2014

Silêncio do torturado, loquacidade do torturador

por Marcelo Coelho

Resumo

Por muito tempo, nas democracias ocidentais, o recurso à tortura como método de investigação era inadmissível – nos dois sentidos do termo. Em primeiro lugar, tratava-se de algo que ninguém podia admitir como legítimo, depois de séculos de aceitação formal da doutrina dos direitos humanos, inscrita na maioria das constituições e dos tratados internacionais. Ainda assim, a tortura foi e continua sendo empregada, extraoficialmente, em muitos países chamados democráticos. É nesse aspecto que o segundo sentido do termo “inadmissível” se acrescenta, ou se acrescentava, às ideias mais frequentes sobre o uso da violência para a obtenção de informações.

Mesmo nos regimes ditatoriais latino-americanos, a atitude corrente das autoridades políticas foi a de negar a existência da tortura.

Já a partir dos atentados de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, a aceitação da tortura como um “mal necessário” no combate ao terrorismo ganhou os meios de comunicação. Não se trata só da menção a “técnicas duras ou especiais de interrogatório” (com o perdão dos eufemismos), mas também de elaborações teóricas de juristas e comentaristas políticos, como Alan Dershowitz, Michael Waltzer e Richard Posner. Com algumas diferenças quanto à sistemática legal para implementar o uso da tortura, esses teóricos defendem-na com o que ficou conhecido sob o nome de “ticking bomb argument”. Em suas diversas variantes, o raciocínio descreve uma situação em que cumpre às autoridades extrair de um suspeito, no mais curto prazo de tempo possível, informações capazes de desativar uma ameaça que pesa sobre muitas vidas inocentes.

Em termos mais concretos, imagine-se um ônibus escolar com dezenas de crianças, no qual uma bomba está prestes a explodir, enquanto a polícia detém sob sua custódia um terrorista capaz de indicar o código que abortaria a explosão. Valendo-se de um exemplo análogo, Alan Dershowitz sustenta que, todas as vezes em que perguntou ao público de suas palestras o que deveria ser feito num caso assim, a esmagadora  maioria dos presentes apoiou a tese segundo a qual seria legítimo torturar o suspeito. O irrealismo e a desonestidade desse tipo de argumento foram denunciados em minúcia por autores como Bob Brecher e Michel Terestchenko. Tal é o poder retórico e emocional dessas justificações da tortura.

Caberia desenvolver, para além da crítica pontual e prática ao uso dela, uma análise dos motivos pelos quais essa argumentação repentinamente deixa de ser “impronunciável” e “obscena”, passando a constar do repertório jurídico e filosófico de quem ainda se gaba de pertencer ao círculo do debate civilizado.n“O silêncio de ouro” ou o “golden silence” foi defendido, por exemplo, pelas autoridades americanas diante das crescentes denúncias de tortura no regime militar brasileiro.

Substituiu-se o silêncio, entretanto, pela admissão explícita da tortura como um mal menor. De certo modo, reproduz-se nesse movimento, do silêncio para a fala, do silêncio para a confissão, a própria lógica abstrata da relação entre torturado e torturador. Em outra dimensão, também. Quando o defensor da tortura pergunta a seu público “sim ou não?”, depois de confrontá-lo com um argumento do gênero “bomba-relógio”, parece também querer extrair de seus ouvintes uma confissão, uma admissão de vilania.

Está-se diante dessa compulsão pela loquacidade? Essa incapacidade contemporânea de aceitar o silêncio? Em que medida o silêncio — como ato de resistência, integridade e recusa dos dilemas propostos por um mundo mergulhado no “prosaico” até a medula — seria a resposta mais adequada, e a mais difícil de manter, face à máquina de propaganda e ideologia posta em funcionamento após o 11 de Setembro? E em que medida, por outro lado, a necessidade de falar, de dar resposta, de apresentar alguma solução, tornou-se urgente quando, diante da abominação terrorista, a sociedade americana se viu atônita e perplexa? O terror seria, ao mesmo tempo, uma forma de se “fazer ouvir” e de desistir de qualquer discurso, desesperar diante dele até. Que se faça, portanto, o terrorista falar.


Cabe pedir desculpas, inicialmente, por ter abordado um tema tão desagradável – a tortura – ao longo de uma palestra de quase duas horas de duração; num texto escrito, ao menos, o mal-estar tende a diminuir um pouco. O assunto possuía, em todo caso, óbvia relação com o espírito geral do ciclo de palestras que deu origem a este livro, dedicado ao silêncio e à prosa do mundo. Pois sempre se coloca, numa situação de interrogatório violento, o dilema de falar ou não falar. Ao silêncio do preso, o torturador impõe a exigência de que ele fale.

O que me pareceu estranho, e motivou as considerações que reproduzo aqui, é o fato de que, nos últimos tempos, tem sido o torturador aquele que fala sem parar. Não o torturador propriamente dito, pois enquanto pessoa física ele continua geralmente a negar seus atos, mas sim aqueles que se encarregam de justificá-lo. Intelectuais de variada origem – mesmo os habitualmente ligados à tradição dos direitos humanos e do Iluminismo – têm-se entretido em defender, no plano filosófico e moral, a admissibilidade da tortura.

Poucas vezes, imagino, esses intelectuais se aproximaram tanto do impublicável. O comum seria até mesmo admitir a existência da tortura, observando, em segredo, que a tortura é um dos fatos desagradáveis e inevitáveis da vida. Feito isso, poderiam silenciar publicamente sobre o assunto. De modo espantoso, entretanto, intelectuais tidos por civilizados passaram a considerar interessante levantar o problema, sugerindo que, em determinados casos, a tortura possa ser moralmente justificável. Ou mesmo, em alguns casos, que poderia impor-se o dever moral de torturar.

Lembro que, há coisa de oito anos, participei de outro ciclo e, posteriormente o livro, organizado por Adauto Novaes, intitulado O silêncio dos intelectuais[1]. Justifiquei, naquele momento, o direito dos intelectuais à neutralidade e ao silêncio, contra a ideia de que sempre estariam obrigados a optar pelo “menor dos males”. Como uma espécie de pistola apontada contra o intelectual, foi comum durante a Guerra Fria a ideia de que “ficar neutro já é tomar partido”. Uma sedução da radicalidade, típica dos que se encantavam na época pelo pensamento de Sartre, tendia a favorecer as atitudes de “quem não está a nosso favor está contra nós”. Contrapus a esse extremismo o pensamento de Julien Benda no seu livro A traição dos intelectuais, não por acaso sistematicamente atacado e distorcido por Sartre. Resumi a posição de Julien Benda identificando o fenômeno da “traição dos intelectuais” à capitulação diante da razão de Estado.

