sob pena de não poder ser imagem do absoluto. O homem faz imagens de Deus para si, e só pode crer que se trate de imagens de Deus se acreditar que é o próprio Deus que assim se fez imagem para o homem. Tal é a ilusão fundamental da imagem, que encontramos por excelência nas imagens sagradas, mas (vamos ver isso) a reencontramos, sob outras formas, hoje, em outros tipos de imagens, as imagens mais banais, as mais profanas.

É preciso logo distinguir: o poder real das imagens e a ilusão imaginária que esse poder engendra. A imagem tem um poder real, o de representar. A ilusão não consiste, portanto, em lhe atribuir esse poder, já que é ele que procuramos ao criar imagens. A imagem tem efetivamente esse poder — é sua própria definição. Ela tem, para nossa faculdade que se chama imaginação, o poder de representar as realidades que não podem estar presentes nos nossos sentidos. A ilusão não consiste, pois, em crer que as imagens confundem-se com a realidade ou têm o poder de representar a realidade. Não. A ilusão criada pelas imagens é a ilusão do fantasma ou do ícone. Ela não consiste de forma alguma em atribuir às imagens aquilo que se atribui à própria realidade. É até exatamente o contrário: ela consiste em atribuir à própria realidade o poder que é das imagens, o poder de representar. A ilusão imaginária consiste em crer que a realidade tem o poder de sua própria representação, em atribuir à realidade ausente representada pela imagem o poder de se apresentar ela mesma em imagem. É com ela, veremos adiante, que nossa modernidade reatou.

Essa ilusão está de algum modo ligada àquilo que podemos chamar de transparência da imagem. Quanto mais a imagem tem o poder de tornar presente o ausente, de tornar mais presente o que está mais ausente, o morto ou o divino, mais ela engendra a ilusão segundo a qual ela não tem poder e que é o próprio ausente que se apresenta na imagem. Olhamos a imagem, mas não a vemos, já que ela é transparente. O maior poder da imagem é o de não aparecer. Não vemos a imagem, se vemos a própria coisa representada, por transparência, se assim podemos dizer. Vemos o modelo, e não a imagem, e é ao modelo que atribuímos o poder da imagem, o de se tornar presente.

Doravante tentarei descobrir a origem da ilusão imaginária contemporânea, a nova “ilusão da transparência”, que remete às mais arcaicas ilusões religiosas e mágicas.

IMAGENS TRANSPARENTES E IMAGENS OPACAS

Para compreender isso, é preciso compreender em que condições uma imagem pode não ser transparente — dito de outro modo, pode tornar-se opaca e deixar de criar a ilusão imaginária. Durante a maior parte da história antiga e medieval, a maioria das imagens sagradas eram ícones ou ídolos. Elas eram transparentes, porque eram potentes. Olhamos a imagem e vemos o próprio martírio, a própria Virgem, o próprio santo, o próprio Cristo.

Houve um dia em que as próprias imagens de santos, da Virgem, de mártires, de Cristo começaram a ser visíveis. Não mais apenas o representado, mas também sua imagem. As imagens não deixaram de ser transparentes, continuaram a mostrar aquilo que representavam. Mas, ao mesmo tempo, começaram a ficar um pouco opacas, a se mostrar elas mesmas. Esse dia, lá pelo século XIV, é o do nascimento da arte, se assim podemos dizer. É o momento em que as imagens se tornam artísticas, ou, se preferirmos, o momento em que a arte se apoderou das imagens. Haverá um dia, no começo de século XX, em que a arte abandonará as imagens. Nesse lapso de tempo de sete séculos no Ocidente, as imagens deixaram de ser inteiramente transparentes, mostraram-se elas mesmas. Elas voltaram a ser transparentes.

