2012

Três ociosos: Sócrates, Montaigne e Machado

por José Raimundo Maia Neto

Resumo

O objetivo é explorar as contribuições dadas por três pensadores ao tema em questão. São eles de perfis e épocas distintas, mas membros de uma mesma tradição: a fundada pelo Sócrates platônico, por quem se começa devido à concepção do “ethos” filosófico dirigido a um tipo de reflexão integralmente comprometida com a verdade e, portanto, em tensão com o pragmatismo da vida ordinária. A seguir, Montaigne, em cuja obra – que, aliás, muito menciona Sócrates – trata-se de indicar algumas distinções entre as vidas contemplativa e ativa, representadas pela natureza da forma literária que criou, isto é, o ensaio, e a ação política. Enfim, Machado de Assis, que, em sua obra madura – por sua vez, fortemente inspirada em Montaigne –, evidenciou a importância do afastamento da vida ativa para os exercícios da reflexão e da própria literatura.

Para Sócrates, a atividade filosófica racional requer o ócio. Tanto que uma das acusações da “pólis” contra ele é a de desviar os jovens dos afazeres econômicos e políticos dela. Seus associados eram literalmente vagabundos. Ou seja: em vez de se engajar nos ofícios e atividades da “pólis”, ficavam vagando pelas ruas e praças, travando debates sem solução e utilidade imediata. Nesse sentido, cabe distinguir duas vias filosóficas de então: a sofística e a socrática. Elas que são contrastadas na primeira parte do “Teeteto”, protagonizada por Sócrates e Protágoras. Enquanto para este toda crença é verdadeira, nenhuma crença resiste ao exame socrático. No primeiro caso, a argumentação é a do advogado, que busca persuadir o ouvinte da verdade da própria opinião. O modelo pedagógico sofístico é, portanto, tornar o discípulo capaz de persuadir o ouvinte. Assim, embora o ensino sofístico seja diferente dos tradicionais, trata-se de um ensinamento útil na democracia ateniense, em que as leis e decisões jurídicas eram estabelecidas pelo voto, após debates a favor e contra. No caso de Sócrates, trata-se de submeter a opinião gerada pelo discípulo ao crivo rigoroso e objetivo da razão. Assim, em vez de fortalecer uma determinada crença — tornando-a mais plausível e, portanto, mais suscetível de ser adotada por terceiros —, trata-se de expô-la à refutação.

Michel de Montaigne mandou gravar no teto de sua biblioteca a seguinte inscrição: “No ano de Cristo de 1571, aos 38 anos, […] Michel de Montaigne, já desde muito entediado da escravidão da Corte do Parlamento e dos negócios públicos, sentindo-se ainda disposto, retira-se para repousar, na calma e segurança, no seio das doutas Virgens, onde atravessará os dias que lhe restam, esperando que o destino lhe permita aperfeiçoar esta habitação, estes doces retiros paternos, que ele consagrou à sua liberdade, à sua tranquilidade, ao seu ócio [otium]”. Assinala-se assim a saída de Montaigne do parlamento de Bordeaux, depois de 18 anos de atividade parlamentar, e seu recolhimento em sua propriedade rural, o château de Montaigne.

O prolífico Machado de Assis, enfim. No caso dele, é de seu universo ficcional que surgem as variantes sobre o tema. Com efeito, quase todos os protagonistas de seus romances são grandes ociosos, a exemplo de Félix de “Ressurreição”, Estácio de “Helena”, Jorge de “IaIá Garcia”, Brás Cubas das “Memórias póstumas”, Rubião de “Quincas Borba”, o autor casmurro de “Dom Casmurro”, o conselheiro Aires em “Esaú e Jacó” e “Memorial de Aires”… todos muito produtivos.


Vou explorar aqui as contribuições de três pensadores ao tema do ciclo. São pensadores de perfis e épocas distintas, mas membros de uma mesma tradição fundada pelo Sócrates platônico[1]. Sócrates inaugura essa tradição ao caracterizar o ethos do filósofo enquanto voltado para um tipo de reflexão integralmente comprometida com a verdade e, portanto, em tensão com o pragmatismo da vida ordinária. No caso de Montaigne, em cujo terceiro livro Os ensaios Sócrates aparece como o modelo exemplar da humanidade, trata-se de indicar algumas relações entre o tema do divórcio entre vida ativa e vida contemplativa com, por um lado, a natureza da nova forma literária criada por Montaigne, o ensaio, e, por outro, a ação política. Enfim, em Machado de Assis, que teve nos Ensaios de Montaigne uma das principais fontes inspiradoras dos grandes romances da maturidade, trata-se de mostrar a relevância do nosso tema nesses grandes romances que colocam o afastamento da vida ativa como condição da vida reflexiva e da própria obra literária.

I

Segundo Cícero, Sócrates foi o filósofo responsável por trazer a filosofia do céu para a terra[2]. Refere-se à guinada em direção à ética dada por Sócrates à filosofia, até então mais voltada a especulações físico-cosmológicas. Sócrates se refere a essa mudança de foco no Fédon de Platão quando afirma ter se interessado na juventude por tais questões até descobrir sua incapacidade em torná-las inteligíveis (Fédon 96c)[3]Nessa breve recapitulação do seu itinerário filosófico, feita instantes antes de sua execução, Sócrates relata que, após decepcionar-se com os filósofos jônicos, depositou suas esperanças no Nous de Anaxágoras, para logo se decepcionar com o que considerou explicações meramente mecânicas, que deixam de lado os fins e valores das coisas (Fédon 97c-e). Entretanto, entre as acusações que levaram à sua condenação há uma de natureza cosmológica: crer que o Sol é uma pedra e a Lua uma massa de terra, e não divindades (Platão, Apol. 26d). Em Aristófanes, o alheamento do filósofo em relação à cidade é devido a esse interesse, expresso no título da comédia que mais satiriza Sócrates: As nuvens. Nessa comédia, Sócrates habita o “pensatório” — uma residência um tanto secreta, na qual vive com discípulos pálidos, cadavéricos e sujos que, em vez de frequentarem as academias de ginástica, ficam produzindo “pensamentos”. Quando o vizinho de Sócrates, Estrepsíades, adentra o pensatório encontra o filósofo suspenso numa cesta “percorrendo os ares e contemplando o sol”[4]. De forma implícita, Aristófanes relaciona o interesse astronômico do filósofo a uma vida preguiçosa. No Sócrates platônico, também verificamos que um dos aspectos do divórcio entre filosofia e vida prática é o fato de o filósofo ocupar seu pensamento com questões cosmológicas. Na digressão sobre o filósofo no Teeteto, à qual retornarei, lemos a anedota de que Tales caminhava observando os astros quando caiu em um poço. “Conta-se”, diz Sócrates, “que uma bela e graciosa serva trácia disse uma piada a propósito, visto, na ânsia de conhecer as coisas do céu, deixar escapar o que tinha à frente, debaixo dos pés”. “Esta graça”, conclui Sócrates, “serve para todos os que se dedicam à filosofia”[5]. Entre outros aspectos da vida filosófica que examinarei adiante, mais fidedignos ao Sócrates histórico, vemos aqui um ponto que coincide com a sátira de Aristófanes[6]. Com efeito, no Teeteto (173e-174a) é dito que “apenas o seu corpo [o do filósofo] está na cidade e aí reside; enquanto o seu pensamento, que considera tudo isto de pouca ou nenhuma importância, o desdenha de todas as maneiras. Viaja, como diz Píndaro, ‘nas profundezas da terra’, medindo a terra e as suas extensões, e observa os astros, ‘…sob o céu’, explorando, por todo lado, toda a natureza, no todo de cada uma das coisas que são, nunca se rebaixando para aquilo que está perto”. Essa primeira caracterização do filósofo no Teeteto é consistente com a cena inicial de As nuvens na qual Sócrates desce um tanto contrariado da cesta de onde, suspenso, preguiçosamente percorria os ares e contemplava o Sol, para receber o vizinho[7]. A peça traz até uma versão mais escrachada da anedota de Tales, quando um discípulo conta que certa vez “uma lagartixa atrapalhou uma indagação transcendental” de Sócrates. “Quando Sócrates observava a lua para estudar o curso e as evoluções dela”, diz, “no momento em que ele olhava de boca aberta para o céu, do alto do teto uma lagartixa noturna, dessas pintadas, defecou na boca dele”[8]. Tais anedotas estão certamente na origem da visão corrente, ainda hoje, do filósofo como alheio às coisas corriqueiras e, por isto mesmo, como exótico e extravagante.