Para sintetizar os argumentos que invoquei naquela ocasião, retomo o tipo de dilema “sartreano” em jogo. Nesse raciocínio, se o intelectual, durante a Guerra Fria, critica os dois lados em conflito, se condena tanto a União Soviética quanto os Estados Unidos, isso seria sinal de que ele abandona suas responsabilidades e simplesmente aceita o status quo. Sua neutralidade corresponde a aceitar quem detém o poder naquele momento – a saber, para o intelectual ocidental, os que se beneficiam do sistema capitalista. Desse modo, todo crítico equânime dos dois sistemas está, no fundo, beneficiando o sistema vitorioso em seu meio, a saber, o capitalismo. A tese da “falsa equanimidade” parece fazer sentido, mas no fundo só fazia sentido para quem estava apoiando o regime soviético. Pois, do ponto de vista de uma direita extremada, o capitalismo estava longe de estar com a vitória garantida. Para a direita radical, o status quo nos países ocidentais já estava plenamente impregnado dos valores, métodos e agentes do socialismo. O mesmo intelectual neutro que, para o esquerdista, silenciava sobre o fato de o capitalismo ser o lado mais forte, podia receber críticas equivalentes do direitista: estaria silenciando, na verdade, sobre o fato de que a ideologia comunista predomina em toda parte…

Por certo, se o esquerdista acusa o intelectual neutro de ajudar a direita, e se o direitista acusa o mesmo intelectual neutro de ajudar a esquerda, o mais provável é que ele esteja bem mais próximo da neutralidade do que o acusam seus adversários. Nuances e preferências, sem dúvida, não deixarão de existir; mas só para o extremista faz sentido dizer que não é possível o meio-termo. O meio-termo é possível – desde que não se caia na armadilha radical, que coloca o interlocutor contra a parede, exigindo que tome uma única posição. Nada impede uma pessoa de ser ao mesmo tempo contra fulano e contra o inimigo de fulano; posso não ser nem xiita nem sunita, por exemplo, embora xiitas e sunitas radicais, em conflito, afirmem que não existe neutralidade possível entre eles. Minha neutralidade, neste caso, existe, e é das mais amplas – desde que eu me recuse ao dilema apresentado pelas partes. Nesse sentido, o silêncio pode ser uma saída, se me colocam contra a parede e exigem minha tomada de posição. Há quem, colocado contra a parede, não tome posição nenhuma, ou tome duas, e é isso o que pode fazer dessa pessoa, a meu ver, um intelectual, e não um ideólogo ou propagandista.

Os tempos mudaram, e a atitude de colocar o interlocutor contra a parede, típica dos stalinistas e da esquerda radical, parece estar sendo assumida cada vez mais pela direita. Um exemplo disso são os argumentos a favor da necessidade da tortura em “último caso”, que vêm sendo apresentados nos Estados Unidos, e também no Brasil, por alguns pensadores. Cito um artigo de meu colega da Folha de S.Paulo, o psicanalista Contardo Calligaris, que a propósito de um filme americano resolveu assinalar a relevância moral da discussão sobre a tortura.

Uma criança foi sequestrada e está encarcerada em um lugar onde ela tem ar para respirar por um tempo limitado. Você prendeu o sequestrador, o qual não diz onde está a criança sequestrada. Infelizmente, não existe (ainda) soro da verdade que funcione. A tortura poderia levá-lo a falar. Você faz o quê?

Trata-se de uma das muitas variantes do chamado ticking bomb argument. Neste caso, Calligaris escolheu como exemplo a ocorrência de um crime comum, mas geralmente, em especial depois do 11 de Setembro, o tema adquire o formato de uma situação de iminente ataque terrorista. Desse modo, sua formulação mais frequente é a seguinte:

Você prendeu uma pessoa que, com imensa margem de certeza, sabe ser um terrorista, e esse terrorista pode informar-lhe a localização de uma bomba que, se detonada, trará a morte de milhares de pessoas inocentes. A bomba será detonada dentro de uma hora – de um dia – de uma semana, que seja, e o terrorista se recusa a dar qualquer informação. Você torturaria essa pessoa para salvar milhares de vidas?

Um dos mais célebres formuladores desse argumento, Alan Dershowitz[2], diz que, em todas as palestras em que apresentou esse argumento, noventa por cento dos ouvintes respondiam que sim. Não é improvável, contudo, que um grande número de pessoas prefira simplesmente dizer que não sabe o que faria. Como observou o jornalista Eugênio Bucci em uma comunicação pessoal, o curioso é que, se muitas pessoas comuns simplesmente respondem não saber o que fariam, a tendência de um político, se confrontado com o dilema, é se ver forçado a dar uma opinião. O político, sem dúvida, tem obrigação de deixar claras suas opções morais. A dúvida é saber se esse tipo de pergunta não tende mais a servir aos interesses do político do que a questionar suas próprias posições.

Além das respostas habitualmente previstas nas pesquisas de opinião, como “sim”, “não”,”não sei”, há também a possibilidade, sem dúvida sedutora, de simplesmente recusar-se à discussão. O filósofo esloveno Slavoj Zizek[3] sustenta, por exemplo, que nem mesmo seria o caso de responder. Ele não ignora o fato de que, por trás dessa hipótese, existe apenas a tentativa de justificar a tortura, através de um caso extremo. De sua perspectiva, mesmo quem responde “não, eu não torturaria”, sem querer já entrou no jogo proposto, que usa uma hipótese escolhida a dedo, conforme interesses políticos muito claros.

Em polêmica com Contardo Calligaris, o filósofo e articulista da Folha de S. Paulo Vladimir Safatle também se aproximou dessa posição. Por que, em vez de pensar na criança sequestrada, não pensar em outras hipóteses, em outros jogos morais, dentre as infinitas possibilidades que é possível imaginar? Cito Safatle.

Nunca entendi por que os interessados em paradoxos morais no Brasil raramente colocam problemas do tipo: “Alguém que certamente será torturado, provavelmente até a morte, bate à porta de sua casa pedindo ajuda. Caso aceite, você colocará em risco a tranquilidade de sua família. O que fazer?”