Que quer dizer a imagem tornar-se opaca?[15] Uma imagem é opaca se, ao mesmo tempo em que mostra alguma coisa, mostra-se a si mesma. Uma imagem é opaca se não apenas representa alguma coisa, mas se representa a si mesma como imagem, quer dizer, como representante; se, enquanto ela mostra aquilo que representa, mostrar que ela representa. Citemos alguns exemplos: olho uma fotografia qualquer de De Gaulle. Digo: “É De Gaulle”. Olho um retrato de Descartes feito por Franz Hals. Digo: “É Descartes, é efetivamente ele, reconheço seu sorriso e sua altivez”. Mas digo também: “É Franz Hals, é realmente ele, reconheço sua maneira e sua desenvoltura”. A imagem torna Descartes presente para mim, e (genialmente) sua personalidade, aí está sua transparência; mas o autor dessa presença não pode ser o próprio Descartes, o próprio autor dessa presença está ele mesmo presente na imagem, ou ao menos a imagem reflexivamente remete à sua causa, Franz Hals, seu estilo, sua personalidade, seu caráter, sua época, etc. É isso a opacidade da imagem. E é isso que lhe dá valor artístico. Como testemunho de Descartes, nós a olhamos em transparência; como obra de arte, a consideramos em sua opacidade, julgamos o trabalho de Franz Hals.

Chegou um dia em que as imagens, os ícones religiosos, transparentes, se tornaram artísticos e, portanto, opacos. Isso ocorreu no fim da Idade Média, e consistiu em três fenômenos ligados. O representado, primeiro. Certo, permanece, ainda por dois séculos, essencialmente religioso. Mas as cenas religiosas diversificam-se, e sobretudo os personagens representados saem de seu hieratismo sagrado, os rostos de Cristo, da Virgem, do Menino, dos santos humanizam-se, tornam-se devidamente semelhantes aos de verdadeiros homens, de verdadeiras mulheres, emocionados e, portanto, emocionantes. Mais tarde, as representações tornam-se profanas, sobretudo nos países do Norte, onde a iconoclasia calvinista proibirá as imagens sagradas, mas autorizará as cenas humanas. Mais tarde, tudo o que é natural, sensível, poderá ser representado, cena histórica, retrato, cena de gênero, paisagem, natureza-morta. O segundo fenômeno que marca a opacificação da imagem na pintura, ligado ao precedente, é a aparição do representante na imagem. As imagens, mesmo as religiosas, deixam de ser intercambiáveis e indistintas, como os ícones; passam todas a ser distintas, únicas. E, sobretudo, o autor marca a pintura com seu cunho, sua maneira, seu estilo. O artista toma o lugar do artesão, do fabricante de ícones em série; surgem personalidades, nomes próprios, assinaturas: Giotto, Masaccio. São doravante eles, os artistas, que são os autores da obra, cada vez mais célebres, cada vez mais adulados, no decorrer da história da arte. Os autores não são mais seu modelo. Doravante, um quadro se inscreverá na história da arte, cada artista pintará não apenas em função do “tema” que lhe é encomendado, mas imprimirá nele seu próprio estilo, que definirá em relação a seus predecessores, e não em função da consciência que tem de seu lugar na história dos estilos. O terceiro fenômeno que marca a opacificação da imagem é o modo de representação. Não apenas deixa de ser estereotipado, mecânico, como o dos ícones sagrados, mas surge a teoria, em seguida a prática da “perspectiva”, a perspectiva geométrica, que permite a representação do espaço natural, e que sobretudo vai inverter o ponto de vista imposto pelo ícone. O ponto de vista fixo é o olho do espectador, quer dizer, também, efetivamente o do próprio pintor, e não mais o olho de Cristo ou o do santo; as linhas de fuga convergem no quadro, e não mais, como no ícone ou na estátua budista, no espectador. Doravante, o verdadeiro olhar é o do homem sobre a imagem, não mais o da imagem sobre o homem.

