Alegoria, imagens, tableau
por Willi Bolle
Resumo
O imbricamento entre poesia e pensamento, na obra de Walter Benjamin, manifesta-se em sua arte de escrever a história com imagens. Eis suas propostas: “desenhar uma imagem abreviada do mundo”, “alcançar a concretude que passam os flagrantes de um jogo infantil, um prédio, uma situação de vida”, “descobrir como as experiências da cidade grande se condensam numa criança burguesa e “escrever uma história social da Paris do século XIX”. Está claro que Benjamin trabalha tanto com categorias históricas quanto com formas filosófico-poéticas.
Nesse esforço, é preciso que Benjamin articule micro e macro histórias, a partir de expedientes como alegoria, imagem de pensamento, sobretudo dialético, e “tableau”. É assim que Benjamin representa a metrópole moderna, tendo por referencial a palavra “passagem”, com seus múltiplos sentidos, a exemplo de construção urbanística, trecho escrito, travessia, iniciação, tempo histórico – de forma heurística, fragmentária ou constelacional.
A imagem dialética é a imagem histórica em si, contanto que, ao apresentar o passado, ele contraste com o presente. Ou, segundo Benjamin: ” Não se trata de apresentar a obra literária no contexto em que foi escrita, mas de apresentá-la no tempo que a conhece e revela, ou seja, o atual. Até porque, se comparada a história com a escrita, é como se o passado tivesse deixado nela marcas que só a luz futura pode revelar.
O “tableau”, cuja origem são os “Tableaux parisienes” de Baudelaire. Foi por meio de tal gênero – que muito se pareceria com uma crônica filosófico-literária – que Benjamin tentou expressar certas questões de ordem dialética, sobretudo em “Infância berlinense por volta de 1900” e, a partir dela, na segunda parte da “Obra das passagens”. O interessante nele é sua versatilidade de abordagem, que vai dos usos e costumes à fisonomia da metrópole, com suas facetas múltiplas e sínteses de situações simultâneas e complexas. Tudo que, ao misturar gêneros, abre espaço para cenas movimentadas, transformações históricas e reestruturações da paisagem urbana.
A imagem de pensamento, curta prosa no meio do caminho entre poesia e teoria social, deriva da tradição bíblica, na forma de parábola secular.
Exemplar nesse sentido é “Rua de mão única” ou “Contramão”, uma espécie de sobreposição, em sessenta imagens, entre o Livro dos livros e a Cidade.
A alegoria é, enfim, o fundamento dos três gêneros de escrita benjaminianos mencionados. Trata-se do desejo de desvendar a época em que ele viveu. O que o Fausto de Göethe vê ao descer às regiões primordiais ou míticas da humanidade, onde são produzidas as imagens, sobretudo as desejantes. No caso de Göethe e Benjamin, as imagens que integram a constelação da vida do sujeito histórico.
O imbricamento entre poesia e pensamento, na obra de Walter Benjamin, se expressa em sua arte de escrever a história com imagens. O arcabouço historiográfico de sua obra é formado pelas seguintes propostas: desenhar, por meio da ideia-mônada, “uma imagem abreviada do mundo” (Origem do drama barroco alemão, 1925); transpor para o estudo de uma época “a concretude obtida para um jogo infantil, um prédio, uma situação de vida” (Rua de mão única, 1928); flagrar as “imagens nas quais a experiência da grande cidade se condensa numa criança de classe burguesa” (Infância berlinense por volta de 1900, 1933); e escrever uma “história social da cidade de Paris no século XIX” (Obra das passagens, 1927-40). Como se vê, ele trabalha concomitantemente com categorias historiográficas tradicionais — “classe”, “história social”, “época” e formas filosófico-poéticas: “mônadas” “imagens” e detalhes “concretos”.
A fim de mostrar como Benjamin articula a história “micrológica” com a “macro”-história, focalizaremos os gêneros constitutivos dos referidos livros: a alegoria, a imagem de pensamento, o tableau e a imagem dialética. Através desses gêneros literários urbanos o pensador representa a metrópole moderna, como palco da história do século XX. Seu projeto deixa-se sintetizar na palavra-chave passagem, com seus sentidos múltiplos: configuração arquitetônico-urbanística, recorte de texto, travessia, iniciação, alegoria do tempo histórico. “Passagem” é usada aqui num sentido heurístico, para expor a estética benjaminiana, ao mesmo tempo fragmentária e constelacional. De acordo com o objeto estudado, nossa abordagem se fará numa ordem inversamente cronológica, do presente em direção ao passado.
IMAGEM DIALÉTICA
“A imagem histórica autêntica”, a que Benjamin se refere em suas teses Sobre o conceito de história (1940), é a imagem dialética. Um de seus elementos é “o agora da conhecibilidade”. Isto significa que o ponto de fuga da construção histórica se localiza no presente. O ensaio A Paris do Segundo Império em Baudelaire (1938) é uma leitura do passado, através da qual Benjamin fala da transformação da República de Weimar na ditadura nacional-socialista. Tal superposição de épocas diferentes, com imagens comparativas, que fazem com que o póstero “desperte” e conheça sua própria época, caracteriza a historiografia alegórica. Seu lema metodológico: “Não se trata de apresentar as obras literárias no contexto de seu tempo, mas de apresentar, no tempo em que elas nasceram, o tempo que as revela e conhece: o nosso” (GS, III, p. 290).[1]
Analogamente, os textos de Benjamin colocam um desafio para nós, seus leitores: decifrar a nossa época através dos textos dele. É uma exigência nada fácil a cumprir. Entre Benjamin e a nossa época existe um intervalo de tempo em que ocorreram transformações importantes que nos desafiam a compreendê-lo numa perspectiva histórica. A “Pós-Modernidade”, na qual vivemos, representa, enquanto quebra das utopias da Modernidade, uma nítida diferença em relação ao tempo de Benjamin. Sendo que a Pós-Modernidade, a rigor, começou em 1933…
Passagem de Walter Benjamin — isso significa não só que se trata de um autor de outro tempo, mas também de outro espaço cultural e de outra língua. Trata-se também da dificuldade de “passar” Benjamin para o português, o que implica um trabalho de tradução e diálogo intercultural. Para dar uma ideia do que isso significa, mostrarei alguns momentos de contato entre a representação da metrópole na obra de Benjamin e a representação de cidades na literatura brasileira. A partir daí fica mais claro em que consiste a historiografia alegórica.
E de repente aqueles homens podiam ser montão, montoeira, aos milhares mis e centos milhentos, vinham se desentocando e formando, do brenhal, enchiam os caminhos todos, tomavam conta das cidades. Como é que iam saber ter poder de serem bons, com regra e conformidade, mesmo que quisessem ser? Nem achavam capacidade disso. Haviam de querer usufruir depressa de todas as coisas boas que vissem, haviam de uivar e desatinar. Ah, e bebiam, seguro que bebiam as cachaças inteirinhas da januária. E pegavam as mulheres, e puxavam para as ruas, com pouco nem se tinha mais ruas, nem roupinhas de meninos, nem casas. Era preciso de mandar tocar depressa os sinos das igrejas, urgência implorando de Deus o socorro. E adiantava? Onde é que os moradores iam achar grotas e fundos para se esconderem — Deus me diga?[2]
Essa passagem de Grande sertão: veredas, num diálogo imaginário com a obra de Benjamin, representa o ayesso da metrópole: a periferia da periferia. Visionariamente, Guimarães Rosa mostra algo que a história da segunda metade do século XX iria confirmar: uma procissão de depauperados e miseráveis que saem de um sertão do tamanho do mundo a caminho das grandes cidades, coma se elas fossem a Terra Prometida.
