1994

Merleau-Ponty: obra de arte e filosofia

por Marilena Chaui

Resumo

No pensamento de Merleau-Ponty, “o ser é o que exige de nós criação, para que dele tenhamos experiência”. Tal concepção insinua haver um entrelaçamento entre Arte e Filosofia. Somente depois do ato criador é que a experiência se torna possível.

Mas “que laço amarra num sentido único experiência, criação, origem e ser?Aquele que prende Espírito Selvagem e Ser Bruto. O espírito selvagem como “a atividade nascida de uma força – ‘eu quero, eu posso’ – e de uma carência ou lacuna que exige preenchimento significativo.” Diante de tal lacuna se pode compreender o artista enquanto criador e a criação enquanto via condutora à experiência.

A arte, fenômeno criador, exige a renúncia do sujeito de si mesmo, afim de que ele se veja e se reconheça como tal. “O ser bruto é o ser de indivisão, desconhecendo a separação entre sujeito e objeto, alma e corpo, consciência e mundo. […]. Ele é o invisível que faz ver porque sustenta por dentro o visível, o indizível que faz dizer por que sustenta por dentro o dizível, o impensável que faz pensar porque sustenta por dentro o pensável.”

O ser bruto e o espírito selvagem são condições essências, por meio das quais vai se dá o rompimento com a tradição. Buscá-los, “é desamarrar os laços que amarravam o pensamento à tradição filosófica e recomeçar a interrogação, interpelando, de um, lado, as obras filosóficas para nelas encontrar as questões que as fizeram nascer e viver em seu tempo e sua hora, mas por outro, lado, interpelando a obra de arte como abertura para aquilo que a filosofia e a ciência deixaram de interrogar ou imaginaram haver respondido.”

Torna-se necessário questionar, tanto a filosofia, quanto a arte. É justamente com essa proposta de crítica e questionamento que aparecem o ser bruto e o espírito selvagem. Porém, de um lado é preciso romper com a tradição filosófica, por outro é preciso ter o cuidado para não se cair no intelectualismo.

Em Marilena Chauí, a obra de arte é entendida como interminável, assim como toda resposta a uma questão que suscita novas questões que requerem novas respostas, num jogo dialética. A obra de arte será sempre aberta, nunca se fecha. Sair de si e entrar no mundo para estar em constante contato com ele é como uma iniciação ao mistério do próprio mundo. Há uma união entre o ver e o mover-se , embora o movimento apareça como posterior à visão. O movimento enquanto resultado de um processo de experiência. O corpo como mediador entre o mundo e o próprio artista. Como resultado dessa sensibilidade que o indivíduo possui perante as coisas tem-se a obra de arte.

 


DESFAZENDO AS AMARRAS DA TRADIÇÃO

Merleau-Ponty busca o Espírito Selvagem e o Ser Bruto. Sua interrogação vem exprimir-se numa espantosa nota de trabalho de seu livro póstumo e inacabado, O visível e o invisível: “O Ser é o que exige de nós criação para que dele tenhamos experiência”. Frase cujo prosseguimento reúne emblematicamente arte e filosofia, pois a nota continua: “filosofia e arte, juntas, não são fabricações arbitrárias no universo da cultura, mas contato com o ser justamente enquanto criações”.

Por que criação? Porque entre a realidade dada como um fato, instituída, e a essência secreta que a sustenta por dentro há o momento instituinte no qual o Ser vem a ser: para que o ser do visível venha à visibilidade, solicita o trabalho do pintor; para que o ser da linguagem venha à expressão, pede o trabalho do escritor; para que o ser do pensamento venha à inteligibilidade, exige o trabalho do filósofo. Se esses trabalhos são criadores é justamente porque tateiam ao redor de uma intenção de exprimir alguma coisa para a qual não possuem um modelo que lhes garanta o acesso ao Ser, pois é sua ação que se abre e abre a via de acesso para o contato pelo qual pode haver experiência do Ser. Por isso, em A linguagem indireta e as vozes do silêncio, opondo-se à teoria de Malraux sobre o artista como “gênio e monstro incomparável”, Merleau-Ponty assinala que o problema da arte moderna não é o surgimento do indivíduo, mas o da comunicação com o Ser sem o apoio numa Natureza preestabelecida e fonte de paradigmas, de uma saída da inerência e da fruição de si para aceder ao universal através do particular, encontrando na particularidade (o estilo) o meio para dar a ver e a conhecer a universalidade (a obra). Eis por que Merleau-Ponty, naquela mesma nota de trabalho, acentua que se trata da criação em sentido radical, oferecendo-a com as expressões contato com o Ser, reintegração no Ser, inscrição no Ser, experiência do originário. Que laço amarra num tecido único experiência, criação, origem e Ser? Aquele que prende Espírito Selvagem e Ser Bruto.

Que é Espírito Selvagem? É o espírito de práxis que quer e pode alguma coisa, o sujeito que não diz “eu penso”, e sim “eu quero”, “eu posso”, mas que não saberia como concretizar isto que quer e pode senão querendo e podendo, isto é, agindo. O que torna possível a experiência é a existência de uma falta ou de uma lacuna a serem preenchidas, sentidas pelo sujeito como intenção de significar alguma coisa precisa e determinada, fazendo do trabalho para realizar a intenção significativa o próprio caminho para preencher seu vazio e determinar sua indeterminação, levando à expressão o que ainda e nunca havia sido expresso. Há uma intenção significativa que é, simultaneamente, um vazio a ser preenchido e um vazio determinado que solicita o querer-poder do espírito, suscitando sua ação significadora a partir do que se encontra disponível na cultura como falta e excesso que exige o surgimento de um sentido novo. O criador, lemos em Senso e não-senso, não se contenta em ser um “animal culto”, mas vai à origem da cultura para fundá-la novamente. O Espírito Selvagem é atividade nascida de uma força — “eu quero”, “eu posso” — e de uma carência ou lacuna que exigem preenchimento significativo. O sentimento do querer-poder e da falta suscitam a ação significadora que é, assim, experiência ativa de determinação do indeterminado: o pintor desvenda o invisível, o escrit, quebra o silêncio, o pensador interroga o impensado. Realizam um trabalho no qual vem exprimir-se o co-perten-cimento de uma intenção e de um gesto inseparáveis, de um sujeito que só se efetua como tal porque sai de si para ex por sua interioridade prática como obra. É isso a criação, fazendo vir ao Ser aquilo que sem ela nos privaria de experimentá-lo.

Mas, por que Ser Bruto?

O Ser Bruto é o ser de indivisão, desconhecendo a separação entre sujeito e objeto, alma e corpo, consciência e mundo. Indiviso, no entanto, é pura diferença interna e não positividade idêntica a si mesma: é por diferença que há o vermelho ou o verde entre as cores, o alto e o baixo ou o próximo e o distante, fazendo existir espaço como qualidade ou pura diferenciação de lugares. Ser de indivisão, o Ser Bruto é o invisível que faz ver porque sustenta por dentro o visível, o indizível que faz dizer porque sustenta por dentro o dizível, o impensável que faz pensar porque sustenta por dentro o pensável. Não sendo um positivo, também não é um negativo, mas aquilo que, por dentro, permite a positividade de um, visível, de um dizível, de um pensável, como a nervura secreta que sustenta e conserva unidas as partes de uma folha, dando-lhe a estrutura que mantém diferenciados e inseparáveis o direito e o avesso. O Ser Bruto é a distância interna entre um visível e outro que é seu invisível, entre um dizível e outro que é seu indizível, entre um pensável e outro que é seu impensável. É um “sistema de equivalências” diferenciado e diferencia-dor pelo qual há mundo. Eis por que Renoir podia pintar a água do riacho das Lavandières olhando para o mar: pedia-lhe o acesso ao elemento líquido como pura diferença entre elementos e como sistema de equivalências da substância líquida. Desatando os liames costumeiros entre as coisas, o Ser Bruto abre o acesso a uma relação originária entre elas como diferenças qualitativas que se exibem e se interpretam a si mesmas enquanto famílias das cores, das texturas, dos sons, dos odores que reenviam à subs-tancialiclade impalpável do que as faz vir a ser. Se o Ser exige de nós criação para que dele tenhamos experiência, entretanto, não deposita toda a iniciativa do vir-a-ser na atividade do Espírito Selvagem, mas, como Ser Bruto, compartilha daquele o trabalho criativo, dando-lhe o fundo do qual e no qual a criação emerge.

Ser Bruto e Espírito Selvagem estão entrelaçados, abraçados e enlaçados: o invisível permite o trabalho de criação do visível, o indizível, o do dizível, o impensável, o do pensável. Merleau-Ponty fala numa visão, numa fala e num pensar instituintes que empregam o instituído — a cultura — para fazer surgir o jamais visto, jamais dito, jamais pensado — a obra. O Ser Bruto era o que Cézanne desejava pintar quando dizia dirigir-se “à fonte impalpável da sensação” porque “a Natureza está no interior”. É o originário, não como algo passado que se desejaria repetir, mas como o aqui e agora que sustenta, pelo avesso, toda forma de expressão.

Abraçados e enlaçados, Espírito Selvagem e Ser Bruto são a polpa carnal do mundo, carne de nosso corpo e carne das coisas. Carne: habitadas por significações, as coisas do mundo possuem interior, são fulgurações de sentido, como as estrelas de Van Gogh; como elas, nosso corpo também possui interior, é e faz sentido. Se elas e nós nos comunicamos não é porque elas agiriam sobre nossos órgãos dos sentidos e sobre nosso sistema nervoso, nem porque nosso entendimento as transformaria em ideias e conceitos, mas porque elas e nós participamos da mesma Carne. A Carne do Mundo é o que é visível por si mesmo, dizível por si mesmo, pensável por si mesmo, sem, contudo, ser um pleno maciço, mas, paradoxalmente, um pleno poroso, habitado por um oco pelo qual um positivo contém nele mesmo o negativo que aspira por ser, uma falta no próprio Ser, fissura que se preenche ao cavar-se e que se cava ao preencher-se. Não é, pois, uma presença plena, mas presença habitada por uma ausência que não cessa de aspirar pelo preenchimento e que, a cada plenitude, remete a um vazio sem o qual não poderia vir a ser. É o quiasma do visível e do invisível, do dizível e do indizível, do pensável e do impensável, cuja reversibilidade e diferenciação se fazem por si mesmas.

