Zorzi Baffo ou nomear as coisas
por Pascal Dibie
Resumo
O poeta Zorzi Baffo (1694-1768) além de representante incontornável do espírito das Luzes, oferece em seus poemas um retrato vívido de Veneza do início do século XVIII que, assim como toda a Itália, se encontra num contexto histórico, político e religioso conturbado.
Em seu poema “O meio de seduzir as mulheres” Baffo expõe todo o seu senso experimentado da libertinagem onde “o amor é um tormento, a fidelidade uma escravidão”. O libertino considera o amor do mero ponto de vista do prazer e aplica um rigor crescente à busca por este prazer. Porém, o libertino também filosofa e sua filosofia, nesse momento de transição da sociedade feudal para uma sociedade “moderna”, se apoia em algo novo.
Com a concepção do mundo está em transformação, o homem vai aos poucos abandonando Deus e passa da relação do homem com a natureza para a relação do homem consigo mesmo. Ainda se fala a palavra Deus mas, na nova filosofia, ela significa a natureza fecunda que explica o universo. Baffo também exprime essa transformação no poema “Exílio da natureza”. Embora deísta, o Deus de Baffo é diferente do Deus da Bíblia.
Sendo um homem esclarecido, Baffo não hesitou a entregar-se a uma “poesia de privada” alimentada pelo humor e pela cultura popular. Sua poesia, embora criticada pelos pudicos pelo excesso de licenciosidade de suas expressões, é louvada pelos homens de letras pela correção de seu estilo e lida tanto pela aristocracia como pelo povo.
Os libertinos são a expressão de um pensamento novo que surge na Europa quando a moral e os freios tradicionais não funcionam mais e a razão está em crise.
A grande descoberta dos libertinos foi que os prazeres do amor têm relações apenas fortuitas com as necessidades da reprodução. “Nada, com efeito, é mais contrário ao espírito da libertinagem que a concepção goethiana das afinidades eletivas”, assinalava Roger Vailland em seu Esquisse pour un portrait du vrai libertin [Esboço para um retrato do verdadeiro libertino], publicado em 1946. Foi preciso, de fato, toda a liberdade de espírito dos libertinos, e até mesmo sua audácia sacrílega, para considerar o amor do mero ponto de vista do prazer. Claro que um amor-prazer com suas regras, seus métodos, seu estilo, tais como os vimos em ação na sociedade francesa do século XVIII, quando os libertinos brilharam com sua maior intensidade.[1]
Na sociedade italiana da passagem do século XVII ao XVIII, e em particular na Veneza de Zorzi Baffo, pode-se dizer que o leito está para o amor-prazer assim como o dinheiro para o jogo. Sabe-se que, quanto maior o perigo, maior o prazer que o jogo proporciona ao jogador: um jogo de cartas, por exemplo, se a aposta é muito alta, a ponto de pôr em risco sua fortuna; ou o amor que, como em Les liaisons dangereuses, pode levar à ruína os dois parceiros… Aqui, como no amor em geral, é exatamente um ultimato que acaba com todos os jogos sociais; quando chega a hora do acerto de contas, os dois parceiros despojam-se de sua condição, de sua fortuna, de seus privilégios, e vêem-se nus na solidão do leito, intimados a provar seu valor um diante do outro! Não devemos portanto nos enganar, nada mais oposto ao libertino que o chamado “mulherengo” ou o “paquerador”. Assim como a vítima do amor-paixão, o mulherengo é o escravo de uma obsessão. Como constata Roger Vailland, em relação a qualquer mulher,
qualquer perspectiva vaga de consentimento basta para provocar nele aquela mobilização dos humores, aquela fermentação glandular, aquela perturbacão orgânica total que metamorfoseia a maioria das espécies animais pouco antes do acasalamento e que arrasta as enguias dos pântanos das estepes para as núpcias fabulosas que terão lugar no mar dos Sargaços.[2]
Assim, mesmo quando acredita capturar, o paquerador é que é capturado, porque sua perpétua fome canina o inclina ao mais fácil. Os trabalhos de aproximação que o cerco da virtude impõe exasperam sua impaciência. Como aqueles conquistadores que só atacam as nações minadas por lutas internas, ele só se apodera das fortalezas que desejam ser conquistadas. O libertino, ao contrário, escolhe. A ele convém o epíteto “difícil” que a linguagem corrente atribui aos virtuosos obstinados. E, quanto mais completamente educado for seu gosto, mais difícil ele é. É na severidade da escolha que reside sua virtude característica. Baffo nos deixou apenas um poema, “O meio de seduzir as mulheres“, que permite julgar seu senso experimentado da libertinagem. Contudo, ele nos confirma perfeitamente o que dizem os especialistas:
O amor é um tormento, a fidelidade uma escravidão, e, para
viver em perfeita união convosco, minhas senhoras, é preciso ser um
tolo, incapaz de refletir.