Tentemos revelar a imagem dessas massas que se arrastam da margem da história em direção à metrópole. A “revelação”, no sentido fotográfico, é um dos pré-requisitos para se obter a imagem dialética: “Se considerarmos a história como um texto, vale para ela o que um autor recente disse dos textos literários: o passado deixou neles imagens comparáveis as que a luz imprime numa chapa sensível. Apenas o futuro possui reveladores suficientemente ativos para fazer surgir a imagem com todos os detalhes.” (GS, 1, p. 1238).
Continuamos a citação, parafraseando Benjamin: “Às vezes, uma página de Euclicles da Cunha ou de Guimarães Rosa encerra um sentido misterioso que os primeiros leitores não conseguiam decifrar plenamente”. Isto, porque faltava por assim dizer a “química” de categorias teóricas novas que possam “extrair” a imagem contida naqueles textos, aumentar sua legibilidade, aguçar o “agora da conhecibilidade”.
À luz das categorias teóricas de Benjamin, a citada passagem de Grande sertão: veredas deixa-se revelar como uma imagem dialética. É a única, em todo o romance, em que ocorre a ruptura com o sistema econômico social representado. A sociedade do Grande sertão — apesar de ocorre rem guerras de jagunços, lutas de latifundiários é historicamente estática: as intervenções de um longínquo governo invisível não perturbam em nada a rotina de uma economia rural auto-suficiente. É o mundo fechado sobre si do Brasil arcaico.
Nesse mundo, incide como um “lampejo” — outra característica da imagem dialética — a passagem visionária dos migrantes. A população dos sertões é atraída pela esfera de poder da economia mundial e integrada ao sistema. Ela depende das metrópoles: é periferia”. O romance mostra que o que parecia parado e mítico é movido pelas forças da história.
Que tipo de fantasia da Grande Cidade se forma no imaginário dos que a procuram?[3] Se para os migrantes, Januária é um lugar onde tem “todas as coisas boas”, o que dizer, então, das cidades que são verdadeiros locais de “peregrinação ao fetiche da mercadoria”? E se é possível encontrar, do lado de cá do oceano, a Paris N’América,[4] qual não será o esplendor da própria Metrópole! “Capital do século XIX” foi o título escolhido por Walter Benjamin para seu primeiro exposé (1935) da Obra das passagens. Paris como “capital do luxo e da moda”, palco do “desabrochar mais radioso na cultura capitalista”, cidade-vitrine que oferece ao consumidor, como a um príncipe, a abundância das mercadorias de todos os países do mundo: “As passagens, uma recente invenção do luxo industrial, são galerias cobertas de vidro, com paredes revestidas em mármore, atravessando blocos inteiros de prédios, cujos proprietários se associaram para esse tipo de especulação. De ambos os lados dessas galerias, que recebem sua luz de cima, alinham-se as lojas mais elegantes, de modo que uma tal passagem é uma cidade, um mundo em miniatura, onde o comprador pode encontrar tudo o que precisa” (GS, V , p. 1044).
As passagens são, segundo Benjamin, “a construção mais importante do século XIX”. Nelas se configura a “mitologia da Modernidade”. São lugares onde a coletividade sonha seus sonhos. Essa atmosfera onírica, com as imagens de desejo e fantasmagorias, e também utopias emancipatórias, foi descrita pioneiramente no livro de Aragon Le paysan de Paris (1926).
Inspirando-se nessa obra surrealista, Benjamin também procura representar o imaginário do homem urbano. Sua Obra das passagens é constituída de milhares de textos passagens: documentos, recortados da imensa literatura sobre Paris e organizados em cadernos temáticos como “Passagens, lojas de novidades”, “Moda”, “Exposições”, “Cidade onírica”, “Saint Simon“, “Fourier”, “movimentos sociais”, e assim por diante. Através de um sistema de siglas coloridas, Benjamin marcou trilhas de leitura nessa coletânea de materiais, criando determinados arranjos de fragmentos que possibilitam ler a mentalidade da época.
Em relação a Aragon, Benjamin concebeu seu trabalho como o de um historiador versus um mitógrafo. O historiador, segundo Benjamin, é “um intérprete de sonhos”, dos “sonhos coletivos”. Sua tarefa consiste em “dissolver a mitologia no espaço da história” (GS, V, p. 1014).
Essa ideia já consta dos primeiros esboços do “Trabalho das passagens”, de 1927, um ensaio “feérico-dialético”, do qual Benjamin redigiu fragmentos até 1929. Quando retomou o projeto, em 1934, se propôs algo mais amplo e mais ambicioso: “uma história social da cidade de Paris no século XIX”. No tempo de interrupção entre a primeira e a segunda fase do “Trabalho das passagens”, ocorreu, na história real, a “passagem” da República de Weimar para o Reich de Hitler.
Benjamin não estudou a história social da Paris do século XIX em si, mas pelo interesse que ela representa para a compreensão da mentalidade e da mitologia de sua época. “Ao método dialético da historiografia importa […] fazer jus à situação histórica concreta que suscita o interesse pelo objeto estudado” (GS, v, p. 494).
Qual é a relação de “interesse”, literalmente: de “estar no meio”, que Benjamin estabelece entre a sua época e a do Segundo Império? Não é uma história causal, no sentido de que aquela época tivesse preparado o Terceiro Reich. No entanto, o estudo do Second Empire pode revelar, de modo paradigmático, quais são as forças responsáveis pela transformação de uma república numa ditadura. Ou seja: é possível estudar naquela época atitudes mentais que se repetiram no tempo da República de Weimar.
Como mostram análises empíricas das eleições na Alemanha anterior a 1933, os nazistas tiveram sua principal fonte de votos na classe média. Benjamin se propôs investigar a mentalidade dessa classe e a história de sua consciência social, reconstituindo a formação do seu imaginário e de sua mitologia.
Juntamente com os demais membros do Instituto de Pesquisa Social, Benjamin se empenhou em elucidar quais as relações entre o projeto histórico burguês e o fascismo. Em vez de opor a “cultura burguesa” à “barbárie fascista”, procurou explicar o fenômeno do fascismo através de uma crítica da consciência burguesa. “Tal crítica”, explica ele, “não se realiza de fora, e sim como autocrítica.” Derrotado pela história, Benjamin tenta diagnosticar os erros cometidos. O que os intelectuais da República de Weimar efetivamente fizeram para deter o avanço do fascismo? Segundo ele, a crítica revolucionária alemã cometeu erros “imperdoáveis”. Deixou de dar a devida atenção aos precursores do fascismo entre os artistas e intelectuais, e ao próprio conceito fascista de cultura.
A razão para essa falta de atenção está provavelmente no fato de que a intelectualidade de esquerda estivesse convencida de “ter o vento da história universal em suas velas”. Isso a fez subestimar o impacto da demagogia nacional socialista sobre as massas. O que lhe bloqueava a visão era a confusão de sua própria mitologia política e das palavras de ordem com a realidade. Assim como os consumidores sonham nas passagens seus desejos de consumo, também os intelectuais sonham seus mitos políticos. Um “despertar” só ocorre quando a intelectualidade reconhece seus próprios mitos.
As imagens dialéticas, segundo Benjamin, não são categorias objetivas, mas se localizam em sujeitos históricos. Na discussão do projeto dos surrealistas, que passaram da experimentação com sonhos para uma adesão ao comunismo, Benjamin declarou que o verdadeiro lugar de atuação do intelectual é no “espaço imagético”. Como é que esse trabalho foi realizado pela intelectualidade alemã nos anos de crise 1929-33?
“Cada época sonha a época seguinte.” Quando Benjamin cita essa frase de Michelet, devemos ter em mente que ela vale tanto para as utopias emancipatórias quanto para as repressivas. O reexame dessas questões, hoje em dia, não pode ser predominantemente ideológico, no sentido de reafirmar as antigas palavras de ordem. Temos de examinar como se fabrica um imaginário ideológico ou mitológico. Mais exatamente: o que distingue a fabricação de imagens “autenticamente históricas” da confecção de imagens míticas? Como um tempo histórico é transformado em tempo mítico? E vice-versa.