Merleau-Ponty fala em deiscência da Carne, vocábulo vindo da botânica para referir-se à abertura espontânea dos órgãos dos vegetais quando alcançam a maturidade, dispostos a fecundar e a ser fecundados. A Carne é o originário, e este, gênese interminável que pede, exige nossa criação para que possamos experimentá-lo. E podemos responder ao seu apelo porque somos feitos da mesma polpa insondável que ele. Somos espíritos verdadeiramente encarnados.

Ser de indivisão, o Ser Bruto é o que não cessa de diferenciar-se por si mesmo, duplicando todos os seres, fazendo-os ter um fora e um dentro reversíveis e parentes. Assim, se é por ele que somos dados ao ser, como a criança é dada à luz ao emergir do interior do corpo materno, no entanto, é por nós que ele se manifesta, como no instante glorioso em que o pintor faz vir ao visível um outro visível que recolhe o primeiro e lhe confere um sentido novo. O mundo da cultura, fecundidade que passa, mas não cessa, é o parto interminável do Ser Bruto e do Espírito Selvagem.

Buscá-los é desamarrar os laços que amarravam o pensamento à tradição filosófica e recomeçar a interrogação, interpelando, de um lado, as obras filosóficas para nelas encontrar as questões que as fizeram nascer e viver em seu tempo e sua hora, mas, por outro lado, interpelando a obra de arte como abertura para aquilo que a filosofia e a ciência deixaram de interrogar ou imaginaram haver respondido. “A ciência manipula as coisas e recusa-se a habitá-las”, lemos na abertura de O olho e o espírito. Empregando instrumentos técnicos, constrói o mundo como Objeto em Geral, destinado a ser apenas aquilo que lhe é permitido ser pelas operações que o construíram. A filosofia, por seu turno, erige-se em Sujeito Universal que, de lugar algum e de tempo nenhum, ergue-se como puro olhar intelectual desencarnado que contempla soberanamente o mundo, dominando-o por meio de representações construídas pelas operações intelectuais. Não por acaso, diz Merleau-Ponty, filosofia e ciência, desde Platão, erigiram a matemática como paradigma do conhecimento e do pensamento verdadeiro, isto é, elegeram como ideal do saber o ta máthema, aquele modo de pensar que domina intelectualmente seus objetos porque os constroi inteiramente. A tradição filosófico-científica e seu efeito principal — a tecnologia como domínio instrumental dos constructos — é abandono do mundo, mais velho do que nós e do que nossas representações, e abandono do pensamento encarnado num corpo que pensa por contato e por inerência às coisas, alcançando-as de modo oblíquo e indireto. O apelo à obra de arte como recomeço da interrogação filosófica é apelo àqueles que não manipulam e sim manejam as coisas e que, “ruminando o mundo”, jamais abandonam sua inerência a ele, mas, de dentro dele, o transfiguram para que seja verdadeiro sendo o que é quando encontra quem saiba vê-lo ou dizê-lo, isto é, quem consiga arrancá-lo de si mesmo para que seu sentido venha à expressão. Em outras palavras, a invocação das obras de arte rompe com a tradição filosófica que as julgara cópias imaginativas da percepção, simulacros platônicos e, portanto, identificara ficção, erro e ilusão. O imaginário não é, como supusera Sartre, a presença plenamente observável, porque a imagem é pura construção subjetiva herdeira da sensação e da memória, mas, lemos em O olho e o espírito, é “o diagrama do real em meu corpo” e a “textura do real que atapeta interiormente” a visão, a linguagem e o pensamento. Desfazer a tradição filosófica, graças ao ensinamento da arte, é jamais esquecer que o artista tem seu corpo “como sentinela em vigília às portas do sensível” e que cabe à filosofia recuperar a “dignidade ontológica do sensível”.

Desamarrar os nós da tradição filosófica é, pois, renunciar ao modelo clássico do Espírito que a filosofia ergueu sobre uma imagem da consciência como pura transparência de si consigo, pura identidade e coincidência consigo mesma, imanente aos pensamentos e às ideias postas por ela mesma, interioridade plena e pura que, por sua espontaneidade essencial, teria c) poder para transformar as coisas exteriores em puros conceitos do entendimento, pondo-as como representações claras e distintas ou constituindo-as como significações. Trata-se, agora, de renunciar à ideia do Ser como “ser posto” pela consciência enquanto poder absoluto de posição, derivado de seu poderio como reflexão completa — portanto, como plena posse intelectual de si mesma — e como subjetividade transcendental — portanto, como poder total para constituir o real enquanto conceito, ideia ou significação. Rumar para o Espírito Selvagem é abandonar a definição do espírito como consciência de si, a da consciência como reflexão e a da reflexão como posse intelectual de si e do mundo.

Desatar-se da tradição filosófica é também renunciar ao modelo clássico do Ser como coisa, definida como pura exterioridade espaço-temporal dada, mosaico de partes exteriores umas às outras ligadas por relações causais ou funcionais, como feixe de propriedades objetivas analisáveis ou separáveis pelo pensamento e novamente reunidas por uma síntese intelectual, análise e síntese que seriam permitidas pelo uso dos instrumentos técnicos inventados pelas ciências. É preciso abandonar o Ser como coisa empírica, mas também como resultado da análise e da síntese intelectuais que o fazem posto pelo entendimento. Trata-se, pois, de renunciar ao outro lado da Subjetividade pura, a Objetividade pura, construída pelas operações de um pensamento que se julga desencarnado e de uma técnica reduzida apenas à sua superfície instrumental.

Desfazer o tecido da tradição é, assim, renunciar à herança filosófico-científica que nos legou as dicotomias da realidade como consciência ou coisa, como ideia ou fato, como exterioridade idêntica a si mesma ou interioridade idêntica a si mesma. E que ergueu essas dicotomias sobre aquela, tida como fundadora: a oposição entre essência/realidade—aparência/ilusão, como se alguma essência pudesse existir sem aparecer e como se uma aparência não manifestasse um modo de ser nosso e das coisas. É chegada a hora de fazer o luto de uma filosofia ancorada na oposição entre o Para Si e o Em Si para que possa nascer uma interrogação filosófica nova cuja terra natal sejam os paradoxos e as ambiguidades de uma consciência encarnada e de um corpo dotado de interioridade.

A interrogação filosófica como recomeço radical começa por abandonar os dualismos inaugurados por Descartes cujo primeiro efeito havia sido impedir um pensamento ancorado na união entre a alma e o corpo e na relação originária do sujeito e do mundo. Abandonar a herança cartesiana (vale dizer, o racionalismo clássico e o que dele derivou-se no idealismo alemão) implica ultrapassar as ideias claras e distintas de sujeito e objeto, a oposição entre qualidades primárias (físico-geométricas) e secundárias (sensoriais, como a cor, o odor, o sabor, a sonoridade, a textura), a separação entre conceito e ideia e entre ambos e as coisas, a posição da subjetividade transcendental que funda e acompanha todas as representações. Mas trata-se ainda de ir além da crítica dos românticos ao idealismo transcendental (crítica que os fizera desejar um retorno passivo ao seio da Natureza) e da crítica hegeliana aos românticos (crítica que conduzira Hegel a fazer do sensível um momento alienado do espírito), assim como se trata de abandonar definitivamente o fóssil do Grande Racionalismo exibido pelo Pequeno Racionalismo cientificista do início do século XX (que pretendeu erguer a racionalidade sem o fundamento que a tonara possível no Grande Racionalismo do século XVII, a ideia do infinito positivo no qual uniam-se as dualidades metafísicas, irreconciliáveis para e nos entes finitos).

Desmanchar as amarras da tradição é romper com os erros gêmeos e rivais do idealismo e do realismo, do intelectualismo e do empirismo, passando a interrogar os fenômenos e a experiência depois de haver renunciado à ficção da reflexão como coincidência entre pensar e ser. Espírito Selvagem e Ser Bruto desvendam que a reflexão tem o irrefletido nela própria — a irreflexão não lhe é exterior, mas interior, pois é a experiência muda de sua encarnação num corpo — e que o pensamento vive simultaneamente dentro e fora de si, jamais repousando junto a si. A simultaneidade do sair de si e do entrar em si — que Merleau-Ponty diz ser a definição mesma do espírito — transparece quando a experiência é captada como iniciação aos segredos do mundo.

A palavra experiência parece opor-se à palavra iniciação. De fato, a primeira, composta pelo prefixo latino ex — para fora, em direção a — e pela palavra gregaperas limite, demarcação, fronteira —, significa um sair de si rumo ao exterior, viagem e aventura fora de si, inspeção da exterioridade. A segunda, porém, é composta pelo prefixo latino in — em, para dentro, em direção ao interior — e pelo verbo latino eo, na forma composta ineo — ir para dentro de, ir em — e dele derivando-se initium — começo, origem. Iniciação pertence ao vocabulário religioso de interpretação dos auspícios divinos no começo de uma cerimônia religiosa, daí significar: ir para dentro de um mistério, dirigir-se para o interior de um mistério. Ora, se o sair de si e o entrar em si definem o espírito, se o mundo é carne ou interioridade e a consciência está originariamente encarnada, não há como opor experientia e initiatio. A experiência já não pode ser o que era para o empirismo, isto é, passividade receptiva e resposta a estímulos sensoriais externos, mosaico de sensações que se associam mecanicamente para formar percepções, imagens e ideias, nem pode ser o que era para o intelectualismo, isto éz atividade de inspeção intelectual do mundo. Percebida, doravante, como nosso modo de ser e de existir no mundo, a experiência será aquilo que ela sempre foi: iniciação aos mistérios do mundo.

