2005

Um surrealismo platônico [Baudelaire]

por Olgária Chain Féres Matos

Resumo

Baudelaire foi o surrealista da moral, tanto porque mergulhou no mundo moderno sem ideal nem Deus quanto porque denunciou o fim da ideia de pecado original, cujo oposto não é o ateísmo, mas a nostalgia da sacralidade e da redenção. Daí a substituição de Deus pelo progresso, origem da curiosidade sem valor. Assim, não se espera mais a salvação, mas o desenvolvimento infinito, ou seja, o reino do homem por meio da ciência e da técnica, vazias de poesia. Isto é: no lugar do paraíso, a catástrofe, já que vige, desde o berço, a Providência diabólica. Por isso, a dissociação entre Belo e Bem, em benefício da ruína, o que se apresenta logo no título da obra-prima de Baudelaire: As flores do mal. É nela que, ao contrário do Sublime kantiano, encontra-se o Sublime baudelairiano, afogado num oceano de lágrimas e insultos. Nada mais do culto à beleza pura e simples. Não enquanto for preciso abrir as portas do Éden, o que, para terror de Platão, requer “palavras cintilantes e coloridas”. Até porque, se assim for, restará ao poeta – não mais mediador da palavra e da violência – o banimento. Isso a que Baudelaire assentiria com orgulho, ciente da marca da maldade na sublime face da Modernidade. Duplicidade. Eis a lógica que Baudelaire – praticante dos jogos inversos, paradoxais e extremos – aplica: ao mito de Safo, ao masculino e ao feminino, ao horror à vida e ao êxtase de viver, ao poético e ao filosófico, ao ideal e ao áspero. Discípulo de Heráclito e De Maistre, para os quais a “lei dos contrários” governa a ordem cósmica, Baudelaire associa o vermelho do céu ao verde do campo, para que ambos – como outros tons – vivam em harmonia. Isso que também caberia ao homem, não fosse a confusão das coisas e almas, condição da metrópole, onde se vive a perda de identidade na imersão na multidão. Se o “eu” se constitui na memória, o prazer está no esquecimento, mesmo que o Diabo, envergonhado, lembre de tudo. Poeticamente, isso se reflete na apropriação da antiguidade. Não ela pura e simples, mas no que há nela de fundação moderna, como quem vai à ilha de Lesbos para melhor conhecer a geografia de si mesmo. Para tanto, note-se que Baudelaire não recorre a uma deusa – Afrodite, por exemplo –, mas a Safo e Helena, condenadas, doentes, censuráveis. Eis a mulher celebrada e blasfemada – o Outro, insondável como Deus. Assim, o que todos – antigos e modernos – vivem é o eterno exílio, associado à fragmentação da Ideia que, por meio da criação, degrada-se até cair na matéria, finita, limitada, má, imperfeita. Natural o poeta à margem. Dândi e flâneur. Ocioso? Em aparência, já que a ele cabe o acordo entre as partes, o que mantém o ser no ser, a conexão oposta, como a que há entre o arco e a lira. E isso preservando a antítese, em seu aspecto maléfico, sobretudo. Nada de conciliação ou mesmo dialética. “Tecido descosido da loucura”, “vaidade pueril”, “sede de destruição” – o que, enfim, corresponda à falta de sentido de uma época que parece estender-se a hoje.


Para Sérgio Cardoso e Glória Kalil

 

LESBOS

Mãe dos jogos do Lácio e das gregas orgias,

Lesbos, ilha onde os beijos, meigos e ditosos,

Ardentes como os sóis, frescos quais melancias,

Emolduram as noites e os dias gloriosos;

Mãe dos jogos do Lácio e das gregas orgias;

 

Lesbos, ilha onde os beijos são como as cascatas,

Que desabam sem medo em pélagos profundos,

E correm, soluçando, em meio às colunatas,

Secretos e febris, copiosos e infecundos,

Lesbos, ilha onde os beijos são como as cascatas!

 

Lesbos, onde as Frineias uma à outra esperam,

Onde jamais ficou sem eco um só queixume,

Tal como Pafos as estrelas te veneram,

E Safo a Vênus, com razão, inspira ciúme!

Lesbos, onde as Frineias uma à outra esperam,

 

Lesbos, terra das quentes noites voluptuosas,

Onde, diante do espelho, ó volúpia maldita!

Donzelas de ermo olhar, dos corpos amorosas,

Roçam de leve o tenro pomo que as excita;

Lesbos, terra das quentes noites voluptuosas,

 

Deixa o velho Platão franzir seu olho sério;

Consegues teu perdão dos beijos incontáveis;

Soberana sensual de um doce e nobre império,

Cujos requintes serão sempre inesgotáveis.