O mito do século XX assim se chama o livro de um dos ideólogos do nazismo, Alfred Rosenberg. Com maior razão, esse título caberia à obra de Ernst Jünger, em quem Benjamin viu um dos principais teóricos do fascismo. De fato, como mostrou Jeffrey Herf em seu estudo O modernismo reacionário (1984),[5] a contribuição específica de Jünger foi ter introduzido a máquina e a técnica no ideário do nacionalismo e conservadorismo alemão, que assim se tornou competitivo também nas lutas ideológicas do século XX. Trata-se de um programa de modernização técnica sem modernização social, que efetivamente veio se realizar de 1933 em diante. É a preparação desse fato o sonho de uma ditadura, projetada durante um período republicano para a “época seguinte” — que Benjamin se propôs analisar. Ele procurou compreender o nazismo como fenômeno da história das mentalidades.
Para dar um exemplo, voltemos à imagem inicial dos que partem em busca da Grande Cidade. Como são recebidos ali, o que é que os espera?
Para um espírito não nascido dentro do ritmo do nosso espaço, nossa conduta de vida que se assemelha a uma mortal corrida de competição possui todas as características do enigma e até da loucura. Sob a máscara implacável da economia e da concorrência acontecem aqui coisas espantosas. Um cristão chegaria à conclusão de que as formas de publicidade, nos dias de hoje, possuem um caráter satânico. As fórmulas mágicas abstratas e as competições da luz no centro das cidades lembram a luta muda e obstinada das plantas por terra e espaço. Na rua, qualquer cidadão se locomove como um atleta numa competição. As instalações mais modernas, a tecnologia mais eficiente só existem por pouco tempo; ora são demolidas, ora erguidas.[6]
É possível reconhecer nesse texto o ritmo das nossas cidades. O que predomina nelas é o clima de loucura, de competição, de concorrência. Embora pareça uma representação perfeita de metrópoles do Terceiro Mundo como a desvairada Pauliceia, o texto foi escrito em outro tempo e em outra latitude. Trata-se de um trecho extraído do livro de Ernst Jünger, O operário (1932).
Naquele livro se sonhou a época iniciada em 1933 ou a nossa? Essa aproximação, própria da historiografia alegórica, não significa que a nossa época seja igual àquela, mas que o “sonho” de Jünger possa ter antecipado elementos da época atual.
Examinemos como Jünger transforma referências históricas em referências míticas, como ele destrói o éthos histórico.
Seu livro O operário é uma espécie de iniciação à metrópole moderna. O ensaísta-narrador se oferece de guia a Ahasvérus quando este, em 1933, recomeça suas andanças. A presença da figura de Ahasvérus, o Judeu Errante, nessa obra próxima à ideologia nazista, requer alguma explicação. O autor usa aqui a personagem para representar uma “consciência desterrada”, livre do peso da tradição e, por isso mesmo, disponível para assimilar as lições sobre um tipo humano novo: o operário.
Somos introduzidos primeiro em seu hábitat: a grande cidade contemporânea. Nas ruas e praças, bancos e laboratórios, escritórios e conjuntos habitacionais, aeroportos e metrôs, Ahasvérus observa “um movimento potencializado, que se realiza com rigor impessoal. Movimento ameaçador e uniforme que impulsiona esteiras mecânicas, massas passando umas pelas outras, numa flutuação uniforme regulada por sinais ruidosos ou incandescentes”, “o homem começa a se mover sob comandos inauditos e invisíveis”. A estetização do espaço tecnicizado, a abstração histórica e a invisibilidade do poder, numa passagem como essa, são propícios para criar um clima de ficção científica.
Uma paisagem moldada pela técnica substituiu a paisagem natural e cultivada, “um espaço exato, inteiramente construído, com relógios e instrumentos”; um espaço onde reinam “altas temperaturas”, “a gélida geometria da luz”, “o branco fulgor do metal incandescente”, onde a locomoção tende a “atingir a velocidade de projéteis”. A metrópole aparece como um campo de batalha, uma zona de perigo. O homem vive ali “em estreita — centáurica — relação com seus meios técnicos”. Com a imagem do centauro cria-se uma transferência da mitologia clássica ao mundo moderno da indústria e do esporte. Superposição entre centauro e piloto de corrida. Simbiose entre homem e máquina: “A velocidade produz uma espécie de êxtase sóbrio, e um grid de carros de corrida cada piloto sentado no volante como um manequim dá uma impressão da mescla singular entre precisão e perigo, característica do padrão de movimento potencializado desse espaço”.
Esse passeio iniciático é uma introdução ao “espaço de trabalho”. O visitante entra em contato com a figura nova do “operário”. O que Jünger entende pelo “operário” que, para ele, representa o novo sujeito da história? Ele recusa a visão que o operariado desenvolveu de si mesmo em sua história de reivindicações e lutas, inclusive o conceito de “proletariado”. A greve, como forma de militância dos operários pelas suas necessidades e seus direitos, é considerada um meio superado, “inadequado ao rigoroso mundo do trabalho do século XX”. Todas as referências históricas são eliminadas e substituídas por uma mítica “nova era”. O “operário” passa a ser uma categoria genérica. São niveladas as diferenças entre tipos de trabalho e faixas salariais, status social e hierarquia, vida civil e militar. Para designar o imbricamento entre vida civil e militar, característico das utopias totalitárias, Ignácio de Loyola Brandão, em Não verás país nenhum, cunhou o termo expressivo “os civiltares”.
Na utopia do Estado tecnocrático segundo Jünger, a economia é direcionada para fins bélicos e num ritmo bélico. A palavra-chave é a mobilização. A guerra é um “gigantesco processo de trabalho”, e o operário, um “soldado” na “batalha da produção”.
Esse uso da técnica pelo fascismo foi contestado por Benjamin em seu ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica o texto com o qual começou, em 1967, a recepção de Benjamin no Brasil. Na segunda versão do ensaio, publicada somente em 1989, o crítico distingue entre “primeira” e “segunda técnica”. A primeira técnica emprega o homem como meio, exigindo o sacrifício humano. Benjamin lhe opõe uma ideia emancipada da técnica, que é a técnica a serviço do homem.
Para Jünger, a técnica é “o domínio da linguagem válida no espaço de trabalho”. O passeio iniciático, proporcionado a Ahasvérus pelo ensaísta-narrador, equivale a uma regressão para um mundo mítico. A obra de Jünger circunda um fetiche, uma configuração chamada Trabalho, de modo hipnotizante. Em nome desse novo culto, o domingo, como “símbolo de ordens culturais antigas que entraram em decadência”, é considerado inútil e, portanto, abolido.
Não chegamos a tanto, na cidade de São Paulo, mas é de lembrar que, entre 1985 e 1988, foram instalados relógios públicos com o lema “É hora de trabalhar” indício de um sistema em que o trabalho assume o lugar da religião. Prosseguindo nessa linha, uma visão do futuro da metrópole brasileira, nos primeiros decênios do século XXI, é apresentada pelo já referido livro Não verás país nenhum, narrado da perspectiva de um professor de história demitido. Os calendários e a história foram abolidos. O tempo é o tempo homogêneo da ordem dominante.