“É a experiência que nos dirigimos para que nos abra ao que não é nós”, lemos numa nota de O visível e o invisível. É exercício do que ainda não foi submetido à separação sujeito-objeto. É promiscuidade das coisas, dos corpos, das palavras, das ideias. É atividade-passividade indiscer-níveis. Abertura para o que não é nós, excentricidade muito mais do que descentramento, a experiência, escreve Merleau-Ponty em O olho e o espírito, é “o meio que me é dado de estar ausente de mim mesmo, de assistir por dentro à fissão do Ser, fechando-me sobre mim mesmo somente quando ela chega ao fim”, isto é, nunca.

Debrucemo-nos um instante sobre esta curiosa expressão: fissão no Ser.

A tradição filosófica jamais conseguiu suportar que a experiência seja ato selvagem do querer e do poder, inerência de nosso ser no mundo. Fugindo dela ou buscando domesticá-la, a filosofia sempre procurou refúgio no pensamento da experiência, isto é, representada pelo entendimento e, portanto, neutralizada: tida como região do conhecimento confuso ou inacabado, a experiência como exercício promíscuo de um espírito encarnado só poderia tornar-se conhecível e inteligível se fosse transformada numa representação ou no pensamento de experimentar, pensamento de ver, pensamento de falar, pensamento de pensar. Assim procedendo, a tradição, tanto empirista quanto intelectualista, cindiu o ato e o sentido da experiência, colocando o primeiro na esfera do confuso e o segundo na do conceito. Compreender a experiência exigia sair de seu recinto, destacar-se dela para, graças à separação, pensá-la e explicá-la, de sorte que, em lugar da compreensão da experiência, obteve-se a experiência compreendida, um discurso sobre ela silenciando-a enquanto fala própria.

Ao fazer falar a experiência como fissão no Ser, Merleau-Ponty leva-nos de volta ao recinto da encarnação, abandonando aquela maneira desenvolta com a qual a filosofia julgava poder explicá-la, perdendo-a. Doravante, não se trata, em primeiro lugar, de explicar a experiência, mas de decifrá-la nela mesma, e não se trata, em segundo lugar, de separar-se dela para compreendê-la. Somos levados ao recinto da experiência pelas artes, cujo trabalho é a iniciação que nos ensina a decifrar a fissão no Ser.

Fissão: as cosmologias e a física nuclear decifram a origem do universo pela explosão da massa em energia cuja peculiaridade está em que as novas partículas produzidas são de mesma espécie das que as produziram, de tal maneira que o próprio Ser divide-se por dentro sem separar-se de si mesmo, diferencia-se de si mesmo sem perder-se de si mesmo.

Quando invoca a experiência do pintor, do músico ou do escritor, para contrapô-las ao modo como a filosofia interpreta a experiência, Merleau-Ponty se demora naqueles instantes em que ver, ouvir ou falar-escrever atravessam a carapaça da cultura instituída e desnudam o originário de um mundo visível, sonoro e falante. A expressãofissão no Ser manifesta a divisão no interior da indivisão, a experiência como aquele momento no qual um visível (o corpo do pintor) se faz vidente sem sair da visibilidade e um vidente se faz visível (o quadro) sem sair da visibilidade; no qual um ouvinte (o corpo do músico) se faz sonoro sem sair da sonoridade e um sonoro (a música) se faz audível sem sair da sonoridade; no qual um falante (o corpo do escritor) se faz dizível sem abandonar a linguagem e um dizível (o texto) se faz falante sem sair da linguagem. A experiência é cisão que não separa — o pintor traz seu corpo para olhar o que não é ele, o músico traz seu corpo para ouvir o que ainda não tem som, o escritor traz a volubilidade de seu espírito para cercar aquilo que se diz sem ele —, e é indivisão que não identifica — Cézanne não é a Montanha Santa Vitória, Mozart não é a Flauta Mágica, Guimarães Rosa não é Diadorim. A experiência é o ponto máximo de proximidade e de distância, de inerência e diferenciação, de unidade e pluralidade em que o Mesmo se faz Outro no interior de si mesmo.

O que é a experiência da visão? É o ato de ver, advento simultâneo do vidente e do visível como reversíveis e entrecruzados, graças ao invisível que misteriosamente os sustenta. O que é a experiência da linguagem? É o ato de dizer como advento simultâneo do dizente e do dizível, graças ao silêncio que misteriosamente os sustenta. O que é a experiência do pensamento? É o ato de pensar como advento simultâneo do pensante e do pensável, graças ao impensado que misteriosamente os sustenta. A experiência é o que em nós se vê quando vemos, o que em nós se fala quando falamos, o que em nós se pensa quando pensamos. Nenhum dos termos é origem: visível, dizível e pensável não existem em si como coisas ou ideias; vidente, falante e pensante não são operações de um sujeito como pura consciência desencarnada; visível, dizível e pensável não são causas da visão, da linguagem e do pensamento, assim como o vidente, o falante e o pensante não são causadores intelectuais do ver, falar e pensar. São simultâneos e diferentes, são reversíveis e entrecruzados, existem juntos ou coexistem sustentados pelo fundo não visível, não proferido e não pensado, são o originário porque a origem é, aqui e agora, a junção de um dentro e um fora, de um passado e de um porvir, de um antes e um depois, proliferação e irradiação de um fundo imemorial que só existe proliferando e irradiando.

A experiência é diferenciadora: vidente-visível, tocante-tocado, falante-falado, pensante-pensado são diferentes, assim como ver é diferente de tocar, ambos são diferentes de falar e pensar, falar é diferente de ver e pensar; pensar, diferente de ver, tocar ou falar. Abolir essas diferenças seria regressar à Subjetividade como consciência representadora que reduz todos os termos à homogeneidade de representações claras e distintas. Porém, a diferenciação própria da experiência não é posta por ela: manifesta-se nela porque é o próprio mundo que se põe a si mesmo como visível invisível, dizível-indizível, pensável-impensável. No entanto, a cisão dos termos só é possível porque o mundo como Carne é a coesão interna, a indivisão que sustenta os diferentes como dimensões simultâneas do mesmo Ser. O mundo é simultaneidade de dimensões diferenciadas ou, como escreve Merleau-Ponty, o Ser Vertical cujas raízes estão desnudadas.

O que as artes ensinam à filosofia? Que o pensamento não pode fixar-se num pólo (coisa ou consciência, sujeito ou objeto, visível ou vidente, visível ou invisível, palavra ou silêncio), mas precisa sempre mover-se no entre-dois, sendo mais importante o mover-se do que o entre-dois, pois entre-dois poderia fazer supor dois termos positivos separáveis, enquanto o mover-se revela que a experiência e o pensamento são passagem de um termo por dentro do outro, passando pelos poros do outro, cada qual reenviando ao outro sem cessar. Eis por que as artes ensinam à filosofia a impossibilidade de um pensamento de sobrevôo que veria tudo de uma só vez, veria cada coisa em seu lugar e com sua identidade, veria redes causais completas, veria todas as relações possíveis entre as coisas, como o olhar do Deus de Leibniz, geometral de todos os pontos de vista. Merleau-Ponty insiste em que o artista ensina ao filósofo o que é existir como um humano.

A experiência é esse fundo que sustenta a manifestação da própria experiência, sem o qual ela não existiria — como a figura não existe sem o fundo — e graças ao qual os termos que a constituem são reversíveis — como o fundo que se torna figura e a figura que se torna fundo. Esse fundo imemorial, essa ausência gue suscita uma presença, é inesgotável: não há uma visão total que veria tudo e completamente, pois para ver é preciso a profundidade que nunca pode ser vista; não há uma linguagem total que diria tudo e completamente, pois para falar é preciso o silêncio sem o qual nenhuma palavra poderia ser proferida; não há um pensamento total que pensaria tudo e completamente, pois para pensar é preciso o impensado que faz pensar e dá a pensar. Assim, se o fundo é uma ausência que pede uma presença, um vazio que pede preenchimento, ele é também, e simultaneamente, um excesso: o que nos leva a buscar novas expressões é o excesso do que queremos exprimir sobre o que já foi expresso. A cultura sedimenta e cristaliza as expressões, mas o instituído carrega um vazio e um excesso que pedem nova instituição, novas expressões. Com isto, o primeiro parentesco profundo entre filosofia e arte aparece: a obra de arte como a obra de pensamento são intermináveis. O pintor não pode parar de pintar, o músico não pode parar de compor, o poeta não pode parar de escrever, o pensador não pode parar de pensar. Cada expressão engendra de si mesma e de sua relação com as expressões passadas e com o mundo presente a necessidade de novas expressões. A experiência e as obras que ela suscita sem cessar são, assim, iniciação ao mistério do tempo como — literalmente — pura inquietação, não-quietude.

Esse parentesco, porém, não se esgota na relação entre filosofia e arte como intermináveis, como esse “ir mais longe” de que falava Van Gogh. Tomar a experiência como iniciação ao mistério do mundo significa reconhecer que o sair de si é o entrar no mundo. Resta saber, no entanto, como e por que esse entrar no mundo é também nossa volta a nós mesmos. A pintura revela que a experiência de pintar é experimentar o que em nós se vê quando vemos (Cézanne dizia: “sou a consciência da paisagem”), a literatura revela que a experiência de escrever é experimentar o que em nós se fala ou escreve quando falamos ou escrevemos (Guimarães dizia-se falado pela linguagem que o “empurrava” a escrever) e, assim, ambas ensinam à filosofia que o pensamento é a experiência do que se pensa em. nós quando pensamos. Experiência: algo age em nós quando agimos, como se fôssemos agidos no instante mesmo em que somos agentes. A obra de arte é a chave do enigma da experiência e do espírito e, dessa maneira, ensina à filosofia o filosofar, ensinando-lhe a reversibilidade entre atividade e passividade, que a tradição julgara opostas.