Obtêm-se vossos favores naquele instante de loucura que sobrevém
a todas vós, e aquele que sabe o que faz está seguro da vitória.
Ele chega à sua meta por mil e um caminhos; toda vereda conduz ao
reino do Amor, toda paixão é um degrau.
O êxito pode vir pelo gênio,
pela impaciência, pela assiduidade, pelo capricho e às vezes pelo vício;
mas sempre, e em todo caso, pelo dinheiro e pela ambição.[3]
Como estamos na Itália, nada nos impede de comparar o libertino a um amador consciente que não se deixa enganar pela ilusão de ótica, pelo maneirismo e até mesmo pela virtuosidade. Ele aplica um rigor sempre crescente à busca do prazer — o que explica a máscara de austeridade com que se apresenta. O prazer dado ou tomado é apenas uma das figuras clássicas da sedução, que se dá entre a queda e a ruptura. Mas, na medida em que o libertino busca mais especialmente um prazer cerebral, mais erótico, ele preferirá as iniciadoras, as prostitutas, em outras palavras, as pessoas experientes, profissionais. Estratégia do amador esclarecido que já buscava na alcoviteira alguém que sabe unir o tato do confessor à imaginação do poeta. Na verdade, nenhum impulso da natureza humana lhe deve ser estranho. Consciente da gratuidade, da inutilidade fundamental do jogo ao qual consagra sua existência, ele põe em cena, ele ritualiza o ultimato e a execução final que tensiona rigorosamente todas as figuras do jogo, do “eu”.[4]
Poderíamos dizer que o libertino filosofa, ele filosofa mas sua filosofia se apoia em algo de novo. Esse estado latente, essa preciosidade na expectativa marcam bem o tempo da ruptura.
Longo momento histórico, momento de transição que ia separar uma sociedade europeia de uma outra; que maquinalmente, mecanicamente, cientificamente, por uma revolução suave, muito suave, muito epicurista para ser reconhecível no contexto da época, ia nos fazer deixar a mentalidade feudal para dar-nos acesso a uma mentalidade “moderna”, “industriosa”, tal como se anunciava desde o fim do reinado de Luís XIII: grandes obras de canalização, manufaturas crescentes etc.; vai-se em direção ao controle da natureza. O homem vai aos poucos abandonando Deus e passa da relação do homem com a natureza para a relação do homem consigo mesmo.[5] A própria concepção do mundo se transforma, este é imaginado como um gigantesco animal, um ser vivo e orgânico no qual toda forma tende para formas mais perfeitas no infinito do tempo e do espaço. Ainda que a palavra Deus apareça aqui e acolá, nessa nova filosofia ela não pode mais significar senão a natureza, uma natureza infinitamente fecunda que explica plenamente o universo. Também aí Baffo, embora seja ainda deísta, sente, ou melhor, exprime essa transformação, junto com uma crítica social radical e ousada, em seu poema “Exílio da Natureza”:
O grande chefe da impostura apresentou-se ao congresso dos poderosos
da Terra, e demonstrou-lhes que a Natureza moveria contra eles uma
guerra eterna;
Que ela jamais cessaria de clamar contra eles, e que, se quisessem
salvar sua vida, deviam fazê-la passar por um animal feroz.
Então os príncipes, vendo que nem a religião nem a força seriam
capazes de defendê-los enquanto a Natureza não fosse banida,
Decretaram seu exílio em termos formais, e encarregaram seu grande
chanceler de mandar publicar em toda parte
Que, não querendo a Natureza ficar tranquila nem ser razoável,
foi decidido
Que seria exilada de todas as cidades e confinada nas florestas e
nas montanhas.