Outra acusação a Sócrates que penso ser historicamente mais acurada, além de mais relevante no nosso ciclo, é a de corromper a juventude. Não se trata mais de simplesmente desviar o jovem cidadão das atividades valorizadas da pólis, como a anterior, mas de contrapô-lo a essas atividades. Em vez de simples alheamento, que pode tornar o filósofo objeto de ridículo, mas também de certa condescendência, a nova acusação denuncia um conflito mais fundamental entre o filósofo e a pólis. Em As nuvens, essa corrupção é aludida ao menos duas vezes. Numa primeira, de forma irônica, é Estrepsíades, pai de Fidípides, que volta corrompido do seu intercurso com Sócrates no pensatório, dizendo ao filho que Zeus não existe[9]. Como se sabe, outra acusação a Sócrates, e talvez a mais séria, foi a de não crer nos deuses oficiais[10]. Em Aristófanes essa acusação está claramente ligada ao interesse cosmológico: um aspecto do desprezo socrático pela pólis é a superstição dos atenienses ao crerem que fenômenos astronômicos e climáticos (chuvas, raios e trovões) têm causas sobrenaturais[11]. Outro aspecto da corrupção da juventude é o ensino sofístico — atribuído por Aristófanes a Sócrates —, que ensina a arte de fazer com que o argumento mais fraco ou injusto leve a melhor sobre o argumento justo. No debate entre os dois argumentos em As nuvens, o Injusto (gerado no pensatório socrático) é acusado pelo Raciocínio Justo de “corruptor da juventude”[12]. Este último diz que antes dessa corrupção, quando vigorava “a educação antiga”, “as crianças andavam em silêncio, todos os meninos de cada bairro andavam nas ruas em perfeita ordem, a caminho da casa do professor de música, sem mantos [como usavam Sócrates e discípulos] e em grupos bem alinhados […] Se um deles fazia graças […] era moído de pancadas por querer ridicularizar as musas”[13]. O jovem que seguir essa educação tradicional, continua o Raciocínio Justo, passará o tempo nos ginásios atléticos, brilhante e viçoso como uma flor, em vez de declamar na praça pública bobagens grosseiras sem o menor sentido, como se faz atualmente, ou de gastar suas energias com questões armadas sobre chicanas, contestações e trapaças[14]. Aristófanes faz aqui alusão às perguntas socráticas que embaraçavam os cidadãos[15]. Sua sátira é compatível com a acusação de que os jovens discípulos de Sócrates recusavam-se a se engajar nas atividades pedagógicas tradicionais e[16], sobretudo, nas atividades econômicas e políticas desejadas pelos pais, contestados dialeticamente por esses filhos socráticos[17]. Esse quadro é consistente com a defesa de Sócrates na Apologia de Sócrates de Platão[18] e na Apologia de Sócrates de Xenofonte. No Teeteto, Platão de certa forma explica o descaminho moral de alguns discípulos de Sócrates[19]. Este diz que alguns discípulos, ao se afastar do mestre antes do devido, “fizeram abortar as coisas que ainda restavam (para ser expostas e examinadas segundo o método maiêutico), por causa das más companhias e, alimentando-as mal (isto é, não submetendo as próprias ideias ao exame crítico da razão), destruíram as que eu tinha feito nascer, preferindo a mentira e as fantasias à verdade, acabando por parecer ignorantes, tanto a si próprios, como aos outros” (Teet. 151e). Em sua Apologia, Xenofonte confirma o cenário aludido por Aristófanes. Sócrates assume o seu papel pedagógico, reconhece que entra em conflito com o ensinamento tradicional paterno e alega o seu sucesso. Assim como em questões de saúde, as orientações do especialista, no caso o médico, devem preponderar sobre as do pai, da mesma forma, na especialidade educacional, é o especialista Sócrates que deve prevalecer. Sócrates ressalta o absurdo de ser punido com pena de morte por se destacar numa arte tão preciosa para os seres humanos (a educação), ao passo que outros que se destacam em outras artes menos importantes (como generais vitoriosos em batalhas) são premiados pela pólis (Xenofonte, Apol. 21).

No Sócrates platônico, a questão da corrupção dos jovens é respondida no Teeteto[20]. Trata-se de um diálogo da maturidade de Platão em que a figura de Sócrates adquire uma preeminência incomum nos diálogos desse período[21]. Em primeiro lugar, ressalta-se a influência positiva que Sócrates teria exercido em Teeteto, cidadão ateniense cuja bravura na guerra (o texto abre com Teeteto, gravemente ferido, retornando a Atenas) comprova o prognóstico socrático sobre ele, feito anos antes quando conheceu e interagiu com o jovem Teeteto. O diálogo propriamente encena a prática pedagógica socrática de maneira a justificar o comportamento aparentemente perturbador da vida ordinária que Sócrates promovia entre seus jovens discípulos. Em Aristófanes esse aspecto é mais relevante do que o do simples alheamento, pois Sócrates aparece como oferecendo uma alternativa de vida aos jovens seguidores, equivalente ao que líderes de seitas e comunidades alternativas representam hoje, cuja influência em adolescentes é objeto de grande preocupação por parte dos pais.

A estratégia platônica no Teeteto é descrever a prática socrática de colocar questões sobre coisas que julgamos saber, mas que não conseguimos explicar de forma coerente, como uma estratégia pedagógica particular, caracterizada pelo nome de maiêutica. A descrição da pedagogia socrática como uma arte maiêutica é especificamente platônica. Com efeito, não encontramos qualquer menção a essa arte em Xenofonte[22] ou em Aristófanes e, quando Sócrates pergunta a Teeteto se este já ouvira dizer que ele praticava essa arte, o jovem responde negativamente (Teet. 149a). Sócrates pede então sigilo, dizendo “que é segredo que possuo esta arte. […] Não é isto que dizem de mim, pois não sabem, mas afirmam que sou muito esquisito e causo perplexidade aos homens” (Teet. 149a). É, assim, evidente que a descrição do procedimento socrático como uma maiêutica é uma forma de justificar o comportamento esciuisito de Sócrates (evidente em As nuvens de Aristofanes) e as perplexidades que causa[23].

A pedagogia maiêutica tem duas partes, ambas levadas a cabo mediante questões. A primeira é análoga à arte das parteiras. As questões dessa primeira parte são como medicamentos que as parteiras utilizam, seja para aumentar as dores do parto, seja para diminuí-las, conforme as condições da grávida e o andamento do trabalho. No caso de Sócrates, trata-se de ajudar o discípulo a parir juízos ou opiniões. Assim, a perplexidade em face da dificuldade de responder a uma pergunta aparentemente banal como “o que é conhecimento?”, tema do diálogo do Teeteto, é apresentada como análoga à dor do parto. Nessa primeira parte da maiêutica, Sócrates ajuda o discípulo a proferir uma opinião minimamente consistente. Com o claro intuito de justificar a ignorância, Sócrates diz no diálogo que as parteiras foram férteis, mas já se tornaram estéreis, e que tanto a experiência prévia de fertilidade como a esterilidade atual são necessárias para o bom exercício dessa arte.[24] Essa descrição da parteira tem adequação perfeita ao que é conhecido publicamente de Sócrates: as doutrinas cosmológicas a ele atribuídas seriam procriações de sua fertilidade juvenil (já esgotada), ao passo que a perplexidade que causa com seus questionamentos, para os quais alega nunca ter resposta, se refere à sua propagada ignorância. A segunda fase da maiêutica socrática já não guarda analogia com a arte das parteiras, pois deriva da especificidade dos recém-nascidos que Sócrates ajuda a parir na primeira etapa: juízos ou opiniões e não bebês. Com efeito, como juízos têm sempre pretensão à verdade, mas podem ser falsos, a tarefa pedagógica exige seu exame racional. Nesse ponto verificamos outro aspecto apologético da pedagogia socrática na sua descrição como maiêutica. Se o exame racional mostrar a falsidade das opiniões geradas pela mente dos interlocutores de Sócrates — o que ocorre em todos os casos do Sócrates platônico —, o interlocutor refutado muitas vezes confunde a geração de juízos ou ideias com a geração de bebês e reage passionalmente, às vezes com violência, à refutação socrática[25]. A indicação no Teeteto da diferença entre a parição de bebês e a de ideias é, então, fundamental. É natural que mães se afeiçoem aos filhos recém-nascidos e deles não queiram separar-se, por mais deformados que estes sejam. Ou, ainda, que sequer reparem na feiura dos seus filhos. O mesmo não pode — sobretudo não deve — ocorrer com as ideias. No caso destas últimas, sendo produções da mente com pretensão à verdade, é natural e necessário que passem pelo crivo da razão e, sendo refutadas, isto é, evidenciando-se o equívoco da pretensão à verdade, sejam eliminadas. Somente um envolvimento passional — portanto irracional em se tratando de ideias — com as próprias ideias explica a animosidade do refutado em relação a Sócrates. Não teria sentido manter uma crença falsa, pois crenças — nessa concepção platônica / socrática — só são úteis se forem verdadeiras. Na verdade, o refutado deveria ficar agradecido a Sócrates por este tê-lo ajudado a perceber a falsidade de uma crença sua, por livrá-lo do erro. A educação socrática não reside, portanto, em transmitir um conhecimento verdadeiro ao discípulo — diferentemente da educação tradicional —, mas de livrá-lo de crenças falsas.