Com efeito, se pensarmos na vasta maioria dos romances, filmes, peças de teatro que se fizeram sobre o tema, depois da Segunda Guerra Mundial, o dilema costumava se colocar do ponto de vista do torturado: “Você entregaria seus companheiros sob tortura?”. A experiência da Resistência Francesa, durante a ocupação nazista, trazia essa questão para o cotidiano de muitas pessoas sem particular engajamento político, e inspirou, aliás, muito das reflexões sobre responsabilidade moral de Sartre. Há narrativas ficcionais de alta qualidade em torno do problema, como as de Jean-Marcel Bruller (1902-991), que assinava sob o pseudônimo de Vercors. Numa delas, L’Imprimerie de Verdun, o apoio de um homem comum às atividades da Resistência é narrado sob a constante cogitação dos perigos da tortura, passando da mais completa vontade a um desafio em que o próprio heroísmo parece nascer, antes de tudo, do jogo das circunstâncias. Em sua novela mais famosa, O silêncio do mar, Vercors conta a história de amor entre um oficial alemão, gentil e respeitoso, e uma jovem francesa, filha do dono da granja na qual o ocupante está alojado. O alemão nada tem de torturador; tenta apenas trocar algumas palavras de cortesia com a jovem, mas esta jamais se digna a lhe dirigir a palavra. Talvez estivesse até enamorada do oficial; mas resiste. É a forma que o romancista encontrou para tratar de uma escolha moral com a linguagem da ficção. Presentemente estamos diante do caso oposto, em que o teórico moral ficcionaliza uma situação, e todos terminam se envolvendo nos caminhos da ficção proposta.

No campo da argumentação, que é o de Safatle e Zizek, trata-se de recusar o jogo ficcional proposto; num plano mais abstrato, há quem simplesmente considere inadequado o método dos “jogos hipotéticos” como caminho para a reflexão moral. Por desagradáveis que sejam esses jogos, e por mais que se possa dizer que seus dados estão viciados desde o princípio, não vejo, entretanto, como fundamentar uma recusa ao método em si. A pergunta sobre “o que você faria na situação x?” pode não ser idêntica à pergunta “o que seria certo fazer na situação x?”, mas em qualquer dos casos a necessidade de uma resposta se impõe, caso acreditemos que, nos atos de uma pessoa, não estão em cena apenas os instintos e a emoção do momento, mas a consideração daquilo que mais seja digno da sua condição de ser humano e racional.

Pode-se, de todo modo, recusar facilmente a pergunta sobre o que cada um de nós faria numa situação como a da criança sequestrada; o mais sensato seria responder, provavelmente, que ninguém saberia qual sua linha de ação num caso tão extremo. A pergunta versa sobre um problema de conduta – como agiríamos – e não sobre um problema de princípio – o que seria mais certo fazer.

Ao argumentar na Folha de S.Paulo contra o texto de Calligaris, segui inicialmente essa orientação. Em casos extremos, como o de uma criança sufocada, nem sequer se coloca o problema moral. Ao ser confrontado com a questão do que eu faria num caso desses, minha resposta vai ao sentido de recusar qualquer resposta. “É uma pergunta de torturador”, escrevi, na medida em que visa forçar o interlocutor a dar uma resposta positiva, a fazer uma confissão. Situações tão urgentes e extremas, por si sós, fazem com que minha liberdade de decidir e agir moralmente fique comprometida. Exemplos semelhantes não são difíceis de cogitar. Posso ser a favor da lealdade com meus colegas e ter repulsa ao canibalismo. Entretanto, se eu estiver com alguns amigos numa ilha deserta, depois de um acidente aéreo, e se a única saída para sobreviver fosse matar um amigo para devorar a sua carne, o que eu faria? Matar ou ser morto? Ora, numa pergunta dessas o que está em jogo é mais a minha capacidade pessoal para o assassinato, minha coragem, meu sangue-frio, meu desespero, minha fome, do que qualquer dignidade moral a que eu possa aspirar ou não. Entretanto, a artimanha da bomba-relógio e da criança sufocada se mostra mais complicada do que eu imaginava ao articular essa resposta. Matar por sobrevivência, numa ilha deserta, é uma questão de conduta, que não se pode equacionar em abstrato. Mas a pergunta sobre a bomba-relógio tem diferenças importantes ante a da ilha deserta. Minha condição de ser humano digno e racional já desapareceu diante da fome extrema. Já na minha posição de possível torturador, não tenho minha sobrevivência pessoal ameaçada. Devo pensar apenas na sobrevivência das possíveis vítimas do atentado, de um lado, e no ato repugnante, desumano, de torturar, de outro. Mesmo os mais cruéis formuladores de exemplos desse tipo não se deram o trabalho de imaginar que a criança sequestrada poderia ser meu filho, ou que minha mãe morasse na cidade a ser destruída pela bomba terrorista – o que diminuiria a racionalidade de minha escolha. Nos exemplos habituais, minha equidistância, minha imparcialidade na escolha proposta estão garantidas. Devo escolher entre dois males, e a questão, nesse caso, é se torturar não é o mal menor.

Alguns teóricos chegam a reformular o problema, questionando o próprio direito que tenhamos de nos recusar a torturar. Estaríamos fazendo isso apenas para continuar com as “mãos limpas”, por uma questão de vaidade moral? Seria lícita uma recusa que nos mantivesse supostamente inatacáveis do ponto de vista ético, enquanto milhares de pessoas seriam mortas ou mutiladas por uma explosão da qual “não seríamos culpados”? Não fosse por nosso purismo, milhares de vidas poderiam ser salvas…

No fundo, como uma espécie de fantasma, o problema da bomba-relógio volta a assombrar nossa consciência, mesmo se não aceitarmos sua pertinência. Talvez seja o caso de dizer que, por trás das bem fundamentadas recusas a tratar desse dilema, existe outro tipo de recusa. Minha recusa principal se volta contra o fato, bastante simples, de que meu primeiro impulso é admitir que sim, que numa situação extrema eu torturaria o terrorista. Talvez não quando a relação entre vítima e torturado é de um para um. Mas pode-se imaginar um milhão de pessoas ameaçadas por uma bomba atômica. Se um milhão for pouco, que tal um bilhão? Que tal a humanidade inteira, no caso de o terrorista ser aliado de algum invasor extraterrestre? É difícil não admitir que, numa resposta imediata, sem maior reflexão, o recurso à tortura poderia ser considerado. Apenas num segundo momento termino me dando conta das intenções de quem propôs o dilema, recusando-o e apontando para a má-fé de quem o propôs.

Vale a pena, a meu ver, discutir a pergunta nos seus próprios termos. Alguns autores, como Bob Brecher e Jeremy Wisnewski dispuseram-se ao desafio.

No próprio artigo em que eu polemizava com Calligaris, arrisquei-me um pouco nessa direção. Usando o seu exemplo, o de uma criança sequestrada com reserva limitada de ar, enquanto o sequestrador está à nossa disposição para interrogatório, procurei dar uma resposta in extremis. Por que, em vez de torturar o sequestrador, não pagar o resgate de uma vez?