Por que, diz a Natureza, há príncipes e vassalos, se somos todos iguais
ao vir ao mundo?
Por que essa distinção, se nascemos todos nus e somos todos mortais?
Por que um homem se submete a outro, e o que é mais forte tem o
direito de fazer tudo o que lhe agrada?
Abençoada a paz que reinava na sociedade primitiva, na qual tudo
era comum!
Quem foi o patife que fez tanto mal, ao introduzir no mundo
o teu e o meu?
Quem ousará dizer que a partilha é justa, quando vemos um ricamente
vestido e o outro não tendo com que cobrir as nádegas?
Um tem uma fortuna escandalosa e pode ter várias mulheres, enquanto
o outro carece de um vintém para ir ao bordel.
Um se empanturra de carne, estendido numa poltrona; o outro não
tem uma côdea de pão para comer nem onde apoiar seu traseiro.
Para suportarmos pacientemente nossos males, querem nos fazer
acreditar numa lei que não compreendemos.
Já não bastavam esses grandes filósofos sem que os papa-hóstias viessem nos romper os testículos?
Eles nos tiram toda liberdade, e em breve será pecado inclusive defecar.
Que gênero de vida estúpido!
A sorte dos cães é melhor que a dos homens; estão expostos a menos males, a menos dissabores:
Encontram cadelas na rua e montam em cima delas sem que ninguém dê atenção;
Vão aonde querem, sem que o papa ou qualquer outro lhes proíba,
isso é muito agradável.
Quanto a nós, quando queremos trepar, temos primeiro que passar
pela cerimônia do casamento.
Esse delicioso prazer que a simples
Natureza nos concedeu, no-lo estragam com esse contrato.
É querer a morte do homem, pois exigir que se contente com uma só
mulher equivale a enforcá-lo.
Se ele vê outra que lhe agrada, não apenas não pode tocá-la como não
deve sequer desejá-la.
Será isso suportável? É tamanha a desordem que até o vício tomou o nome da virtude.
Os que têm bom senso sabem que a força e a impostura nos tiraram
tudo o que a Natureza nos havia dado de bom e de belo.
Tais são as queixas, e não são as únicas, que a Natureza não cessa de
formular.
Por isso os potentados resolveram mandar apregoar em toda parte o decreto que a exila.
Mas ela encontrou na cabeça e no coração dos filósofos um asilo, onde
goza em paz de todos os seus direitos.[6]
A espiritualidade e a imortalidade da alma perdiam toda significação, já que todos os seres passavam de uma forma a outra. Eis-nos num mundo eterno em que a imortalidade é uma quimera, e o homem, um animal como os outros. É o tempo do materialismo em que a Théophile de Viau (1590-1626) sucederá Cyrano de Bergerac (1619-55) e finalmente Espinosa (1632-77). Entre os libertinos, Baffo não é o único que ainda não coloca claramente em questão a existência de Deus, que ele chama “Sabedoria Infinita”, embora já perceba uma contradição radical entre seu Deus e o da Bíblia. De fato, ele afirmava, com outros, que a ideia de Deus é inata no homem. Encontrava a prova disso no movimento regular dos astros, em sua ordenação e na finalidade que a anatomia humana revela…
Em “Os átomos fizeram o mundo?”, o que Baffo propõe é, apesar do que afirma, um deus epicurista que une:
Não é possível que os átomos tenham formado o mundo por acaso, como escreveu o filósofo Epicuro, e não sou partidário desse sistema.
Não digo que o acaso não pode ter feito uma planta, uma pedra, um diamante, e creio que, com a infinidade do tempo, deve ter produzido algo em seu grande cadinho.
Mas, para fazer tantos animais, e tantos caralhos e tantas bocetas, para perpetuar espécie,
E para dar-lhes a vontade de se unir, foi preciso, digam o que disserem os materialistas, uma inteligência muito grande.
Se nada mais se visse além da matéria, adotaria de bom grado a opinião de que ela sempre existiu, e que ninguém a criou.
Admitiria até que de modo nenhum é absurdo pensar que, se a espécie humana foi criada, seu criador não era inteligente.