Vemos, assim, a consistência entre a prática pedagógica maiêutica e a explicação de Sócrates do seu comportamento na Apologia de Platão. Sócrates alega uma missão divina, a saber, comprovar a afirmação do oráculo de Delfos de que ele era o mais sábio dos homens. Como nada sabia, resolveu indagar os outros sobre se sabiam alguma coisa, chegando à conclusão de que sua sabedoria consistia apenas em saber que nada sabia[26]. No Teeteto, Sócrates ressalta outro equívoco do público: atribuir a ele, Sócrates, a responsabilidade da refutação. Não tendo crença alguma, Sócrates representa a pura atividade racional. Assim não é Sócrates com crenças formadoras de uma personalidade quem refuta, mas a razão ou o argumento, e este é impessoal e universal. Como o discípulo refutado é a priori também racional, é tão responsável pela refutação quanto o mestre[27]. A reação passional contra Sócrates pelo discípulo revela então sua irracionalidade, sua aversão à própria razão. A correção da irracionalidade, da misologia (ver Platão, Fédon 88c-91c), é o trabalho pedagógico específico do Sócrates platônico. A questão da condenação de Sócrates pela cidade adquire, assim, sua dimensão propriamente socrático-platônica: os cidadãos estão envolvidos com crenças e valores que não querem ver refutados. Ou seja, paixões e interesses pragmáticos diversos preponderam sobre os compromissos epistêmicos (racionais) personificados por Sócrates. Este representa o compromisso com o princípio de integridade intelectual, princípio este que se ajusta mal às demandas e engajamentos da vida ativa. Concluo esta primeira parte apontando um desses aspectos, destacado como central no Teeteto, que nos traz de volta diretamente ao tema do ciclo: o ócio.

A atividade filosófica racional exige o ócio. Como indiquei acima, uma das acusações e ressentimentos da pólis em relação a Sócrates é que este desviava os jovens dos afazeres econômicos e políticos. Seus associados eram literalmente vagabundos: em vez de se engajar nos ofícios e atividades da cidade, ficavam vagando pelas ruas e praças, travando debates sem solução e utilidade imediata, visível, para a pólis[28]Nesse sentido, cabe distinguir duas vias filosóficas na época de Sócrates: a sofística e a socrática. Essas duas vias são contrastadas na primeira parte do Teeteto, na contraposição entre Sócrates e Protágoras[29]. O ponto fulcral é a orientação pragmática da sofística em contraposição à orientação especulativa/teorética desinteressada da via socrática. No Teeteto, essa contraposição também se expressa na oposição das doutrinas adotadas pelos dois filósofos. Enquanto para Protágoras toda crença é verdadeira, nenhuma crença resiste ao exame socrático. No primeiro caso, a argumentação é a do advogado: trata-se de persuadir o ouvinte da verdade da própria opinião, trocar a opinião deste pela daquele. O modelo pedagógico sofístico é, portanto, tornar o discípulo capaz de persuadir o ouvinte. Assim, embora o ensino sofístico seja diferente dos tradicionais, trata-se de um ensinamento útil na democracia ateniense, em que as leis e decisões jurídicas eram estabelecidas pelo voto, após debates a favor e contra. No caso de Sócrates, trata-se de submeter a opinião gerada pelo discípulo ao crivo rigoroso e objetivo da razão. Assim, em vez de fortalecer uma determinada crença — tornando-a mais plausível e, portanto, mais suscetível de ser adotada por terceiros —, trata-se de expô-la à refutação.

Na digressão sobre o filósofo no Teeteto, o que introduz o contraste entre este e o seu oposto — “os que vagueiam por tribunais e por lugares assim” (172c) — é a disponibilidade de tempo livre. Os filósofos, como não têm outra coisa a fazer — quero dizer, coisas pragmáticas —, têm todo o tempo requerido pelos argumentos. Ao contrário, os oradores em assembleias e tribunais “falam sempre com falta de tempo — pois a água que corre na clepsidra pressiona-os” (Teet. 172e). Vemos aqui uma referência evidente à defesa de Sócrates em seu julgamento, quando diz que não dispõe do tempo necessário para defender-se adequadamente (Platão, Apol. 19a e 37a-b). O ócio é necessário para filosofar, porque a investigação filosófica não pode ser premida por interesses pragmáticos. Em primeiro lugar, a necessidade de uma decisão — de um voto — obriga, muitas vezes, o término precoce do exame, antes que todos os aspectos relevantes tenham sido devidamente considerados. Em segundo lugar, e mais fundamentalmente, a argumentação associada a interesses pragmáticos prejudica a objetividade do exame racional. Argumenta-se nas assembleias e, sobretudo, nos tribunais, como advogados ou acusadores — em ambos os casos defendendo uma causa ou um interesse —, e não, como é mister na filosofia, para buscar a verdade. O ócio, a disponibilidade do tempo livre, é visto negativamente pela pólis como vagabundagem corruptora dos jovens; é reescrito no Teeteto como exercício da liberdade, pré-condição da integridade intelectual. É por não ter que usar a razão para interesses não epistêmicos que o filósofo é livre.

A vida ordinária obriga à limitação dessa liberdade pela subordinação da razão a interesses diversos. Vemos, assim, na digressão sobre o filósofo do Teeteto, a contraposição entre vida ativa e vida contemplativa, com inversão da valoração negativa desta última. Somente os filósofos descomprometidos com a vida ordinária são livres. A sofística é a corrupção da filosofia justamente porque é voltada para a vida pragmática: trata-se do discurso da escravidão — está comprometida com interesses, não exibindo a isenção racional. Na descrição da argumentação nos tribunais — para os quais os sofistas preparavam os cidadãos atenienses, “os argumentos são sempre sobre um companheiro de escravatura, perante um senhor que está sentado com a causa na mão. Os processos não mudam, sendo sempre sobre o que lhes diz respeito, e frequentemente a luta é pela vida” (Teet. 172e). O problema dos interesses pragmáticos para a investigação da verdade evidencia-se dramaticamente no caso do julgamento de Sócrates, onde estava em jogo sua própria vida e em que ele, não obstante tal interesse, manteve a integridade intelectual, recusando-se a lançar mão de recursos retóricos não epistêmicos e apelos emocionais. Tal atitude afigurou-se como ridícula aos olhos da pólis, pois foi uma defesa fadada ao insucesso. O ridículo que o filósofo faz nas assembleias e tribunais (174c) contrasta com o ridículo do advogado no terreno filosófico, onde fica inteiramente perplexo e desorientado em face do questionamento socrático (175c). O Sócrates platônico não podia livrar-se da pena de morte por meio de tais artifícios, pois simboliza justamente a integridade intelectual. Na contraposição entre a liberdade do filósofo genuíno e a escravidão do retórico sofista, opõe-se também a integridade moral do primeiro à imoralidade do segundo. Contrariamente ao sofista, é Sócrates quem promove a formação moral boa e íntegra dos jovens atenienses, justamente por ajudá-los a fazer uso pleno da razão[30].

