Cultura como ruptura
Resumo
Para a filosofia clássica, o trabalho da razão consistiria em descobrir a unidade por trás da multiplicidade fenomênica ou em dissolver a pluralidade inerente ao sensível e às opiniões (“doxa”) no “logos” filosófico ligador (“episteme”). Com isso, sonharam um Platão ou um Descartes. Contra o imprevisível – esse escândalo do pensamento –, lutaram todos, sobretudo Aristóteles, com suas causas – material, eficiente, formal, final… – e qualidades.
É bem verdade que, ao lado dessa tradição, sempre houve adversários: heréticos, defensores do múltiplo e do singular, como os megários, cínicos e céticos; os “filósofos da diferença”, inclusive.
Já hoje se vive sob o signo do pluralismo e da ruptura. Da multiplicidade de fato e de direito, não apenas aparente, superficial, provisória, “corrigível”, mas definitiva e ontológica. E isso em diversos planos, como o teológico, científico, político, ético, estético…
Mas aceitar a multiplicidade não significa necessariamente rejeitar a razão. Antes, dessacralizá-la, concebê-la não mais “à luz da eternidade”, mas do homem, da circunstância, da história, da razoabilidade, persuasiva e não-coagente (como na obra de Perelman) ou aberta (como na de Bachelard).
Nesse sentido, duas contribuições recentes determinaram o binômio unidade/pluralidade e continuidade/ruptura: a da antropologia , a insistir na diversidade de culturas e suas maneiras de ser, estar, viver, expressar… E a do marxismo, a mostrar que a sociedade divide-se em interesses econômicos e políticos não apenas diversos mas também conflitantes, o que impede a efetivação de consensos universais, sobretudo em torno de valores, que geram rupturas nos modos de pensar e agir.
É bem verdade que o simples empenho de compreender pressupõe o esforço de religar o múltiplo. Desse modo, pode parecer fatal que o resultado deva ser sempre a imposição da unidade.
Na verdade, o pensamento filosófico apresenta duas propostas que, ao longo da história, ou se sucedem ou coexistem em confronto.
Uma delas foi formulada por Parmênides de Eléia em seu poema “Sobre a natureza”. Para ele, só o abandono do empírico leva à Verdade Absoluta, segundo as exigências da retíssima razão , em consonância com “o que é”, cujo contrário seria impensável, indizível, insondável. Junto à Verdade Absoluta, existiria a Opinião ou “doxa”, por onde transitam os mortais, de modo inseguro, instável, ambíguo, contraditório, penumbroso, turvo entre o “ser” e o “não-ser”, já que acolhe as múltiplas e mutáveis informações dos sentidos. Daí o lugar de confronto entre experiências, argumentos, pontos de vista. Do razoável, provável, preferível, relativo, relacional.
Já Empédocles, em nome do princípio democrático de isonomia, rejeita como desmesura e insanidade a pretensão da invasão da morada intemporal da Verdade “Divina”. Isso porque aos homens não caberia mais do que o trabalho unificador. Ele que muito se parece com o do pintor e não pode dispensar todos os sentidos ou a contenção e clareza típicas da razão.
Ora, se é humanamente impossível alcançar a unidade e a verdade absolutas, por que elas insistem em, constante e sedutoramente, se propor?
Chaim Perelman lembra, nesse sentido, o decisivo papel representado pelo monoteísmo judaico-cristão, pelo monismo em sociologia e ciência, seja ele ontológico, axiológico ou metodológico, e pela sistematização de vários fenômenos sob a égide unificadora, que traria a promessa de apaziguamento das discordâncias (quando, na verdade, o que traz é o autoritarismo e a violência).
Quanto à ruptura (desabsolutização), há ainda Bachelard e o “novo espírito científico”, que deve à física quântica, teoria da relatividade, química não-lavoisierana, à geometria não-euclidiana…
Transpondo tamanhas mudanças para o fazer filosófico, trata-se, antes de tudo, de rever a história da filosofia enquanto constante luta entre a concretude histórica do homem e a tirania do absoluto, com suas máscaras e armadilhas linguísticas, inclusive.
O descontinuísmo de Bachelard manifesta-se claramente na ruptura que reconhece existir entre pensamento científico e pensamento nãocientífico. Não é prolongando o “saber” comum, a mentalidade corrente, que se chega – como afirmava Aristóteles – às formulações teóricas da ciência, sobretudo da nova ciência, do “novo científico”. Entre aquele “saber” e a ciência há ruptura.
Essa descontinuidade faz com que a ciência seja rejeição do consenso dos homens e dos tempos, já que surge de um rompimento, como instauração de algo novo que não estava contido potencialmente no passado nem preparado pela memória cultural.
Assim age o “novo espírito científico”, como demonstra Bachelard em diversas obras, iconoclastas. Aceitando a solidão do instante – que pode ser fecunda, se for instante de criação científica ou artística. Aceitando a dramaticidade do instante, único, irrepetível – mas só por isso mesmo aberto para o futuro e para o novo.
Vivemos um tempo – inclusive um tempo filosófico – marcado pela ênfase dada às noções de ruptura, de diferença, de pluralidade. Enquanto em outros momentos culturais insistiu-se sobretudo nas noções de continuidade e unidade, hoje, como um dos traços característicos do pensamento contemporâneo, prevalecem as categorias de multiplicidade, de corte, de alteridade. Ao império de diferentes formas de monismo seguiu-se a instauração de vários níveis de pluralismo.
Durante muito tempo, principalmente no racionalismo clássico, considerou-se que o trabalho típico da razão estaria justamente em descobrir a unidade por trás da multiplicidade fenomênica, em dissolver a pluralidade inerente ao sensível e às “opiniões” numa soberana Unidade, estabelecida pela visão certeira e integradora da Razão. O logos filosófico seria fundamentalmente ligador, unificador. Seu empreendimento constituiria uma correção das opiniões por via do intelecto já devidamente corrigido, retificado: verdadeira ontologia cujo resultado final seria a substituição da multiplicidade da doxa pela unidade da ciência, da episteme. E que justificaria a construção de uma mathesis universalis, sonho claramente expresso e perseguido por Descartes: conhecimento absolutamente verdadeiro, indubitável e universal, a respeito de tudo que pudesse ser perfeitamente enquadrado pela óptica de uma razão fatalmente absolutizadora posto que Razão Absoluta, razão do Absoluto, visão coincidente com o Olhar Eterno (de Deus). Fora desse território de necessário consenso de todos os espíritos aclarados pela ciência única, ficaria o sombrio reino das impressões instáveis e lnconsistentes, das ideias falsas e obscuras, da não-verdade. Com base nessa concepção monista – que apresenta inúmeras variações ao longo da história da filosofia -, procurou-se caracterizar o que haveria de propriamente filosófico dentre as formas de conhecimento. Mais: procurou-se mesmo dizer em que momento esse tipo de reversão do múltiplo e do descontínuo (supostamente aparentes) à unidade e à continuidade (supostamente essenciais) indicaria, na Grécia antiga, o ponto inaugural do modo ocidental de filosofar. E, indiscutivelmente, a tradição dominante, durante séculos, ficou sendo a de uma filosofia centrada nas mostrações de um Ser que, estático ou dinâmico, é dotado de eleática unidade, como objeto adequado à Razão absolutizante e unificadora, totalizante e totalitária. É bem verdade que ao lado dessa tradição mais forte jamais deixaram de existir seus críticos e adversários: heréticos defensores do múltiplo e do singular – megáricos e cínicos e céticos antigos até os “filósofos da diferença” de nossos dias.[1] Mas, pelo menos no passado, eles foram olhados frequentemente como aqueles que, por diversos descaminhos, acabaram se perdendo da Via Reta, do Caminho Real e “caíram” – repetindo a Queda – no relativismo ou no ceticismo. Só que, noutra leitura, escolheram a permanência no campo do efêmero, do mutável, do plural, do provisório, do temporal, do eventual, do histórico, do concreto, do dilacerado – do humano. Pois é necessário reconhecer: aquela concepção do conhecimento filosófico como busca da Unidade acaba sempre refazendo a proposta pitagóricoplatônica do conhecimento enquanto salvação e enquanto retorno. Retorno movido pela nostalgia da perfeição ideal do Um, do Não-Hipotético, do Absoluto. Mas que sempre subentende, laicizado, o mito do Paraíso Perdido – em acepção helênica ou cristã.[2] Eis por que o sentido que esse tipo de filosofia procura para as coisas acaba por emigrar das próprias coisas e eventos em direção a alguma forma de transcendência, acaba por abandonar o nível plural e corpóreo dos acontecimentos em troca de algum “além”.[3]
Em nossos dias, ao contrário, vive-se filosoficamente sob o signo do pluralismo e da ruptura. Da multiplicidade de fato e de direito, não apenas aparente, superficial, provisória, “corrigível” – antes definitiva, ontológica. Resultante, após a “morte de Deus”, da impossibilidade de se instituir um ponto de vista fixo e definitivo sobre seres e eventos, um referencial intemporal e estável: aquela coincidência do olhar humano retificado, perenizado, angelizado, com o Olhar Eterno. Resultante do esfacelamento e portanto da relativização de diversos tipos de absolutos: teológicos, científicos, políticos, éticos, estéticos …
Mas aceitar e assumir a multiplicidade não significa necessariamente rejeitar a razão. Significa, isto sim, dessacralizá-la, retirando-a da intemporaiidade. Significa, por exemplo, concebê-la e exercitá-la não mais “à luz da eternidade”, porém enquanto razão histórica, humanizada, circunstancializada, “razoável”, persuasiva e não coagente (como em Perelman); ou enquanto existindo sob a forma de racionalismos setoriais, abertos e retificáveis (como em Bachelard). Desse modo, a razão deixa de ser a Penélope que constrói unidade da tessitura a partir de múltiplos fios – correndo o risco de, acabado o trabalho, pôr fim ao tempo de espera -, para ser a Penélope que somente garante sua fidelidade ao objeto amado pelo estratagema do destecer, do separar a trama: restaurando a multiplicidade, ganhando tempo, legitimando o recomeço de sua história. A razão humanizada e temporalizada detém o ímpeto sacralizador e absolutizante do religare, já, pela fé; prefere apostar no adiamento, na espera que desata o tempo e lhe abre espaço, na manutenção da ruptura, na resistência às seduções do Absoluto, na autonomia do humano garantida pelo desligamento, na liberdade defendida pela Diferença. E, ao inverter a direção do trabalho filosófico, colocando-o a serviço do reino humano, apenas humano da multiplicidade, da singularidade e da temporalidade, o que fazem alguns filósofos atuais é mostrar que a unidade e a continuidade tão caras a metafísica tradicional fundamentam o utópico consenso dos espíritos em torno de verdades universais, sim, mas constituem construções arbitrárias e fictícias, artimanhas de linguagem mascaradora, engodos ideológicos a justificar diversas formas de autoritarismo e dominação.