Sem dúvida, eu estava desesperado para encontrar outra solução, que dissolvesse os termos do dilema. Não porque considerasse o dilema ruim em si, mas porque, uma vez delineada uma situação concreta – para fins de nossa reflexão moral -, é sempre possível apostar em detalhes e condicionantes também concretas. Pague-se o resgate, solte-se o sequestrador, e o resto se resolve depois. O dinheiro do criminoso pode ser rastreado, e acordos falsos com um criminoso seriam bem mais aceitáveis que o método da tortura.

Minha intenção, com esse tipo de saída, era enfatizar o quanto pode haver de excesso ficcional na hipótese proposta. Ainda que, como já afirmado, não me pareça sem propósito o recurso a situações hipotéticas para a análise de problemas morais, cabe guardar um mínimo de proporção entre a hipótese e o mundo real; uma hipótese absurdamente implausível tem naturalmente como efeito o de nos levar a teorias morais inúteis ou delirantes.

Ainda que numa linguagem realista, são por certo implausíveis ao extremo as situações celebrizadas no seriado de espionagem 24 Horas, em que o agente americano Jack Bauer (Kiefer Sutherland) está sempre disposto a torturar alguém para impedir grandes catástrofes. Não deve ser menosprezada, creio, a influência de tais produtos culturais sobre o pensamento de alguns polemistas públicos. Um mesmo ambiente ideológico parece criar, no suposto pragmatismo do intelectual conservador, a disposição para aceitar como reais algumas situações obviamente construídas pela habilidade de um roteirista; tais situações têm em comum com a realidade, por certo, a frequência impressionante das ações violentas e brutais. A impressão de que aquele é o mundo “real”, sem concessões nem escrúpulos, sobrepuja o que em tais seriados, por conveniência dramática, se concentra de mirabolante. Num episódio de 24 Horas, é o próprio presidente dos Estados Unidos quem presencia a tortura, por choque elétrico, de seu secretário de Estado, envolvido numa conspiração. Para que o enredo se desenvolva com a rapidez necessária, não é preciso muito para que o torturado consinta em dizer a verdade. Mas não toda a verdade, evidentemente, uma vez que há ainda novos capítulos a prender a atenção do espectador.

Num mundo menos realista, e provavelmente mais real, torturar um fanático terrorista é uma opção com chances bem mais reduzidas de sucesso. Seguem essa direção os argumentos dos dois pensadores citados anteriormente, Brecher e Wisnewski.

Este último, em particular, procura uma demonstração, nem sempre convincente, de que a própria situação da bomba-relógio traz não apenas dificuldades concretas extremas, mas também se revela autocontraditória. Uma primeira dificuldade diz respeito à questão da urgência temporal. Estamos, vale recordar, diante de um prazo limitadíssimo. A bomba do terrorista vai explodir dentro de uma hora; esse é o tempo para tentar arrancar do torturado a senha, o código, a localização da bomba a ser desarmada. A pressa é um forte argumento para não se tentar métodos mais lentos e pacíficos de investigação.

Ocorre que a pressa também joga a favor do torturado. Se ele é um terrorista efetivamente interessado em matar um milhão de americanos, pelas mais implacáveis razões de seu fanatismo religioso, a única coisa que ele tem a fazer, diante do investigador truculento, é suportar uma hora de tortura. Passado esse tempo, seus objetivos terão sido alcançados. Não é implausível que estejamos diante de um terrorista, além de fanático, minimamente treinado para enfrentar as provas que lhe serão impostas. Suponha-se, em todo caso, que ele não aguente uma hora completa, ou um dia, de tortura. Durante esse período, pode naturalmente dar um número razoável de informações falsas, que o ajudem a ganhar tempo. Um atentado com bom planejamento, de resto, deixaria plantadas diversas pistas falsas, bombas em locais alternativos, das quais só uma teria real poder de destruição. O torturado sempre pode mentir, afinal de contas. Teríamos então de fazer um pequeno ajuste em nossa hipótese inicial: em vez de declinar a localização da bomba, o terrorista teria apenas de confessar uma senha curta, digamos com quatro algarismos, cujo poder de desarmar o artefato explosivo poderia ser testado imediatamente num celular, ou num computador. Nesse caso, sua mentira seria descoberta de imediato e ele voltaria a ser torturado durante o tempo restante.

Vemos que a ficção se sofistica. Há, de todo modo, a possibilidade de que o terrorista suporte a tortura. A situação foi evidentemente prevista pelos autores de 24 Horas: mesmo se muitos dos participantes da conspiração terminam cedendo ao sofrimento, para que a história prossiga num episódio decisivo, isso não acontece. O grande líder dos fanáticos, uma vez capturado, está pronto para aguentar qualquer tipo de dor ou mutilação. Como estamos num universo completamente ficcional, o agente Jack Bauer tem uma alternativa nesse caso. Num país distante do Oriente Médio, a polícia secreta local – que é aliada dos Estados Unidos – já conhece o endereço da família, aliás, numerosa, do fanático. Uma câmera de televisão, com transmissão ao vivo pelo computador, mostra para o terrorista que sua mulher, e seus quatro ou cinco filhos pequenos, estão todos amarrados a cadeiras. A polícia secreta estrangeira anuncia seus métodos. Irá matar o filho primogênito do terrorista se este não falar. O torturado, antes inflexível, agora hesita. Seus lábios se entreabrem. Um instante de vacilação. Começa a contagem regressiva. Cinco, quatro, três, dois… o fanático nada diz. Ouve-se o tiro; o menino, no impacto do tiro, é arremessado para trás, e sua cadeira tomba. Passemos ao segundo filho, dizem os policiais do Oriente Médio. Nesse momento, o fanático não aguenta mais. Revela o seu segredo, o que não deixa de ser estranho. Pelo menos no meu caso, se eu fosse um fanático, depois de ver assassinado meu primeiro filho já não me importaria com os demais, sabendo que minha triunfal vingança chegaria com a morte de um milhão de americanos de todas as idades.

O próprio seriado, entretanto, não consegue ir longe o bastante nos pressupostos que defende. Para diminuir a monstruosidade moral da situação – e não é por acaso que o assassinato deixou de ser entregue às mãos do próprio Jack Bauer, sendo incumbência de um grupo anônimo de agentes orientais -, acrescenta-se uma revelação espetacular. Toda a gravação transmitida pelo computador fora uma farsa; o menino não foi fuzilado; simplesmente empurraram com violência sua cadeira para trás, de modo a dar ao terrorista a impressão de um assassinato. O espectador, suficientemente seduzido para aceitar o uso da tortura, vê-se inocentado dessa barbárie suplementar.