II

O segundo ocioso de quem me ocuparei, Michel de Montaigne, é destacado por Adauto Novaes na sua apresentação deste ciclo. Adauto cita a seguinte frase que Montaigne mandou gravar no teto de sua biblioteca: “No ano de Cristo de 1571, aos 38 anos, […] Michel de Montaigne, já desde muito entediado da escravidão da Corte do Parlamento e dos negócios públicos, sentindo-se ainda disposto, retira-se para repousar, na calma e segurança, no seio das doutas Virgens, onde atravessará os dias que lhe restam, esperando que o destino lhe permita aperfeiçoar esta habitação, estes doces retiros paternos, que ele consagrou à sua liberdade, à sua tranquilidade, ao seu ócio [otium]”[31]. A inscrição assinala a saída de Montaigne do parlamento de Bordeaux, depois de 14 anos de atividade parlamentar (18, se incluirmos o período em que foi conselheiro na Cour des Aides de Périgueux), e seu recolhimento em sua propriedade rural, o château de Montaigne. Como observa Adauto Novaes, Montaigne se afasta das agitações da vida política e dos negócios públicos para se dedicar a um novo objeto filosófico que inaugura a modernidade: o próprio eu. A ocupação de si, em contraposição à ocupação nos negócios e na vida política é[32], como visto no item anterior, a principal exortação socrática e, como também já indiquei, Sócrates é o filósofo que Montaigne mais admirava. Mas, diferentemente de Sócrates, esse cuidado de si não é exercido na praça pública, na interação dialética com os outros, mas na solidão do seu château, mais especificamente, na torre de sua biblioteca, que Montaigne reformou na ocasião em que se retirou do parlamento de Bordeaux, de modo a dotá-la de certa autonomia em relação ao resto da habitação. Contrariamente a Sócrates, que tinha um projeto pedagógico bem definido, Montaigne diz não pretender de maneira alguma formar o homem[33], embora Os ensaios tenham evidente alcance pedagógico[34]. Sócrates cuida para que os outros, seus companheiros, cuidem de si mesmos, o que para ele significa ajudá-los a pautarem a vida pela razão. Montaigne não cuida diretamente dos outros, mas de si mesmo. Consequentemente, se a via socrática é o diálogo vivo, face a face, Montaigne inaugura uma nova nova forma literária, ajustada ao seu projeto de ocupação de si: o ensaio. “Foi um humor melancólico, e consequentemente um humor muito inimigo da minha constituição natural, produzido pela tristeza da solidão na qual há alguns anos mergulhara, que primeiramente me pôs na cabeça essa loucura de aventurar-me a escrever. E depois, descobrindo-me inteiramente desprovido e vazio de qualquer outra matéria, apresentei-me a mim mesmo como tema e como assunto. É [C] o único livro do mundo em sua espécie, [A] um projeto desordenado e extravagante” (II, 8 (Da afeição dos pais pelos filhos), 81)[35]. Montaigne é exemplar na tradição dos preguiçosos reflexivos, pois é muito claro ao vincular esta obra inovadora, Os ensaios, ao afastamento da vida ativa. “Não fiz meu livro mais do que meu livro me fez, livro consubstancial ao seu autor, com uma ocupação própria [de si mesmo], parte da minha vida; não com uma ocupação e uma finalidade terceiras e alheias, como todos os outros livros” (II, 18 [Do desmentir], 498). Os ensaios que escreve a partir desse retiro da vida pública/política em sua biblioteca são a expressão escrita desse ócio reflexivo.

O ensaio escrito é o registro do ensaio das faculdades intelectuais de Montaigne[36]. Ele moderniza, assim, a prática socrática, inserindo-a na sua própria subjetividade, pois Sócrates ensaiava suas faculdades e as dos seus discípulos no diálogo face a face[37]. Esse exercício é — penso eu — racional como o de Sócrates, embora possamos dizer, concordando com Frédéric Brahami, que Montaigne tinha uma consciência maior do que Sócrates da dificuldade de sermos racionais[38]. Também pudera. Viveu em uma época e lugar de desvairada irracionalidade, em que as pessoas matavam e morriam por diferenças de crenças que tinham arraigadas, mas que eram desprovidas de qualquer fundamento racional[39]. Nesse cenário, muito mais do que na Atenas de Sócrates, urgia o ensinamento socrático de que uma vida não examinada não merece ser vivida (Platão, Apol. 38). Sem a coerência de Sócrates, mas com o mesmo compromisso com a verdade, o ensaio de Montaigne é “um registro de acontecimentos diversos e mutáveis e de pensamentos indecisos e, se calhar, opostos: ou porque eu seja outro eu, ou porque capte os objetos por outras circunstâncias e considerações. Seja como for, talvez me contradiga, mas […] não contradigo a verdade. Se minha alma pudesse firmar-se, eu não me ensaiaria: decidir-me-ia; ela está sempre em aprendizagem e em prova” (III, 2 [Do arrependimento], 27-28). Como em Sócrates, que também “se ensaiava”, o ensaio é um exercício que mostra a vaidade de toda pretensão de posse da verdade. Ele pressupõe, se não a ignorância socrática, certamente um falibilismo que justifica a busca permanente da verdade[40].

Sendo Os ensaios ensaios de si mesmo, é natural que a pintura de si ressalte aquelas características que são a condição de possibilidade da própria obra: além da fidedignidade à própria volubilidade e da ignorância socrática acima indicadas, Montaigne destaca também a liberdade e a ociosidade como suas “características mestras” (III, 9 [Da vaidade], 311-312[41]. No ensaio sobre a experiência (III, 13), conclusivo da obra, Montaigne faz o elogio do ócio. “Somos grandes loucos: ‘Ele passou a vida na ociosidade’, dizemos; ‘hoje não fiz nada’. — Como assim, não vivestes? Essa é não apenas a fundamental como também a mais ilustre de vossas ocupações” (III, 13, 488-489). Montaigne avisa logo no início de Os ensaios que não será condescendente consigo mesmo, que colocará no seu autorretrato toda sua debilidade, seus defeitos, entre os quais se destacam a preguiça e o ócio.[42]

Essa exibição livre das próprias limitações e vícios (como lembra Marilena Chauí, a preguiça é um dos sete pecados capitais), que deleita os leitores de hoje, causou repulsa em leitores cristãos do século XVII, como Pascal e Malebranche[43]. Pascal reprova, em particular, o elogio da ociosidade e da preguiça, que, segundo o famoso gênio matemático e cristão torturado, alimenta indiferença moral e religiosa. Montaigne, diz Pascal, “[r]ejeita […] totalmente [a] virtude estoica que é pintada com uma fisionomia severa, um olhar selvagem, cabelos eriçados, fronte enrugada e suada […]. A sua é ingênua, familiar, agradável, jovial e, por assim dizer, tresloucada; segue o que a encanta e brinca negligentemente com acidentes bons ou maus, deitada preguiçosamente no seio da ociosidade tranquila, de onde mostra aos homens que procuram a felicidade com tanta dificuldade que está somente lá onde ela repousa e que a ignorância e a despreocupação são dois doces travesseiros para uma cabeça benfeita, como ele próprio diz”[44].

Montaigne inscreve o tema da ociosidade na tradição cético-socrática. Sócrates foi o grande inspirador da matriz acadêmica do ceticismo antigo, que leva ao extremo o racionalismo crítico e a ignorância socrática. Montaigne lê Sócrates como Plutarco: o uso pleno das faculdades cognitivas exige a investigação permanente[45]. A ação das faculdades cognitivas é, portanto, inversamente proporcional à ação prática, pois esta última exige a resolução, às vezes urgente. Ao ócio prático corresponde a superatividade intelectual. Isso porque os negócios são incompatíveis com o exercício pleno da razão. A vida pragmática exige decisões, isto é, o fim da reflexão, do exame pró e contra cada questão. É isso que Sócrates, os céticos e Montaigne não querem fazer: sustar o exame racional[46]. Assim, só quando se está afastado do campo decisório é possível manter essa atitude investigativa. Os negócios são condenados porque exigem a interrupção da atividade racional, que é possível de forma Integra somente no ócio. E nenhuma resolução pode ser dita definitiva, pois a razão pode sempre questioná-la. Referindo-se a Sócrates, Montaigne diz que “nascemos para buscar a verdade; possuí-la cabe a um poder maior” (Ill, 8 [Da arte da conversação], 213). Essa é uma leitura correta de Sócrates, cuja missão, nos diz ele mesmo na Apologia escrita por Platão, é a verificação empírica da tese de que a sabedoria é uma prerrogativa dos deuses[47]. No caso de Montaigne, o cristianismo reforça essa posição por causa da transcendência absoluta do deus cristão em relação às faculdades cognitivas humanas. “Se filosofar é duvidar, como se diz, com mais forte razão entreter-se com ninharias e fantasiar, como faço, deve ser duvidar. Pois cabe aos aprendizes inquirir e debater, e ao catedrático resolver. Meu catedrático é a autoridade da vontade divina, que nos rege sem oposição e cuja posição está acima dessas humanas e vãs contestações” (II, 3 [Costume da ilha de Creta], 29). Referindo-se aos céticos, diz que “[s]ervem-se de sua razão para inquirir e debater, mas não para decidir e escolher” (II,12 [ARS], 258).

Considerando a si mesmo como cético, Montaigne diz que “[n]ós, que privamos nosso julgamento do direito de dar sentenças, encaramos com brandura as ideias diferentes das nossas; e, embora não lhe apliquemos o julgamento, facilmente lhe aplicamos o ouvido” (III, 8 [Da arte da conversação], 207). Como as crenças e juízos de Montaigne são assentidos sempre com reserva intelectual, com distanciamento epistêmico, elas não estorvam a devida apreciação de ideias contrárias. Contrariamente aos defensores dogmáticos correligionários de Montaigne (o partido católico), Montaigne pode escutar as posições dos adversários[48]. Isso nos remete ao que penso ser a principal contribuição de Montaigne ao tema das relações entre vida ociosa e vida política.