Poderia crer com Tales que a água é o princípio de todas as coisas, e, com outros, que esse princípio é o fogo.
Mas, quando penso no prazer de esporrar, digo-me: só um Deus poderia ter criado esse doce gozo.[7]
Sendo a libertinagem antes de tudo uma atitude de não-adesão, era natural que Baffo preconizasse o epicurismo, ele próprio fundado sobre uma cultura do indivíduo.[8] O materialismo dos libertinos franceses tem fontes longínquas: Demócrito, Epicuro, mas também, muito mais próximos, os filósofos do Renascimento italiano que se concentraram na Universidade de Pádua: Cesare Cremonini (1550-1631), Pietro Pomponazzi (1482-1525), Lucilio Vanini (1585-1619) e Giordano Bruno (1588-1648), para citar apenas alguns. Em todo caso, é nessa linhagem que se deve inscrever Baffo (não digo que ele tenha de fato se inscrito nela, digo que deveria ser nela inscrito). Na realidade, Baffo é um homem de sua época, um homem de sociedade esclarecido que não hesitou em entregar-se a uma “poesia de privada”, uma poesia “de ocasião” às vezes inventada na hora, alimentada pelo humor e pela cultura popular, e que circulava, anônima, tanto entre o povo quanto entre a aristocracia. Se com frequência descreve o “baixo”, é sempre “de cima” que ele fala; mas em nenhum instante cede à moral, nem uma única vez faz concessões, mesmo quando escreve um “capítulo à veneziana” tendo como base a terza rima italiana — rimas ordenadas por grupos de três versos —, a fim de atender à encomenda desta ou daquela família que pediu ao poeta para redigir o elogio de um dos seus ou para comemorar um grande acontecimento. O tradutor e editor francês de 1876, A. Ribeaucourt, que melhor do que ninguém ocupou-se de sua obra, escrevia:
Baffo passava a vida a imaginar conventos de Vênus, festins de Nero, igrejas de prostitutas; ele era o patriarca da nova sociedade de Veneza; aplaudia as belas mulheres que, para viver à inglesa, não acreditavam no purgatório, as elegantes que se reuniam nos locutórios dos conventos, as mesas de jogo carregadas de ouro onde nobres, damas e senadores mascarados vinham lançar sua fortuna. Ali estava, dizia ele, a regeneração de Veneza.
E, no já citado “O meio de seduzir as mulheres”, é a um verdadeiro manifesto libertino que Baffo se entrega.
Se Baffo é infamado pelos pudibundos por causa da excessiva licenciosidade de suas expressões, “é geralmente louvado pelos homens de letras, seus compatriotas, pela graça e a correção de seu estilo; sua obra é, em suma, uma curiosidade literária de grande valor”.[9]
Eis portanto Zorzi Baffo (1694-1768), representante incontornável do espírito das Luzes e sobretudo testemunha ímpar da Veneza mutável, mais que cambaleante, do início do século XVIII. Seus sonetos, para além de uma obscenidade que obviamente permanece discutível, antes de nos fazerem penetrar no que há de mais recalcado e mais rebuscado em nós, são uma fotografia, ou melhor, um instantâneo vivido, partilhado, daquele período veneziano mitificado sobre o qual ainda hoje, com a ajuda do Carnaval, o Ocidente fantasia. De fato, a miraculosissima civitas de Petrarca ainda existia no tempo da juventude de Baffo, sem chegar à imagem da cidade-paraíso desse autor, na qual se ouviria a todo instante “Vou trepar…”.
Animado de uma curiosidade transalpina, Baffo escrevia: “Não sei o que é a França, nem o que fazem na Alemanha; mas sei que Veneza é uma terra de fartura na qual se trepa com ardor…”. A Veneza de Baffo, como toda a Itália de então, se encontra num contexto histórico, político e religioso extremamente conturbado. É o período da guerra de sucessão na Áustria, e o papa Benedito XIV, após ter tomado o partido de Maria Teresa da Áustria, ao mesmo tempo que reconhecia o de Carlos VII, declara sua neutralidade[10] e, naquilo que nos interessa, enfrenta uma forte polêmica com Voltaire. Após este último ter-lhe enviado um exemplar de sua tragédia Maomé e sobretudo se aproveitado de suas relações privilegiadas com o pontífice para escrever uma falsa carta na qual o papa aprovaria suas idéias, Benedito XIV responde condenando as obras de Voltaire por seu “espírito anti-religioso” (1753). Alguns anos depois, é Clemente XIII, um papa veneziano, que se acha às turras com os jansenistas, os galicanos e os filósofos seguidores de Voltaire. É portanto nesse contexto que Baffo, ele próprio vítima do ultramontanismo galopante que se desenvolve em seu país, escreve uma canção contra “Os livros ultramontanos”.