Eis uma amostra de como funciona a fabricação de imagens míticas, a des-historização do tempo, a “destruição do ethos histórico”. Essa visão de um tempo “homogêneo e uniforme” propício ao trabalho compulsório, à submissão, à falta de liberdade —, Benjamin a encontrou na tecnocracia fascista, na Paris do Segundo Império e no drama barroco comprometido com o ideal do Estado absolutista. A imagem dialética é um instrumento para analisar e questionar a fabricação de mitologias.[7]
TABLEAU
Várias das questões relativas à construção da imagem dialética foram experimentadas por Benjamin num outro gênero filosófico-literário, o tableau. Através da tradução, publicada em 1923, dos Tableaux parisiens de Baudelaire, ele incorporou essa forma ao seu trabalho. A origem jornalística do tableau, que tem muito em comum com a crônica, transparece no título do livro oficina Crônica berlinense, de 1932, não destinado à publicação. Dele se originou a Infância berlinense por volta de 1900, escrita entre 1932 e 1934, ou seja, no intervalo entre a primeira e a segunda fase da Obra das passagens, e constituída de tableaux. Trata-se de um gênero muito apropriado a complementar o macroestudo de época, que é a “história social do século XIX”, por quadros micrológicos da cultura cotidiana.
No seu apogeu nos séculos XVIII e XIX, o tableau foi a forma preferida dos folhetinistas historiógrafos.[8] Baudelaire, ao representar a metrópole nos Tableaux parisiens, já contava com uma forma aperfeiçoada por um uso intenso e variado. O tableau permite, em pouco espaço, pôr em cena usos e costumes. A versatilidade do gênero o predispõe a representar a fisionomia da grande cidade, com suas facetas múltiplas e condensar num instantâneo a sua complexa simultaneidade. Nas mãos de Baudelaire, e depois de Benjamin, o tableau incorporou também a estética fragmentária dos românticos, reelaborada à luz da experiência da metrópole moderna. Além de se prestar à mistura de gêneros, o tableau é particularmente apropriado para representar cenas movimentadas, transformações históricas, reestruturações da paisagem urbana, o vai-e-vem da memória do flâneur e, com isso, as relações entre indivíduo e sociedade, a cidade e seus habitantes.
Graças à sua descontinuidade, o tableau se presta a ilustrar o “novo método dialético da historiografia” benjaminiana, que rompe com a tradicional historiografia linear e causal. Uma referência fundamental é a teoria freudiana do sonho e da memória. Como observa Freud, “a reprodução das experiências vividas como uma cadeia contínua” só se dá aproximadamente da idade escolar em diante. Do tempo anterior, decisivo para a formação do indivíduo, temos na nossa memória apenas fragmentos. Tais detalhes aparentemente irrelevantes, porém precisos, são o material com o qual Benjamin tece seus quadros da cultura. Os fragmentos de memória — comparáveis, segundo Freud, à proto-história dos povos, expressa em mitos e lendas — tornam-se para Benjamin elementos de construção da mitologia moderna. O acesso aos resíduos da memória infantil se dá apenas através de memória involuntária ou sonhos. Ou ainda, como propõe Benjamin, através de determinadas estratégias de memória voluntária: “Viver, com a intensidade de um sonho, o passado, a fim de experimentar o presente como o mundo da vigília ao qual o sonho se refere” (GS, v, p. 1006).
Entre os recursos historiográficos de Benjamin está a “técnica do despertar”. Assim como um indivíduo recorda um sonho, assim o historiador procura ler os fatos históricos, como “algo que acaba de nos acontecer”. Trata-se de “despertar um saber ainda não consciente do passado”. Como decifrar a passagem do ainda não saber ao saber, esses sinais des contínuos, interrompidos, fugidios?
Creio que existe um método adequado naquilo que Karlheinz Stierle realça como princípio formal do tableau baudelairiano: a “perlaboração”. Tornando o termo no sentido freudiano, trata-se da ruptura do círculo mítico da repetição e de uma maneira emancipada de lidar com o passado a partir das necessidades do presente, o que se dá através da “superação das resistências”.[9] A resistência, um dos dispositivos fundamentais de proteção do aparato psíquico, é uma força profundamente ambígua, e por isso mesmo, apta a representar processos dialéticos. Como uma das principais manifestações da Verdrängung “recalque” ou mais exatamente “deslocamento” (no sentido concreto que o termo tem na engenharia naval) —, a resistência é o obstáculo que veda o acesso à informação primordial. Se for possível burlá-la, “deslocando”-a por sua vez, conseguir-se-ia ler o texto que ela encobre.
A Infância berlinense é um livro-laboratório, onde se dá a perlaboração de imagens relevantes para o processo de consciência do sujeito e a história da mentalidade. “Laboratório”, no sentido fotográfico da palavra, o próprio Benjamin usa a metáfora fotográfica: “Nem sempre é a culpa de um tempo de exposição demasiadamente curto, quando na chapa da memória não aparece nenhuma imagem. Mais frequentes talvez sejam os casos em que o lusco-fusco do hábito nega à chapa a luz necessária durante anos seguidos, até que um dia essa luz jorra de fontes alheias como de um pó de magnésio incendiado, flagrando o espaço na chapa, num instantâneo. Ora, no centro dessas imagens raras sempre estamos nós mesmos” [GS, VI, p. 516].
A resistência a ser superada é a do “hábito”, que é um eterno “repetir” do ato primordial; o brilho da descoberta que lhe é próprio se tornou irreconhecfvel no lusco-fusco do sempre igual.
O processo de revelação de imagens é o verdadeiro tema dos tableaux da Infância berlinense. A perlaboração pressupõe um movimento de vaie-vem entre o eu que recorda e o eu que é recordado, isto é: entre o escritor adulto, privado de sua cidade natal, e o eu recordado, o menino com cerca de seis anos, na passagem do século. O silêncio sobre o tempo do meio — a República de Weimar e a ascensão do nazismo é uma forma de resistência. O autor escava a história ambígua da mentalidade burguesa, redesenhando a sua própria passagem do inconsciente para a consciência social, no limiar entre a regressão e a resistência.
Movimentos mnemônicos do eu diante do cenário de uma paisagem urbana movimentada pela história. Eis a energia que subjaz aos tableaux benjaminianos. Acompanhemos o seu processo de fabricação. Um dos projetos do autor foi representar um “diagrama” de sua vida, escrever sua biografia na forma de um mapa. A opção por esse gênero não linear e po-lissemiótico implica a ideia de superposição do Eu e da Cidade, bem como o uso concomitante de pictura e scriptura, pictogramas e signos verbais. Nas anotações de Benjamin encontra-se este esboço:
Quando eu estiver velho, gostaria de ter no corredor da minha casa
Um mapa de Berlim
Com uma legenda
Pontos azuis designariam as ruas onde morei
Pontos amarelos, os lugares onde moravam minhas namoradas
Triângulos marrons, os túmulos
Nos cemitéríos de Berlim onde jazem os que foram próximos a mim
E muitos quadrados vermelhos marcariam os aposentos
E linhas pretas redesenhariam os caminhos
no Zoológico ou no Tiergarten
que percorri conversando com as garotas
E flechas de todas as cores apontariam os lugares nos arredores
Onde repensava as semanas berlinenses
Do amor da mais baixa espécie ou do amor mais abrigado do vento.
[GS, VII, p. 714]
Esse texto não era destinado à publicação. A censura ou “resistência”, por parte do próprio autor, foi uma das etapas de ele trabalhar a rememoração. Na Crônica berlinense ele esclarece alguns detalhes desse mapa. Ele evoca a garçonnière alugada por ele e seus colegas estudantes para poderem debater política e estar com as namoradas, longe do controle dos pais; os caminhos para a escola e certos bancos do Tiergarten; hotéis de uma noite para encontros com prostitutas; e também os túmulos que ele viu serem preenchidos…
Nenhuma dessas recordações da adolescência foi mantida na Infância berlinense. Tudo o que houve de sentimental e de pessoal foi retido como por um filtro. Trata-se de uma resistência produtiva, do senso crítico do escritor.