Todavia, além do parentesco entre obra de arte e obra de pensamento e do ensinamento artístico para a interrogação filosófica, uma terceira relação existe entre arte e filosofia: as artes indicam como e por que, sendo parentes e mestras da filosofia, são também diferentes dela, e é esta diferença que permite à filosofia falar e pensar sobre as artes. Pode haver um discurso filosófico sobre as artes porque estas são filosofia selvagem que a filosofia tematiza. Do lado das artes, podemos dizer artepensamen-to, enquanto do lado da filosofia precisamos dizer arte e pensamento, conquista de uma diferença prometida pela própria arte. Todavia, por que a diferença que permite dizer arte e filosofia é conquistada a partir do deciframento da experiência artística, há também diferença entre crítica de arte e filosofia. A primeira chega às artes sabendo o que são, podendo julgá-las e avaliá-las. A segunda parece começar como se também já estivesse na posse de um saber, mas, acolhendo o trabalho dos artistas, vai, pouco a pouco, aprendendo com eles e, através de suas obras, alcança uma via de acesso a si própria como um saber que não é outra coisa senão a experiência interminável da interrogação.

A OBRA INTERMINÁVEL

O ensaio “A dúvida de Cézanne” realiza dois movimentos simultâneos: o primeiro interpreta a obra de arte como trabalho de transfiguração da vida — a hereditariedade, as circunstâncias, os hábitos e as influências — ou como passagem da necessidade à liberdade e como trabalho motivado pela vida, isto é, como expressão livre do que é necessário. O segundo movimento, que abre e fecha o texto, expõe a essência da obra de arte como gênese sem fim e trabalho interminável. Cézanne e Leonardo figuram esse duplo movimento.

Cézanne duvida do valor e do sentido de sua obra. Zola, seu amigo, fala em “obra abortada”, atribuindo o fracasso do pintor ao seu temperamento doentio, mórbido e depressivo, efeito da hereditariedade e das condições de seu meio. Émile Bernard, outro amigo, comenta a dúvida do pintor a partir de suas dificuldades para ultrapassar as influências do impressionismo. Para ambos, a obra de Cézanne é o efeito necessário de uma causalidade biológica, social e cultural. No pólo oposto, interpretando a obra de Leonardo, Valéry a apresenta como expressão acabada de uma liberdade plena e sem freios, de uma espontaneidade que nada deve à situação vital, familiar, social e cultural do pintor. A obra de Leonardo é incausada, ou melhor, tem como causa aquilo que é desprovido de causa: a pura liberdade de Leonardo.

Contra essas duas interpretações opostas e gêmeas, Merleau-Ponty enfatiza a liberdade de Cézanne e o peso da necessidade sobre a obra de Leonardo. No entanto, ao fazê-lo, opera duas mudanças fundamentais: modifica a ideia de causa necessária e a de liberdade imotivada. Com elas, modifica inteiramente a noção de obra: esta não é efeito da vida, mas aquilo que exige esta vida determinada, seja a de Cézanne, seja a de Leonardo. É a obra que explica a vida e não o contrário, pois a obra é a maneira como o artista transforma, num sentido figurado e novo, o sentido literal e prosaico de sua situação de fato. A obra de arte é existência, isto é, o poder humano para transcender a faticidade nua de uma situação dada, conferindo-lhe um sentido que, sem a obra, ela não possuiria. El Greco não pinta figuras longilíneas e curvilíneas por ser astigmata e esquizóide, ao contrário, é porque pinta figuras longilíneas e curvilíneas que é astigmata e esquizóide.

Por ser ansioso e mórbido, ter dificuldade na relação com os outros, desconfiando deles e os temendo, isolando-se em crises de depressão, Zola julga Cézanne incapaz de atitudes flexíveis e de dominar situações novas, refugiando-se nos hábitos, pintando apenas a natureza ou dando uma fisionomia desumana aos rostos humanos, pintando-os como se fossem coisas. Por outro lado, julga Émile Bernard que, distanciando-se dos impressionistas, Cézanne queria buscar a realidade sem se afastar da sensação e das impressões imediatas, sem cercar os contornos, sem enquadrar a cor com o desenho, sem compor a perspectiva, tentando alcançar a realidade sem recorrer aos meios que justamente permitiriam alcançá-la, mergulhando no caos das sensações, incapaz de oferecer um sentido inteligível aos quadros, afogando “a pintura na ignorância e seu espírito nas trevas”.

Zola e Bernard quiseram explicar Cézanne. Aplicaram à sua vida e à sua obra as dicotomias tradicionais entre sensação e pensamento, caos e ordem. Ora, o que Cézanne busca é a “natureza dando-se forma, a ordem nascendo por uma organização espontânea”. Não quer separar as coisas fixas que aparecem ao nosso olhar e seu modo fugidio de aparecer, busca a ruptura entre a ordem espontânea das coisas percebidas e a ordem humana das ideias e da ciência. “É esse mundo primordial que Cézanne quis pintar e por isso seus quadros dão a impressão da natureza na origem, enquanto fotografias dessas mesmas paisagens sugerem os trabalhos dos homens, suas comodidades, sua presença iminente.” É a natureza em estado nascente, antes da presença humana, que ele busca: a paisagem sem vento, o lago sem movimento, os objetos gelados hesitantes como na origem da terra, o fundo desumano primordial sobre o qual o humano se instala.

Cézanne dizia desejar “unir natureza e arte”, dar um sentido à expressão clássica: a arte é o homem acrescentado à natureza. Nosso olho não é um objeto técnico, não é um aparelho fotográfico. Diferentemente da máquina fotográfica, não vemos obliquamente um círculo como se fosse uma elipse, vemos uma forma que oscila entre o círculo e a elipse, sem ser nenhum deles. A perspectiva buscada por Cézanne, assim como a pesquisa da cor e seu emprego são, do ponto de vista da geometria e da óptica, deformações deliberadas porque somente assim “são capazes de dar a impressão de uma ordem nascente, de um objeto começando a aparecer e aparecendo, pondo-se a aglomerar-se sob nossos olhos”. Cézanne evita a alternativa entre marcar todos os contornos e marcar um só: para oferecer uma coisa inesgotável, busca modulações coloridas, de maneira que o desenho resulte da cor, dando o mundo em sua espessura, massa sem lacunas, organismo de cores, fazendo o espaço fulgurar como vibração.

O mundo — ser bruto e vertical, simultaneidade de todas as dimensões (olfativas, gustativas, visuais, motrizes, sonoras, tácteis) — para ser expresso como totalidade leva Cézanne a meditar “às vezes durante uma hora antes de depositar o toque” sobre a tela, pois cada toque deve conter “o ar, a luz, o objeto, o piano, o caráter, o desenho e o estilo”. A expressão do que existe, escreve Merleau-Ponty, é uma tarefa infinita.

Cézanne não negligenciava a fisionomia dos objetos, mas a buscava quando emerge da cor. Dizia que “o pintor interpreta um rosto”. Interpretar não é uma operação do intelecto ou do pensamento que se separa da visão para explicá-la e para conceituar um rosto visível. Interpretar um rosto em pintura é “ver o espírito que se lê nos olhares que são apenas conjuntos coloridos”, pois os “outros espíritos só se oferecem a nós encarnados, aderentes a um rosto e a gestos”. Cézanne deseja a experiência primordial, aquela que desconhece a separação conceitual entre a alma e o corpo, deseja o mistério da aparição de um outro humano no interior da natureza.

Que é o trabalho da pintura, para Cézanne? No romance La peau de chagrin, Balzac fala numa “toalha branca como uma camada de neve frescamente caída sobre a qual elevavam-se simetricamente os talheres coroados de pãezinhos loiros”. Dizia Cézanne: “durante toda a minha juventude quis pintar isto, essa toalha de neve fresca… Sei, agora, que é preciso querer pintar apenas ‘elevavam-se simetricamente os talheres’ e ‘pãezinhos loiros’. Se eu pintar ‘coroados’, estarei fodido, entende? Se verdadeiramente equilibro e matizo meus talheres e meus pães como na natureza, tenha certeza de que as coroas, a neve e todo o tremor aí estarão”. Donde o comentário de Merleau-Ponty: Cézanne põe em suspenso o mundo cultural, feito de utensílios e objetos que trazem a marca da intervenção humana sobre a natureza, para pintar a vibração e a fulguração do mundo antes do homem. E esse olhar do pintor, que revela o não-humano ou o ainda não-humano, só é possível para um ser humano que vai às raízes das coisas, abaixo do mundo constituído pela cultura, para captar o instituinte como criação.

Cézanne busca o que chamava de “o motivo”, como falamos no motivo de uma renda ou de um bordado, o tema central que dá coesão e sentido ao todo. Dizia: “Há um minuto do mundo que passa, é preciso pintá-lo em sua realidade”. Meditava horas, dias, e a longa meditação terminava quando podia dizer: “agarrei meu motivo”. A partir desse momento,

atacava o quadro por todos os lados ao mesmo tempo, cercava com manchas coloridas o primeiro traço de carvão, o esqueleto geológico. A imagem se saturava, ligava-se, desenhava-se, equilibrava-se, vindo à maturidade de uma só vez. A paisagem se pensa em mim, sou a consciência dela… O pintor retoma e converte justamente em objeto visível aquilo que, sem ele, ficaria encerrado na vida separada de cada consciência: a vibração das aparências que é o berço do mundo… Para esse pintor, há um só sentimento de estranheza, um só lirismo: a existência sempre recomeçada.