Assim, houve durante alguns séculos, “a época da arte”, uma enorme produção de “boas imagens”, quer dizer, de imagens transparentes, mas em parte opacas, afirmando-se como imagens e mostrando que são representações singulares, únicas, representando, por definição (como toda imagem), aquilo que é único e singular, mas sobretudo feitas pela mão do homem singular, único, indivíduo que chamaremos mais tarde (desde o fim do século XVIII) de “genial”. A individualidade do representado desdobra-se doravante em individualidade do representante e individualidade da representação. “Boas imagens”, isso não significa forçosamente imagens de “bons” pintores ou de “bons” escultores; o valor não está aqui em questão, do ponto de vista da história da arte ou do julgamento de valor. Pôde e ainda pode haver, em nome da “criação artística”, imagens falhas ou desinteressantes. O que importa é que essas imagens são rebeldes à magia ou à ilusão imaginária. Ninguém pode imaginar que elas são criadas por aqueles que elas representam, mesmo que por vezes elas representem as coisas mais sagradas, mesmo que por vezes o artista, na época romântica, dê-se ares de profeta ou de vidente. Ninguém pode crer que elas se fizeram sozinhas ou que não têm poder. Evidentemente, o sujeito representado emociona, e pode provocar cólera, piedade, ou admiração, atração. Mas é também a própria imagem, em seu modo de representação, em sua maneira, que comove, é Ticiano, Vermeer ou Manet, que podem provocar admiração, entusiasmo, ou quietude. A imagem, quando toma a forma da arte, tem uma dupla maneira de tocar, que, na obra e pela obra, forma uma única.

Um dia, no entanto, na história do Ocidente, o casamento da imagem e da arte, que havia durado sete séculos, terminou. Cada um dos dois tomou seu caminho solitário, a imagem de um lado, a arte do outro. Como se passou isso? Foi fruto de três fenômenos históricos, quase simétricos aos precedentes. Assinalemos de início o fim da perspectiva e das leis da representação clássica, com Cézanne e, depois, com o cubismo. A seguir, sobretudo, o surgimento de uma técnica e de um procedimento automático de produzir imagens da realidade, tão fáceis, tão semelhantes, a fotografia, que teve duas consequências: de um lado, a dúvida em todos os grandes artistas sobre o valor das imagens enquanto tais (para que tentar reproduzir o real, que parece reproduzir-se tão facilmente sozinho?); de outro, o desaparecimento dos mercados da pequena pintura, do retrato pessoal ou familiar, que doravante será obra do fotógrafo, e do pintor paisagista, devido ao desenvolvimento do cartão-postal, no fim do século XIX. Enfim, o terceiro fenômeno, um pouco mais tardio, no início do século XX, e que assinala definitivamente o divórcio entre a arte e a imagem: o nascimento da abstração, com Kandinsky, Mondrian e Malevitch, os quais proclamam que a arte, a verdadeira arte, a grande pintura, deve deixar de ser representativa. O que é efetivamente interessante é que, como algumas vezes já se assinalou,[16] esses artistas, que geralmente são místicos, utilizam contra a representação argumentos iconoclastas clássicos: a imagem não pode de maneira alguma atingir o absoluto, que é irrepresentável, a verdadeira realidade está além da imagem, etc.

Que aconteceu então? A imagem e a arte divorciaram-se, cada um tomou seu caminho. A arte, seja qual for o meio utilizado, deixou de querer “representar”. Parou de querer produzir imagens, deixou esse cuidado à técnica, às diferentes técnicas que se sucederam, mais e mais poderosas, rápidas, eficazes. De tempos em tempos, a arte e a imagem cruzam-se de novo, a fotografia torna-se também uma arte reservada a poucos, além de uma técnica mecânica aberta a todos. A pintura, de tempos em tempos, torna-se outra vez “figurativa”, mas no segundo grau, como hiperrealismo, pop-art: ela não representa “realidades”, mas representações; faz imagens de imagens, diverte-se em mostrar imagens como imagens. Assim, o hiperrealismo representa, no segundo grau, a maneira pela qual a fotografia representa o mundo, e a pop-art representa a maneira pela qual o desenho em quadrinhos ou a publicidade representam a realidade.