No seu livro-oficina, Benjamin levanta a questão central da forma literária. Só ela permite captar de modo legítimo o movimento e a emoção da memória. Quanto aos modelos já existentes, na alternativa entre Proust e Baudelaire, o autor da Infância berlinense optou pelo segundo. Ou seja: em vez do acaso, a intenção; em vez da memória involuntária, a recordação voluntária; e em vez da forma narrativa longa, a brevidade e descontinui-dade do tableau. Aliás, o mapa acima, pela sua configuração, lembra a pro-toforma de um soneto, característica de muitos tableaux baudelairianos. Contudo, na elaboração do texto ocorreu um “deslocamento”.
Para Benjamin como para Baudelaire, a “perlaboração” implica eliminação da saudade e da nostalgia. É impossível reaver ou recuperar (wieder-holen) os seres queridos de antanho. Eles não saberiam respirar na atmosfera do presente. Sem dúvida, a saudade é indispensável para a evocação das imagens, mas para Benjamin os traços biográficos subjetivos cedem deliberadamente o lugar a tableaux culturais, onde ocorre uma fusão dos materiais da memória individual com a coletiva.
O tableau é produzido através da superação das resistências. O “redesenhar dos caminhos”, por parte de Benjamin, não é um repetir, mas um perlaborar. Esse trabalho se dá no limiar entre recordação do passado e percepção do presente. Vale dizer, num limiar em que o sujeito “reconhece” na sua própria história algo que acaba de lhe acontecer, como se estivesse despertando de um sonho.
No referido mapa da memória, alguns elementos se realçam pelo forte teor emocional: as namoradas, os túmulos, os signos coloridos. Acima da cidade representada, paira a tríade Amor-Morte-Escrita como uma constelação. A recordação dos túmulos corresponde a um memento mor do produtor das imagens. Diante da impossibilidade de recuperar essências, o autor da Infância berlinense renuncia ou “resiste” a evocar os momentos de felicidade da adolescência. Volta-se para os signos, que são um medium de “representação” sobre o qual a morte não tem poder.
A energia erótica, da qual fala o mapa, é deslocada para o processo de fabricação de imagens numa relação de luta com o tempo e as resistências que têm de ser perlaboradas.
No tableau “A escrivaninha”, Benjamin fala do processo de fabricação de imagens como uma de suas ocupações “mais amadas”. Trata-se da decalcomania. Uma “xícara com água morna” — retomada do motivo proustiano do universo numa chávena de chá — ocupa o lugar do tinteiro: “Comecei a recortar as figuras. Quanto prometia o véu através do qual elas me fitavam das folhas dobradas e dos cadernos! O sapateiro inclinado sobre as encóspias, e as crianças sentadas na copa da árvore colhendo maçãs, o tigre que se dobra para saltar sobre o caçador cuja espingarda acaba de detonar […], o farmacêutico à entrada de sua loja bem sortida e cheia de cores, o farol com o veleiro em frente todas essas figuras eram cobertas por um sopro de névoa” [GS, iv, pp. 280 ss.; OE, II p. 119].
Eros tem sua origem no brincar infantil. A maçã, símbolo do amor, está presente no texto, assim como na recordação. E a retenção na memória é tão mais intensa que há uma resistência a vencer, o véu ou sopro de névoa que separa o sujeito do objeto do seu desejo. O texto continua:
Porém, quando suavemente iluminadas, repousavam na folha de papel; quando a grossa capa saía em rolinhos delgados sob a ponta de meus dedos que, cautelosamente girando, esfregavam e raspavam seu reverso; e quando, por fim, a cor despontava, doce e íntegra, do reverso fendido e esfolado, era como se irrompesse, sobre a turva manhã de um mundo descolorido, o sol radiante de setembro, e todas as coisas, ainda umedecidas pelo orvalho […], ardessem agora com a chegada de um novo dia de criação. [GS, Iv, p. 281; OE, II p. 119]
Os verbos descrevem um trabalho que une decisão e tato: esfregar, rolar, raspar, fender, esfolar. Perlaboração de resistências e, com isso, literatura de resistência. Tableau alegórico da superação de um tempo de trevas pela rememoração da infância, não de modo biográfico-sentimental, mas na escala das sensações daquele tempo. Atendo-se à meta proposta por Baudelaire em seu ensaio “O pintor da vida moderna”, Benjamin consegue atingir a essência da infância, flagrando as “impressões mais antigas” “nossas impressões matinais”.
IMAGEM DE PENSAMENTO
Entre os gêneros literários urbanos, a imagem de pensamento é o mais recente. Surgiu como uma das formas literárias típicas da cultura da República de Weimar.[10] A imagem de pensamento, como foi definida por Heinz Schlaffer, é uma forma curta de prosa, um gênero misto a meio caminho entre poesia e teoria da sociedade. É produto de uma elaboração coletiva: além de Benjamin, foi cultivada também por Brecht, Kracauer, Bloch, Adorno e Horkheimer (e possivelmente: Kafka), em sua maioria, autores de origem judaica. O gênero deriva da tradição bíblica, sendo uma espécie de parábola secularizada ou alegoria urbana.
Tal superposição entre o Livro dos livros e a Cidade é própria da obra literária de estreia de Benjamin, Rua de mão única ou Contramão, uma composição constelacional de sessenta imagens de pensamento. A multidão desses fragmentos urbanos reproduz o ritmo acelerado e a simultaneidade das sensações da grande cidade contemporânea. Existe um movimento de dispersão, mas também um contraponto. A energia dos fragmentos converge no topos da “cidade como um livro” nas mãos do autor. Rua de mão única se lê como se fosse um livro de horas da modernidade. Seus fragmentos proporcionam instantes de reflexão na agitação caótica e ensurdecedora da metrópole. Reflexão sobre os rituais que compõem a vida.
A principal característica formal da imagem de pensamento é a tensão entre pictura e scriptura. Trata-se de uma reativação da alegoria barroca, com elementos urbanos. O tableau acima, que representa um diagrama biográfico por meio de uma planta da cidade, pode ser relido nessa ótica. A scríptura é para a pictura o que a legenda é para o mapa: “pontos azuis, as ruas onde morei”, “triângulos marrons, os túmulos onde jazem os que foram próximos a mim quadrados vermelhos, os aposentos do amor”… Imagem da escrita e escrita imagética se entrelaçam. Através da magia das cores ocorre uma superposição entre o sujeito e a paisagem urbana: “tingia-me de acordo com a paisagem na minha janela, ora flamejante, ora empoeirada, ora bruxuleante, ora exuberante”. É o caso de relembrar o sistema de siglas coloridas inventado por Benjamin para a construção da Obra das passagens.
Em relação à grande história social que seriam as Passagens Parisienses, o livro Contramão foi considerado pelo seu autor como um “biombo”, ou seja, uma espécie de anteparo. Seu caráter precursor e modelar foi realçado numa carta a Gershom Scholem, onde Benjamin fala da “máxima concretude que, nesse livro, foi obtida para um jogo infantil, um prédio, uma situação de vida” e que gostaria de “obtê-la para uma época” Essa “concretude” exemplar de Contramão foi descrita de maneira precisa por Ernst Bloch: “Objetivamente ninguém anda pela rua. As coisas parecem estar sós. Os pressentimentos se manifestam em fragmentos exteriores, que se articulam em tabuletas e vitrines”.[11] Há, portanto, um primado das coisas sobre as pessoas. Os materiais e adereços que ocupam o palco urbano vazio fazem desse livro o mais alegórico de Benjamin, ao lado do tratado Origem do, drama barroco alemão. Ficaram apenas pedaços-textos. Tabuletas e vitrines. Objetos de cultura material, propícios para uma historiografia materialista.
A cidade “se torna um livro nas mãos do autor” na medida em que ele a reproduz como uma constelação de tabuletas e vitrines que são pedaços do que se pode chamar “a escrita da cidade”. Na palavra-título, convergem as ruas que compõem a planta da cidade, assim como todos os seus letreiros. Contramão representa a concretude surrealista de uma grande artéria urbana constituída de textos publicitários dos mais diversos tipos, outdoors, painéis, anúncios, letreiros, cartazes — um pandemônio de escrita, repleto, por tudo que é lado, de escrita: um “denso turbilhão de letras cambiantes, coloridas, conflitantes” que envolve todo dia os sentidos do transeunte.