Deixa o velho Platão franzir seu olho sério.

Arrancas teu perdão ao martírio infinito,

Imposto sem descanso aos corações sedentos,

Que atrai, longe de nós, o sorriso bendito

Vagamente entrevisto em outros firmamentos!

Arrancas teu perdão ao martírio infinito!

 

Que Deus, ó Lesbos, teu juiz ousara ser?

Ou condenar-te a fronte exausta de extravios, Se nenhum deles o dilúvio pode ver

Das lágrimas que ao mar lançaram os teus rios?

Que Deus, ó Lesbos, teu juiz ousara se?

 

De que valem as leis do que é justo ou injusto?

Virgens de alma sutil, do Egeu orgulho eterno,

O vosso credo, assim como os demais, é augusto,

E o amor rirá tanto do Céu quanto do Inferno!

De que valem as leis do que é justo ou injusto?

 

Pois Lesbos me escolheu entre todos no mundo

Para cantar de tais donzelas os encantos,

E cedo eu me iniciei no mistério profundo

Dos risos dissolutos e dos turvos prantos;

Pois Lesbos me escolheu entre todos no mundo.

 

E desde então do alto da Lêucade eu vigio,

Qual sentinela de olho atento e indagador,

Que espreita sem cessar barco, escuna ou navio,

Cujas formas ao longe o azul nos faz supor;

E desde então do alto da Lêucade eu vigio

 

Para saber se a onda do mar é meiga e boa,

E entre os soluços, retinindo no rochedo,

Enfim trará de volta a Lesbos, que perdoa,

O cadáver de Safo, a que partiu tão cedo,

Para saber se a onda do mar é meiga e boa!

 

Desta Safo viril, que foi amante e poeta,

Mais bela do que Vênus pelas tristes cores!

O olho do azul sucumbe ao olho que marcheta

O círculo de treva estriado pelas dores

Desta Safo viril, que foi amante e poeta!

 

Mais bela do que Vênus sobre o mundo erguida,

A derramar os dons da paz de que partilha

E a flama de uma idade em áurea luz tecida

No velho Oceano pasmo aos pés de sua filha;

Mais bela do que Vênus sobre o mundo erguida!

 

De Safo que morreu ao blasfemar um dia,

Quando, trocando o rito e o culto por luxúria,

Seu belo corpo ofereceu como iguaria

A um bruto cujo orgulho atormentou a injúria

Daquela que morreu ao blasfemar um dia.

 

E desde então Lesbos em pranto lamenta,

E, embora o mundo lhe consagre honras e ofertas,

Se embriaga toda noite aos uivos da tormenta

Que lançam para os céus suas praias desertas!

E desde então Lesbos em pranto lamenta!

Tradução de Ivan Junqueira

 

LESBOS

Mère des jeux latins et des voluptés grecques,

Lesbos, où les baisers, languissants ou joyeux,

Chauds comme les soleils, frais comme les pastèques,

Font l’ornement des nuits et des jours glorieux;

Mère des jeux latins et des voluptés grecques;

 

Lesbos, où les baisers sont comme les cascades,

Qui se jettent sans peur dans les gouffres sans fonds,

Et courent, sanglotant et gloussant par saccades,

Orageux et secrets, fourmillants et profonds;

Lesbos, où les baisers sont comme les cascades!

 

Lesbos, où les Phrynés l’une l’autre s’attirent,

Où jamais un soupir ne resta sans écho,

A l’égal de Paphos les étoiles l’admirent,

Et Vénus à bon droit peut jalouser Sapho!

Lesbos, où les Phrynés l’une l’autre s’attirent,

 

Lesbos, terre des nuits chaudes et langoureuses,

Qui font qu’à leurs mirois, stérile volupté!

Les filles aux yeux creux, de leurs corps amoureuses,

Caressent les fruits mûrs de leur nubilité;

Lesbos, terre des nuits chaudes et langoureuses,

 

Laisse du vieux Platon se froncer l’oeil austère;

Tu tires ton pardon de l’excès des baisers,

Reine du doux empire, aimable et noble terre,

Et des raffinements toujours inépuisés.

Laisse du vieux Platon se froncer l’oeil austère.

Tu tires ton pardon de l’éternel martyre,

Infligé sans relâche aux coeurs ambitieux,

Qu’attire loin de nous le radieux sourire

Entrevu vaguement au bord des autres cieux!

Tu tires ton pardon de l’éternel martyre!

 

Qui des Dieux osera, Lesbos, être ton juge!

Et condamner tont front pâli dans les travaux,

Si ses balances d’or n’ont pesé le délug

De larmes qu’à la mer ont versé tes ruisseaux?

Qui des Dieux osera, Lesbos, être ton juge?