Depois que a arte abandonou o projeto representativo, as imagens foram deixadas órfãs, abandonadas a si mesmas, ou mais tarde deixadas, pelo prodigioso desenvolvimento de técnicas automáticas de reprodução, à pura reprodução mecanizada, à representação pela representação: fotografia, cinema, televisão, tevê em cores, imagens digitais, e sobretudo imagens por todo lado, imagens de tudo, imagens vindas de todo lado, imagens para todos. E acabamos nos encontrando, mutatis mutandis, na mesma situação que a de antes da época da arte, quando as imagens eram feitas de maneira estereotipada, com o único intuito de representar, com a mesma consequência, a transparência das imagens e a ilusão imaginária. Com estas duas diferenças: as imagens hoje são produzidas em uma escala infinitamente maior, invasora, que na Idade Média, e, sobretudo, não são mais sagradas, mas profanas, e mesmo cada vez mais próximas de nós, no primeiro grau de ausência, de afastamento. Todas as imagens do mundo vêm, pela televisão, em todos os lares, é, portanto, poderíamos crer, uma formidável memória, o acesso de todos a toda a cultura do mundo, e, sobretudo, a divisão, entre todos, da realidade do mundo.

Pode ser. Mas é também uma nova ilusão. Pois as imagens estão uma vez mais abandonadas a si mesmas, a seu próprio poder de representar, e criam a ilusão fundamental de não representar, de não ser imagens fabricadas, de ser o simples reflexo, transparente, aquilo que elas mostram, de emanar diretamente, imediatamente, daquilo que elas representam, de ser o puro produto direto da realidade, como outrora acreditávamos que emanavam diretamente dos deuses que representavam. O mais perigoso poder da imagem é fazer crer que ela não é uma imagem, fazer-se esquecer como imagem. Antes da arte, olhávamos para o ícone e acreditávamos ver o próprio deus, diretamente, sem representação. Depois da arte, olhamos para a televisão e cremos ver a própria realidade, diretamente, sem representação. A causa está ausente, o trabalho de produção da imagem não é mais visto na imagem, a imagem não pode ser vista como imagem. Diante dessas imagens ao vivo e em tempo real, atravessamos a tela, no real registrado, a representação é negada como representação, como diante do olhar de Cristo. Não pretendemos mais, ao pintar os deuses, que eles próprios se tornem visíveis, em pessoa, mas continuamos pretendendo, ao filmar o mundo, que ele se torne visível em carne e osso. Mas, nos dois casos, o céu ou a terra, há homens que criam as imagens, por inteiro, um homem que escolhe seu enquadramento, suas cores, que seleciona o que vai mostrar e o que vai esconder.

Há uma subjetividade atrás da objetiva, todo um trabalho de mostrar [monstration] e de seleção atrás da imagem retida entre milhares de outras possíveis e mostrada em seu lugar, um complicado jogo de fantasias, de interesses e por vezes de acasos: por que [mostrar] este país, este acontecimento [… ], esta personagem em vez de outra? [17]

Dizemos mostrar a realidade tal qual ela é, nunca mostramos como a imagem da realidade é fabricada. A grande mistificação é essa do “ao vivo”: “Ver as coisas enquanto acontecem nos dá a impressão de ler o mundo como um livro aberto”. A câmara pretende mostrar o real, mas jamais vemos a realidade, que seria a câmara na imagem dela mesma. Será que pelo menos imaginamos, quando vemos um acontecimento “ao vivo”, que as pessoas que vemos vêem câmaras, jornalistas, equipes de repórteres, etc.? Será que ao menos imaginamos que elas fazem parte do acontecimento e que, além disso, certos acontecimentos, cada vez mais, ocorrem apenas para serem filmados, reproduzidos, mostrados? Mas isso é o que a imagem não pode mostrar; ela é impotente em se mostrar mostrando. Será que imaginamos quantos acontecimentos, mais graves, mais importantes, históricos, foram omitidos porque não havia câmara para filmá-los ou porque decidimos não os mostrar? Esta é a ilusão imaginária moderna por excelência: não é que vejamos apenas imagens, é que não vemos mais as imagens como tal. A ilusão consiste, mais uma vez, em crer que a realidade tem o poder de sua própria representação, em atribuir à realidade representada pela imagem o po­der de se apresentar como tal.