A incerteza e a solidão de Cézanne não se explicam por seu temperamento nervoso, mas pela intenção de sua obra. Hereditariedade, meio social, influências artísticas são os acidentes e não a essência da vida do pintor, “a parte que a natureza e a história lhe deram para que as decifrasse”. São as condições do sentido literal de sua obra, esta, porém, é o sentido figurado que o artista impôs àqueles acidentes naturais e históricos. As condições iniciais do trabalho artístico são o monograma e o emblema de uma vida que se interpreta a si mesma livremente, tornando-se obra. A vida não explica causalmente a obra. Vida e obra se comunicam, e “a verdade é que esta obra por fazer exigia esta vida por viver”. São uma só aventura. A obra revela o sentido metafísico da vida: não é destino nem absurdo, mas uma possibilidade geral para todo aquele que enfrenta o enigma da expressão.

A liberdade de Cézanne não está desenraizada. É a decisão selvagem de liberar as coisas para que o que queriam dizer e que não poderiam dizer, se Cézanne não transformasse seu temperamento em obra.

Se, do lado de Cézanne, a liberdade parecia, à primeira vista, impossível, do lado de Leonardo, parecemos estar no pólo oposto. Interpretado por Valéry, Leonardo é pura liberdade para pensar e agir como criador, sem as amarras de seu corpo, de seu temperamento, de sua sexualidade, de seu meio social e de seu meio artístico. No entanto, a interpretação oferecida por Freud para o quadro A Virgem e a criança, a partir de uma recordação infantil do pintor, fazem-nos duvidar da imagem proposta por Valéry.

Leonardo se sente assombrado e perseguido pelos abutres, ele os pinta, os desenha, os inventa como máquinas, compondo-os com asas de cera sobre lagartixas. O manto da Virgem, interpreta Freud, é um abutre que roça a criança, e Leonardo se recorda do sonho infantil em que um abutre abria seus lábios para enfiar-se em sua boca. Leonardo é filho natural de uma camponesa e de um homem abastado que a abandona para casar-se com uma mulher estéril, levando, após quatro anos, o menino para morar com ele, deixando a mãe sozinha. Teria Leonardo uma vida sem fantasmas? Sua incapacidade para ligações amorosas, tanto hetero quanto homossexuais, suas obras sempre inacabadas, sua obsessão com o vôo, nada seriam?

A interpretação psicanalítica não é uma explicação da obra de Leonardo por suas fantasias infantis. O que a psicanálise traz é uma descrição da vida de Leonardo da qual ele não tem plena consciência, mas que o engaja a viver de uma determinada maneira. O fantasma do abutre é, “como a palavra do augúrio, um símbolo ambíguo que se aplica de antemão a várias linhas de acontecimentos possíveis”, um elã inicial de nossa situação que pode ser aceito ou recusado, mas a aceitação é uma recusa e a recusa, uma aceitação, pois não se dão no mesmo plano de consciência.

A psicanálise descreve a troca contínua entre o passado e o futuro, mostrando que cada vida sonha enigmas cujo sentido final não se encontra inscrito em parte alguma e exige a liberdade como retomada criadora de nós mesmos, fazendo nossa vida sempre fiel a si mesma. Como Cézanne, Leonardo está situado, mas sua situação é um campo aberto de possíveis sobre os quais exerce a decisão livre ou de apenas repetir o dado inicial ou de transcendê-lo, dando-lhe um sentido figurado novo. A obra de arte não é efeito das condições dadas, mas resposta a elas, por isso é enraizamento e ultrapassamento, isto é, rigorosamente, criação radical.

Se assim é, compreendemos por que a obra é interminável.

Em 1906, aos 67 anos, um mês antes de morrer, Cézanne escreve: “Encontro-me num tal estado de perturbação que temo perder a razão… Parece que agora estou melhor e penso com mais justeza sobre a orientação de meus estudos. Chegarei ao objetivo tão longamente procurado? Estudo sempre sobre a natureza e me parece que faço lentos progressos”.

O filósofo Husserl, poucos dias antes de sua morte, proferiu uma conferência na qual afirmava que sua obra — gigantesca — estava equivocada e que iria recomeçá-la, pois havia, finalmente, compreendido o que deveria ser o objeto da filosofia.

O diário de Cézanne e a conferência de Husserl, assim como os trabalhos inacabados de Leonardo, revelam que os três submeteram os acontecimentos e as experiências à significação que tinham para eles como um fulgor vindo de parte alguma e que, em certos momentos, os iluminava por inteiro. O artista, como o filósofo, nunca está no centro de si mesmo, estão sempre fora de si, rodeados pela miséria empírica do mundo e pelo mundo que devem realizar e revelar pela obra. Sempre duvidarão dos resultados, pois somente o assentimento dos outros confere valor à obra. Por isso interrogam o mundo, a si mesmos, seu próprio trabalho, não podendo parar de pintar, compor, dançar, escrever. Sua obra é interminável porque nunca abandonamos nossa vida e o mundo, nunca vemos a ideia, o sentido e a liberdade cara a cara.

Escreve Merleau-Ponty, no prefácio a Sens et non-sens:

Na presença de um romance, de um poema, de uma pintura, de um filme válidos, sabemos que houve contato com alguma coisa, que alguma coisa tornou-se uma aquisição para os homens e a obra começa a emitir uma mensagem ininterrupta… Mas, para o artista e para o público, o sentido da obra só é formulável por ela mesma; nem o pensamento que a fez nem o pensamento que a recebe são senhores de si […] com que riscos cumprem-se a expressão e a comunicação… É como um passo na bruma, sobre o qual ninguém pode dizer se levará a alguma parte. Mesmo nossa matemática cessou de ser longas cadeias de razões. Os seres matemáticos só se deixam apanhar por procedimentos oblíquos, métodos improvisados tão opacos quanto um mineral desconhecido. O mundo da cultura é descontínuo como o outro,também conhece surdas mutações. Há um tempo da cultura em que as obras de arte e da ciência se gastam, embora seja um tempo mais lento do que o da história e o do mundo físico. Na obra de arte como na obra teórica, assim como na coisa sensível, o sentido é inseparável do signo. A expressão, portanto, nunca está acabada.

A OBRA DE ARTE COMO FILOSOFIA SELVAGEM

“O pintor ‘traz seu corpo’. Com efeito, não vemos como um espírito poderia pintar. É emprestando seu corpo ao mundo que o pintor transforma o mundo em pintura.” Com essas palavras, Merleau-Ponty abre o ensaio O olho e o espírito.

A pintura é transubstanciação entre o corpo do pintor e o corpo das coisas. Como é isso possível? É que a visão e o movimento são inseparáveis, embora diferentes: ver não é apropriar-se do mundo em imagem, mas aproximar-se das coisas, te ias mas a distância; mover-se não é realizar comandos que a alma envia ao corpo, mas o resultado imanente do amadurecimento de uma visão. Nosso corpo é uma potência vidente e motriz que vê porque se move e se move porque vê. Mas por que há tran-substanciação entre nosso corpo e o mundo?

O corpo é um enigma. Entre as coisas visíveis, é um visível, mas dotado do poder de ver — é vidente. Visível vidente, o corpo tem o poder de ver-se quando vê, vê-se vendo, é um vidente visível para si mesmo. Entre as coisas tácteis, o corpo é um táctil, mas dotado do poder de tocar — é tocante. Táctil tocante, tem o poder de tocar-se ao tocar, é um tocante táctil para si mesmo. Entre as coisas móveis, o corpo é móvel, mas dotado do poder de mover — é um movente. Móvel movente, o corpo tem o poder de mover-se movendo — é móvel movente para si mesmo. O corpo é sensível para si.

Quando Cézanne afirma que a natureza está no interior e que pensa em pintura, quando Matisse se olha no espelho pintando-se a si mesmo, quando Klee diz que deseja fazer uma linha sonhar para com o novelo de linhas chegar ao elementar, quando Rodin afirma que o que dá movimento a um quadro ou a uma escultura é a figura do corpo quando cada uma de suas partes se encontra num instante temporal diferente, cada um deles não faz outra coisa senão celebrar o mistério do sensível e do corpo como reflexão.

A presença das coisas é um mistério porque reivindicam a existência como indivíduos e só podem tê-la se forem mais ou menos do que indivíduos. Mais: são campos ou configurações, famílias ou estilos de ser — a família das cores, dos odores, dos sonoros. Menos: são puras diferenciações. Uma cor é pura diferença entre cores, não uma coisa, uma onda luminosa dotada de identidade. As coisas se entrelaçam e se cruzam: a superfície se enlaça e se cruza com as cores e os sons que se enlaçam e se cruzam com os odores e texturas que se enlaçam e se cruzam em movimentos infindáveis, numa troca incessante na qual cada um é discernível porque pertence a uma família diferente, mas também cada um é indiscernível dos outros porque juntos formam o tecido cerrado e poroso do mundo.

Nosso corpo, coisa sensível entre as coisas, é sensível para si. E ele que nos faz ver as coisas no lugar em que estão e segundo o desejo delas, realizando o mistério do ver e do tocar, pois visão e tato têm o dom da ubiquidade: a visão se efetua simultaneamente a partir das coisas e dos olhos, o tato se realiza simultaneamente a partir das coisas e das mãos. Nossos sentidos operam por transitividade, enlaçando-se como as coisas: o olho apalpa, as mãos vêem, os olhos se movem com o tato, o tato sustenta pelos olhos nossa mobilidade e imobilidade, compensando a imobilidade e a mobilidade das coisas.