Entender melhor por que nosso tempo está tão fortemente marcado pela noção de ruptura, em lugar da noção de continuidade, e por que prevalece a noção de pluralidade em substituição a antigos monismos, exigiria uma investigação muito além do âmbito das ideias filosóficas. Essas trocas pressupõem também fatores políticos, sociais, econômicos. Na verdade, é a própria noção ampla de “universo cultural” que está hoje em questão, nos mais diversos níveis. E, pode-se indagar: não será mais correto falar de “multiverso cultural”, para abrir espaço à manutenção ou à liberação das diferenças?
Vale, no entanto, ressaltar duas contribuições que, no terreno científico-filosófico, influenciaram decisivamente para rebalancear os termos dos binômios unidade/pluralidade e continuidade/ruptura.
1) A contribuição da antropologia, a insistir na diversidade das culturas, na multiplicidade de “razões” culturais, que precisam ser compreendidas e preservadas justamente enquanto diferentes. Graças à antropologia, sabemos hoje que são muitas as maneiras humanas de ser, de estar no mundo, de viver, de valorar, de se expressar por meio das diversas linguagens – o que mostra um humano multifacetado, distante de padrões unitários e universais que antes propunham como paradigma um caso particular de humanidade: o do branco, europeu, “civilizado”.
2) A contribuição do marxismo, a mostrar a sociedade dividida em interesses econômicos e políticos não apenas diversos mas conflitantes o que impede a efetivação de consensos universais sobretudo em torno de valores e estabelece rupturas entre modos de pensar e de agir. O dissenso torna-se então o fundamento da sociedade, o antagonismo interior sua realidade mais profunda. E os eventuais acordos revelam-se apenas provisórios e táticos, nunca a definitiva unificação de todos em função dos mesmos propósitos e ideais. A alteridade e a divergência, inerentes à sociedade de classes, tornam a unidade e a continuidade – em acepção sócio-político-cultural – escamoteações e ardis ideológicos.
Essas duas linhas de análise – a da antropologia e a do marxismo são extremamente fecundas e indispensáveis à reflexão da cultura como ruptura. Mas as deixaremos para especialistas que possam delas extrair todas as ricas consequências. Seguiremos noutra direção: explorando questões que podem parecer mais abstratas e distantes da realidade presente, mas que interferem decisivamente na elucidação de nosso tema.
De fato, olhadas em toda amplitude, as questões relativas aos binômios unidade/pluralidade, continuidade/ruptura vinculam-se a problemas filosóficos permanentes, que se formulam e se reformulam desde os antigos gregos. Estão, na verdade, ligadas à discussão filosófica sobre o tempo, o movimento, a mudança, o novo, a história. Indo mais fundo: ligam-se à discussão – que pode parecer rarefeita mas é decisiva – sobre a relação entre o mesmo e o outro, velha questão, sempre reaberta questão, ferida que não se cicatriza e por onde flui o sangue que alimenta a vida do pensamento filosófico. E torna por isso nosso tema, de fato e de direito, inesgotável, inestancável.
Importante lembrar: a novidade absoluta, o inteiramente novo, o que em um instante é e antes não era, esse salto do não-ser para o ser – eis o que geralmente aparece como o grande escândalo para a compreensão. Eis o que o pensamento filosófico tem geralmente procurado exorcizar, o inesperado que tem buscado aplacar na previsibilidade, a selvageria que tem tentado domar. Algo inteiramente novo e insólito, inteiramente imprevisível, solto, livre, só ele mesmo – eis o que é difícil de tolerar (dentro e fora de nós). O inteiramente novo, sem “medida comum”, não parece despontar como esse puro enunciável de essência fugidia e indefinível, esse alogon que já é visto por Platão como uma forma de irracionalidade, pelo menos em termos de racionalidade vigente?[4] Não eclode como algo miraculoso, inapreensível, que, por escapar às malhas da razão com que se opera, parece ameaçar qualquer razão? Não parece abrir as portas para a incontrolável e titânica Irracionalidade? Assim, não é de estranhar que o apolíneo trabalho da filosofia seja, com tanta frequência, o de estancar a irrupção do inteiramente novo, prendendo-o nos alçapões de algum tipo de causalidade que o torne justificável compreensível – mesmo a posteriori; E, de preferência, que impeça o susto e a perplexidade diante do novo, tornando-o previsível e familiar, diluindo-o em algum déjà vu.
Pelo menos desde Aristóteles essa procura de causas explicativas para todos os seres e eventos adquiriu sistematização dentro da filosofia. Tudo que existe só existe porque tem causas – material, eficiente, formal, final. E existe como tal e assume novas qualidades – ou seja, muda, se transforma – porque tem potencialidade para isso. O movimento, tanto no sentido de locomoção quanto de alteração qualitativa, é entendido como passagem de potência a ato, como atualização de virtualidades, como o tornar-se aquilo (e só aquilo) que se pode ser. O novíssimo e o singularíssimo são, assim, aprisionados na teia das causas que os justificam, na potencialidade que estabelece, por trás das diferenças e dos saltos aparentes, a continuidade da passagem entre o que não é (ainda) e o que passa a ser efetivamente. E é desse modo que o aristotelismo aplaca a escandalosa novidade do novo e que o individual e o singular tendem a ser reduzidos a exemplares de gêneros e espécies, progressivamente subordinados a princípios universais. Numa ascese abstrativa (do ponto de vista do. conhecimento) e integrativa (do ponto de vista ontológico), o que aparece como múltiplo e diferente no nível sensível e corpóreo tende a se unificar; o rompido se entretece em continuidade ou gradação; o novo e o temporal passam a ser entendidos como condicionado pelo perene. E a ciência é concebida apenas como ciência do universal, a gravitar em torno da Unidade, a homenagear o Absoluto.
É bem verdade que o simples empenho de compreender já parece pressupor o esforço de reunir, de reatar o disperso, de religar o múltiplo. Desse modo, pode parecer fatal que o resultado deva ser sempre a imposição do Um sobre o Múltiplo, a vitória do Mesmo e do Idêntico sobre o Outro, o Diferente. Não é verdade.
Desde suas primeiras formulações, o pensamento filosófico apresenta duas propostas alternativas que historicamente se têm sucedido ou coexistido em confronto:
A primeira está modelarmente formulada por Parmênides de Eleia em seu poema Sobre a Natureza. O caminho que leva à verdade – à Verdade Absoluta – é uma via de abandono do empírico, das múltiplas experiências, para atender somente às exigências da retíssima razão.