O escrúpulo moral, entretanto, é dos mais curiosos. Primeiro, porque supõe que o terrorista fosse ingênuo o bastante para não desconfiar de uma cena montada. Em segundo lugar, porque, se esse engodo fosse possível, estaria sendo comprovada a perfeita inutilidade da tortura. Sempre seria possível criar um ardil, razoavelmente impressionante e traumático, capaz de substituir a laboriosa e incerta atividade da tortura.

Voltemos, em todo caso, ao dilema proposto; poupemo-nos de imaginar ardis alternativos. Pelo prazo exíguo de uma hora, é possível contra-argumentar que o terrorista seria capaz de resistir. Aceitemos que o defensor da tortura aumente realisticamente o tempo máximo da situação imaginada. A bomba irá explodir em dois ou três dias. O que você faria? Ficção contra ficção, posso justamente imaginar que, com um prazo mais dilatado, haveria mais tempo para realizar investigações sem recorrer ao método defendido.

Na verdade, com isso a implausibilidade do argumento só tende a aumentar. É difícil supor que foi possível capturar um terrorista, dispondo-se de ampla margem de certeza sobre seu papel central no complô, e ao mesmo tempo não se ter conseguido apreender nenhum computador, nenhum papel que possuísse. Como foi possível chegar até o terrorista, com que tipo de informações, através de que rede de contatos? Que seja. Aceitemos que coisa nenhuma desse tipo irá nos ajudar, nem em uma hora, nem em dois ou três dias. Não seríamos capazes, entretanto, de organizar (dado um prazo mais longo) ardis até mais elaborados do que aquele projetado por Jack Bauer com os filhos do fanático? No desespero de causa, um presidente americano suficientemente decidido poderia posicionar seus próprios mísseis nucleares na direção de Meca, respondendo à chantagem com chantagem; ou se interrompe o plano de explodir Los Angeles ou irá Meca pelos ares. Seria um blefe, sem dúvida. Mas poderia o terrorista se dar ao luxo de desprezar tal ameaça? Ou estaria ele disposto a ver Meca destruída também? Aliás, o que quer um terrorista?

Para responder a essa questão seria interessante citar um filme extremamente violento e muito bem feito, Ameaça terrorista (The unthinkable), dirigido por Gregor Jordan em 2010. Nele, o terrorista é americano, tem uma bomba ou duas prontas para explodir em local secreto, e se entrega voluntariamente para ser investigado. São usadas as técnicas habituais de interrogatório duro, como manter o preso por longo período numa mesma posição, além de afogamentos simulados. Sabe-se que tais técnicas também constituem formas de tortura. Como o filme, entretanto, quer chegar a pontos mais extremos e impensáveis de abominação, nada disso funciona. É então convocado o pária social e espião criminoso Henry Humphries (Samuel L. Jackson), que aparentemente leu todos os livros de Alan Dershowitz e congêneres. Considera correto e necessário torturar do modo mais bárbaro possível um terrorista, e há muito tempo parece seguir o célebre moto do coronel Jarbas Passarinho ao assinar o AI-5, segundo o qual cumpria “mandar às favas os escrúpulos morais”. No caso, isso significa não pouca coisa. Chegando ao local em que o terrorista se encontra detido para interrogatório – uma cela de vidro, graças à qual especialistas podem monitorar o processo -, Humphries pergunta pela machadinha que constitui parte do equipamento de incêndio. Antes de emitir qualquer palavra, aproxima-se do terrorista e decepa seu dedo mínimo; trata-se apenas de demonstrar sua disposição investigativa. Não cabe expor em detalhes o desenvolvimento da história, que se faz num jogo impressionante de manipulação e de poder, mas dois aspectos devem ser abordados.

O primeiro é que, dentro do impensável a que se refere o título do filme, resolve-se também torturar a mulher do terrorista e sua filha, de apenas quatro anos. A isso se recusam as autoridades presentes, que aos poucos iam admitindo a necessidade dos métodos de Humphries. “Isso não!”, dizem os altos oficiais presentes. “Isso sim”, responde o personagem, dando novo ingrediente ao dilema da bomba-relógio. Não mais estamos limitados à pergunta de torturar ou não o terrorista; estaremos dispostos agora a torturar sua filhinha? A tendência imediata seria dizer que não, uma vez que a criança é inocente e, bem ou mal, sabemos que o terrorista plantou a bomba. Do ponto de vista favorável à tortura, entretanto, a distinção não se coloca. Continuamos no campo do menor dos males. O que é pior, torturar uma criança ou deixar que trezentos mil sejam incineradas num ataque nuclear?

Com efeito, a inocência ou criminalidade do torturado não vem ao caso no raciocínio. Os argumentos a favor da tortura enfatizam a distinção entre dois tipos de tortura. Há a tortura como punição, como instrumento penal – algo utilizado até a alguns séculos atrás, mas que atualmente não encontra apoio nos países ocidentais. Mas há a tortura como meio de se obter informações, prática que se adota aberta ou secretamente em inúmeros países, e é este tipo que está em discussão. Pois bem, se argumentarmos que a filha do terrorista é inocente – ao passo que o terrorista não o é, podendo ser torturado com vistas às informações que pode oferecer -, estamos introduzindo na discussão a ideia de que a tortura é também punição por uma conduta criminosa, e não apenas um recurso, repulsivo que seja, no esforço de salvar vidas humanas. Se se trata apenas disso, torturar uma criança é algo que teremos de admitir também.

Não é diferente, aliás, a perspectiva do torturado em Ameaça terrorista: sua vitória, se podemos dizer assim, está em fazer com que as convicções dos altos funcionários de um país democrático caiam por terra, uma a uma, diante da situação extrema, rendendo-se à injustiça e à crueldade mais patentes.

Podemos ir além, contudo. Uma vez autorizados a trabalhar com dilemas hipotéticos, nosso caminho lógico não tem por que interromper-se depois de um único passo. Aceitemos que, num caso determinado, o terrorista termine sem nos dar informação nenhuma – e que a bomba finalmente exploda. Não pensemos numa bomba atômica, que abriria perspectivas de confronto inimagináveis; trabalhemos com um atentado comum, do qual resultassem mil ou duas mil vítimas fatais. É razoável supor que, depois de algumas semanas ou meses, a situação se repita. Temos novamente um terrorista capturado. Imaginemos que a situação volte a ocorrer cinquenta, cem, duzentas vezes. Pelo argumento exposto, continuaria sendo lícito torturar. Ainda que noventa e nove terroristas não digam nada, sempre é possível que o centésimo confesse. Quem se arriscaria a não torturar, se a tortura pode salvar milhares de vidas – mesmo depois de noventa e nove torturados não terem dado nenhuma informação?