Expressão de autoridade, a escrita da cidade, no século XX, representa para o escritor um enorme desafio. A onipresença do reclame, juntamente com a invenção de novas tecnologias da escrita, abalou a cultura literária tradicional. Quando Benjamin fala da “superioridade do reclame sobre a crítica”, ele resume uma postura que acabou sendo incorporada pela imensa maioria dos autores. Ele, porém, procurou responder a esse desafio com a “recriação da crítica como gênero”. A crítica implica distanciamento, visão histórica. É o que ocorre nas imagens de pensamento de Contramão. Não são meras reproduções da escrita da cidade, mas citações irônicas. Títulos como “Papelaria”, “Alugam essas areas”, “Revisor de livros juramentado”, “Fechado para reforma”, “Cargas mudanças e embala‑gens”, “Conselho fiscal” são picturas da escrita da cidade, acompanhadas de uma legenda ou subscríptio o todo configurando uma reflexão alegórica sobre o escrever.
Reclame, publicidade e propaganda são, assim como outrora a alegoria barroca, a escrita legitimadora do sistema político-econômico vigente, procurando sugerir como ela uma “atemporalidade paradisíaca”. A crítica procura despertar desse tipo de sonhos. Para tanto, Benjamin, escolado nas escritas e leituras mais antigas, propõe uma análise material dos textos mais cotidianos, tidos como banais: “Seria o caso de fornecer uma análise descritiva das notas bancárias […] Pois em parte alguma, o capitalismo, com sua sisuda seriedade, se comporta mais ingenuamente do que nesses documentos. O que se vê aqui de pequerruchos inocentes brincando ao redor de cifras, deusas segurando tábuas de lei, e heróis amadurecidos guardando sua espada na bainha diante de unidades monetárias, é um mundo por si: arquitetura de fachadas do Inferno” [GS, v, p. 139; OE, II, p. 62]. A modernidade capitalista é para Benjamin o tempo do Inferno. Isto porque nos artifícios do reclame, no fetichismo da mercadoria e na emblemática das cédulas, ela celebra compulsivamente o culto do novo, redundando num cinzento sempre igual.
A partir do texto micrológico das notas bancárias, nessa imagem de pensamento intitulada “Conselho fiscal”, Benjamin consegue evocar a imagem de uma época: a República de Weimar — e por analogia, de outras repúblicas, onde a nota bancária sintetiza, como nenhuma obra literária, a identidade mental de uma comunidade, vivendo sob a hiperinflação, a especulação desenfreada e a desvalorização do trabalho, no contexto de uma crise econômica mundial. “Nuvens de gafanhotos de escrita, que já hoje em dia obscurecem o sol do pretenso espírito para os habitantes das grandes cidades, tornar-se-ão mais densas a cada ano que passa.” O que poderia ilustrar melhor o sentido dessa profecia de Benjamin, senão o uso de “um dinheiro do qual uma dúzia de milhões de unidades nada significa”!
Alegoria de uma época de inflação, a imagem de pensamento “Conselho fiscal” relaciona “a medida dos bens materiais e a medida da vida”, dinheiro e tempo: “Onde está em uso um dinheiro do qual uma dúzia de milhões de unidades nada significa, ali a vida terá de ser contada em segundos em vez de em anos, para aparecer respeitável como soma. E, conforme essa medida, ela será dissipada como um maço de notas bancárias” (GS, v, p. 139; OE, II, p. 61). Tal dissipação de dinheiro e tempo é acompanhada de uma inflação de imagens. Vale dizer, o indivíduo não tem mais a possibilidade de elaborar uma imagem de si, um éidos de vida.
Porém, as formas de resistência, como acreditava Benjamin, nascem do próprio caos econômico. É o que parece ser o sentido do seu programa de “uma escrita de transformação internacional” (eine internationale Wandelschrift). Essa transformação, a meu ver, não se resume na invenção de novas tecnologias da escrita, embora elas sejam parte fundamental do processo. O conceito implica essencialmente perspectivas de transformação do sujeito e de “comunidades atuantes”, e com isso, de resistência. Um esboço está contido na imagem de pensamento “Fechado para reforma!”. O título é uma citação de um pedaço da escrita da cidade. Essa
pictura, como se fosse uma fotografia ou um recorte, vem acompanhada de uma legenda de tipo surreal: “Em sonho, eu me tirei a vida com uma espingarda. Quando o tiro saiu, não acordei, mas me vi por algum tempo deitado como cadáver. Só então acordei” (GS, iv, p. 133; OE, H, p. 56) Um texto muito breve. Corno uma anotação de um sonho, dentro da linha de trabalho dos autores surrealistas. Da visão de fora, da leitura de fachadas e tabuletas passamos para um espaço interior, para dentro de urna mentalidade. Quem é o “eu” que fala? Trata-se da confissão de um eu empírico, biográfico? Do depoimento de um caráter social, representando a “modernidade sob o signo do suicídio”? Ou da representação de um papel?
“[…] me vi por algum tempo deitado como cadáver.” Parece uma imagem de drama barroco, onde o palco é semeado de cadáveres. Não seria o retrato auto-irônico de um autor que se despede por algum tempo de sua obra, para reestruturar radicalmente seu fazer e escrever? Uma tentativa de o eu narrador fingir-se de morto, como Brás Cubas, para obter uma nova perspectiva sobre seu presente. “Só então acordei.” Quem sabe, uma demonstração da técnica benjaminiana do despertar. Assim como o cidadão moderno examina os manuscritos nos arquivos, o autor de Contramão reúne pedaços da escrita de sua época, em que ele, como um leitor futuro, pode perceber sua própria cultura “postumamente”, como se fosse uma época passada.
As imagens de pensamento de Contramão são formas micrológicas de historiografia na República de Weimar. A partir da leitura dos textos mais prosaicos e triviais, decifram a mentalidade de uma época. O habitante das grandes cidades, envolto em “nuvens de gafanhotos de escrita”, é mostrado no papel de escrevente. Trata-se talvez de um novo tipo de cidadão. Escrita de transformação internacional. O escritor é, como disse um autor nosso contemporâneo, –alguém que se transforma escrevendo”.
Uma visão sintética da metrópole, nesse livro composto de imagens de pensamento, é dada pela metáfora da rua: Rua de mão única. Nenhuma rua se chama assim. É um sentido alegórico. Só se pode ir numa direção, não se pode voltar. Representação de um tempo histórico, irreversível, porque no fim tem a morte. Mas no fragmento “Fechado para reforma!–há uma volta, sim. O protagonista-narrador entra pela contramão do tempo e ressuscita. A escrita é a antítese da “contramão” histórica, e da aprendizagem motora. “Hoje sei andar; mas não poderei mais aprender a an-dar”(GS, iv, p. 133).
Mas posso reaprender a escrever!
ALEGORIA
Os três gêneros usados por Benjamin e examinados até aqui — imagem dialética, tableau e imagem de pensamento — se baseiam em sua concepção da alegoria. Seu tratado Origem do drama barroco alemão, dedicado em boa parte ao estudo dessa forma filosófico-literária, valeu a Benjamin, por parte de Georg Lukács (1958), e Peter Bürger (1974), a qualificação de “teórico das vanguardas”.[12] De fato, é a partir dos problemas levantados pelas vanguardas históricas, nas décadas de 1910 e 1920, que Benjamin estudou o barroco, não vice-versa. Reconhecemos ali uma das características da imagem dialética: a conhecibilidade proporcionada pelo agora.