Mais do que destacar a fertilidade do ócio reflexivo, penso que o caso pessoal de Montaigne ilumina a utilidade política do pensamento cético viabilizado pelo retiro ocioso. Com efeito, a disposição anunciada na frase de 1571, de abandonar a vida política, nunca se realizou de fato. Montaigne continua atuando nos bastidores e, em 1581, assume o principal posto político de sua região, a prefeitura de Bordeaux[49]. A data é relevante: é o ano seguinte à publicação da primeira edição de Os ensaios (que continha então somente os dois primeiros livros). Montaigne não conseguiu manter-se isolado dos outros e da política. Primeiro porque sua sociabilidade é outro traço de sua personalidade[50]. Os outros também nutrem os seus ensaios. Quanto ao cargo que assume, é verdade que aparentemente queria decliná-lo, tendo sido necessária a intervenção do rei Henri III. Mas o cargo foi imposto a Montaigne, em grande medida, por causa do seu ceticismo viabilizado pela ociosidade. A passagem acima citada, a que mostra o seu, sinaliza a natureza da ação política de Montaigne: não sendo capaz de formular juízos convictos e definitivos, é capaz de ouvir. Essa capacidade o habilita como negociador ideal no cenário político altamente conflituoso e radical da guerra religiosa e civil que opunha católicos e protestantes[51].

Como foi a administração de Montaigne na prefeitura de Bordeaux? “De poupar a vontade” (III, 10) é o ensaio no qual Montaigne mais fala do seu mandato. Diz que alguns críticos acusaram sua administração de preguiçosa, com o que concorda em parte. Outros foram mais além e disseram que Montaigne nada fez como prefeito. “Isso é bom”, responde Montaigne, “censuram minha inação, numa época em que praticamente todo mundo era acusado de fazer demais” (III, 10, 356). Montaigne sucedeu, após curta administração do marechal de Matignon, o marechal de Biron para mediar a paz com os protestantes liderados por Henri de Navarra. A oposição forte de Biron aos protestantes estava inviabilizando a paz[52]. Ora, a nonchalance[53] é justamente uma das qualidades mestras de Montaigne. Essa indiferença preguiçosa tem evidente origem cética. Quando Montaigne toma posse, substituindo os aguerridos marechais Biron e Matignon, trata logo de expor suas características aos políticos e partidos. “À minha chegada decifrei-me [i.e., expliquei a minha maneira de ser] fiel e conscienciosamente, exatamente como sinto que sou — sem memória, sem atenção, sem experiência e sem vigor; também sem ódio, sem ambição, sem cupidez e sem violência — para que ficassem instruídos sobre o que tinham a esperar de meu serviço” (III, 10, 332). Adesões plenas a doutrinas, causas, partidos e religiões são contrárias ao temperamento de Montaigne. Montaigne não nega engajamento na causa que defende — o catolicismo e o legalismo sucessório —, mas sem opiniaticidade. Defendendo o partido do rei, se opondo ao fundamentalismo católico da Santa Liga e negociando com o líder protestante Henri de Navarra (que Montaigne muito admirava), Montaigne declara estar “firmemente ligado ao mais sadio dos partidos, mas não desejo que me designem como hostil aos outros pessoalmente e mais além da razão geral. Censuro veementemente esta forma viciosa de opinar: ‘Ele é da Liga porque admira as qualidades do senhor de Guise’. ‘A atividade do Rei de Navarra causa-lhe admiração: ele é huguenote’. ‘Ele critica isto nos costumes do rei; é sedicioso em seu íntimo— (III, 10, 343). “Não sei envolver-me tão profundamente e tão por inteiro. Quando minha vontade me cede a um partido, não é com um comprometimento tão intenso que meu entendimento se contagie” (III, 10, 342). Não teriam sido a sanidade e a independência do entendimento cético de Montaigne o que fez com que fosse admirado por Henri iii e sobretudo por Henri de Navarra?[54]

Vemos no ensaio III, 10 (“De poupar a vontade”) uma aplicação do ceticismo de Montaigne na vida política. “Os homens entregam-se para locação. Suas faculdades não são para eles, são para aqueles a quem se sujeitam. Essa disposição comum não me agrada: é preciso poupar a liberdade de nossa alma e só hipotecá-la em ocasiões justas; as quais são em número muito pequeno, se julgamos sadiamente” (III,10, 330). O uso sadio do juízo é o cético que leva à suspensão da crença. Montaigne aplica à política a distinção entre céticos acadêmicos e dogmáticos dada no livro sobre os Acadêmicos de Cícero, citado e traduzido por Montaigne na Apologia de R. Sebond quando descreve os céticos. “E, ao passo que os outros são levados (ou pelo costume de seu país, ou pela educação dos pais, ou por acaso, como por uma tempestade, sem julgamento e sem escolha […]) a esta ou aquela opinião, à seita estoica ou à epicurista, à qual se encontram hipotecados, submetidos e presos como a uma armadilha que não podem soltar: [C] — “ad quamcunque disciplinam velut tempestate delati, ad eam tanquam ad saxum adhaerescunt” — [B] por que a estes aqui [os céticos] não será igualmente concedido que mantenham sua liberdade e considerem as coisas sem comprometimento e sujeição? [C] — “Hoc liberiores et solutiores quod integra illis est judicandi potestas” (II, 12, 256). Montaigne utiliza a mesma expressão — “hipotecar as faculdades cognitivas” — para descrever o assentimento dado pelos filósofos dogmáticos — estoicos e epicuristas — a suas respectivas doutrinas que distorcem o uso íntegro da razão (judicandi potestas) e para descrever a natureza do engajamento politico da maioria dos partidários dos partidos que tinha de mediar[55]. A epoche acadêmica, na descrição de Cícero, é a alternativa à tempestade das mudanças incessantes das crenças. Agora se acredita x, logo mais y, depois novamente num movimento perturbador. Ora, é justamente essa tempestade que ocorre no campo político-religioso na época de Montaigne. “Seu discernimento só consegue optar pelo que lhes sorri e lhes fortalece a causa. Eu havia observado isto predominantemente no primeiro de nossos partidos exaltados. Esse outro que nasceu depois, imitando-o, ultrapassa-o. Por isso constato que se trata de uma característica indissociável dos erros populares. Após a primeira que vai, as opiniões impelem-se umas às outras, seguindo o vento como ondas” (III,10, 344)[56]. Em meio à tempestade religiosa e política, Montaigne soube manter sua integridade intelectual, que é também moral, e portanto seu ócio tranquilo. Mas não se trata de se manter à parte da disputa. Essa disposição cética de Montaigne não o mantém só individualmente tranquilo. Ela o habilita a mediar a tranquilidade pública. Ora, é justamente essa razão íntegra, esse juízo bem pensado por manter um distanciamento na preguiça e na reflexão, que tornou Montaigne um diplomata exemplar, admirado pelos reis da França e de Navarra.

III

Serei muito breve com o meu terceiro pensador, que nada tem de ocioso. Com efeito, Machado de Assis teve sua vida quase inteira (até a morte, aos 69 anos de idade) dedicada ao serviço público. Burocrata exemplar, Machado galgou toda a hierarquia do funcionalismo público. Hoje mal conseguimos imaginar o Machado às voltas com editais de privatização, de reestruturação do ministério, de memorandos, relatórios, pareceres que o ocuparam enormemente. Parece inacreditável que, tendo escrito tantos textos burocráticos, a maioria dos quais hoje desaparecidos em arquivos e bibliotecas públicas, tenha tido tempo para se ocupar da produção de tão vasta e qualificada obra literária: centenas de crônicas, centenas de poesias, centenas de contos, além de nove romances. Assim é que, para encontrarmos preguiça e ociosidade em Machado, temos que esquecer o Joaquim Maria e mergulhar no mundo ficcional que criou. É no universo dos romances que a contribuição do grande escritor para o nosso tema é mais visível. Com efeito, quase todos os protagonistas dos romances são grandes ociosos: Félix de Ressurreição, Estácio de Helena, Jorge de Iaiá Garcia, Brás Cubas das Memórias póstumas, Rubião de Quincas Borba, o autor casmurro de Dom Casmurro, o Conselheiro Aires em Esaú e Jacó Memorial de Aires. O ócio dos personagens da primeira fase distingue-se dos da segunda (com exceção de Rubião) por ser um ócio extremamente produtivo, do ponto de vista da criação literária e da reflexão filosófica.

Se não me falha a memória, Sócrates não aparece na ficção machadiana[57]. Montaigne, entretanto, é uma das grandes influências em sua grande obra, os romances da segunda fase, das Memórias póstumas ao Memorial de Aires.