O pintor e o escultor desvendam o mistério das coisas e do corpo porque revelam o corpo como sensível errante — um sensível entre os sensíveis — e um sensível concentrado — um sensível sentiente que é sensível para si mesmo. O trabalho do artista destrói a distinção metafísica entre passividade e atividade, desvendando-as como simultâneas e indiscerníveis. Pintura e escultura vão além dessa destruição. Por elas, descobrimos que o corpo é misterioso: preso no tecido do visível, continua a se ver; atado ao tangível, continua a se tocar; movido no tecido do movimento, não cessa de mover-se. Sofre do visto, do tocado e do movido a ação que exerce sobre eles. Sente de dentro seu fora e sente de fora seu dentro. Sentindo-se, o corpo reflexiona. Pela primeira vez, na história da filosofia, graças à obra de arte, descobrimos que a reflexão não é privilégio da consciência nem essência da consciência, mas que esta recolhe uma reflexão mais antiga que a ensina a refletir: a reflexão corporal. Ora, o trabalho selvagem do artista revela algo mais: a reflexão corporal não é plena posse de si nem plena identidade do corpo consigo mesmo, mas inerência e confusão dele consigo mesmo e com as coisas. Essa descoberta ensina à filosofia a impossibilidade, para a consciência, de realizar uma reflexão completa e de ser posse intelectual de si e do murrdo. Os olhos nos fazem descobrir quando a filosofia perdeu o foco: quando falou em olho — no singular — e o designou como olho do espírito. Há os olhos. Há o olho e o espírito.

Acompanhemos Merleau-Ponty:

A humanidade não é produzida como efeito de nossas articulações, nem da implantação de nossos olhos, nem pela existência dos espelhos que, no entanto, são os únicos a tornar nosso corpo inteiramente visível para nós. Essas contingências e outras semelhantes, sem as quais não haveria homem, não fazem, por simples soma, que haja um único humano… Um corpo humano existe quando, entre vidente e visível, entre tangível e tangido, entre um olho e outro, uma mão e outra se realiza uma espécie de entrecruzamento, quando se acende a flama do sentiente-sensível, quando “pega” esse fogo que não cessará de queimar até que um acidente do corpo faça desaparecer o que nenhum acidente teria bastado para fazer… Ora, desde que esse estranho sistema de trocas esteja dado, todos os problemas da pintura estão aí. Eles ilustram o enigma do corpo. Ela os justifica… Qualidade, luz, cor, profundidade, que estão lá longe, só estão ali porque despertam um eco em nosso corpo, porque ele as acolhe. Esse equivalente interno, essa fórmula carnal de sua presença que as coisas suscitam em mim, por que, por sua vez, não suscitariam um traçado também visível no qual um outro olhar reencontrará os motivos que sustentam sua inspeção do mundo? Então, aparecerá um visível em segunda potência, essência carnal ou ícone do primeiro. Não se trata de um duplo enfraquecido nem de uma ilusão de ótica, não é uma outra coisa. Os animais pintados na parede da caverna de Lascaux não estão ali como ali estão a fenda ou o inchaço do calcário. Mas também não estão alhures. Um pouco adiante, um pouco atrás, sustentados pela massa da parede, dela se servindo corretamente, irradiam à volta dela sem jamais romper com ela a amarra inapreensível. Eu teria muita dificuldade para dizer onde está o quadro que olho. Pois não o olho como olho uma coisa, não o fixo num lugar, meu olhar vagueia por ele como nos nimbos do Ser, vejo de acordo com ele ou vejo com ele, muito mais do que o vejo… O quadro, como a mímica do ator, pertence ao imaginário… O imaginário está muito mais perto e muito mais longe do atual. Mais perto, pois é o diagrama da vida dele em meu corpo, sua polpa ou seu avesso carnal exposto pela primeira vez aos olhares dos outros… Muito mais longe, pois o quadro não é um análogo do mundo senão segundo o corpo, não oferece ao espírito uma ocasião para repensar as relações constitutivas das coisas, mas oferece ao olhar, para que este os espose, os vestígios da visão do dentro, oferece à visão o que a atapeta interiormente, a textura imaginária do real… O olho do pintor vê o mundo e o que falta no mundo para ser quadro e o que falta ao quadro para ser ele mesmo, e sobre a paleta, a cor que o quadro espera, e vê, uma vez feito, o quadro que responde a todas essas faltas e vê os quadros dos outros, as respostas dos outros a outras faltas… O olho do pintor é aquilo que foi emocionado por um certo impacto do mundo e o restitui ao visível pelos traços da mão […] desde as cavernas de Lascaux até hoje, pura ou impura, figurativa ou não figurativa, a pintura não celebra nunca outro enigma senão o da visibilidade […] o mundo do pintor é um mundo visível, nada além de visível, um mundo quase louco, pois é completo sendo parcial. A pintura desperta e eleva à sua última potência um delírio que é a própria visão, pois ver é ter a distância e a pintura estende essa bizarra posse a todos os aspectos do Ser que devem, de algum modo, tornar-se visíveis, para entrar nela […] essa visão devorante, para além dos “dados visuais”, abre para uma textura do Ser cujas mensagens sensoriais separadas são apenas pontuações ou cesuras, pois o olho habita o Ser como o homem sua casa… Enquanto pinta, o pintor pratica uma teoria mágica da visão […] uma mesma coisa está lá longe, no coração do mundo e aqui perto, no coração da visão, a mesma coisa aqui e lá, gênese e metamorfose do Ser em sua visão. É a própria montanha que, lá de longe, se faz ver pelo pintor, e é ela que ele interroga com o olhar. Que lhe pede ele? Que desvende os meios puramente visíveis pelos quais ela se faz montanha aos nossos olhos. Luz, iluminação, sombras, reflexos, cor: todos os objetos da investigação e da busca do pintor não são seres completamente reais. São como os fantasmas, pois só têm existência visual […] o olhar do pintor lhes pergunta como é que eles fazem para que, de repente, haja alguma coisa, e para que esta coisa componha o talismã do mundo, fazendo-nos ver o visível.

Teoria mágica da visão, filosofia selvagem, pois o pintor como o escultor e o dançarino vivem na fascinação: seus gestos parecem emanar das próprias coisas, serem exigidos por elas, estarem nelas como o desenho das constelações. Eis por que Klee confessa: “Numa floresta, senti, várias vezes, que não era eu quem olhava a floresta. Senti, certos dias, que eram as árvores que me olhavam, me falavam… Eu, eu ficava ali, escutando… Creio que o pintor deve ser trespassado pelo universo e não querer trespassá-lo. Espero estar interiormente submerso, enterrado. Pinto para surgir. E a conclusão extraordinária de Merleau-Ponty escutando Klee: “O que chamamos inspiração deveria ser tomado literalmente: há verdadeiramente inspiração e expiração no Ser, respiração no Ser, ação e paixão tão pouco discerníveis que já não sabemos quem vê e quem é visto, quem pinta e quem é pintado… Poderíamos procurar nos próprios quadros uma filosofia figurada da visão e como que sua iconografia”.

Filosofia figurada da visão: o que a pintura ensina à filosofia é a impossibilidade do projeto cartesiano, kantiano, hegeliano, ou husserliano de uma teoria filosófica da sensibilidade como pensamento de ver e pensamento de sentir. Isto é, como esforço intelectual para distinguir, separar, analisar e diferenciar sujeito e objeto, consciência e coisa, alma e corpo, sensível e inteligível. As artes, como filosofia selvagem do sensível, desvendam as ilusões da razão ocidental como desejo de purificação intelectual do mundo. Ensinamento tanto maior quanto mais a pintura moderna e as artes modernas trabalharam para livrar-se da suposição do ilusionismo. Paradoxalmente, diríamos, quanto mais as artes se desvendaram como o oposto da ilusão, tanto mais indicaram as ilusões da filosofia.

Examinando como os artistas trabalharam a profundidade, a cor, a linha e o movimento, como os artistas buscam a “animação interna” do sensível, Merleau-Ponty afirma: “A arte não é construção, artifício, relação industriosa com um espaço e um mundo exteriores […] é o grito inar-ticulado que se assemelha à voz da luz”. Assim, por exemplo, no caso da busca moderna do que Leonardo chamava de “linha fluxuosa”, a pintura, figurativa ou não figurativa, revela que a linha não é imitação das coisas, e ela própria não é coisa, mas um “certo desequilíbrio arranjado na indiferença do papel branco, uma certa perfuração no em-si, um certo vazio constituinte, do qual as estátuas de Moore mostram que, como vazio, traz peremptoriamente a pretensa positividade das coisas […] a linha é modulação de uma espacialidade prévia”.

Assim, também, a pesquisa do movimento pelos artistas atinge sua essência:

As fotografias de Marey, as análises cubistas, a Mariée de Duchamp não se mexem, ofercem um devaneio zenoniano do movimento. Vê-se um corpo rígido como uma armadura cujas articulações se mexeriam, ele está aqui e ali, magicamente, mas não vai daqui para lá, pois é uma soma de movimentos instantâneos que petrificam o movimento. O cinema dá o movimento. Como? Seria, como se acredita, copiando mais de perto a mudança de lugar? De jeito nenhum, pois a câmera lenta oferece um corpo flutuando entre os objetos como uma alga, sem se mover. O que dá o movimento, como diz Rodin, é uma imagem onde os braços, as pernas, o tronco, a cabeça são tomados, cada qual num instante diferente do tempo, figurando, portanto, o corpo numa atitude que não teve em momento algum, e que impõe às suas partes ajustamentos fictícios, como se esse enfrentamento dos incompossíveis pudesse, e somente ele pudesse, soldar no bronze e na tela a transição e a duração.

A arte metamorfoseia o tempo para que ele possa durar. Não o imita. Recria-os, inventando o movimento a partir de sua existência secretamente cifrada.