 

Que nous veulent les lois du juste et de l’injuste?

Vierges au coeur sublime, honneur de l’archipel,

Votre religion comme une autre est auguste,

Et l’amour se rira de l’Enfer et du Ciel!

Que nous veulent les lois du juste et de l’injuste?

 

Car Lesbos entre tous m’a choisi sur la terre

Pour chanter le secret de ses vierges en fleurs,

Et je fus dès l’enfance admis au noir mystère

Des rires effrénés mêlés aux sombres pleurs;

Car Lesbos entre tous m’a choisi sur la terre.

 

Et depuis lors je veille au sommet de Leucate,

Comme une sentinelle à l’oeil perçant et sûr,

Qui guette nuit et jour brick, tartane ou frégate,

Dont les formes au loin frissonnent dans l’azur;

Et depuis lors je veille au sommet de Leucate

 

Pour savoir si la mer est indulgente et bonne,

Et parmi les sanglos donc le roc retentit

Un soir ramènera vers Lesbos, qui pardonne,

Le cadavre adoré de Sapho, qui partit,

Pour savoir si la mer est indulgente et bonne!

De la mâle Sapho, l’amante et le poète,

Plus belle que Vénus pars ses mornes pâleurs!

L’oeil d’azur est vaincu par l’oeil noir que tachète

Le cercle ténébreux tracé par les douleurs

De la mâle Sapho, l’amante et le poète!

Plus belle que Vénus se dressant sur le monde

Et versant les trésors de sa sérénité

Et le rayonnement de sa jeunesse blonde

Sur le vieil Océan de sa fille enchanté;

Plus belle que Vénus se dressant sur le monde!

 

De Sapho qui mourut le jour de sin blasphème,

Quand, insultant le rite et le culte inventé,

Elle fit son beau corps la pâture supreme

D’un brutal dont l’orgueil punit l’impiété

De celle qui mourut le jour de son blasphème.

 

Et c’est depuis ce temps que Lesbos se lamente,

Et, malgré l’honneur que lui rend l’univers,

S’enivre chaque nuit du cris de la tourmente

Que poussent vers le cieux ses rivages déserts!

Et c’est depuis ce temps que Lesbos se lamente!

 

Charles Baudelaire, “Poemas Condenados, II”, em As flores do mal, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985.

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“Baudelaire foi o surrealista da moral.” Com essa expressão, Breton indicava, em seu Manifesto do surrealismo, a compreensão baudelairiana da modernidade à qual o poeta se sentia condenado: fim do platonismo e do cristianismo. Fim do platonismo: os objetos sensíveis encontram-se em perpétuo devir, jamais semelhantes a si mesmos, infiéis a todo modelo ideal apreendido pelo Espírito:[1] “Em si mesmos e por si mesmos”, escreve Platão, “os objetos possuem certa constância em sua realidade. Não são dilacerados para o alto ou o baixo como as imagens que deles fazemos; ao contrário, por si mesmos e em si mesmos, possuem a exata realidade originária de sua natureza”.[2] É, pois, a opacidade e a espessura do sensível que a alma lamenta e das quais se esforça por liberar-se. Fim do cristianismo: desaparecimento da ideia de “pecado original” — heresia própria ao moderno, cujo reverso é a nostalgia da sacralidade perdida, que se fortalece, em Baudelaire, com a dúvida quanto às possibilidades de redenção, em um mundo abandonado por Deus. Sua ersatz: a noção de progresso que implicou uma reabilitação anticristã da curiosidade teórica que o cristianismo condenara. Wertfrei: a ciência moderna desconhece os valores da ciência clássica, a busca dos fins últimos, do Sumo Bem, da perfeição contemplativa de um universo dotado de um télos imanente. Recusa a natureza como obra de Deus, não devendo conhecê-la como Deus a criou, a fim de não rivalizar com a onisciência divina e colocar-se na condição de criatura, corpo mortal, mas de vida eterna. O tempo atual não é mais o da espera da salvação, mas oportunidade de desenvolvimento indefinido de conhecimentos, autoafirmação humana pela ciência e pela técnica despoetizadoras, em que a ausência de valores ou limites éticos faz que se confunda liberdade de pesquisa com onipotência. No horizonte de expectativa da história, Baudelaire não vislumbra um regresso a uma unidade perdida com o Éden[3] e o restablecimento de uma harmonia universal, mas uma catástrofe sem redenção, pois o eclipsamento do sagrado vai de par com a corrupção moral do homem moderno: “há pois uma Providência diabólica que prepara a infelicidade desde o berço?”.[4]