Encerrarei este capítulo com breves registros das ociosidades férteis de Brás, Bento e Aires.

É fundamental diferenciar o Brás Cubas vivo — que já era preguiçoso — do defunto-autor “para quem a campa foi outro berço”. A autoria defunta é crucial no romance. É condição de possibilidade de sua filosofia cético-pessimista. Morto, Brás Cubas experimenta a inatividade total, o ócio absoluto. Sua “existência” é somente a de autor, autor de suas memórias póstumas. E é justamente o ócio absoluto que lhe dá a virtude epistêmica necessária para a autobiografia filosófica, na qual só entra “a substância da vida”(cap. 22), sem mistificações e condescendências. “Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha mediocridade; advirto que a franqueza é a primeira virtude de um defunto. Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos, a não estender ao mundo as revelações que faz à consciência. […] Mas, na morte, que diferença! que desabafo! que liberdade! Como a gente pode sacudir fora a capa, deitar ao fosso as lantejoulas, despregar-se, despintar-se, confessar lisamente o que foi e o que deixou de ser! Porque, em suma, já não há vizinhos, nem amigos, nem inimigos, nem conhecidos, nem estranhos, não há plateia” (cap. XXIV: “Curto mas alegre”)[58]. A autoria-defunta permite a Brás se livrar da máscara social que constrange a liberdade e exercer plenamente a reflexão crítica, autocrítica. É o extremo da contraposição socrática/platônica entre a vida ativa, na qual a razão é hipotecada, e a vida contemplativa, na qual a razão é íntegra[59].

A preguiça é a forma mestra do defunto-autor (como a de Montaigne). Ela dá o ritmo de suas memórias póstumas. “Todavia, importa dizer que este livro é escrito com pachorra, com a pachorra de um homem já desafrontado da brevidade do século” (cap. IV: “A ideia fixa”). “Começo a arrepender-me deste livro. Não que ele me canse; eu não tenho que fazer; e, realmente, expelir alguns magros capítulos para este mundo sempre é tarefa que distrai um pouco da eternidade. Mas o livro é enfadonho, cheira a sepulcro, traz certa contração cadavérica; vício grave, e aliás ínfimo, porque o maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direta e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem […]” (cap. LXXI: “O senão do livro”). O livro exprime a vacilação do autor (como Os ensaios exprimem a vacilação de Montaigne), que é também a do mundo. Como Os ensaios, as Memórias póstumas é um livro consubstancial ao seu autor[60].

Bento Santiago, autor ficcional de Dom Casmurro, nos lega um dos maiores romances da literatura mundial quando se aposenta de sua atividade de advogado e se retira ao ócio da casa que fez construir no subúrbio (Engenho Novo). “Ora, como tudo cansa, esta monotonia acabou por exaurir-me também. Quis variar, e lembrou-me escrever um livro. Jurisprudência, filosofia e política acudiram-me, mas não me acudiram as forças necessárias. Depois, pensei em fazer uma História dos subúrbios […] era obra modesta, mas exigia documentos e datas, como preliminares, tudo árido e longo. Foi então que os bustos pintados nas paredes [que reproduziam os da casa da infância] entraram a falar-me e a dizer-me que, uma vez que eles não alcançavam reconstituir-me os tempos idos, pegasse da pena e contasse alguns” (cap. “Do livro”). Como sabemos, Bento não logrou reconstituir os tempos idos por causa da mutabilidade, não tanto das coisas como nas Memórias póstumas de Brás, mas das crenças, valores e visões de mundo. Também, como em Montaigne, o intento de ocupar-se de si não pode ser plenamente realizado porque este si é tão mutável e fugidio quanto as coisas do mundo. O autor Casmurro da narrativa não é mais o Bentinho que morava na rua de Matacavalos e que ele tenta em vão recuperar.

É o diplomata aposentado Aires o mais montaigniano dos personagens de Machado. Em clara linha de continuidade com Bento Santiago, somos apresentados a Aires na ficção machadiana em Esaú e Jacó, romance ficcionalmente escrito pelo próprio conselheiro. Após aposentar-se, decidiu levar uma vida solitária, afastada, como a de Montaigne quando se retirou do parlamento de Bordeaux. Como Bento — já Dom Casmurro —, passou a viver de reminiscências, compondo o seu memorial, diário onde guardava “por escrito as descobertas, observações, reflexões, críticas e anedotas” (Esaú e Jacó, cap. 12). Esse ócio mostra-se, entretanto, insatisfatório. Algum tempo depois, também como Montaigne, renunciou ao projeto de vida solitária. “Queria ver a outra gente, ouvi-la, cheirá-la, gostá-la, aplicar todos os sentidos a um mundo que podia matar o tempo, o imortal tempo” (Esaú e Jacó, cap. 33). Foi o desejo de preencher “as páginas nuas de seu Memorial” (Esaú e Jacó, cap. 44) que gerou o último romance de Machado, o Memorial de Aires. “Nada há pior que gente vadia — ou aposentada, que é a mesma coisa; o tempo cresce e sobra, e se a pessoa pega a escrever, não há papel que baste” (Memorial de Aires, 3/3/1888).

Chama o memorial de “páginas de vadiação. Chamo-lhes assim para divergir de mim mesmo. Já chamei a este Memorial um bom costume. Ao cabo, ambas as opiniões se podem defender, e, bem pensando, dão a mesma coisa. Vadiação é bom costume” (2/8/1988). É essa vadiagem que permite a Aires a condição de observador, foco narrativo do romance[61] . Sua vadiagem é, portanto, condição de possibilidade da criação literária.

Do defunto-autor, passando pelo casmurro afastado, até o aposentado que registra as observações vivas que faz, vemos o progressivo reingresso do ocioso absoluto no mundo da vida, mas guardando o distanciamento crítico que só a ociosidade preguiçosa pode dar.