Mas, afinal, o que as chamadas artes visuais e artes do movimento ensinam à filosofia? Por que são filosofia selvagem? Porque as primeiras descobrem o invisível como estofo, forro, avesso e polpa do visível e não como seu duplo intelectual. Porque as segundas descobrem o imóvel como o que sustenta o movimento, como vazio e falta que o solicita e o empurra para ser ele mesmo, e não uma ilusão sensível nem uma equação físico-matemática. Mais do que isto. Cada arte faz descobrir que, ao trabalhar com uma dimensão do Ser, chama todas as outras, invoca todas elas, e que a unidade de cada arte e de todas elas não está numa história contínua de acumulações, mas no presente de cada uma como retomada incessante de si mesma e de todas as outras. As artes ensinam à filosofia a deiscência da Carne do mundo e do corpo.

A filosofia da visão e do movimento está por ser feita e só o será quando o filósofo levar a sério a afirmação do artista de que pensa enquanto pintura ou escultura ou dança. A filosofia do sensível prometida pelas artes é a do universal sem conceito: o Ser Bruto na simultaneidade vertical de todas as suas dimensões e o Espírito Selvagem como excesso e falta que tornam impossível, doravante, pensá-lo no modo da presença a si.

OBRA DE ARTE E DE PENSAMENTO INSTITUINTES: HISTÓRIA E CULTURA

Filosofia e ciência sonham com o ideal de uma linguagem pura, transparente, dócil aos conceitos e às operações científicas, puramente instrumental, cuja função seria a de traduzir perfeitamente ideias em si mesmas silenciosas. Sonham com uma linguagem que dissesse tudo e o dissesse tão completamente que seria a perfeita transcrição de um texto original cuja expressão estivesse terminada. Sonham com uma língua bem-feita, reduzida a algoritmos unívocos como os da matemática, direta, completa e sem ambiguidades.

O sonho da filosofia e da ciência faz com a linguagem o mesmo que fez com o sensível: perde-a, como o perdeu.

Como o sensível, como o visível, a linguagem é misteriosa:

Num certo sentido, a linguagem só tem a ver consigo mesma: no monólogo interior como no diálogo, não há pensamentos, são palavras que as palavras suscitam e, na medida mesma em que pensamos mais plenamente, as palavras preenchem tão exatamente nosso espírito que não lhe deixam um canto vazio para pensamentos puros e para significações que não sejam linguageiras. O mistério é que, no exato momento em que a linguagem está assim obcecada consigo mesma, é-lhe dado, como que por excesso, abrir-nos para uma significação. Num instante, esse fluxo de palavras se anula como ruído, lança-nos em cheio no que queremos dizer e, se respondemos, é ainda por palavras, sem querer: não pensamos nos vocábulos que dizemos e nos dizem, como não pensamos na mão que apertamos. Esta não é um pacote de ossos e carne, mas a própria presença de outrem. Há, pois, um singular significado da linguagem, tanto mais evidente quanto mais a ela nos entregamos, tanto menos equívoco quanto menos pensamos nele, rebelde a toda captura direta, mas dócil ao encantamento da linguagem, sempre ali quando nos dirigimos a ela para evocá-lo, mas sempre um pouco mais distante do ponto onde acreditamos agarrá-lo.

Som e sinal, a linguagem é mistério porque presentifica significações, transgride a materialidade sonora e gráfica, invade a imaterialidade e, corpo glorioso e impalpável, acasala-se com o invisível.

Não é instrumento para traduzir significações silenciosas. É habitada por elas. Não é meio para chegar a alguma coisa, mas modo de ser. Mais do que isso. É um ser nela mesma. O sentido não é algo que preexistiria à palavra, mas movimento total de uma fala e por isso nosso pensamento vagabundeia pela linguagem. Quando nos entregamos a ela, o sentido vem. Quando queremos agarrá-lo sem ela, ele nunca vem. Rigorosamente, nosso pensamento está sempre na ponta da língua.

Mas como a linguagem significa? De modo indireto e alusivo. Não designa um sentido, presentifica-o através dos signos, porém sempre sobre um fundo primordial e inesgotável de silêncio. Sem dúvida, temos o sentimento de que nossa língua exprime completa e diretamente as significações. Quando em inglês se diz “The man I love”, nossa tendência espontânea é julgar que falta na frase inglesa algo que existe na portuguesa e que a faria exprimir mais completamente o sentido — “O homem que eu amo”. Todavia, esse sentimento de falta alheia e completude nossa deve-se apenas ao fato de que nossa língua nos insere num mundo cultural onde ela parece exprimir completamente e não porque realmente o faça ou possa fazê-lo. É por ser indireta e alusiva, totalidade aberta e móvel sobre um fundo interior de silêncio, que a palavra é expressiva: “a linguagem diz peremptoriamente quando renuncia a dizer a própria coisa […] significa quando, em vez de copiar o pensamento, deixa-se fazer e refazer por ele”.

Porém, que linguagem é esta cuja força existe somente quando não se reduz a ser mera designação de coisas nem mera cópia de pensamentos? Não é a linguagem empírica e costumeira de nossa vida cotidiana, já instituída em nossa cultura. É a linguagem criadora, operante, instituinte. É a linguagem do escritor quando este imprime uma torção na linguagem existente, obriga-a a uma “deformação coerente”, rouba-lhe o equilíbrio para fazê-la significar e dizer o novo. “Como o tecelão, o escritor trabalha pelo avesso: só tem a ver com a linguagem e é assim que, subitamente, encontra-se rodeado de sentido.” O mistério da linguagem está em que só exprime quando se faz esquecer e só se deixa esquecer quando consegue exprimir. Quando sou cativada por um livro, não vejo letras sobre uma página, não olho sinais, mas participo de uma aventura que é pura significação e, no entanto, ele não poderia oferecer-se a mim senão como linguagem. Um livro, escreve Merleau-Ponty, é “uma máquina infernal de produzir significações”. A virtude gloriosa da linguagem está exatamente nisto, nesse poder para esconder-nos suas operações — como o tecelão que só nos deixa ver o direito da tapeçaria, embora esta só exista graças ao trabalho feito pelo avesso. O triunfo da linguagem é o de nos fazer crer, ao término de um livro, que nos comunicamos com o autor de espírito a espírito, sem palavras.

Preguiçosamente, começo a ler um livro. Contribuo com alguns pensamentos, julgo entender o que está escrito porque conheço a língua e as coisas indicadas pelas palavras, assim como sei identificar as experiências ali relatadas. Escritor e leitor possuem o mesmo repertório disponível de palavras, coisas, fatos, experiências, depositados pela cultura instituída e sedimentados no mundo de ambos. De repente, porém, algumas palavras me “pegam”. Insensivelmente, o escritor as desviou de seu sentido comum e costumeiro e elas me arrastam, como num turbilhão, para um sentido novo que alcanço apenas graças a elas. O escritor me invade, passo a pensar de dentro dele e não apenas com ele, ele se pensa em mim ao falar em mim com palavras cujo sentido ele fez mudar. O livro que eu parecia dominar soberanamente apossa-se de mim, interpela-me, força-me a passar da língua falada à linguagem falante, arrasta-me do instituído ao instituinte. Somente depois, ao término di leitura, tenho o sentimento de uma comunicação que se teria feito sem palavras, pois, agora, as palavras do escritor tornaram-se minhas, não consigo distinguir-me dele, separar suas palavras e as minhas. Neste momento, uma aquisição foi feita, e o livro, doravante, pertence às significações disponíveis da cultura. Se eu também for escritora, uma tradição foi instituída e eu a recolherei para, ao retomá-la, reabrir a linguagem numa nova instituição.

A obra literária, como a obra de pensamento, parte de uma cumplicidade entre escritor e leitor, do eco das palavras do primeiro no segundo, do “enfrentamento entre os corpos gloriosos e impalpáveis de minha palavra e a do autor”. Como e por que isto é possível? Como e por que a palavra instituinte — a obra desloca, deforma e descentra a palavra instituída e carrega o leitor para o recinto do livro? Como é possível a cumplicidade inicial entre autor e leitor, o enfrentamento inicial, a fascinação e, finalmente, a indistinção entre ambos que só será desfeita quando a diferença entre ler e escrever for reposta por um leitor que se torne escritor? Por que a assimetria inicial e final entre leitor e escritor aparece sob a forma (ilusória) da soberania — no início, a do leitor sobre o autor; no fim, a do escritor sobre o leitor? É que a linguagem é retomada sublimada da percepção, reconquistando-a numa ordem diferente dela. Porque a linguagem recolhe e transforma um mundo mais antigo, onde vivem leitor e escritor, entre ambos se instala a cumplicidade, a assimetria experimentada como rivalidade de soberanias, a fascinação e a diferença que permitirá a um leitor tornar-se escritor. Como a pintura, a literatura é retomada de uma tradição mais antiga do que ela, a do mundo perceptivo, e é abertura de uma nova tradição, a da obra como cultura. Assim como o pintor tateia entre linhas e cores para fazer surgir no visível um novo visível, assim também o escritor tateia entre sons e sinais para fazer surgir na linguagem uma nova linguagem. Essas operações instituem o mundo cultural como mundo histórico no qual o momento instituinte se enraiza no instituído, abrindo uma nova instituição que se tornará, a seguir, instituída e uma tradição disponível para todos.

Pintor e escritor tateiam em torno de uma intenção de significar que não se guia por um modelo prévio: o pintor escolhe um visível arrancando-o de um fundo invisível; o escritor escolhe um dizível arrancando-o de um fundo silencioso. Realizam a operação da origem. O primeiro efetua a ação livre que descentra e reagrupa as coisas; o segundo, a ação livre que descentra e reagrupa as palavras. Por isso o primeiro nos ensina o que é ver e o segundo, o que é dizer. Ao fazê-lo, ambos ensinam ao filósofo o que é o verdadeiro: “é essencial ao verdadeiro sempre apresentar-se, primeiro, num movimento que descentra, distende, solicita nossa imagem do mundo rumo a mais sentido”.