Razão que afirma a unidade, a imutabilidade e a perfeita continuidade do “o que é”. Qualquer multiplicidade ou variação ou fissura no interior do “o que é” seria a – absurda – afirmação do não-ser impensável, indizível, insondável. Ao lado dessa Via da Verdade existiria, porém, a Via da Opinião, da doxa. Por ela transitam os mortais. É um caminho inseguro, instável, feito de ambiguidades e contradições, sem claridade plena, turva mescla de ser e não-ser, pois acolhe as múltiplas e mutáveis informações dos sentidos. Mas é, justamente por isso, o lugar de confronto dos vários pontos de vista, das diferentes experiências, do dissenso e dos acordos eventuais, dos embates argumentativos, dos esforços de persuasão, lugar do “razoável”, do “provável”, do “preferível”, do relativo, do relacional. O que confere extraordinária acuidade e senso de humor – pouco percebido pela maioria dos intérpretes – ao modelo proposto por Parmênides é o fato de o primeiro caminho, o da Verdade Absoluta, ser a revelação contida no discurso que uma Deusa dirige ao filósofo-poeta[5]. Representa o ponto de vista do Absoluto. É, assim, a verdade que só é possível alcançar quando se está despojado de todos os atributos humanos, dos vínculos com a corporeidade e com a temporalidade, “bem distante das veredas percorridas pelos homens”. É verdade desumanizada – e só por isso eterna, imóvel, plena e irretocável. Já o plano da doxa é o humano território das convenções provisórias, das “verdades” em construção e reconstrução, das “verdades” aproximadas, sempre incompletas, em permanente processo de debate e retificação – jamais acaba das, exaustivas, definitivas. Ao humano: o relativo. E foi mesmo assim que Górgias, o grande sofista, leu o poema de Parmênides, sendo, por isso, colocado por certa tradição antiga como o último representante da Escola Eleática. Mas, de qualquer modo, prevaleceu como interpretação do poema de Parmênides aquela tese de que a verdade é privilégio exclusivo da razão, agindo em completa autonomia, sem se perturbar com a multiplicidade e o movimento atestados pelos sentidos. Cristalizou se assim, como modelo eleático, o império da Razão, que afirma a unidade (real ou essencial) e recusa o múltiplo e o mutável (sensíveis, sem verdade, apenas aparentes).
A outra proposta surge logo na geração filosófica seguinte, como resultado da crítica ao modelo eleático. Empédocles de Agrigento, em nome do princípio democrático de isonomia (igualdade perante a lei) – era líder do partido democrático em sua cidade -, rejeita como desmesura (hybris) e insanidade – era também médico – aquela pretensão de invasão da morada intemporal da Verdade Divina. Aos homens, no processo de conhecimento, caberia tão-somente a conquista da unidade resultante do trabalho unificador, unidade que sempre resulta do processo ou operação de unificação (do múltiplo). Por isso mesmo, esse trabalho – que Empédocles compara ao trabalho artístico de um pintor que realiza um quadro em homenagem aos deuses, harmonizando e conjugando as várias cores – não pode dispensar nem o testemunho paritário de todos os sentidos, nem a exigência de contenção e de clareza típica da razão.[6] Como também necessita, para permanecer iluminado pela isonomia, do assentimento do outro: o atento discípulo-ouvinte que tem igual direito de realizar seu próprio processo de coleta e organização das informações dos sentidos[7].
À negação dos múltiplos e mutáveis dados empíricos e à afirmação da Unidade Absoluta imposta pela Razão Intemporal, Empédocles contrapõe a redução da multiplicidade inumerável a uma multiplicida de menor, organizada à medida do humano: o menor múltiplo comum. Dar igual atenção ao depoimento de todos os sentidos e à reivindicação de clareza e economia apresentada pela razão é organizar (“racionando”) o movimento sem destruí-lo. É instaurar, desse modo, a harmonia na alma, criando um cosmos interior que reproduz, desde a esfera do conhecimento, a ordenação isonômica das raízes do universo. E é substituir o logos monárquico do eleatismo pelo logos democrático do pluralismo. Este preserva o jogo das forças antagônicas – no universo, no corpo, na sociedade – e legitima a tensão permanente entre Philia e Neikos: amiza de e discórdia, junção e separação, aproximação e ruptura.[8]
Permanece, no entanto, a questão: se é humanamente impossível alcançar a unidade e a verdade absolutas, se a experiência e a história – a própria história do pensamento – negam essa unidade e essa verdade, como entender que elas constantemente e sedutoramente se proponham? Como entender que a história da filosofia ocidental venha sendo, com frequência, a colocação de verdades que se pretendem perenes, de absolutos que periodicamente renascem? Se a história parece fornecer os melhores argumentos para os diferentes tipos de relativismo, como entender a própria possibilidade dos dogmatismos? E se a multiplicidade marca nossas mais diversas experiências, como explicar a força e a resistência dos monismos?
A esse respeito, Chaim Perelman, formulador da Nova Retórica ou Teoria da Argumentação, faz considerações elucidativas. Lembra não apenas a importância do monismo ontológico de Parmênides, como também o decisivo papel representado pelo monoteísmo judaico-cristão na constituição da consciência ocidental, a encorajar.o monismo axiológico – referente aos valores -, principalmente no campo da ética. Além disso, observa:
… O monismo ontológico e axiológico frequentemente caminha lado a lado com o monismo metodológico segundo o qual existe apenas um método a ser seguido para atingir a verdade, que é o método demonstrativo, o dos matemáticos, que deveria nos possibilitar, em todos os domínios, o mesmo tipo de certeza que nos possibilita o conhecimento matemático[9].
Finalmente, Perelman aponta outro tipo de monismo – o sociológico -, como em Durkheim, que “encara as relações entre indivíduos e sociedade à semelhança de suas relações com um Deus único”. Essas várias faces do monismo – ontológico, axiológico, metodológico, sociológico – apresentam-se em grande força no campo das ideias filosóficas e científicas, não apenas pelo respaldo teológico do monoteísmo, mas também pela vantagem que indiscutivelmente oferecem, como assinala Perelman:
A vantagem dos monismos é fornecer, em cada campo, uma concepção sistematizada e racionalizada do universo, sob todos os aspectos, permitindo encontrar uma solução única e verdadeira para todos os conflitos de opiniões e todas as divergências.
Todavia, a cômoda sistematização de todas as variedades de fenômenos sob a égide unificadora de um mesmo fundamento, ou princípio, ou método, e a simpática promessa de apaziguamento das discordâncias em torno de uma verdade comum e permanente podem ter – e frequentemente têm – enorme inconveniente. O inconveniente do autoritarismo e da violência:
O inconveniente das ideologias monistas é de favorecer um reducionismo por vezes dificilmente tolerável. Quando não chegam a fazer prevalecer seu ponto de vista, podem justificar – em nome de Deus, da razão, da verdade, do interesse do Estado ou do partido – o recurso à coação, ao uso da força em relação ao recalcitrantes. Aqueles que resistem deveriam ser reeducados e, se não se deixam convencer, deverão ser punidos por sua obstinação ou por sua má vontade.
Daí a conclusão de Perelman, mostrando que perdura a estreita vinculação entre pluralismo e democracia, já estabelecida por Empédocles:
A luta pelos direitos do homem, pela liberdade de pensamento e de expressão, pela liberdade religiosa e política, caminhando ao lado do progresso do espírito democrático, incitou os pensadores do século XX a opor às filosofias monistas filosofias de inspiração pluralista. Tendo sofrido totalitarismos de esquerda e de direita, tendo visto os abusos resultantes da conjugação de ideologias monistas com o uso da força para impô-las, os teóricos dos regimes democráticos desenvolveram ideologias pluralistas várias, que fazem do indivíduo concreto o ponto de partida de suas investigações.
As reflexões de Perelman, em várias de suas obras, conduzem sempre a aliar monismo/autoritarismo/violência, por um lado, e pluralismo/liberdade, por outro. De fato, a concepção de uma mono-arché sacramenta a monarquia e legitima os absolutismos, inclusive no plano político; o monismo metodológico impõe um padrão único de racionalidade – a violência de uma razão que se pretende única – e recusa, como não razão, outras modalidades ou procedimentos de racionalização, ampliando imensamente o território entregue à violência propriamente dita, dando razão à violência. Já o pluralismo justifica o dissenso e a diferença, a ruptura e a tensão entre “razões”, “opiniões”, “argumentos”, mas legitima com isso a liberdade democrática de ser e pensar diferente, a liberdade de divergir mas também de estabelecer acordos: provisórios, sim, instáveis, sim – porque humanos, contingentes, históricos, no tempo.