Notas

  1. Por “Sócrates platônico” não me refiro a um Sócrates imbuído de doutrinas platônicas ou a um personagem que exibe doutrinas platônicas. Refiro-me ao Sócrates histórico tal como visto por Platão e não por Xenofonte ou por Aristófanes. Acho possível diferenciar as posições filosóficas desse Sócrates histórico tal como visto por Platão das do próprio Platão. Por exemplo, julgo ser a teoria das ideias obra de Platão, ainda que tenha sido inspirada no pensamento de Sócrates e busque resolver problemas filosóficos introduzidos por Sócrates. 
  2. Cícero, Tusculanas, V.4.II. 
  3. Xenofonte relata que Sócrates evitava especulações cosmológicas, primeiro por não concernirem à vida prática, segundo por causa de sua obscuridade para os humanos, como mostra o conflito dos filósofos que trataram desses assuntos (Memorabilia I.i. 11-15). 
  4. Aristófanes, As nuvens; Só para mulheres; Um deus chamado dinheiro, trad. Mário da Gama Kury, Rio de Janeiro: Zahar, 1995, p. 28. 
  5. Platão, Teeteto, trad. Adriana Manuela Nogueira e Marcelo Boeri, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008, p. 248 (Teet. 174a-b). 
  6. As nuvens datam de 423 a.C., quando Sócrates tinha 46 anos. Na ocasião do julgamento ele se refere a essa comédia de Aristófanes quando fala das acusações antigas que sofrera, que estariam na origem das de Meleto, que o levaram ao tribunal (Platão, Apol. 19c). Diz que nada sabe dessas especulações da filosofia natural. Mais adiante, sobre a mesma acusação, pergunta se Meleto não estaria acusando Anaxágoras, pois tais doutrinas são de Anaxágoras e podem facilmente ser lidas em seus livros (26d. e). Considerando o que é dito no Fédon podemos concluir que a acusação cosmológica é falsa no que concerne ao Sócrates da época da acusação, mas verdadeira no que concerne ao Sócrates da juventude que inspirou Aristófanes. Ver também Xenofonte, Memorabilia IV.vii.6. 
  7. Como em Teet. 173e-174a, As nuvens insistem no interesse cosmológico e geológico de Sócrates e seus discípulos. Eles andam olhando para o chão, procurando “o que existe embaixo da terra”, ao mesmo tempo que aprendem astronomia “com os respectivos traseiros” (Aristófanes, op. cit., pp. 23-24). Speusides encontra no pensatório diversos instrumentos astronômicos e mapas-múndi (p. 25). 
  8. Aristófanes, op. cit., p. 22. 
  9. Aristófanes, op. cit., p. 61. 
  10. Platão, Apol. 24b e 26, Xenofonte, Apol. 9. No texto de Platão (Apol. 26b), tal como na peça de Aristófanes, é feita uma vinculação entre as acusações de corromper a juventude e a de descrer dos deuses da pólis. Essa descrença seria um dos aspectos da corrupção. 
  11. As nuvens, e não os deuses, são as responsáveis pela chuva. Os trovões são também nuvens “que estrondam rolando umas por cima das outras” (p. 37). As nuvens, por sua vez, movem-se não pela ação de Zeus, mas por um “turbilhão etéreo” (p. 37). A contraposição entre filosofia (mais tarde, ciência) e religião se torna um tema clássico já desde Anaxágoras, que também teve sua filosofia censurada. 
  12. Aristófanes, op. cit., p. 70. 
  13. Idem, ibidem, p. 72. 
  14. Idem, ibidem, p. 73. No Oeconomicus xi.3 de Xenofonte, quando Ischomacus pede a Sócrates que corrija qualquer erro em suas ações, este responde: “como poderia ter a pretensão de corrigir um perfeito cavalheiro, eu que supostamente não passo de um tagarela com a cabeça no ar?”. 
  15. Vemos assim que não é somente o Sócrates platônico que adota uma postura questionadora, causando embaraço e perplexidade em atenienses e estrangeiros. No Memorabilia de Xenofonte podemos observar essa prática socrática no engajamento, entre outros, com Eutidemo (IV, ii) Aristipo (III.viii.7) e Hípias (III.iv.9). Em nenhum caso, entretanto, o questionamento gira em torno, como em Platão, da dificuldade de definir conceitos éticos. 
  16. Xenofonte diz que Sócrates recomendava o estudo das disciplinas tradicionais como geometria e astronomia só até certo ponto: enquanto eram pertinentes para a vida prática (Memorabilia IV.vii.3, 5 e 8). 
  17. Xenofonte responde em Memorabilia II.ii.49 à acusação de que Sócrates teria ensinado seus seguidores a preferir os seus conselhos aos dos pais. 
  18. Platão, na Apologia, alude a esse posicionamento de Sócrates, num confronto direto com Meletus. Este é forçado a dizer que todos os cidadãos atenienses são bons educadores (pois são agentes transmissores da educação tradicional), exceto Sócrates, que inova. Sócrates sugere que se trata de uma inversão, fazendo uma analogia com criadores de cavalo. Assim como somente os especialistas sabem como beneficiar os cavalos, e não o homem comum, do mesmo […] Sócrates não chega a concluir o argumento, deixando-o implícito, provavelmente porque, diferentemente de Xenofonte, em Platão Sócrates se coloca como desprovido de todo saber. O modelo pedagógico é a maiêutica (o saber vem do discípulo, sendo o papel do mestre ajudar o discípulo a dar à luz esse saber e, em seguida, submetê-lo a rigoroso exame). Sobre a maiêutica, à qual retornarei, ver Teeteto 149a -151d. 
  19. Os dois principais descaminhados são Alcibíades e Crítias. 
  20. Além, evidentemente, da Apologia e de vários outros diálogos — ver especialmente o Górgias — nos quais a figura de Sócrates como modelo de filósofo é central. No que concerne ao Sócrates xenofôntico, pode-se dizer que praticamente toda a Memorabilia busca responder a essa acusação, mostrando os inúmeros benefícios (conselhos e intervenções para fazer o bem, questionamentos para evitar o mal) que Sócrates teria prestado a diversos concidadãos. 
  21. Sócrates aparece com mais relevância nos chamados diálogos socráticos ou aporéticos do jovem Platão (Laquete, Carmides, Liside, entre outros), escritos quando Platão estava sob forte influência do mestre. 
  22. Sócrates aparece em Xenofonte sobretudo como educador, e sua influência positiva sobre os jovens é reiterada. O tipo de educação ofertada por Sócrates não é a convencional das artes, ofícios e disciplinas como arquitetura, música, poesia, oratória e matemática, mas a atividade pedagógica socrática jamais é colocada como estando em tensão — nem sequer como alheia — à vida do cidadão. 
  23. Embora essa perplexidade causada pelo questionamento socrático apareça sobretudo nos diálogos aporéticos de Platão, ela é parte integrante das memórias de Sócrates em Xenofonte. Ver, por exemplo, Memorabilia em que o interlocutor assume o papel de Sócrates e busca torná-lo perplexo. A defesa xenofôntica desse comportamento socrático é negar a acusação, dizendo que Sócrates responde sim, quando sabe, às perguntas que coloca (ver, por exemplo, iv.vii.i) 
  24. Cabe notar que a mãe de Sócrates era parteira (Teet. 149a). 
  25. “E, se nessa altura, examinando alguma das coisas que tiveres dito, vier a considerá-la uma fantasia e não a verdade, e em seguida a retirar e deitar fora, não te tornes selvagem, por causa das crianças, como as que têm o primeiro filho. De fato, muitos já estiveram dispostos assim, meu bom amigo, de maneira a realmente me morderem, depois de eu os livrar de algum lixo, por pensarem que não faço isto com boa intenção. Estão longe de saber que nenhum deus quer mal aos homens e que não ajo assim por malevolência, mas por nenhuma lei me consentir à falsidade e de modo algum esconder a verdade” (Teet. 31c-d). 
  26. Sobre o pronunciamento do oráculo de Delfos sobre Sócrates em Xenofonte, ver Apol. 15. 
  27. É por isso que nos diálogos platônicos Sócrates só passa a outra premissa do argumento quando a anterior é aceita pelo interlocutor. 
  28. Ver Platão, Eutidemo, 304.e-307. 
  29. A contraposição entre as duas vias filosóficas é feita também, entre outros diálogos, no Eutidemo e no Sofista. 
  30. Uma consequência da formação moral dada por Sócrates e da imoral dos sofistas é a companhia dos deuses para os discípulos do primeiro e o retorno para este mundo dos discípulos dos segundos. Com efeito, o uso pragmático da razão prende a alma ao mundo — suscitando o retorno após a morte do corpo —, ao passo que o uso desinteressado da razão genuinamente filosófica é uma preparação para a morte (Teet. 77a). Ver Fédon 63b-69d. 
  31. Tradução ligeiramente modificada, com base no original em latim, da versão em francês dada na edição Villey-Saulnier de Les essais (Paris: Quadrige/PUF, 2004, p. XXXI). As letras designam duas edições publicadas em vida [A e B] e uma póstuma [C]. Montaigne modifica o texto em cada edição. 
  32. Adauto comenta, referindo-se a Bernard Sève (Montaigne: des régles pour l’esprit, Paris: PUF, 2007), que o projeto de Montaigne quando se retira do parlamento de Bordeaux é habitar o próprio eu: “viver em repouso, longe das agitações do mundo, retirar-se da pressa do mundo ‘para se conquistar, passar do negotium ao otium” (Adauto Novaes, “As aventuras de uma palavra maldita”, in: Mutações: elogio à preguiça, p. 53). No Ensaio sri, so (De poupar a vontade), Montaigne cita Ovídio: “Fugax rerum, securaque in otia natos” (“Avesso às ocupações e nascido para a segurança do ócio”). Montaigne, Os ensaios, 3 vols., trad. Rosemary C. Abílio, São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 329. Todas as citações em português de Os ensaios são dessa edição. As citações em francês são da edição Villey-Saulnier indicada na nota 35. 
  33. “Não ensino, relato” (in, 2, 30). 