Cada obra de arte — visual ou literária, do movimento ou do som — retoma uma tradição: a da percepção, as obras dos outros, as obras anteriores do mesmo artista, numa espécie de eternidade provisória”; mas, simultaneamente, instaura uma tradição: abre o tempo e a história, funda novamente seu campo de trabalho e, incidindo sobre as questões que o presente lhe coloca, resgata o passado ao criar o porvir. Exprimir é empregar os meios disponíveis oferecidos pelo instituído — o mundo da percepção e da cultura — para deformá-los, instituindo uma nova coerência e um novo equilíbrio que, a seguir, serão retomados numa nova expressão que os recolheu como falta e excesso do que deseja exprimir. Sob esta perspectiva, a distinção entre sincronia e diacronia ganha outro sentido. Já não estamos diante da oposição entre o presente como totalidade simultânea e o tempo como mero escoamento, porém mergulhados numa totalidade simultânea e aberta porque nela o presente, como falta e excesso, pede um porvir, exigindo o futuro não como telos, mas como restituição instituinte do passado. A diacronia não é diferença dos tempos, mas diferença temporal entre o que jamais poderá ser repetido e, no entanto, evoca um porvir ao ecoar no presente, e o que ainda não foi realizado, mas invoca o passado dando-lhe um futuro.

Eis por que a história das obras de arte e de pensamento não é uma história empírica de acontecimentos, nem uma história racional-espiritual de desenvolvimento ou progresso linear: é uma história de adventos. Por esse motivo, escreve Merleau-Ponty, nem sempre o museu e a biblioteca são benfazejos. Por um lado, criam a impressão de que as obras estão acabadas, existindo apenas para serem contempladas, e que a unidade histórica das artes e a do pensamento se fazem por acumulação e reunião de obras; por outro lado, substituem a história como advento pela hipocrisia da história pomposa, oficial e celebrativa, que é esquecimento e perda da forma nobre da memória. Seria preciso ir ao museu e à biblioteca como ali vão os artistas, os escritores e os pensadores: na alegria e na dor de uma tarefa interminável em que cada começo é promessa de recomeço.

Qual a diferença entre acontecimento e advento, esquecimento e memória? Se o tempo for tomado como sucessão empírica e escoamento de instantes, ou se for tomado como forma a priori da subjetividade transcendental que organiza a sucessão num sistema de retenções e protensões, não haverá senão a série de acontecimentos. O acontecimento fecha-se em sua diferença empírica ou na diferença dos tempos, esgota-se ao aeon-tecer. O advento, porém, é o excesso da obra sobre as intenções significadoras do artista; é aquilo que sem o artista ou sem o pensador não poderia existir, mas também o que eles deixam como ainda não realizado, algo excessivo contido no interior de suas obras e experimentado como falta pelos que virão depois deles e que retomarão o feito através do não-feito, do por-fazer solicitado pela própria obra. O advento é aquilo que, do interior da obra, clama por uma posteridade, pede para ser acolhido, exige uma retomada porque o que foi deixado como herança torna-se doação, o dom para ir além dela. Há advento quando há obra e há obra quando o que foi feito, dito ou pensado a fazer, a dizer e a pensar. O advento é “promessa de acontecimentos”.

A história do advento debruça-se sobre o artista e o pensador no trabalho quando, num só gesto, agarram a tradição e instituem uma outra que será agarrada pelos pósteros. No trabalho, artistas e pensadores reconciliam todas as obras — as suas e as dos outros — porque cada uma delas exprime uma existência inteira e não uma coleção de objetos finitos e gestos vãos. A história do acontecimento, ao contrário, possui duas maneiras de perder as obras: ou quebrando a temporalidade imanente que as sustenta, submetendo-as ao tratamento analítico para, depois, tentar reuni-las pela síntese .intelectual (como se a unidade da cultura viesse da soma sintética de obras despedaçadas pelo entendimento); ou dando a cada uma delas um lugar num sistema geral do desenvolvimento do Espírito que permite a lembrança delas sob a condição expressa de roubar-lhes a alma, isto é, o essencial. O esquecimento, lemos numa nota de trabalho de O visível e o invisível, é desdiferenciação, perda de relevo e de contorno. A memória do Espírito é esse esquecimento de feridas que se curam sem deixar cicatrizes.

O esquecimento é pura repetição, pompa e cerimônia… fúnebres. A forma nobre da memória, porém, é a retomada das obras pelos artistas e pensadores, que as retomam para não repeti-las, mas para criar. A unidade temporal das artes, da literatura, da filosofia é a percepção, oblíqua e indireta, que cada artista, escritor ou filósofo possui de seu trabalho como momento de uma tarefa única e, por isso mesmo, infinita. Quando foi feito o primeiro desenho na parede da caverna, foi prometido um mundo a pintar que os pintores não fizeram senão retomar e abrir. Quando foi proferido o primeiro canto e o primeiro poema, foi prometido um mundo a cantar e a dizer que músicos e escritores não fizeram senão retomar e abrir. Quando foi feito o primeiro gesto cerimonial, foi prometido um mundo a dançar e a esculpir que dançarinos e escultores não fizeram senão retomar e abrir. Quando o primeiro pensamento foi expresso, foi prometido um mundo a pensar que cientistas e filósofos não fizeram senão retomar e abrir.

A história como esquecimento, historicidade da morte, toma a obra acabada como prodígio a ser contemplado — é a história vista pelo mero espectador. A história como forma nobre da memória, historicidade da vida, é a que capta as obras como excesso do que se queria fazer, dizer e pensar, excesso que abre aos outros a possibilidade da retomada e da criação como carência e vazio no interior do excesso — é a história efetuada pelo trabalho dos artistas, escritores e pensadores. Inquietação instituinte sempre aberta.

Donde, escreve Merleau-Ponty, o parentesco profundo entre arte, filosofia e política:

O que faz de uma obra de arte algo insubstituível e mais do que um instrumento de prazer é que ela é um órgão do espírito, cujo análogo se encontra em toda obra filosófica e política, se forem produtivas, se contiverem não ideias, mas matrizes de ideias, emblemas cujo sentido jamais acabaremos de desenvolver, justamente porque elas se instalam em nós e nos instalam num mundo cuja chave não possuímos (…) O que julga um homem — artista, filósofo, político — não é a intenção nem o fato, mas que tenha conseguido ou não fazer passar os valores nos fatos. Quando isto acontece, o sentido da ação não se esgota na situação que foi sua ocasião, nem em algum vago juízo de valor, mas ela permanecerá exemplar e sobreviverá em outras situações, sob uma outra aparência. Abre um campo, às vezes, institui um mundo, e, em todo caso, desenha um porvir.

A história das artes, da literatura, da filosofia e da ação política é maturação de um futuro e não sacrifício do presente por um futuro desconhecido. A regra, e única regra, de ação para o artista, o escritor, o filósofo e o político não é que sua ação seja eficaz, mas que seja fecunda, matriz e matricial.

Ação fecunda, deiscência de nossa carne e da carne do mundo, gravidez e parto intermináveis, promessa de acontecimentos, instituição de adventos: todos esses termos exprimem a mesma significação, o excesso do sentido sobre o sentido já realizado, fazendo com que arte, literatura, filosofia e política sejam sempre elucidação de uma percepção histórica aberta sobre o enigma de uma plenitude excessiva e carente.

O que a obra de arte instituinte nos ensina, afinal?

Toda ação e todo conhecimento que não quiserem ser uma elucidação/ela-boração abertas e intermináveis, que quiserem estabelecer valores sem corpo em nossa história individual e coletiva, ou, o que dá no mesmo, que queiram escolher os meios por um cálculo e por um procedimento técnico, caem aquém dos problemas que pretendiam resolver. A vida pessoal, a expressão artística, a ação política, o conhecimento filosófico e a história avançam obliquamente, nunca vão diretamente aos fins e aos conceitos. Aquilo que buscamos muito deliberadamente, não conseguimos obter, mas as ideias e os valores não faltarão a quem souber, em sua vida meditante, liberar-lhes a fonte espontânea.

* Foram citadas as seguintes obras de Merleau-Ponty: Le visible et l’invisible, Paris, Gallimard, 1964 (trad. brasileira, O visível e o invisível, São Paulo, Perspectiva, 1971); “Le doute de Cézanne”, em Sens et non-sens, Genebra, Nagel, 1965; L’oeil et l’esprit, Paris, Gallimard, 1964; “Le langage indirect et les voix du silence”, em Signes, Paris, Gallimard, 1960; “L’algorithme et le mystère du langage”, em La prose du monde, Paris, Gallimard, 1971.

Figura 1 - Cena da raposa e o antílope (primeira metade do séc. II d.C). Colônia, Museu Romano-Germânico
Figura 1 – Cena da raposa e o antílope (primeira metade do séc. II d.C). Colônia, Museu Romano-Germânico
Figura 2 - El Greco. São João Evangelista (1595-1600). Madri, Museu do Prado.`
Figura 2 – El Greco. São João Evangelista (1595-1600). Madri, Museu do Prado.
Figura 3 - Cézanne. Pedreira e o monte de Santa Vitória. Baltimore, The Baltimore Museum of Art.
Figura 3 – Cézanne. Pedreira e o monte de Santa Vitória. Baltimore, The Baltimore Museum of Art.
Figura 4 - Matisse. Acrobates (1952). Coleção Privada.
Figura 4 – Matisse. Acrobates (1952). Coleção Privada.

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