As análises de Perelman ajudam a equacionar a relação entre unidade/pluralidade e entre continuidade/ruptura no nível metodológico. Mas prudentemente se limitam a constatar a existência de dois modelos que se alternam ou se confrontam na cultura ocidental. No máximo, assinalam que esses modelos parecem ganhar maior força e aceitação na dependência de diferentes momentos políticos: o monista em situações de centralização de poder, o pluralista nas fases libertárias e de poder descentralizado.
Tentar ir além é arriscar-se a vôos mais ambiciosos, a hipóteses filosóficas mais ousadas.
É, por exemplo, ver na proposta monista (em suas diversas acepções) a constante revivescência do mítico e do teológico, sob vários disfarces, ali mesmo onde deveria ser o território da filosofia e da ciência. É entender a filosofia como um permanente from Religion, mas não como a laicização do mítico que já teria ocorrido a partir do século VI a.e., na Grécia[10]. É vê-la como permanente tensão – resistência ou entrega – ao Absoluto, ao Olimpo, a Zeus. É vê-la como permanente Prometeu – acorrentado ou liberto e rebelde. É vê-la angelical, dócil – ou luciferina.
Nessa perspectiva, torna-se razoável repensar- a hipótese de Zafiropulo sobre a filosofia grega enquanto reelaboração, em quase todo o seu percurso, de um mito – o “mito grego”[11] do qual ela teria apresentado diversas glosas. Esse mito se basearia justamente na unidade fundamental de todas as coisas, na harmonia do Todo – ainda que harmonia oculta, como em Heráclito de Éfeso -, a englobar todas as oposições percebidas. Poucos, como os sofistas e seus descendentes, teriam, segundo Zafiropulo, escapado desse mito subjacente e totalizador. E escapado pelos relativismos e pela defesa da multiplicidade e da descon tinuidade.
Nessa perspectiva, é possível também entender melhor certas reflexões de Bachelard a respeito da ruptura representada pelo “novo espírito científico” em relação à ciência anterior, graças à física quântica, à teoria da relatividade, à química não-lavoisieriana, às geometrias nãoeuclidianas. A derrocada da noção de substância – de forte e antiga sustentação metafísica -, a instauração de “racionalismos setoriais”, a desabsolutização da noção de espaço-tempo etc. vieram exatamente se opor, de maneira frontal, ao mito da Unidade. E a suas decorrências, como a noção de determinismo, de objetividade pura etc. A noção de Determinismo (a maiúscula reverencia seu estatuto divino), por exemplo, “baixou do Céu sobre a Terra”, como mostra Bachelard, pois se sustenta numa astronomia ligada, desde sua origem pitagórica, a uma religiosidade salvacionista, que faz do céu a pátria das almas e da ciência astronômico-matemática o caminho da salvação: o caminho de volta à pátria celeste. Uma astronomia que conserva, portanto, vínculos profundos com o “mito grego”, sendo mesmo uma de suas principais modulações científicas. É o que Bachelard parece indicar, quando escreve:
Se quiséssemos retraçar a história do Determinismo, seria preciso retomar toda a história da Astronomia. É na profundeza dos Céus que se delineia o Objetivo puro que corresponde a um Visual puro. Se alguma coisa é fatal em nossa vida, é porque primeiro uma estrela nos domina e nos, arrasta. Há portanto uma filosofia do Céu estrelado. Ela ensina ao homem a lei física nos seus caracteres de objetividade e de determinismo absoluto. Sem essa grande lição de matemática astronômica, a geometria e o número não estariam provavelmente tão estreitamente associados ao pensamento experimental; o fenômeno terrestre tem uma diversidade e uma mobili dade imediatas demasiado manifestas para que se possa encontrar nelas, sem preparação psicológica, uma doutrina da Objetividade e do Determinismo. O Determinismo desceu do Céu sobre a Terra.[12]
O Visual puro, correspondente ao Objetivo puro, de que fala Bachelard, não é aquele olhar angelista de uma razão (des)humana que se pretende coincidente com o Olhar Eterno, com o olhar do Grande Geômetra do universo, e que por isso contempla o Um ou, melhor, se contempla a si mesmo como se fora Unidade Absoluta? Não é se opondo a essa “filosofia do Céu estrelado”, em sua aparente fixidez, que a ciência contemporânea se constrói e as filosofias mais representativas de nossos dias se querem como “filosofias terrenas”, assumindo o partido da multiplicidade, da diferença e da ruptura características da terra dos homens? E não é assim que os pluralismos – inclusive o metodológico – significam dessacralização e humanização da cultura?
Se for verdade, então todo um árduo trabalho está sugerido: rever a história da filosofia enquanto a longa história de uma luta na qual a contingência, a concretude e a historicidade do humano defendem sua moira – sua província, seu destino – dos assédios de absolutos tirânicos. Esse trabalho terá inclusive de desmascarar as armadilhas da própria linguagem – como ressaltam Francis Bacon e Bachelard -, derrubando ídolos e obstáculos que nela existem. Em particular, terá de lidar com a sedução de metáforas extraordinariamente fortes e recorrentes, de origem pré-filosófica e a serviço do mito da Unidade. Assim a metáfora da luz (unidade em expansão gradativa), que atravessa a filosofia e tem papel decisivo tanto em Platino quanto em Fichte; a metáfora da árvore (unidade em crescimento e ramificação), tão valiosa para Descartes e que ressurge, escamoteada, na classificação das ciências de Comte; a do rio (unidade que flui, sempre outra-e-mesma), fundamental a Heráclito tanto quanto a Bergson… Essas imagens extremamente persuasivas, inclusive por sua encantação poética, são, em muitos casos, as próprias metáforas-raízes que sustentam e inspiram toda uma construção filosófica.[13]Não são simples ornatos da linguagem: são daquelas imagens que, como reconhece Bachelard, “seduzem a razão”.[14]
Endossado pela religião (monoteísmo) e pelo mito (como o “mito grego” a que se refere Zafiropulo), o certo é que o monismo – e uma de suas consequências, o continuísmo – dominaram a filosofia, constituindo para muitos as conclusões finais de um conhecimento propriamente filosófico, tanto mais filosófico quanto mais reconquistasse o ponto de vista da Unidade. Mesmo quando essa unidade é entendida como dotada de um processo de transformação, mesmo quando é entendida de forma dinâmica, mesmo quando se desdobra no tempo – a natureza contínua desse processo ou dessa história resgata a unidade fundamental, impede que ela se fragmente em multiplicidade efetiva: a multiplicidade permanence como constituída por figurações ou disfarces provisórios do Mesmo. O continuísmo impede que o tecido do Um se rasgue. Apesar do tempo – e justamente em função de uma concepção continuísta da temporalidade – permanece inconsútil a túnica do ser e do conhecer. E os episódios, os acontecimentos, as histórias fundem-se numa só História. Marcada pela necessidade, por uma lógica interna que elimina a contingência enquanto contingência: a Lógica, a Lógica do Absoluto . [15]
É o que podemos verificar melhor quando examinamos dois modelos continuístas vigorosos e imensamente influentes: o de Aristóteles e o de Hegel.
Um dos aspectos mais marcantes da filosofia de Aristóteles é seu senso de historicidade. O conhecimento da realidade, em todos os seus níveis, exige o ponto de vista genético. Isso porque os vários tipos de seres e as diversas formas de conhecimento estão animados pelo movimento, pela passagem da potência ao ato. No plano físico, a cadeia motor/móvel estende-se até o Primeiro Motor, imóvel, pura atualidade, causa última, final, modelar, dos movimentos que se encadeiam numa hierarquia cosmológica de base metafísica.
Nos primeiros capítulos de sua Metafísica, Aristóteles descreve esse processo universal regido pelo princípio da potência que aspira ao ato, no que diz respeito ao homem individual e à formação do mundo da cultura. Impulsionado pelo desejo de conhecer, o homem vai gradativamente passando do nível das sensações e da memória, que permite acúmulo de experiências e previsões, para o da arte; e afinal pode passar da prática à teoria – e especula e faz ciência. Analogamente, no âmbito da sociedade, o processo vai satisfazendo, paulatinamente, as diferentes necessidades humanas: primeiro, as imperiosas necessidades da existência; depois as correspondentes às exigências de gozo e embelezamento da vida: afinal aquelas que representam a forma mais desinteressada e pura de contemplação. Só então surge a contemplação pura ou teoria: quando os homens – alguns homens – conseguem condições de ócio (otium) que lhes permitem a dedicação à ciência teórica e à filosofia, estimulados pelo espanto e pela dúvida. Ambos os processos – o individual e o cultural – são, assim, graduais, feitos de passagens, atualizações de potencialidades[16].