  34. Ver, por exemplo, o artigo recente de Maria Cristina Theobaldo, “Montaigne e a educação em ‘nova maneira, O que nos faz pensar 27 (2010), pp. 237-255. 
  35. Temos aqui a origem da concepção machadiana de outro ocioso de que me ocuparei adiante, Brás Cubas, cujas Memórias póstumas são escritas com a tinta da melancolia (Ao Leitor). As citações de Machado são todas da edição das Obras completas em quatro volumes, organizadas por Aluizio Leite, Ana Lima Cecillio e Heloisa Jahn, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. 
  36. “[A] Não tenho dúvida de que amiúde me advém falar de coisas que são mais bem tratadas nos mestres de oficio, e mais verdadeiramente. Está aqui puramente o ensaio de minhas faculdades naturais, e não das adquiridas. […] Quem estiver em busca de conhecimento que o pesque onde ele se aloja: não há nada que eu professe menos. Estão aqui minhas fantasias, pelas quais não procuro dar a conhecer as coisas e sim a mim mesmo” (is, so [Dos livros], 114). 
  37. Sócrates s’essayoit” (II, II, 423). 
  38. Ver Frédéric Brahami, Le travail du scepticisme: Montaigne, Bayle, Hume, Paris: PUF, 2001. 
  39. “Quantas e quão importantes disputas produziu no mundo a dúvida sobre o sentido desta sílaba: hoc” (II, 12 [Apologia de Raimond Sebond], 291). A alusão é à interpretação divergente de católicos e protestantes sobre o sentido literal ou figurativo da eucaristia. 
  40. “[C] O condutor de seus diálogos, Sócrates, está sempre perguntando e agitando a discussão, nunca a decidindo, nunca satisfazendo [dando uma resposta definitiva], e diz não ter outra ciência além da ciência de opor objeções” (11, 12 [ARS], 264). 
  41. Nesse mesmo ensaio, diz que suas “qualidades prediletas [são] a ociosidade, a liberdade” (III, 9, 276). 
  42. A franqueza do autorretrato é característica estrutural dos narradores-personagens da segunda fase de Machado de Assis: Brás Cubas, Dom Casmurro e o Conselheiro Aires. 
  43. “C’est donc une vanité, & une vanité indiscrete & ridicule à Montaigne, de parler avantageusement de lui-même à tous momens. Mais c’est une vanité encore plus extravagante à cet Auteur de décrire ses défauts. […] jaime mieux un homme qui cache ses crimes avec honte, qu’un autre qui le publie avec effronterie; & il me semble qu’on doit avoir quelque horreur de la manière cavalière & peu chrétienne, dont Montaigne représente ses défauts.” Malebranche, De la recherche de la vérité, Paris: Vrin, 1991, t. I, pp. 364-5 
  44. “Colóquio entre Pascal e Sacy sobre a leitura de Epicteto e de Montaigne”, in Pascal — Col. Grandes Obras do Pensamento Universal— 61, São Paulo: Escala, 2006, pp. 82-83. A passagem citada de Montaigne é: “Oh, que travesseiro suave e macio, e saudável, é a ignorância e a despreocupação, para repousar uma cabeça benfeita!” (III, 13 [Da experiência], 435). 
  45. Ver Plutarco, Questões platônicas I, onde trata da maiêutica de Sócrates. 
  46. “[A]penas a razão deve ter o comando de nossas inclinações” (II, 8 [Da afeição dos pais pelos filhos], 83). 
  47. Ver Platão, Apologia 23. Plutarco não pretende que seu leitor creia em coisas incríveis, exceto “as coisas aceitas por autoridade e respeito de antiguidade ou de religião” (II, 32 [Defesa de Sêneca e de Plutarco], 584). 
  48. “[F]alo inquirindo e ignorando, remetendo-me quanto à decisão, pura e simplesmente, às crenças comuns e legítimas” (Hi, 2, 30). 
  49. Sobre a intensa vida política de Montaigne, ver Alphonse Grün, La vie publique de Michel de Montaigne (1855), Genebra: Slatkine Reprints, 1970. 
  50. “Há índoles particulares, isoladas e fechadas em si. Minha forma essencial é própria para a comunicação e a manifestação: sou todo externo e evidente, nascido para a sociedade e a amizade. A solidão que amo e prego é principalmente reduzir a mim meus interesses e meus pensamentos, restringir e limitar não meus passos mas meu desejo e minha preocupação” (III, 3 [De três relacionamentos], 55). Mais adiante: “Por minha natureza, não sou inimigo da agitação das cortes; nelas passei parte da vida e estou afeito a portar-me jovialmente em companhias importantes, contanto que seja com intervalos e na hora que me convier” (III, 3,56). Montaigne só não quer ser importunado em seu ócio independentemente de sua vontade. “Sou sociável até o excesso” (III, 9 [Da vanidade], 295). Ver, também, II, 8 [Da afeição dos pais pelos filhos], 81. 
  51. As guerras político-religiosas que dilaceraram a França na época de Montaigne são frequentemente citadas em Os ensaios. Por exemplo, referindo-se ao seuchâteau, diz que “é o retiro para eu descansar das guerras. Tento subtrair à tempestade geral este recanto, assim como faço um outro recanto em minha alma. Nossa guerra pode mudar de formas, multiplicar-se e diversificar-se em novos partidos; quanto a mim, não saio daqui” (II, 15 [Que nosso desejo aumenta com a dificuldade], 427). 
  52. Marguerite de Valois, irmã de Henri III e esposa de Henri de Navarra, acusa Biron em suas Memórias de não atuar efetivamente como mediador em busca da paz por ser “fort animé contre les huguenotes” — passagem citada por Eliane Viennot, Marguerite de Valois: La Reine Margot, Paris: Perrin, 2005, pp. 167 e 172. 
  53. Le vice contraire à la curiosité, c’est la nonchalance, vers laquelle je penche evidemment de ma complexion” (II, 4,364). Segundo o dicionário Le Robert, “nonchalance” significa “manque d’ardeur, de soin, apathie, indolence, langueur, mollesse, paresse”. 
  54. Sobre a posição moderada de Montaigne no conflito político-religioso da França de sua época, ver Sérgio Cardoso, “Uma fé, um rei, uma lei: A crise da razão política na França das guerras de religião”, in Adauto Novaes (org.), A crise da razão, São Paulo: Companhia das Letras, 2006, pp. 173-193. 
  55. Aires, diplomata cético como Montaigne, busca, mas sem sucesso, mediar o republicano dogmático Paulo e o monarquista igualmente dogmático Pedro, em Esaú e Jacó. 
  56. “Vede a horrível impudência com que rebatemos as razões divinas, e quão irreligiosamente as temos rejeitado e retomado, conforme a sorte nos tem mudado de lugar nessas tempestades públicas. Esta proposição tão solene: ‘Se é permitido ao súdito rebelar-se e armar-se contra seu príncipe para defesa da religião’, lembrai em quais bocas, neste ano passado, sua afirmação era o esteio de um partido, e de qual outro partido sua negação era o esteio, e escutai agora de qual lado vem a voz e a instrução de uma e da outra” (is, 12 EARS], 167-8). Com a morte do duque d’Alençon, que faz de Henri de Navarra sucessor legítimo de Henri III, os huguenotes — que se opunham a um rei católico ainda que herdeiro legal — passaram a defender o legalismo sucessório, ao passo que a Liga, antes legalista, já advoga a ruptura da lei sucessória para evitar a coroação de um rei protestante. 
  57. Sócrates aparece indiretamente, via Plutarco, no clímax de Dom Casmurro. Quando Bento Santiago decide se matar, abre A vida de Catão de Plutarco e busca forças para o ato extremo no político romano, que, por sua vez, busca forças para o próprio suicídio nas páginas do Fédon de Platão, em que Sócrates, às vésperas da execução, mostra aos discípulos que não há o que se lamentar, ao contrário, pois toda a vida filosófica é uma preparação para a morte. Dom Casmurro recorda que “não tinha Platão comigo; mas um tomo truncado de Plutarco” (cap. 136). 
  58. Essa liberdade é reivindicada por Montaigne em Os ensaios, não evidentemente por estar morto, mas por dizer estar morto para o mundo dos negócios públicos. 
  59. Rubião, protagonista de Quincas Borba, romance ficcionalmente ligado às Memórias póstumas, quando se torna ocioso, não tendo o pensamento, enlouquece. “Rubião não tinha que fazer; para matar os dias longos e vazios ia às sessões do júri, à Câmara dos Deputados, à passagem dos batalhões, dava grandes passeios, fazia visitas desnecessárias, à noite, ou ia aos teatros, sem prazer. A casa era ainda um bom repouso ao espírito, com o seu luxo rutilante e os sonhos que vagavam no ar” (cap. 80). Esses sonhos vão se prolongando e tomando ares de realidade na mente doentia de Rubião até ele ficar completamente louco, em contraste com a lucidez de Brás Cubas. 
  60. Brás Cubas amaldiçoa as ideias fixas (cap. “Visão do corredor”), porque sua fixidez se desmorona facilmente em face da mutabilidade e precariedade das coisas. “Não me ocorre nada que seja assaz fixo nesse mundo: talvez a lua, talvez as pirâmides do Egito, talvez a finada dieta germânica” (cap. IV: “A ideia fixa”). A fonte evidente é Montaigne. “O mundo não é mais que um perene movimento. Nele todas as coisas se movem sem cessar: a terra, os rochedos do Cáucaso, as pirâmides do Egito […]. Não consigo fixar meu objeto. Ele vai confuso e cambaleante, com uma embriaguez natural. Tomo-o nesse ponto, como ele é no instante em que dele me ocupo. Não retrato o ser. Retrato a passagem”. (Os ensaios, III, 2 [Sobre o arrependimento], 27). 
  61. “Quero estudá-la [Fidélia] se tiver ocasião. Tempo sobra-me, mas tu sabes que é ainda pouco para mim mesmo, para o meu criado José, e para ti, se tenho vagar e que, — e pouco mais” (Memorial de Aires, 8/4/1888). “Vou ficar em casa uns quatro ou cinco dias, não para descansar, porque eu não faço nada, mas para não ver nem ouvir ninguém” (17/5/1988). 

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