Ao estudo da alegoria subjaz urn “interesse” de Benjamin de desvendar sua própria época. Seu tratado é concebido como uma crítica das te-dências restaurativas ligadas à reutilização do classicismo alemão sob o nome emblemático de “República de Weimar”. Na vida pública, e especialmente na esfera acadêmica, ele observou uma “destruição do ethos histórico”, ligado a uma postura historicista de estudar o passado através de um “esquecimento do presente”.
Como é que Benjamin consegue transformar ou “transfuncionalizar” a alegoria, enquanto representação de um mítico tempo “parado”, num signo radicalmente histórico? O exame dessa questão permite questionar a tese lukacsiana da suposta “ausência de consciência histórica” nas vanguardas, bem como a tese de Burger sobre sua “historicidade concluída” desses movimentos. Possibilita também uma compreensão de tendências análogas de eclipsar a história na Pós-Modernidade.
Na época do barroco, a alegoria foi utilizada para legitimar o status quo político-social, o absolutismo. O uso e a função da alegoria, na dramaturgia barroca alemã, eram subordinados a uma visão imutável da história, ao conceito de paz dos vencedores. É essa negação da história como um tempo de mudança que Benjamin chama de “destruição do ethos histórico”. O barroco retoma a postura medieval de fuga do mundo e o topos da desvalorização da vida terrena, para readaptá-los aos fins seculares do Estado moderno, substituindo a perspectiva da história da salvação por uma visão da história como história natural: “0 que é decisivo na tendência barroca de fugir do mundo […] é a secularização da história no estado de Criação. Ao percurso desolador da crônica do mundo não se contrapõe a eternidade, mas a restauração de uma atemporalidade paradisíaca” (GS, I, p. 271; ODB, p. 115).
Essa versão oficial da história como história natural encontra-se condensada no emblema do “Roi-Soleil”. Paralelamente, sugeriu-se em nome da caducidade à qual estão sujeitos todos os seres mortais — um –princípio de igualdade”, destinado a fomentar a identificação dos súditos com o soberano. Na verdade, essa concepção da história sanciona para sempre o status quo. A emblemática e os demais recursos alegóricos dos dramaturgos barrocos alemães estavam inteiramente a serviço do poder.
Os autores tinham à sua disposição um grande repertório imagético, graças ao qual podiam dissolver convincentemente conflitos histórico -éticos em demonstrações baseadas na história natural.
É Lohenstein que vai mais longe nessa direção. Nenhum outro poeta usou como ele a técnica de desarmar qualquer esboço de reflexão ética, através de uma linguagem metafórica que postula analogias entre o acontecimento histórico e o natural. [GS, I, pp. 269 e 268; ODB, pp. 113 e 112]
Portanto, os dramaturgos barrocos alemães, enquanto produtores de imagens, colaboraram na criação de uma visão mítica da história, dispensando, inclusive, a reflexão ética.
Se o intelectual, o artista, o cientista se presta a ser –instrumento da classe dominante”, ou se torna oposição, depende da experiência social do indivíduo e da constelação histórica, de sua ética e de sua decisão. Na República de Weimar tinha-se, lado a lado, intelectuais de direita e de esquerda; havia também todo tipo de misturas, como “os melancólicos da esquerda” ou “os esquerdistas da direita”… As observações de Benjamin sobre o uso ad libitum das alegorias podem ser entendidas como advertência quanto ao emprego inflacionário de palavras-chaves como revolução e socialismo, pela esquerda, ou ao seu sequestro pela direita. Isso fica mais claro à luz do seu estudo das “antinomias da alegorese”.
Como signo da retórica e da historiografia oficiais, a alegoria medieval e barroca foi expressão da autoridade. No entanto, ela pode também se tornar expressão de um “outro” discurso: “Na esfera da intenção alegórica, a imagem é fragmento, ruína […] Perceber a falta de liberdade, a imperfeição, a caducidade do corpo belo e sensual era vedado ao classicismo, pela sua própria essência. São justamente esses elementos que a alegoria barroca apresenta, ocultos sob uma pompa desvairada, com uma ênfase até então desconhecida” [GS, I, p. 352; ODB, p. 198].
A leitura crítica revela a alegoria como forma de expressão ambígua, e como tal, precursora da imagem dialética O subtexto da ostentação barroca é: a falta de liberdade, a imperfeição, a caducidade — elementos de uma visão da história como tempo inconcluso, tempo de transformação possível.
A transformação da alegoria em signo histórico é retomada na poesia de Baudelaire. Como produtor de mercadoria poética, o poeta participou da experiência geral de degradação das coisas e das pessoas. Ele recorreu à alegorização como técnica antiga de desvalorização para travar a luta contra o fetichismo da mercadoria, que está na fonte da degradação do indivíduo na Modernidade: “De modo cada vez mais brutal, os objetos e o meio ambiente assumem as feições da mercadoria. Ao mesmo tempo, a publicidade trata de ofuscar o caráter mercantil das coisas. À transfiguração enganadora do mundo das mercadorias contrapõe-se sua transposição para o alegórico. A mercadoria procura ver seu próprio rosto” (GS, 1, p. 671; FK, p. 135).
Contra a idealização: a desidealização alegórica. Para Benjamin, o rosto da história é a caveira — alegoria de um tempo de mortificação, um tempo que tem de ser retomado, refeito. A expressão baudelairiana do “lixo humano” (debris d’humanité), num de seus tableaux, coloca em cena todos os que a modernização não consegue mais aproveitar: os velhos, marginalizados, socialmente desprezados, desvalidos.[13]
Esse tópos da caducidade, próprio do barroco e retomado por Bau-delaire, aparece também no surrealismo, caracterizado por Benjamin nestes termos:
O surrealismo foi o primeiro a deparar-se com as energias revolucionárias que se revelam nas coisas “antiquadas”, nas primeiras construções de ferro, nas primeiras fábricas, nas fotos mais antigas, nos objetos que começam a sair de circulação […] De que maneira essas coisas se relacionam com a Revolução? ninguém melhor do que esses autores para explicá-lo. De que modo a miséria, não apenas a social, mas também a arquitetônica, a miséria dos interiores, as coisas escravizadas e escravizantes revertem em niilismo revolucionário — os videntes e visionários surrealistas foram os primeiros a percebê-lo. [GS, H, p. 299; DCDB, p. 109]
É uma caracterização ambígua. Benjamin admirava o surrealismo pela provação da moral burguesa, pelas experiências oníricas, as descobertas da cultura do cotidiano, as energias de busca e de transformação. No entanto, manteve-se cético diante do misticismo e da mitologia surrealistas. A passagem acima é como uma ilustração da palavra de ordem “conquistar as forças do êxtase para a Revolução”. Nessa reviravolta das coisas anti-qualas em energias revolucionárias, trata-se de um método ou de um truque mágico? Ela corresponde a forças históricas reais ou a imagens de desejo?
Benjamin nos introduz no meio da mitologia surrealista, no sentido de mostrar como se fabricam imagens de desejo, imagens míticas. A discussão do surrealismo permitiu-lhe formular com clareza a tarefa do artista e do intelectual burguês: “cumprir sua função em pontos importantes do espaço imagético” (GS, II, p. 309).
Isso significa que o crítico tem que conhecer, antes de mais nada, o processo de fabricação de imagens. Em vez de ele próprio contribuir na feitura de mitologias, deve torná-las transparentes. No projeto inicial da Obra das passagens, Benjamin, distanciando-se de Aragon, se propôs “dissolver a mitologia no espaço da história”
A tarefa do crítico não é a de um propagandista de uma mitologia revolucionária. O crítico é um desmitificaclor. Não um fabricante de sonhos, e sim um intérprete dos sonhos coletivos. Não é um propagador de fantasmagorias, mas um “técnico do despertar” de tais fantasmagorias.