A aplicação da teoria do movimento enquanto passagem da potência ao ato produz, no campo da cultura e particularmente do conhecimento, consequências importantes:
A concepção da unidade do mundo da cultura – tecida pela teoria do movimento – leva Aristóteles a afastar o caráter paradoxal e escandaloso das ideias filosóficas, caráter defendido por cínicos ou estóicos. Para Aristóteles, o verdadeiro conhecimento filosófico não rompe propriamente com a mentalidade vulgar, antes atualiza suas potencialidades. Por resultar do progressivo amadurecimento de outras formas de conhecimento menos completas, deve estar alicerçado no consensus gentium et temporum, consenso que se vai constituindo numa convergência ao longo da história, até ser formulado enquanto aristotelismo. Daí, inclusive, a importância que Aristóteles atribui aos provérbios. Como restos da “filosofia” mais antiga da humanidade, eles são frequentemente chamados a corroborar, como argumentos de reforço, teses aristotélicas. Assim, ao mesmo tempo que é afastado o escândalo do novo, é apresentada a verdade – em sua formulação aristotélica – como expressão acabada, plena, atualizada, do que estaria, incompleta mas potencialmente, na sabedoria de toda a humanidade. Ou seja: a valorização da história da cultura e do conhecimento – concebida aristotelicamente – serve para mostrar que o aristotelismo é a meta, o tetos, para o qual converge toda a história do pensamento precedente.[17] O historicismo de Aristóteles está, desse modo, todo a serviço da metafísica que o sustenta e que nele, ao mesmo tempo, se confirma. Por isso também é que os motivos lógicos que levam Aristóteles a ser o iniciador da história da filosofia sistematizada exigem, coerentemente, que sua história gravite em torno dos princípios de sua metafísica e se torne história do aristotelismo.[18]
O modelo historicista de Hegel pode parecer, à primeira vista, inteiramente diferente do de Aristóteles. Argumentar-se-á: correspondem a momentos históricos distanciados por séculos e séculos, além de estarem sustentados por lógicas diversas. De fato. Mas nem por isso se está impedido de descobrir entre eles profundas afinidades, como mostra, por exemplo, Rodolfo Mondolfo.[19]
Em Hegel, o processo histórico é entendido como processo dialético: como constituído por negações e negações de negações. O que – vale ressaltar – não significa que o negativo seja sua conclusão: o processo dialético possui “um resultado positivo, porque tem um conteúdo determinado ou porque seu resultado não é o nada vazio, mas a negação de certas determinações contidas no resultado porque precisamente não se trata de um nada imediato, mas de um resultado”.[20] Resultado positive, portanto. Mesmo porque Hegel considera que “a filosofia não tem por objetivo simples abstrações ou ideias formais, mas somente pensamentos concretos”.[21] O movimento dialético atua no sentido expresso pelo verbo alemão aufheben, que possui dois significados opostos – “eliminar” e “conservar”-, aglutinados na expressão “superar”. A descrição do puro processo dialético – do ser, da essência, do conceito – é objeto da Lógica de Hegel. Mas é na Fenomenologia do Espírito que Hegel traça a efetivação desse processo enquanto história. Essa história é, porém, a realização do Espírito puro, que se realiza primeiro em natureza, depois em espírito objetivo (constituído pelo mundo da cultura), chegando afinal a espírito absoluto. É, assim, a História: História de um único verdadeiro protagonista disfarçado em inúmeros personagens, História de um ardilo so Espírito que joga consigo mesmo um jogo de incontáveis espelha mentos, em direção à autoconsciência. Naturalmente isso faz com que a História seja um processo necessário, sem contingências reais. Mas faz também com que ela seja sumamente valorizada, pois é historicamente que o Espírito se desdobra em itinerário do em-si ao para-si. Só que, na medida em que esse itinerário é único – pois do Absoluto que retorna a si mesmo -, ele é necessariamente contínuo, sem ruptura. Se nele vemos ruptura e multiplicidade é porque ainda não penetramos na lógica que o conduz: no nível lógico retece-se a unidade que os sentidos não constatam, os fatos se interligam, os acontecimentos e os momentos se atam na criação do manto temporal do Espírito.
Nessa grande odisseia, nesse grande romance de retorno e realização de si mesmo – que faz do Espírito um Ulisses ou um Julien Sorel cheio de ardis – o capítulo final, o happy end, é construído na e pela filosofia. Pois é através da filosofia, em aproximações históricas necessariamente concatenadas pois logicamente sustentadas, que se cumpre o destino do Espírito: a autoconsciência. Ou seja, é progressivamente, continuamente, ao longo da história da filosofia, que esse destino final se cumpre. Daí a fundamental importância que Hegel atribui à história da filosofia: a filosofia é essencialmente histórica, enquanto dirigida ao cumprimento de seu fim, pelo menos até o ponto terminal de seu périplo – ali, no hegelianismo, onde o espírito se reencontra consigo mesmo, na apoteose da autoconsciência.
Como mostra Mondolfo, a moldura dentro da qual a história da filosofia é concebida por Hegel faz com que cada sistema filosófico tenha um lugar necessário dentro da sucessão dialética. E isso leva a uma série de consequências.
- no limite, a exclusão da existência do erro – já que cada tese ou sistema filosófico representa uma necessidade interior do desenvolvimento filosófico naquele ponto (daí neo-hegelianos como Gentile negarem claramente a existência do erro);
- a identificação da série lógica e da série histórica leva também à conclusão de que em cada ponto do desenvolvimento histórico deve se apresentar uma única ideia, um único princípio, um único sistema, excluindo a possibilidade da pluralidade de sistemas concomitantes (o que contraria o que verificamos, de fato, na história real);
- torna-se logicamente impossível (nessa lógica unidirecional do absoluto) o retorno histórico de sistemas ou escolas que pertenceram a um tempo anterior;
- além disso, a história da filosofia – para ser a efetivação temporal dos princípios da Lógica – deveria necessariamente começar por um sistema que afirmasse a ideia de ser, depois um que afirmasse o não-ser, depois outro que afirmasse o devenir (o que não é confirmado pelos historiadores da filosofia);
- seria necessário ainda que se pudesse reduzir cada sistema a uma ideia central, a um esquema básico – indicador da distância em que ali se está do “grande final”;
- finalmente, todas as filosofias seriam a preparação histórica do sistema hegeliano, cujo arcabouço está posto na Lógica – o que estabelece um Destino para o desenvolvimento do Espírito e a consequente finitude do processo histórico.
Assim, como em Aristóteles as filosofias que o precedem são encaminhamentos para o aristotelismo, em Hegel toda a filosofia anterior flui dialeticamente até desembocar necessariamente no hegelianismo. Por isso, é aristotelizando os predecessores que Aristóteles faz história da filosofia enquanto história de sua filosofia, do mesmo modo que é hegelianizando as filosofias anteriores que Hegel faz história da (sua) filosofia. A influência do aristotelismo enquanto filosofia da história da filosofia antiga difunde-se e fortifica-se – marcando profundamente grande parte da historiografia – graças aos doxógrafos, que registraram, já na Antiguidade, as opiniões dos filósofos utilizando o filtro dos conceitos aristotélicos. Donde a necessidade, para os historiadores modernos, de resgatar as teses originais desses pensadores sempre através da discussão com as “deformações” aristotelizantes.[22] No caso de Hegel, é todo o pensamento filosófico, dos antigos a seus contemporâneos, que sofre a “distorção” hegelianizante. Dessa distorção somente se sai saindo-se do hegelianismo: substituindo-o, como faz Marx, por outra filosofia da história.
De qualquer modo, aristotelismo e hegelianismo são duas das mais poderosas possibilidades filosóficas de se descobrir um sentido para a história e, consequentemente, para a história da filosofia. Desde, é claro, que se parta dos pressupostos da unidade e da continuidade: da existência de uma história (a unir histórias aparentemente dispersas no tempo e no espaço), de uma filosofia (a integrar sub-repticiamente todas as propostas filosóficas sucessivas ou simultâneas), de um mundo da cultura (a englobar todas as variantes culturais). Com isso, multiplicidade, dissenso, conflito acabam reduzidos a “acidentes” (em oposição à substância), ou a mero artifício dialético provisório utilizado pela unidade subjacente do Espírito. Aristotelismo e hegelianismo têm isto em comum: tendem a unificar num mesmo sentido e segundo a mesma razão todo o passado, visto como conjunto de antecipações ou preparações da, Verdade única (expressa afinal em aristotelismo ou em hegelianismo). Por isso mesmo, não conseguem lidar adequadamente com o novo por vir. Explicam o antes subordinando-o ao agora (do aristotelismo ou do hegelianismo), mas não conseguem legitimar o depois (do aristotelismo ou do hegelianismo), sobretudo o depois que diz “não” ao aristotelismo e ao hegelianismo. Ou seja: não conseguem lidar com a infinitude da história e com o futuro enquanto outro, enquanto diferente, enquanto novo.