Tome-se agora outra hipótese. Digamos que, em vez de uma situação que se repete ao longo do tempo, estejamos diante de um caso em que capturamos dez terroristas de uma só vez. Temos vinte e quatro horas para obter a informação. O que nos impediria de torturar dez terroristas se estamos dedicados a salvar mil vidas? Que sejam apenas onze vidas – afinal, o caso da criança sequestrada, prestes a perder o oxigênio, envolvia apenas a paridade de um contra um: um torturado para uma criança. Suponhamos algo mais. Suponhamos que, dos dez terroristas capturados, não tenhamos certeza absoluta sobre quais deles sabem de fato a localização da bomba. Talvez só um dos suspeitos detenha esse segredo. Não se esqueça de que a bomba está prestes a explodir. O que você faria? Torturaria dez pessoas, mesmo que só uma de fato merecesse ou precisasse ser torturada? Por que não? Você já torturou inocentes antes… você teve de admitir sua disposição para torturar até a filha do terrorista. Não tem segurança quanto à possibilidade de obter a informação desejada. Mas não deveria tentar?

Defensores mais equilibrados do dilema talvez não cheguem a tais hipóteses. São importantes, contudo, para mostrar até onde se pode ir jogando o jogo quantitativo que, com frequência, nos é proposto: quem não tortura para salvar dez vidas talvez torturasse para salvar cem milhões de vidas… Que tal, então, aumentar o número de torturados, em vez de aumentar o número das vítimas?

Acredito não estar exagerando ao dizer que foi exatamente isso o que os Estados Unidos fizeram. Enquanto Dershowitz e outros especulavam com o terrorista único e sua multidão de vítimas, o governo Bush submetia à tortura não apenas seus presos em Guantánamo, mas entregava suspeitos à polícia política de vários países ditatoriais, entre os quais avultam a Síria de Hafez el-Assad e o Egito de Mubarak.

Para os adeptos da tese de que a tortura, infelizmente, funciona, não é demais lembrar que a tortura de incontáveis presos se estendeu por meses, sem que nenhuma informação crucial fosse revelada. Cabe recomendar com ênfase a leitura de dois livros extremamente minuciosos a esse respeito. O primeiro foi escrito por Jane Mayer, ex-correspondente em Washington do Financial Times. Em The Dark Side[4], a jornalista expõe de que modo o governo Bush ignorou voluntariamente todos os avisos e apelos contrários à tortura, por parte de especialistas em terrorismo, inclusive interrogadores da própria CIA e do exército americano, sem contar os conselheiros legais das Forças Armadas, que fizeram o papel de doves (pombas) diante da radicalidade vigente. Quase todos insistiam não apenas na ilegalidade, mas também na inutilidade dos sistemas de interrogatório reforçado, muitas vezes aplicados por quem não dispunha de nenhum background quanto ao que perguntar. Quanto maiores as evidências de que nada se obtinha com esses métodos, maiores as pressões da cúpula do governo Bush para que se insistisse neles. Poucos textos dão impressão mais clara de que, mais do que informações objetivas sobre, digamos, o paradeiro de Bin Laden (algo muito diferente, ademais, de localizar uma bomba prestes a explodir), outras coisas estão em jogo no recurso à tortura. Certamente, tratava-se apenas de fazer alguma coisa, por mais irracional que fosse a ação escolhida. No clima emocional posterior ao 11 de Setembro, a pura necessidade de alguma retaliação deve ser mencionada. Quanto mais extrema e impensável a medida, mais poderosa, mais eficaz poderia parecer.

Outro livro, mais específico, é How to break a terrorist, de Matthew Alexander[5], interrogador profissional da Força Aérea americana. O autor, que questionou diretamente mais de trezentos suspeitos de terrorismo e supervisionou cerca de mil casos no Iraque, narra a sua luta interna contra os adeptos da tortura, que muitas vezes puseram a perder um paciente trabalho de cruzamento de dados e criação de laços de confiança entre interrogador e interrogado. A tortura, pelo menos naquela perspectiva de longo prazo, sem bomba-relógio à vista, apenas prejudicava os interesses de segurança americanos.

A tortura, entretanto, “funciona”, diz Contardo Calligaris no artigo que deu origem a esta discussão. Se não funcionasse nunca, raciocina ele, não teríamos nenhum problema moral. Estaríamos apenas diante de uma discussão técnica, em que sua eficiência seria contestada definitivamente, levando ao abandono do método.

De fato, não se pode imaginar que não funcione em nenhuma situação – e Calligaris, num debate televisivo, citou o exemplo das delegacias brasileiras. Não que se manifestasse a favor da tortura nesses casos; argumentou apenas que, ali, a tortura produz efeitos. Duas observações merecem ser feitas nesse contexto. A primeira é que “funcionar” talvez não seja o termo mais apropriado. Vale recorrer a uma hipótese banal. Se tenho uma infestação de cupins na minha biblioteca, e desejo não apenas livrar-me dos insetos mas também evitar prejuízo às casas vízinhas, posso sem dúvida incendiar minha biblioteca, livrando-me assim da ameaça. O método funciona contra os cupins, mas destrói também aquilo que eu queria defender. A tortura certamente “funciona” quando nosso objetivo – muito mais do que obter informações – é impor o terrorismo de Estado. No argumento a favor da tortura, deve-se lembrar, a esse propósito, o componente retórico da pergunta final: “o que você faria?”. Como lembram Bob Brecher e outros adversários da proposta, responder pela afirmativa não corresponde sequer ao mais indicado na situação aventada.

Pois quem opta pela afirmativa -“sim, eu torturaria” – simplesmente não sabe torturar. Um pouco de tortura a mais, e o terrorista cai morto. Um pouco menos, e ele resiste mais do que gostaríamos. Há uma ciência de como torturar, e um treino de como resistir à tortura, estudados pelos dois lados em conflito. A hipótese da bomba-relógio pressupõe, sem admitir, que se tenha à disposição do Estado uma equipe de torturadores preparados para a tarefa. O que envolve, obviamente, toda espécie de riscos. O Estado que conta institucionalmente com esse aparato “especial” de repressão para defender a civilização ocidental assemelha-se perigosamente ao bibliófilo que termina incendiando a biblioteca.

O argumento de que a tortura “funciona” nas delegacias inspira uma segunda observação. Talvez a tortura funcione na proporção da ameaça, do crime cometido. Em Violence workers, obra coletiva sob a direção de Philip Zimbarda[6], são entrevistados policiais brasileiros ligados aos esquadrões da morte e à repressão política. Do ponto de vista psicológico, tratava-se de personalidades evidentemente agressivas e cindidas, mas não necessariamente sádicas. Um desses policiais justificava a prática da tortura na delegacia com o seguinte exemplo. Suponha que você tenha detido um ladrão carregando vinte relógios no bolso. Sabe que ele roubou outros oitenta. Ele se recusa a admitir o roubo evidente; o entrevistado narra, o que é compreensível, sua extrema raiva diante do cinismo com que o ladrão jurava inocência, aos prantos. Colocado no pau-de-arara, o interrogado revelava com rapidez o paradeiro dos bens que furtara. Eis um caso em que obviamente a tortura funciona. Mas sem dúvida funciona porque havia muito pouco em jogo; é preferível entregar oitenta relógios, ou o comparsa que provavelmente nos trairia em igual situação, a ser torturado longamente.