Depois que muitos leram e continuam a ler as obras escritas no belo dialeto francês por alguns descrentes, há quem afirme que já existem males suficientes na natureza para que a Escritura venha ainda acirrá-los
Que é necessário oferecer distrações, não apenas ao corpo mas também ao espírito, porque após a morte, que é inevitável, nada mais resta;
Que o Diabo e o Inferno são ficções poéticas, às quais os padres acrescentaram a eternidade;
Que todas essas coisas foram inventadas para assustar os marotos, os libertinos, que dão tanta importância a isso quanto meus culhões.
Esses livros ultramontanos e seus filósofos têm causado muitos estragos em nossas sacristias;
Fizeram uma porção de gente despojar-se de sua libré e levar uma vida alegre de epicurista.
Hoje, é uma confusão geral. Troca-se de mulher à vontade e zomba-se do papa e de seus casos reservados.
Esses livros não apenas obscureceram as luzes da religião, mas causaram também a ruína dos bons costumes.
Se uma mulher for sensata, ela deve conformar-se à moda e, mesmo sabendo que age mal, não ter vergonha do sexo.
O luxo das roupas é tal que, se suas posses forem insuficientes, ela deve vender a boceta para vestir-se conforme seu escalão.
Se tiver muitas posses, como tudo é caro, deve fazer contrabando, com a boceta ou com o rabo.
A que acompanha um cavalheiro que lhe dá o braço no passeio deve pelo menos sacudir-lhe o caralho.
É muito justo, com efeito, que proporcione algum prazer ao pobre caralho daquele que ela quer ter sempre a seu lado.
De modo que, pensando bem, vejo que todas, por prazer ou para ganhar presentes, gostam mesmo é de trepar.
Elas imaginam que ninguém saberá de sua má conduta, que não será descoberta nem no dia do juízo final.
Não assistem mais ao sermão nem à oração nas igrejas, e, para viver à inglesa, fazem troça do purgatório.
Se vão à igreja, é somente nos dias de festa, e quando a missa já vai pela metade.
Na igreja ficam olhando mais os janotas que os cristos e os santos, pois é para conquistar esses presunçosos que elas vão até lá.
Preferem os jovens, e não os homens maduros, e seus olhares se dirigem sobretudo aos que têm grandes culhões.
Consagram toda a sua vida ao prazer, e ficam muito contrariadas quando suas regras não vêm.
Gostam dos estrangeiros, e dizem a eles: morro de amor por você; mas só abrem sua porta ao que tiver uma chave de ouro.
Que bela existência, esta! Não é preciso mais deferências, e quem tem dinheiro pode trepar de imediato, enquanto quem não tem é forçado a esperar.
No entanto todos trepam, por amor ou por dinheiro; e a mulher se entrega a isso com vivacidade, pouco se importando com seu confessor.
Todos pensam em cair na farra e em contentar seus corpos; os homens pensam na boceta, as mulheres no caralho.
Quanto a mim, gostaria que as mulheres pensassem mais em sua honra, e tenho esse desejo sobretudo desde que meu pau não fica mais duro.
Na época em que gostaria de ter podido fodê-las todas, sofria por encontrá-las muito ajuizadas;
Mas hoje elas renunciaram a todos os seus preconceitos, e consideram seus vícios como virtudes.
Convenceram-se de que é uma pretensão absurda querer que a honra seja colocada entre as coxas.
Sentindo-se desmascaradas, apreciam mais duas boas trepadas que a melhor das reputações.