Resulta dessas considerações sobre a alegoria que a teoria benjaminiana da vanguarda difere das concepções de Lukács e de Bürger. Enquanto Lukács postula uma “a-historicidade” das vanguardas, consideradas como expressões da decaclência, Benjamin as concebe como essencialmente ambíguas, mergulhadas ao mesmo tempo na mitologia e na história. Diferentemente de Bürger, Benjamin não centra sua teoria das vanguardas sobre a obra de arte. Pelo contrário: o estudo da alegoria como forma fragmentária traduz a opção por uma estética que se desloca da obra de arte para o texto da história. Não apenas as obras de arte, mas também os gêneros literário-filosóficos, os documentos da cultura cotidiana e as –passagens” da metrópole são para ele órgãos da historiografia.
Chegamos ao fim de nossa apresentação dos quatro gêneros filosófico-literários que constituem o arcabouço da historiografia benjaminiana. Todos eles se filiam à estética do fragmento, isto é, à descontinuidade e à ruptura, mas com isso também à dispersão. Não existiria, na obra de Benjamin, um princípio de construção que faz contrapeso à forma fragmentária? A meu ver, esse contraponto é representado pela estética constelacional. Metodologicamente falando, trata-se da relação entre micro e macro-história, o estudo de detalhes da cultura cotidiana e a compreensão de uma época.
Precisamente essa questão é discutida no livro sobre o barroco, onde Benjamin retoma elementos da teórica de arte romântica e da estética de Goethe, expostos anteriormente em sua dissertação O conceito de crítica de arte no romantismo alemão.
O gênero “fragmento”, muito pouco comentado na dissertação — e que, no entanto, veicula as concepções de crítica, querer artístico”, “projeto”, “inconclusão” —, passa a ocupar a posição de destaque no tratado sobre o barroco, sob o nome de “alegoria”. A construção alegórica é o oposto da obra de arte orgânica. Com isso, o barroco se torna, no dizer de Benjamin, antagonista soberano do classicismo”. Como explicar, então, seu recurso à estética de Goethe?
É que na obra de Goethe (e de Platão) está o núcleo da teoria benja-miniana da imagem, fundamental para os quatro gêneros filosófico-literários aqui estudados. A obra artística, segundo Goethe, é uma atualização da arquiimagem (Urbild) ou imagem exemplar; por isso, dispensa a crítica. É, por assim dizer, um ideal regressivo, que guarda um vislumbre da ideia mítica de “felicidade”.
Benjamin quer resgatar a “arquiimagem”, ainda que seja pelo caminho paradoxal da experiência fragmentária. Quando ainda estudante, criticava uma universidade onde o ser humano não pudesse se expressar com a “totalidade de sua atuação”, onde não pudesse atuar de modo “inteiro”. Essa procura é retomada no tratado sobre o barroco. Segundo seu autor, a visão universal (das Allgemeine) não se obtém através de um sistema de disciplinas estanques, mas a partir de uma estrutura descontínua do mundo das ideias. A tarefa filosófica para produzir o conhecimento consiste na “representação das ideias”: “As ideias estão para as coisas assim como as constelações para as estrelas” (GS, I, p. 214; ODB, p. 56).
Através dessa metáfora, Benjamin ilustra a relação entre a estética do fragmento e a estética constelacional. Assim como existe um número infinito de estrelas, pode-se produzir um número imenso de fragmentos como ocorre nos milhares de recortes da Obra das passagens — mas para se ter uma orientação é preciso ater-se às constelações.
As constelações são imagens: Stern-Bilder. Arquiimagens, decifradas pelo homem desde seus primórdios, na tentativa de compreender “a marca que a história da humanidade deixa no universo”. Benjamin lembra a segunda parte do Fausto, onde Goethe encena o arcaico desejo de ir ao encontro das imagens: As ideias — ou os ideais, na terminologia de Goethe — são as mães no Fausto. (GS, I, p. 215; ODB, p. 57). Fausto desce até as regiões primordiais, míticas, onde são produzidas as imagens, sobretudo as imagens de desejo. É uma descida até a matriz, até a própria ideia da imagem. Ela é preservada numa palavra que define a aspiração da vida e obra de Goethe e um tipo de busca muito própria da cultura alemã: BILDung — “formação”. Trata-se, literalmente, do processo de elaborar, a partir de uma infinidade de imagens possíveis, a imagem (Bud) enquanto éidos, constelação da vida do sujeito histórico.
* Este ensaio é um retrospecto sobre meu livro Fisiognomia da metrópole moderna. m Representação da história e Walter Benjamin, São Paulo, Edusp, 1994, procurando sintetizar o método historiográfico ali desenvolvido.
[1] As obras de Walter Benjamin são citadas com as seguintes siglas: DCDB: Documentos de cultura, documentos de barbárie. Escritos escolhidos, W. Bolle (org.), trad. vários autores, São Paulo, Cultrix, Edusp, 1986; FK: Sociologia, Flávio Kothe, (org., introd. e trad.), São Paulo, Ática, 1985; GS: Gesammelte Schriften, Frankfurt, Suhrkamp, 1972-89; ODB: Origem do drama barroco alemão, Sérgio Paulo Rouanet (trad., apres. e notas), São Paulo, Brasiliense, 1984; OF: Obras escolhidas, trad. vários autores, São Paulo, Brasiliense, 1985-9; A tradução das citações é minha, tendo sido consultadas as traduções já publicadas.
[2] João Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas, 5 ed., Rio de Janeiro, José Olympio, 1967, p. 295.
[3] Ver Raymond Williams, O campo e a cidade na história e na literatura, São Paulo, Companhia das Letras, 1990.
[4] Nome de um magasin art nouveau em Belém.
[5] Cf. Jeffrey Herf, Reactionary modernism. Technology, culture, and politics in Weimar and the Third Reich, Cambridge, Univ. Press, 1984.
[6] Ernst Jünger, Der Arbeiter. Herrschaft und Gestalt, 1 ed., Hamburgo, 1932; reed.: Stuttgart, Klett-Cotta, 1982.
[7] Para aprofundar a questão da imagem dialética, ver Susan Buck-Morss, The dialectics of seeing. Walter Benjamin and the Arcades Project, Cambridge; Massachusetts, MIT Press, 1989.
[8] Ver Karlheinz Stierle, “Baudelaires ‘Tableaux parisiens’ und die Tradition der ‘Tableaux de Paris'”, Poética 6 (1974), pp. 285-322.
[9] Cf. Sigmund Freud, “Erinnern, Wiederholen und Durcharbeiten” [Recordar, repetir e perlaboral, Gesammelte Werke, 18 vols., Frankfurt, Fischer, 1948, vol. 10, pp. 126-36.
[10] Cf. Heinz Schlaffer, “Denkbilder. Eine kleine Prosaform zwischen Dichtung und Gesellschaftstheorie”, em Poesie und Politik. Zur Situation der Literatur in Deutschland, Wolfgang Kuttenkeuler (org.), Stuttgart, Kohlhammer, pp. 137-54.
[11] Ernst Bloch, “Revueform in der Philosophie. Zu Walter Benjamins `Einbahnstrai3e’ ” (1928), reimpr. em Ernst Bloch, Erbschaft dieser Zeit, Frankfurt, Suhrkamp, 1962, pp. 368-71 (Gesamtausgabe, vol. 4).
[12] Cf. Georg Lukács, Wider den miOverstandenen Realisnzus, Hamburgo, 1958; e Peter Bürger, Theorie der Avantgarde, Frankfurt, Suhrkarnp, 1974. Ver também Harald Steinhagen, “Zu Walter Benjamins Begriff der Allegorie”, em Formen and Funktionen der Allegorie, Walter Haug (org.), Stuttgart, Metzler, 1979, pp. 666-85.
[13] Chico Buarque e Francis Hime retomam e desenvolvem esse tópos no seu samba satírico “Vai passar.