Este é exatamente o inverso da situação do terrorista, que antevê uma vitória que não lhe traz nenhum ganho pessoal. Age por uma causa, não por cálculo egoísta. As probabilidades de que a tortura não funcione, no caso, seriam muito maiores.

Funcionou ainda menos, como demonstram Jane Mayer e Matthew Alexander, nas mãos dos interrogadores depois do 11 de Setembro. A razão para isto não deixa de ser irônica. As técnicas utilizadas em Guantánamo e centros secretos de tortura americanos – privação de sono, som em altos volumes, quebra dos padrões de referência temporal e espacial, obrigatoriedade de manter a mesma posição por longo tempo – foram aperfeiçoadas a partir de uma inspiração algo inconfessável: a do sistema soviético.

Vemos, num filme como A Confissão, de Costa-Gavras[7], a progressiva quebra da resistência pessoal que as autoridades de um país do Leste europeu conseguem impor a um importante político subitamente caído em desgraça. Dentro da lógica dos expurgos comunistas, interessava obter desse político, um dedicado servidor do regime, a confissão de que estivera o tempo todo conspirando ao lado de potências estrangeiras e de grupos trotskistas contra o seu líder. Nada se assemelha menos a uma corrida contra o tempo. O objetivo de toda a tortura é conseguir que o prisioneiro assine uma confissão altamente comprometedora; sucessivas manipulações verbais e perguntas insistentes ao prisioneiro enfraquecido fazem com que, por fim, ele admita atividades comprometedoras, mesmo que numa narrativa fora de contexto e permeada pela falsidade. Em resumo, o que se pretendia era obter confissões que todos, interrogadores e interrogados, sabiam ser falsas. Ou seja, o inverso de uma informação pontual que se quer verdadeira e precisa ao máximo. Instruídos inicialmente na técnica de resistir aos métodos soviéticos de tortura política, agentes secretos americanos estudaram em profundidade a eficácia do sistema para quebrar – como se diz no jargão dos interrogadores – o prisioneiro. Uma agência que treina seus espiões para resistir a esse tipo de tortura tem, do mesmo modo, que treinar os funcionários que aplicarão tais técnicas. Os especialistas nessa prática foram os formadores, por assim dizer, dos que torturavam em Guantánamo.

Salta aos olhos a diferença de objetivos entre uma tortura empregada secretamente para produzir confissões legitimadoras de julgamentos espetaculares e a mesma técnica, voltada em tese para aniquilar conspirações terroristas reais. A tal ponto, que um teórico como Wisnewski insiste no ponto que o argumento da bomba-relógio seria contraditório em si mesmo: a tortura depende de um tempo indeterminado até que se consiga quebrar o interrogado. Ora, argumenta Wisnewski, a hipótese de um interrogatório com prazo definido – as poucas horas até a explosão da bomba – não é coerente com a ideia, a definição mesma, de tortura.

O raciocínio não deixa de ser forçado, entretanto. Não se tornaria me nos chocante o argumento no estilo bomba-relógio que, em vez de tortura, utilizasse a hipótese da amputação sucessiva de membros do interrogado até que ele fornecesse a informação desejada… E, novamente, a pergunta retorna: seria o caso de tentar tal recurso?

***

Retomemos a argumentação desenvolvida até aqui. Depois de passar pela fase de recusa ao dilema – notando suas intenções políticas ocultas, aventando a possibilidade de formular questões éticas mais interessantes -, procurei enfrentá-lo em termos empíricos, concretos, o que equivale a dizer em termos imaginários. Afirmei, assim, que o dilema era implausível, e que, num plano puramente ficcional, não é absurdo inventar algum ardil que evitasse a tortura. Acrescentei que, na situação proposta, é provável que o interrogado resista à tortura; ou que tenha plantado duas bombas em vez de uma, ou que a organização terrorista apresente um mártir para servir como isca e desviar as autoridades do real foco de investigação. A imaginação é livre, mesmo quando aceita os termos do dilema. Podemos aceitá-los, todavia, enquanto simultaneamente nos agarramos a estratagemas imaginários que nos permitam escapar da real questão proposta. De um ponto de vista menos fantasioso, argumentei também que o dilema nos obriga a aceitar a tortura de crianças e inocentes, se isso nos ajuda a salvar outras vidas. Disse ainda que, pela lógica da ticking bomb, estaremos obrigados a admitir a tortura de muitos suspeitos, ao longo do tempo, por uma equipe permanente de torturadores profissionais – o que, a meu ver, ajuda a corroer por dentro a aparente singeleza da situação proposta. São muitos argumentos, como se vê, e por mais que possam ser con vincentes, é forçoso admitir que a pergunta volte mesmo assim. A bomba explodirá. Você torturaria?

Se todos os raciocínios contra o dilema têm um peso relativo, e se não o eliminam para quem se vê honestamente em dúvida diante da situação, recorro a outras formas, ainda que bizarras, de resolvê-la.

A primeira talvez seja a mais simples de todas. Eu responderia que sim; reconheceria a vitória de quem propõe a tortura, como alguém que, depois de muito negociar, finalmente confessa. Eu torturaria. Mas mediante uma condição. Torturaria desde que a situação fosse exatamente a da hipótese que meu adversário formulou. Torturaria desde que tivesse certeza que o terrorista é terrorista, que sabe onde está a bomba; desde que estivesse provado que nenhum outro ardil ou forma de convencimento fosse possível, desde que fosse indubitável que a bomba iria matar grande número de pessoas. Se me jurarem que só nesta hipótese, e em nenhuma outra situação parecida, a tortura existiria, então aceito minha responsabilidade em adotar o método. Posso aceitá-la tranquilamente, na medida em que estou convencido do absurdo, da improbabilidade, do caráter puramente ficcional da hipótese. Tudo é tão imaginário que não tenho problema em assumir-me, também imaginariamente, na função de torturador. Na prática, nada disso tem relevância; minha convicção de que no mundo real não se deve torturar resta incólume se eu admitir uma hipótese amalucada.