Às vezes, só a presença de um artista atrás da imagem tem o poder de mostrar a imagem na imagem, de nos mostrar ao mesmo tempo, hoje no cinema como outrora na pintura, a realidade representada e a realidade da representação, de nos emocionar ao mesmo tempo pelo que nos mostra do real e pela imagem do real que nos mostra. No retrato de Descartes feito por Franz Hals, reconhecemos Descartes, reconhecemos Franz Hals, para nosso maior prazer e para a glória da imagem e da arte. Mas ocorre a mesma coisa hoje em dia. Em Buena Vista Social Club, reconhecemos ao mesmo tempo, para nosso maior prazer, o retrato do músico cubano Compay Segundo e o estilo do cineasta alemão Wim Wenders. Como outrora Ticiano, Vermeer ou Velázquez, os grandes artistas da imagem de hoje, como Eisenstein, Gláuber Rocha, Lars von Trier ou Kiarostami, podem nos emocionar ao mesmo tempo, e na mesma imagem, pelo tema representado e por seu modo de representação. Este é o destino que desejamos a todas as imagens: um estilo que as faça ser vistas como imagens. Então, a questão não é “menos imagens!” Ou “mais imagens!” Mas menos imagens “transparentes” que pretendam mostrar o real escondendo-se! Mais imagens “opacas” por meio das quais possamos conhecer uma realidade única e reconhecer uma imagem única.

Tradução: Eric Roland Rene Heneault.

Notas

[1] D. Freedberg, Le pouvoir des images, trad. A. Girod (Paris: G. Monfort, 1998), p. 21.

[2] Ibid., pp. 27 e ss.

[3] Platão, Diálogos, “Crátilo”, trad. Carlos Alberto Nunes, vol. IX da Coleção Amazônica (Belém: Universidade Federal do Pará, 1973), 432bc, pp. 182-183.

[4] René Descartes, La dioptrique, discurso 4, disponível em: http://www.uqac.uquebec.ca/zone30/ Classiques_des_sciences_sociales/index.html, link Collection: Les Classiques des Sciences Sociales, seção Descartes, René, p. 38.

[5] Régis Debray, Vie et mort de l’image: une histoire du regard en Occident, Coleção Folio/Essais (Paris: Gallimard, 1992), p. 19. Ed. brasileira: Vida e morte da imagem: uma história do olhar no Ocidente (Petrópolis: Vozes, 1994).

[6] Fustel de Coulanges, apud Régis Debray, Vie et mort de l’image…, cit., p. 26.

[7] Como diz Roland Barthes, em La chambre claire: note sur la photographie (Paris: Gallimard/Seuil, 1980). Ed. brasileira: Câmara clara: nota sobre a fotografia, trad. Castanon Guimarães (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984).

[8] D. Freedberg, Le pouvoir des images, cit., p. 101.

[9] Ibid., p. 104.

[10] R. Knox, apud D. Freedberg, Le pouvoir des images, cit., p. 104.

[11] D. Freedberg, Le pouvoir des images, cit., p. 105.

[12] Alain Besançon, L’image interdite: une histoire intellectuelle de l’iconoclasme (Paris: Fayard, 1994), p.180. Ed. brasileira: Imagem proibida: uma história intelectual da iconoclastia, trad. Carlos Sussekind (Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997).

[13] Ibid., pp. 184-185.

[14] Ibid., p. 185.

[15] Tomei emprestado de Louis Mann o conceito de “opacidade da pintura”.

[16] Por exemplo, Alain Besançon, L’image interdite…, cit., que fez disso um dos temas condutores de seu estudo.

[17] Régis Debray, Vie et mort de l’image…, cit., p. 376.

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