Quanto a mim, devo limitar-me a cantar enquanto puder, ou resignar-me a chupar ou a deixar-me enrabar.[11]
A exemplo de amigos tão diferentes como Piero Marcello San Polo, lançado à prisão pelos inquisidores em 31 de agosto de 1757 por seis anos, sob a acusação de “atentado à religião e escândalos”, ou Anzolo Querini, senador reformador de renome, admirador de Voltaire a quem havia visitado, detido sob a pressão dos conservadores venezianos em 12 de agosto de 1761 por “abuso de poder” e exilado da cidade até 1763, Baffo foi um daqueles illuminati — os partidários das Luzes — muito numerosos entre a nobreza veneziana, que se empenhou em defendê-los fazendo circular panfletos e poemas tanto irônicos quanto violentos. Sua história pessoal, que acompanha e traz informações sobre a de Veneza e seus habitantes, adquire um relevo particular com o testemunho de Giovanni Giacomo Casanova, que afirma ter sido o poeta “grande amigo” de seu pai. Casanova lembra-se, na juventude, de ter encontrado Baffo quando este veio ver sua mãe, uma atriz cuja beleza não devia deixá-lo indiferente… Ele narra uma cena do mais alto interesse para compreender esse período da história da Europa em que a razão estava em crise: por ocasião da quaresma de 1736, quando se achava sobre um burchiello, uma pequena casa flutuante, “a barca vogava, mas com um movimento tão constante que eu não conseguia percebê-lo, de modo que as árvores que passavam rapidamente diante de meus olhos causaram-me grande surpresa. ‘O que é isto, mãe? As árvores se movem?’ “. Foi nesse momento que Baffo e o abade Grimani entraram na cabine do jovem, que lhes perguntou: “Como se explica que as árvores se movam?”. Os dois riram e a mãe interveio num tom compassivo: “É a barca que se move e não as árvores. Veste tuas roupas. ‘Então é possível’, disse-lhe eu, ‘que tampouco o sol se mova e sejamos nós, ao contrário, que giramos do Ocidente ao Oriente’ “. A mãe e o abade deploraram sua imbecilidade, e Casanova já ia chorar quando
o senhor Baffo veio devolver-me o alento. Ele aproximou-se de mim e abraçou-me ternamente, dizendo: “Tens razão, meu menino; o sol não se move, tem coragem, raciocina sempre com consequência e deixa que os outros riam”. Minha mãe perguntou-lhe se ele estava louco para dar-me tais lições. Mas o filósofo, sem nem sequer responder-lhe, continuou a esboçar-me uma teoria feita para minha razão pura e simples. Foi o primeiro verdadeiro prazer que senti em minha vida. Sem o sr. Baffo, aquele momento teria sido o suficiente para aviltar meu entendimento; a covardia da credulidade teria se introduzido nele. A ignorância dos outros dois seguramente teria embotado em mim o gume de uma faculdade em relação à qual não sei se fui muito longe; mas sei que é unicamente a ela que devo toda a felicidade que sinto quando estou face a face comigo mesmo.
Esse pensamento libertino, no sentido filosófico das Luzes, ao qual Baffo encoraja Casanova, faz pensar numa das passagens de Entretiens sur la pluratité des mondes [Conversas sobre a pluralidade dos mundos], de Fontenelle, em que o sábio explica a uma marquesa como funciona o sistema solar, utilizando o mesmo tipo de argumentos da experiência involuntária de Casanova em seu barco, quando pensa que são árvores que movem.[12]
Diz-se que as festas religiosas jamais foram tão belas em Veneza quanto na segunda metade do século XVIII, que os pregadores jamais foram tão numerosos, em suma, que essa cidade dava toda a impressão de ser uma cidade piedosa… A verdade é que o verme estava na fruta havia algumas décadas, no dizer de Concina, um célebre teólogo que já em 1743 julgava a sociedade veneziana descristianizada. Uns dez anos mais tarde, ele reconhecia que os debates teológicos não tinham mais nenhum interesse, enquanto alguns de seus confrades lutavam contra os “blasfemadores”, os “deístas” e os “incrédulos”. Entre os patrícios, foi seguramente a ascensão dos “espíritos fortes”, a influência das Luzes vinda da França que teve alguma importância. Uma nova moral emergia, contra a qual os inquisidores do Estado não podiam grande coisa, nem a sociedade que via seus referenciais tradicionais desaparecerem.