Recorro a este argumento in extremis para lembrar um raciocínio de Wisnewski, que tende para a mesma direção. O autor afirma que toda a hipótese da bomba-relógio pode ser entendida como um tipo de argumento-alavanca. Serve como instrumento para se colocar um problema moral mais amplo, a saber, o de se existe algo que deva ser absolutamente proibido, em qualquer circunstância. Nesse sentido, dificilmente se poderá deixar de dizer que, em circunstâncias imaginárias extremas, qualquer pessoa poderia justificar a adoção de atitudes repulsivas, mas inevitáveis. Não vejo de que modo a rejeição a um absoluto moral pode afetar seriamente a moralidade quotidiana. Se desejarem que eu assine, na hipótese proposta, um atestado de torturador amador, não vejo por que perder o sono com isso. Sabemos perfeitamente, entretanto, que esse atestado não satisfaz nossos teóricos da tortura, que pretendem usá-lo como passaporte para abusos muito diferentes dos que propunham no seu laboratório moral.

Outra resposta in extremis poderia ser diretamente dirigida aos pensadores americanos, como Dershowitz, que se dedicam a esse tipo de dilema. Seria uma resposta igualmente simples. Consistiria em propor, ao próprio Dershowitz, o mesmo dilema que ele nos apresenta: “você prendeu um terrorista, o qual detém o código para a detonação de uma bomba capaz de matar mil pessoas em determinada cidade. Ele se recusa a revelar o código. Você o torturaria?”.

Trata-se, como se vê, de uma questão idêntica à que ele nos propõe. Acrescente-se, contudo, uma diferença. A cidade onde a bomba será detonada se chama Islamabad, e o terrorista preso se chama Donald Rumsfeld. Você torturaria?

Uma terceira resposta envolveria critérios morais mais abstratos. Talvez fosse o caso de invocar a regra clássica segundo a qual não devemos desejar para os outros aquilo que não queremos para nós mesmos. No caso da tortura, sua aplicação é mais difícil, por envolver uma duplicidade. Não quero ser morto numa explosão. Não quero ser torturado, tampouco. Posso até dizer, e a experiência histórica não me desmente, que em muitas situações é preferível morrer a ser torturado. Entretanto, o dilema da bomba-relógio exige mais: não sou eu quem morre, mas milhares de outras pessoas. Para aplicarmos a regra clássica, teríamos de adaptá-la a esse fato. Uma adaptação possível seria a de formular a seguinte pergunta: “você consentiria em ser torturado, se com isso pudesse evitar a morte de milhares de pessoas?”.

Minha resposta pessoal, facilmente previsível, é pela negativa. Não me sentiria culpado com minha recusa, mas teria de admitir, com isso, uma limitação de minha grandeza moral. Segundo esse critério, entretanto, é possível imaginar uma resposta peculiar ao dilema da bomba-relógio: sim, uma pessoa tem o direito de torturar um terrorista. Sendo uma pessoa correta, a serviço da salvação de milhares de inocentes, não seria condenável sua decisão de torturar o terrorista. Desde que aceitasse, igualmente, a hipótese de ser torturado também. A honestidade exigida pelo dilema – a de dizer que “sim, eu torturaria o terrorista”- pode ser exigida do torturador também – que ele admita sofrer as torturas infligidas ao outro, para salvar as vítimas potenciais da bomba. Com sabedoria, os idealizadores da série 24 Horas submetem seu herói, Jack Bauer, a esse tratamento; o protagonista ganha considerável crédito moral com isso, como convém às construções ficcionais.

Para voltar, entretanto, ao mundo real, finalizemos perguntando por que razão tantos intelectuais, mesmo originários do campo democrático de esquerda, deixaram-se levar pela fascinação de defender os argumentos da bomba-relógio.

Avento a hipótese de que está em curso certa cultura do machismo intelectual. É como se hoje em dia considerações mais brandas, mais humanas, racionalistas e moderadas estivessem sob a suspeita do “politicamente correto”, projetando sobre a realidade o desejo de construir um róseo palácio de princesas de mentirinha. Os defensores da razão, do diálogo, do iluminismo passam a ser tratados como fantasistas, como utópicos, e – para usar um termo fora de moda – como maricas. A fantasia do “intelectual durão” sobreviveu, curiosamente, aos tempos mais ásperos da guerra fria, quando era até apanágio de alguns figurões da esquerda; transita alegremente, agora, entre os dois campos do debate.

Uma segunda hipótese é a de que, ao mesmo tempo, o intelectual contemporâneo navega, sem muita segurança, no campo do relativismo moral. Sendo um duro, incapaz de se escandalizar com alguma coisa, não quer passar por excessivamente purista, excessivamente ingênuo, alguém que raciocina em termos de certo e errado, bem e mal, verdade e mentira, ciência e ideologia. Desconfia do certo, do bem, da verdade e da ciência. O fascínio pela tortura seria, nesse ponto, um retorno do recalcado: pela tortura, obteremos a verdade; pela tortura, obteremos a vitória do bem; pela tortura, cientificamente planejada, venceremos o erro dos fanáticos fundamentalistas. Pela tortura, esse tipo de intelectual imagina alcançar a verdade que lhe faz falta.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRECHER, Bob. Torture and the ticking bomb. Malden/ Oxford: Blackwell, 2007.

COHN, Marjorie (org.). The United States and torture. Nova York/Londres: New York University Press, 2011.

DERSHOWITZ, Alan. Why terrorism works. New Haven/Londres: Yale University Press, 2002.

GREENBERG, Karen (org.). The torture debate in America. Cambridge/Nova York: Cambridge University Press, .2006

LEVINSON, Sanford (org.). Torture – a collection. Oxford/Nova York: Oxford University Press, 2004.

WISNEWSKI, Jeremy. Understanding torture. Edimburgo: Edinburgh University Press, 2010.

________Emerick, R. D. The ethics of torture. Londres/Nova York: Continuum, 2009.

NOTAS

  1. Adauto Novaes (org.), O silêncio dos intelectuais, São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
  2. Alan Dershowitz, Why terrorism works: understanding the threat, responding to the challenge, New Haven/ Londres: Yale Uníversity Press, 2002.
  3. Slavoj Zizek, Bem-vindo ao deserto do real, São Paulo: Boitempo, 2002.
  4. Jane Mayer, The dark side: the inside story of how the war on terror turned into a war on American ideals, New York: Doubleday, 2008.
  5. Matthew Alexander, How to break a terrorist: the U.S. interrogators who used brains, not brutality, to take down the deadliest man in Iraq, New York: Free Press, 2008.
  6. Philip Zimbardo, et. al., Violence workers: police torturers and murderers reconstruct Brazitian atrocities, Berkeley: University of California Press, 2002.
  7. A confissão. Direção: Costa-Gravas. Itália, França: L’Avant-Scêne, 1970. 139 min. Son.

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