Com efeito, o que pode vir depois que se chegou ao Fim? Depois do aclaramento final, do término do jogo pelo seu desvendamento em termos filosóficos, o que ainda pode advir no campo da filosofia? Logicamente, apenas a repetição da Verdade desvendada: ou seja, a indefinida permanência do aristotelismo e do hegelianismo já agora enquanto ortodoxia tendente a imobilização. Nunca – mas é justamente o que a história (não a do Absoluto) revela – o ressurgimento dos “recalcitrantes”, dos que resistem à Luz após a sua revelação plena: os antiaristotélicos depois de Aristóteles, dos anti-hegelianos depois de Hegel. A persistência dos “recalcitrantes” levanta a suspeita de que há neles algo de maligno, algo de errado não apenas no sentido lógico, mas também no sentido ético e mesmo teológico. Pois, resistindo à Luz, parecem comprometidos com a Treva, com o Mal. E é assim que o monismo continuísta revela sua sustentação monoteísta: já Sto. Anselmo, no Proslógio, caracterizava como “insensato” aquele que não se convencia com seu argumento ontológico sobre a existência de Deus, fonte e sustentação da Verdade Absoluta. E, dando um passo adiante, La Bruyère afirmava que o fato de existirem pessoas que negam a existência de Deus “prova somente que há monstros”.[23] “Insensato”, “monstruoso”, “insano”, “anormal”, “demoníaco” – esses adjetivos revelam a fácil passagem que geralmente se faz do alógico ao patológico e deste à condenação teológica, dos “recalcitrantes”, daqueles que recusam a Verdade Única. E diante dessa recusa chega então a hora em que, em nome do monismo, como mostrou Perelman, “os que resistem deveriam ser reeducados e, se não se deixam convencer, deverão ser punidos por sua obstinação ou por sua má vontade”. Ou, ao contrário, chega o momento de romper com o esquema monista-continuísta, para tornar possível a infinitude da história e dentro dela legitimar as histórias e as razões múltiplas e frequentemente divergentes. Para que o dissenso seja visto não como blasfêmia ou heresia – como satânica resistência do singular ao Universal, do contingente ao Necessário, do relativo ao Absoluto, do temporal ao Eterno, do homem a Deus -, mas como resultante de inevitáveis diferenças entre os homens. Como embate entre humanos interesses, humanos valores, humanos argumentos, humanas “razões setoriais”.
Essa reversão pressupõe a humanização da razão e do conceito de verdade. Consequentemente, pressupõe a modéstia, a aceitação da moira humana e a recusa da hybris, da desmesura, na direção já apontada por Empédocles. E que Nietzsche retoma, ao escrever:
Tudo veio a ser; não há fatos eternos, assim como não há verdades absolutas. Portanto o filosofar histórico é necessário de agora em diante e, com ele, a virtude da modéstia.[24]
A reversão passa necessariamente pela relativização do Absoluto, como mostra Feuerbach em sua crítica à filosofia de Hegel. Num texto de 1839,[25] o “recalcitrante” Feuerbach desmonta o Absoluto em nome do qual falava seu ex-mestre e revela inclusive seu caráter de criação ficcional: sua construção textual, literária, romanesca.
Vale a pena seguir alguns passos da análise feuerbachiana:
De saída, uma comparação: entre Hegel e Salomão. Enquanto Salomão não via nada de novo sob o sol, a filosofia de Hegel parece só ver o novo sob o sol; ou seja: “enquanto o oriental perde de vista a diferença por força da unidade, o ocidental esquece a unidade por força da diferença”. Em Hegel existiria o senso da alteridade e da diversidade até ao delírio da imaginatio luxurians. Por isso, ao orientalismo da Filosofia da Identidade, como em Schelling, a filosofia de Hegel contrapõe o elemento da diferénça. E por uma razão que Feuerbach apreende com agudeza: a filosofia hegeliana está marcada pela intuição do tempo, não pela do espaço; o sistema hegeliano conhece apenas subordinação e sucessão, ignorando a coordenação e a coexistência; falta-lhe o senso da totalidade simultânea da natureza. Mas não é só, podemos acrescentar às observações de Feuerbach: aquela imperante intuição do tempo é a de um tempo contínuo – o que tende, mesmo na linha da sucessão, a unir o tempo e a aplacar as diferenças de suas criações. O sol ilumina diferenças que pairam na superfície de um mesmo fluxo temporal, diferenças por enquanto… até que a identidade fundamental por fim se desmascare.
E, de fato, Feuerbach denuncia que a alteridade e a diferença acabam vencidas pela totalidade integradora:
Sem dúvida o último momento do desenvolvimento é sempre a totalidade, que integra em si os outros momentos; mas como constitui ele próprio uma existência temporal determinada, e comporta por isso o caráter da particularidade, não pode integrar em si as outras existências sem esvaziá-las do sangue que faz a vida das existências independentes, e sem despojá-las assim da significação que têm somente em sua liberdade absoluta[26].
A identificação de uma verdade com a Verdade, reconhece Feuerbach, põe fim à história. A identificação de uma filosofia com a Filosofia, torna seu anunciador um Messias, um Dalai-Lama a trazer “um Juízo Final especulativo”. Pois, “a espécie em sua plenitude encarnando-se em uma individualidade única seria um milagre absoluto, uma supressão arbitrária de todas as leis e de todos os princípios da realidade – seria, com efeito, o Fim do Mundo”.[27] Inevitavelmente: “quando a própria divindade entra na história, a história cessa”.[28]
E é a divindade – outra vez a Deusa Razão, identificada agora com a lógica hegeliana – que Feuerbach desvenda na filosofia de seu exmestre, nessa filosofia que é uma “mística racional”.[29]
E mais: a filosofia de Hegel é “o sistema mais perfeito que já apareceu”. Porém, reconhece Feuerbach, “o pensamento sistemático não é o pensamento em si, o pensamento essencial: é o pensamento que se expõe”. E, exposto, é que o pensamento adquire o tempo da sucessão, tempo da narrativa, tempo que não é nem do próprio pensamento nem da realidade:
Quando exponho meus pensamentos eu os transponho no tempo; o que em mim é simultaneidade, julgamento dominando a sucessão, torna-se então sequência temporal. O que devo expor eu coloco como não existindo, faço nascer diante de meus olhos, faço abstração do que ele é antes de ser exposto.[30]
Ou seja: na medida em que “todo sistema é expressão”, que toda filosofia sistemática – construída em torno de premissas que a unificam – é “exposante”, ela é fatalmente dramática, teatral, “em oposição ao lirismo do pensamento material voltado para si mesmo”. Mas, por isso mesmo, porque está voltada para a demonstração de que é o único verdadeiro, esse pensamento mediato e formal, convicto de si e estruturado na comunicação coagente, “mata o espírito de descoberta”.[31] Eis por que – queixa-se o pensador e o ex-aluno – “Hegel faz tudo entrar na exposição, faz abstração da preexistência da inteligência, não faz apelo à inteligência que está em nós”.[32] Feuerbach reivindica ar um tratamento isonômico, que colocasse em paridade mestre a discípulo, a partir de fçmtes comuns de conhecimento, como na relação Empédocles/Pausânias. Ao contrário, a seus olhos, o ex-mestre, se “é o artista filosófico mais perfeito”[33] devido à construção filosófica que realiza, paira acima, distante e autoritário, como arauto do Absoluto, apresentando sua voz como a voz da Verdade. Numa assimetria em relação aos “mortais” que lembra a Deusa de Parmênides. Sua lógica totalizadora – reconhece o arguto e queixoso ex-aluno – é feita não só de liames dialéticos, mas também de simulação e jogo. Pois, estabelecendo uma contradição “entre pensa mento e escrita”,[34] Hegel não escreve o que realmente pensa; antes, sonsamente, faz de conta que pensa, ao escrever, aquilo que já está estabelecido como verdade desde o início. Por exemplo:
… A alienação (Entausserung) da ideia é, por assim dizer, apenas uma simulação; ela faz de conta que se toma a sério; ela joga. A prova decisiva é o começo da filosofia da Lógica, cujo começo deve ser o começo da filosofia em geral. Começar, como ela o faz, pelo ser, não é senão puro formalismo, pois o ser não é o verdadeiro começo, o verdadeiro termo primeiro; poder-se-ia igualmente começar pela ideia absoluta, isto que antes de escrever a Lógica, ou seja, antes de ter dado a suas ideias lógicas uma forma de comunicação científica, a ideia absoluta já era para Hegel uma certeza, uma verdade imediata. A ideia absoluta (a ideia de absoluto) está infalivelmente certa de ser ela própria a verdade absoluta; pressupõe-se a si mesma como verdadeira; o que ela coloca como outro pressupõe já, por essência, a ideia. A prova é, assim, apenas uma prova formal. A ideia absoluta era uma certeza absoluta para o pensador Hegel, mas para o escritor Hegel ela era uma incerteza formal.[35]
Eis por que, reconhece ainda Feuerbach, há uma necessidade supérflua comandando todo o método hegeliano:
A expressão dessa necessidade supérflua, dessa imprescindibilidade supérflua, ou dessa superfluidade indispensável é o método hegeliano; porque o começo é o fim, e o fim o começo; porque o ser já é a certeza da ideia; porque o ser é apenas a ideia em sua imediatez; porque o não-saber de si da ideia no começo é, do ponto de vista da ideia, apenas um não-saber irônico. A ideia fala outra coisa em relação ao que pensa; diz: ser, diz: essência, mas, ao fazer isso, é somente em si mesma que ela pensa.”[36]
Na primeira metade do século XX, a oposição entre continuísmo e descontinuísmo ressurge com toda nitidez, como núcleo da divergência entre dois grandes pensadores franceses: Henri Bergson e Gaston Bachelard. Bergson é o filósofo da duração, entendida como continuidade, como sucessão qualitativa sutil e nuançada. Sua concepção de durée parte do nível psicológico e das críticas que faz às psicologias materialistas e mecanicistas de seu tempo. Mostra que tais psicologias referemse tão-somente à superfície da vida psicológica. Permanecendo no “eu superficial”, podem tratá-lo como uma realidade espacializada e quantificável. Mas além desse eu de superfície – eu pragmático, voltado para o exterior e para a sobrevivência – existiria um “eu profundo”, puro fluxo, pura duração. E se os conceitos, fragmentados e estáticos, podem caber à apreensão do eu superficial1 somente a intuição atinge o dinamismo contínuo do eu profundo. Assim, para Bergson, no campo da subjetividade, a relação continuidadede/descontinuidade e a relação unidade/multiplicidade dizem respeito a duas instâncias do eu. Só que a unidade e a continuidade é que definem o eu mais verdadeiro: o eu que dura, que se estende não no espaço mas no tempo (entendido como contínuo). Daí o papel fundamental que atribui à memória, particularmente ao que chama de mémoire-souvenir (em oposição à mémoire-habitude). Escreve:
Não há estado d’alma, por mais simples que seja, que não mude a todo instante, pois que não há consciência sem memória, não há continuação de um estado sem a adição ao sentimento presente da lembrança dos momentos passados. Nisso consiste a duração. A duração interior é a vida contínua de uma memória que prolonga o passado no presente[37].