Nesse contexto, que Baffo seja o mais jovial dos pornopolíticos, não há a menor dúvida, e acrescentarei de bom grado que o verdadeiro e o único político encontra-se no íntimo, no cotidiano. Seus sonetos são explorações, constatações, descobertas que levam em conta um corpo feito de mãos que tocam, um corpo que se olha, um corpo que se imagina, como se imagina um rosto. Baffo evita o especular. Quando se aproxima, é para dizer o perfume ou o bizarro das coisas, quando se afasta, é para ver melhor, dizer melhor, quando lhe acontece tornar independentes os órgãos, como em “Inadvertência da natureza” e “Júpiter mudou o buraco de lugar”, poemas que confinam com o mito, é para deixá-los tomar posse de si mesmos.
Júpiter havia posto sob o braço das mulheres o buraco por onde elas mijam; e é por isso que fazem as crianças acreditar que é por ali que elas vêm ao mundo. Um belo dia as mulheres reclamaram a altos brados para que Júpiter colocasse a boceta delas o mais perto possível da bunda. Então os rabos fizeram grande alvoroço, dizendo que já fediam o bastante para ter ainda por cima a companhia da boceta. Para fazer com que se calassem, as bocetas comprometeram-se a dar-lhes sopa quando cozinhassem, e, sob essa condição, os rabos se apaziguaram, confiando que as bocetas não gozariam sozinhas, e que eles também teriam sua parte de prazer.[13]
Baffo nomeia as coisas não apenas pelo mero prazer de nomeá-las, mas porque pode nomeá-las. Numa sociedade que se transforma, na qual o controle tradicional tanto do Estado quanto da família é perturbado pelo contato com outras culturas conquistadoras e sobretudo por novas ideias, uma nova relação com o mundo está em via de emergir. Pode-se entrever a possibilidade de considerar o outro, bem como a si mesmo de outro modo; ao falar do corpo, ao fazê-lo falar, Baffo não diz outra coisa. Os libertinos não são senão a expressão possível de um pensamento novo que emerge na Europa porque a moral e os freios tradicionais deixaram de funcionar; a razão está em crise. Vivendo como vivem e escrevendo o que escrevem, é isso que os libertinos contam. Eles representam a perda de controle social pelo controle total de si, ao qual assimilam o corpo. Enquanto por toda parte da Europa os absolutismos endurecem e a “reação” tenta se afirmar, o sopro libertino que levará às Luzes se levanta; ao dizer o mundo, ao ler o Universo, ao nomear as coisas, o pensamento se abre, a filosofia e as ciências saem de seus enclaves, o corpo se exprime, o “proibido” e a tentação, sem o medo, dão lugar ao possível, e o prazer, do mesmo modo, tem o direito de falar.
Tradução de Paulo Neves
Notas
[1] Raymond Trousson, Romans libertins du XVIII siècle, Paris, R. Laffont.
[2] Roger Vailland, Pour un portrait du vrai libertin, Paris, Jacques Maumont, 1946.
[3] Zorzi Baffo, Oeuvres érotiques; édition et présentation Pascal Dibie, Cadeilhan (Gers), Zulma, 1994, pp. 275-6.
[4] Em francês há um trocadilho com a proximidade fonética entre jeu [jogo] e je [eu]. (N. T.)
[5] Serge Moscovici, Essai sur l’histoire humaine de la nature, Paris, Flammarion, 1968.
[6] Zorzi Baffo, op. cit., pp. 43-5.
[7] Idem, ibidem, p. 39.
[8] Antoine Adam, Les libertins au XVII éme siècle, Paris, Buchet-Chastel, 1964.
[9] Zorzi Baffo, op. cit., p. 378.
[10] Cf. Pascal Dibie, Prefácio a Zorzi Baffo, op. cit.
[11] Zorzi Baffo, op. cit., pp. 331-3.
[12] Bernard le Bouyer de Fontenelle, Entretiens sur la pluralité des mondes, La Tour-d’Aigues, Editions de l’Aube/Poche, 1990, p. 31.
[13] Zorzi Baffo, op. cit., p. 73.