Mas Bergson não pára aí. Acaba por estender a duração à realidade toda, como estofo dinâmico de uma realidade que é obra de uma evolução criadora, movida pelo élan vital. Com isso, generaliza a supremacia do contínuo (interior, fundamental) sobre o descontínuo e o múltiplo (aspectos superficiais gerados pela coagulação do élan contínuo, puro jorro, puro ímpeto, mobilidade pura).
Justamente a essa concepção se opõe Bachelard, rejeitando-a implacavelmente nos dois terrenos: no subjetivo e no objetivo.
O descontinuísmo de Bachelard manifesta-se claramente na ruptubra que reconhece existir entre pensamento científico e pensamento não científico. Não é prolongando o “saber” comum, a mentalidade corrente, que se chega – como afirmava Aristóteles – às formulações teóricas da ciência, sobretudo da nova ciência, do “novo científico” inaugurado pela física quântica, pela teoria da relatividade cie Einstein, pela química atual ou pelas novas geometrias. Entre aquele “saber” e a ciência há ruptura. Ao longo de várias de suas obras, Bachelard exemplifica o que entende por essa ruptura:
Não há (…) nenhuma continuidade entre a noção de temperatura do laboratório e a noção de “temperatura” de um núcleo. A linguagem científica é, por princípio, uma neolinguagem. Para se ser entendido na cidade científica, é preciso falar cientificamente a linguagem científica, traduzindo os termos da linguagem comum em linguagem científica. Quando atentamos para essa atividade de tradução frequentemente mascarada, percebemos que há na linguagem da ciência grande número de termos entre aspas. A colocação entre aspas poderia ser confrontada com a colocação entre parênteses dos fenomenólogos. Revelaria, essa colocação entre aspas, uma das atitudes específicas da consciência da ciência. Ela é solidária de uma declaração de consciência de método. O termo entre aspas eleva o tom. Toma, acima da linguagem comum, o tom científico (…) Podemos dizer que, do ponto de vista do epistemólogo, é signo de uma ruptura, de uma descontinuidade de sentido, de uma reforma do saber[38].
Essa descontinuidade faz com que a ciência seja rejeição do consenso dos homens e dos tempos, já que surge de um rompimento, como instauração de algo novo que não estava contido potencialmente no passado nem preparado pela memória cultural. E que está fundamentada, em Bachelard, numa concepção de tempo frontalmente oposta à bergsoniana.
Em L’intuition de l’instant (1932), obra básica para a compreensão das duas vertentes de seu pensamento – a epistemológica e a referente à imaginação poética -, Bachelard recusa a concepção bergsoniana de tempo no nível da psicologia e no nível da física.
No nível psicológico, mostra – em apoio às ideias expostas por Roupnel em Siloe – que o tempo possui apenas uma realidade: a do instante. E argumenta:
Se meu ser somente toma consciência de si no instante presente, como não ver que o instante presente é o único domínio em que a realidade se comprova?[39]
A descontinuidade essencial do tempo confere, sem dúvida, caráter dramático ao instante. Mas é nesse átomo temporal que reside a atenção, que está sediada a determinação da vontade: o instante é o instante da decisão e da criação. Bergson, ao contrário, falando de duração contínua e apelando para a função unificadora da memória, pôde fazer uma filosofia da ação, mas não uma filosofia do ato, particularmente do ato criador. E é justamente esse ato criador – na ciência e na arte – que Bachelard procura entender e justificar. Para Bergson, o instante presente seria “um puro nada que nem chega a separar realmente o passado do futuro”.[40] Mas seu engano estaria justamente em considerar a duração como dado primário e imediato da consciência, enquanto o instante seria não mais que uma falsa censura. Na verdade, contrapõe Bachelard, o único imediato e o único absoluto é o instante; a duração é construção, obra de “historiador”:
O espírito, em sua obra de conhecimento, apresenta-se como uma fileira de instantes nitidamente separados. É ao escrever a história deles que artificialmente, como todo historiador, o psicólogo aí coloca o liame da duração.[41]
Essa ideia de que a continuidade é um artifício da escrita, do texto, da exposição, é fundamental e recorrente em Bachelard. E faz lembrar um dos aspectos que vimos da crítica de Feuerbach a Hegel. Mas em Bachelard ela está ligada aos obstáculos epistemológicos que se abrigam no interior da linguagem corrente e que precisam ser suplantados para que a linguagem científica seja construída. Assim, mesmo que a concepção einsteiniana sobre o tempo físico venha confirmar a tese da descontinuidade e afirmar o instante como absoluto, é preciso reconhecer que a linguagem que usamos no dia-a-dia permanece cúmplice do continuísmo:
Você não pode falar sem empregar todos os advérbios, todas as palavras que evocam o que dura, o que passa, o que se espera. Você é forçado, na sua própria discussão, a dizer: longamente, enquanto, durante. A duração está na gramática, na morfologia tanto quanto na sintaxe[42].
Aqui tocamos num dos pontos centrais do pensamento de Bachelard e mesmo do descontinuísmo filosófico, revigorado em nossos dias e, em grande parte, tributário da obra desse filósofo do “não”. Ponto onde se alimenta não apenas sua polêmica com Bergson, mas também com a psicanálise freudiana, com os “psicólogos” em geral e com os “historiadores” – todos aqueles que tendem a compreender o presente pelo passado e se deixam arrastar pelas artimanhas da memória. O lema de Bachelard é exatamente o oposto:
Será necessário, (…) do ponto de vista da própria vida, tentar compreender o passado pelo presente, longe de se esforçar incessantemente por explicar o presente pelo passado[43].
Assim age o “novo espírito científico”, como demonstra Bachelard em diversas obras: iconoclastamente. Aceitando a solidão do instante – que pode ser fecunda, se for instante de criação científica ou artística. Aceitando a dramaticidade do instante, único, irrepetível – mas só por isso mesmo aberto para o futuro e para o novo.
O tempo inapelavelmente estilhaçado em instantes descontínuos – eis uma das mensagens dos pluralistas de hoje, que procuram encontrar o sentido aqui mesmo: no nível dos acontecimentos que tumultuam a terra dos homens, sem apelo a absolutos transcendentes ou a unidades ocultas nas profundezas.[44] É claro que sonhos de unidade e de continuidade podem e devem continuar alimentando a imaginação poética e artística, ali onde outras noções alijadas do território da nova ciência, como a de substância, persistem. Ali, no reino dos devaneios, aberto a todos os sonhos e à reflorescência de todos os mitos. Mas, no domínio da ciência, mostra Bachelard, se está noutra região: se está no reino da vigília, ou, pelo menos, faz-se força para nele penetrar. Por isso mesmo, nesse reino não cabe o sonho de permanência e de continuidade. Nele, sou o limite de minhas ilusões perdidas”.[45]
Nele, somos frequentemente sacudidos do torpor pelas rupturas, pelas desilusões. Nele – que é um campo de combate – trocamos o sonho místico-metafísico da alma imortal pela pluralidade e pela mudança na mortalidade. O que pode ser também uma forma de felicidade, de apenas humana felicidade, como ensina Nietzsche:
Quando ouvimos falar os atirados metafísicos e ultramundanos, nós, os outros, sentimos sem dúvida que somos nós os “pobres de espírito”, mas também que é nosso o reino celeste da mudança, com primavera e outono, inverno e verão, e que deles é o mundo de trás – com suas cinzentas, gélidas, infinitas névoas e sombras. Assim falava alguém de si para si, em uma caminhada ao sol da manhã: alguém em quem, ao estudo da história, não somente o espírito, mas também o coração sempre se transforma de novo e que, ao contrário dos metafísicos, se sente feliz por albergar em si, não uma “alma imortal”, mas muitas almas mortais.[46]
Notas
- Aristóteles e a doxografia (de fundamentação aristotélica) serviram de base para a tradicional caracterização de cínicos, megáricos e cirenaicos como socráticos “‘menores”; como se representassem apenas um socratismo empobrecido ou sem maior fôlego filosófico, e não outra alternativa, não-platônica e não-aristotélica para a filosofia. ↑
- Em relação aos gregos, veja-se, em Platão, o mito do Fedro (246d/257b) sobre as almas que “‘caem” na prisão dos corpos, depois de terem contemplado, seguindo o cortejo dos deuses, as essências eternas. ↑
- Sobre a forte presença do platonismo ao longo da história da filosofia e a dificuldade em se fazer a reversão de sua índole ascensional, a recolocação da questão do sentido e a revalorização dos “acontecimentos”, veja-se: Deleuze, G. Lógica do sentido, trad. bras., Ed. Perspectiva, São Paulo, 1982. ↑
- Em Platão, essa questão se coloca a partir da consideração do irracional matemático (cosem-medida-‘commo √2 e π), “escândalo” que abalara a aritmo-geometria pitagórica primitiva. A reformulação do conceito de ” um” (alogon) constitui o sub solo da evolução da matemática no tempo de Platão, repercutindo em todas as instâncias de sua filosofia. (Veja-.se, particularmente: Michel, P.-H. De Pythagore à Euclide, Les Belles Lettres, Paris, 1950). ↑
- Parmênides de Eleia: Sobre a Natureza, 1, 24 em diante. ↑
- Escreve Empédocles em seu poema Sobre a Natureza: “… Mas agora examina de todos os modos possíveis de que maneira cada coisa se torna evidente, e não acredites mais em tua vista do que em teu ouvido, em teu ouvido que ressoa mais do que nas claras indicações de tua língua. Não recuses também confiança a teus outros membros, pelo que representam também de meio de conhecimento; mas toma conhe cimento de cada coisa da maneira que a torne clara” (frag. 3, 9/13, com base na trad. franc. de Zafiropulo, J. Empédocle d’Agrigente; Les Belles Lettres, Paris, 1953). ↑
- A primeira frase do poema de Empédocles é significativamente: “Escuta pois Pausânias, filho do prudente Anquitos!” (idem, frag. 1). Mais adiante, a advertência: “Vás aprender, porém não mais do que alcança a compreensão dos mortais” (idem, frag. 2, 9). A verdade se constrói, assim, no espaço delimitado pela comunicação entre homens e pelo alcance da medida humana. Cqm seu logos democrático, Empédocles prepara o diálogo socrático. Com Sócrates, o discípulo-auditor (Pausãnias) tornar-se-á discípulo-interlocutor. ↑
- Philia e Neikos, geralmente traduzidos por Amor e Ódio, são as duas “forças” cosmogônicas e cosmológicas que justificam o movimento e a mudança no universo, atuando contrariamente sobre as quatro raízes do todo (a água, o ar, a terra, o fogo), segundo os princípios complementares de junção e separação dos semelhantes. ↑
- Perelman, C. La phi/osophie du pluralisme et la Nouvelle Rhétorique, em Revue lnternationale de Philosophie n 127/128: “La Nouvelle Rhétorique/The New Rhetoric”, Librairie J. Vrin, Paris, 1979. ↑
- Comford, F. M. From Religion to Philosophy – a study in the origins of western speculation, Harpar & Brothers Publishers, New York, 1957. ↑
- Zaflropulo, J. Anaxagore de Clazoméne, Les Belles Lettres, Paris, 1948, pp. 87 e seg. ↑
- Bachelard, G. Le Nouvel Esprit Scientifique, Presses Universitaires de France, Paris, 1966, pp. 99/100; trad. bras. vai. “Bachelard”, cal. “Pensadores”, Abril Cultural, São Paulo, 1984, p. 140. ↑
- No sentido de root metaphors ou “arquétipos conceituais”, segundo Marx Black (Black, M. Modelos y metáforas, Editorial Tecnos, Madrid, 1966). ↑
- Bachelard, G. La formation de J’esprit scientifique, Librairie Philosophique J. Vrin, Paris, 1967, p. 78. ↑
- A grande originalidade da lógica dos estóicos (marginalizada pela preponderância histórica da lógica aristotélica) está justamente em permanecer inerente ao nível da contingência, ao nível dos acontecimentos. (Veja-se: Bréhier, E. diversas obras sobre o estoicismo; Deleuze, op. cit.) ↑
- Mondolfo, R. “La concepción historieis ta de Aristóteles”, em Problemas y métodos de investigacion de la filosofia; Eudeba, Buenos Aires, 1948/1960. ↑
- Gigon, O. “L’historicité de la philosophie chez Aristote”, em La philosophie de l’histoire de la philosophie, de vários autores, Librairie Philosophique J. Vrin, Paris, 1956, p. 104. ↑
- Pessanha, J.A. “Aristotelismo e historicidade”, em Boletim de História da Faculda de Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, ano V, n2 7, Rio de Janeiro, 1963, p. 83. ↑
- Mondolfo, R. “La concepción historicista de Hegel”, em op. cit. ↑
- Hegel, G.W.F. Précis de l’Encyclopédie des sciences philosophiques, trad. francesa de J. Gibelin; librairie J. Vrin, Paris, 1970, p. 75 § 82. ↑
- Idem. p. 75 § 82/2. ↑
- Veja-se, particularmente: Gueroult, M. “Le probléme de la légitimité de l’histoire de la philosophie”; Gigon, O. “L’historicité de la philosophie chez Aristote”, ambos em La philosophie de l’histoire de la philosophie; Librairie Philosophique J. Vrin, Paris, 1956. ↑
- Citado por Perelman, Ch. Rhétorique et philosophie; Presses Universitaires de Frances. 1952, p. 130. ↑
- Nietzsche, F. Humano, demasiado humano; trad. bras. de Rubens Rodrigues Torres Filho; vai. “Nietzsche”, cal. “Pensadores”; Abril Cultural, São Paulo,·1978, cap. 1, § 2, p. 92. ↑
- Feuerbach, L. “Contribution à la critique de la philosophie de Hegel”, em Manifestes philosopiques; trad. L. Althusser; Presses Universitaires de France, 1973. ↑
- Idem, p. 12. ↑
- Idem, p. 15. ↑
- Idem, p. 16. ↑
- Idem, p. 47. ↑
- Idem, p. 20. ↑
- Idem, p. 27. ↑
- Idem, p. 28. ↑
- Idem, p. 27. ↑
- Idem, p. 34. ↑
- Idem, pp. 34/35. ↑
- Idem, p. 35 ↑
- Bergson, H. “lntroduction à la métaphysique”, em La pensée et le mouvant; Presses Universitaires de France, Paris, 1950, pp. 200/201. ↑
- Bachelard, G. Le matérialisme rationnel; Presses Universitaires de France, Paris, 1953, p. 217. ↑
- Bachelard, G. L’intuition de l’instant, Editions Gonthier, Paris, 1932, p. 14. ↑
- Idem, p. 17. ↑
- Idem, p. 19. ↑
- Idem, pp. 39/40. ↑
- Idem, p. 20. ↑
- Veja-se: Deleuze, op. cit. ↑
- Bachelard, G. “ldéalisme discursif”, em Études; Librairie Philosophique J. Vrin, Paris, 1970, p. 97. ↑
- Nietzsche, F. op. cit., § 17, p. 130. ↑