Assim, As flores do mal[5] é o título da poética onde o Mal se associa ao Belo, arruinando, a um só tempo, a tradicional adequação entre o Belo e o Bem como ainda a metafísica de sua separação. Moral e estética, o sentimento do sublime e o da finitude acompanham, sem resolução, o poeta. Não se trata aqui de uma possível aproximação a Kant, para quem o sentimento do sublime se diferencia do sentimento moral e que, como todo juízo estético, é “desinteressado” — enquanto o sentimento moral traduz um interesse da razão prática de ver cumpridas suas ordens — a lei do dever e a aproximação progressiva do Bem neste mundo… O sentimento do sublime kantiano, espécie de teatralização da moralidade, faz de cada um “espectador”, como aquele que, do alto da sacada protegida de seu alojamento, contempla a embarcação na voragem vertiginosa do oceano turbulento, na experiência de forças de ultrapassamento e desmedida.[6] O sublime, para Baudelaire, é de natureza diversa: “Te odeio, oceano! teus espasmos e tumultos/ Em si minha alma os tem; e este sorriso amargo/ Do homem vencido, imerso em lágrimas e insultos,/ Também os ouço quando o mar gargalha ao largo”.[7] Baudelaire, bem antes de Nietzsche, propõe que a poesia seja não uma resposta à estética “desinteressada”, ou que apenas produza “belas obras”, e sim que reabra ao homem as “portas do Éden”. Seu poema “Uma viagem a Citera” — que na mitologia clássica dizia respeito aos casais amorosos que lá encontravam o espelho de sua felicidade — conduz o poeta moderno não a uma felicidade prometida, mas sim medir-se ao mais inquietante, “palavras de mel”, interessadas em influenciar sentimentos e induzir comportamentos — o que levara Platão a expulsar o Poeta de sua cidade “mudar a vida”, o terror por “palavras cintilantes e coloridas”, os poikiloi logoi.

A crítica baudelairiana à arte contemporânea não é que esta seja “interesssada” mas simplesmente “interessante” — de onde desaparece a preocupação platônica de qualquer “influência moral” da arte sobre seus ouvintes ou espectadores. Se a crítica platônica às artes imitativas ganha tom intransigente a ponto de bani-las do espaço público, isso advém do reconhecimento, na pólis grega, da tendência, já na época, ao desaparecimento da relação entre “palavra e não-violência”; o reconhecimento, com a sofística, de que a utilização da força passava a integrar a linguagem poética.[8] Em vez de louvar o poeta, Platão elogia apenas aqueles que seguem ritmo e métrica sob a vigilância dos guardiães do Estado — para não apenas esconjurar o perigo da arte mas sobretudo para restabelecer a separação, a kátharsis, a fim de restabelecer palavras “não misturadas”, garantidoras de um discurso que restabeleça severidade moral e puritanismo estético. Antiplatônico, Baudelaire fala, ao contrário, de sua reversibilidade: a reversibilidade entre o sublime e o mal é a marca do Moderno. É essa também a razão da recusa baudelairiana do rousseaunismo e de sua doutrina da bondade natural do homem e da benevolência universal: “o homem naturalmente bom seria um monstro, quero dizer, Deus”.[9] Ou ainda: “Ormuz e Arimã, vós sois o Mesmo”, segundo a lógica baudelairiana do conflito dos duplos.[10] Baudelaire reconhece no homem dois impulsos simultâneos: um na direção de Deus, outro na de Satã, lembrando que este é, indissociavelmente, o Senhor do Mal e o Grande Vencido, bendito porque maldito. Pois “o que é a Queda? Se é a unidade tornada dualidade, foi Deus quem caiu. Em outros termos, não seria a criação a queda de Deus?”.[11]

O mesmo pode-se dizer da maldição de Safo, habitante de Lesbos, ou ainda do masculino e do feminino, da poesia e da filosofia. Safo e suas companheiras, as lesbianas, viviam entre si seus amores, afastadas dos homens — e foram poetas. Se poesia se diz no feminino, o poeta é um escritor masculino. Essa é a razão pela qual Baudelaire pratica uma primeira inversão: mulheres com atividade masculina. Método dos paradoxos e dos extremos é o de Baudelaire: o paradoxo é um antissistema, pois qualquer retorno a um Modelo se tornou, na modernidade, impossível. Como escreveu Baudelaire acerca da Exposição Universal de 1855, “um sistema é uma espécie de maldição que nos impulsiona a uma abjuração perpétua. É preciso sempre inventar outros e este cansaço é um cruel castigo”.[12] Poder-se-ia encontrar aqui a presença tanto de Heráclito quanto de De Maistre, em que a “lei dos contrários” governa tanto a ordem cósmica quanto a física. Assim, se o vermelho do céu faz louvores ao verde”[13] é que, para viverem em harmonia, os tons, como os homens, devem mudar seus valores, “simpatias” e “antipatias” — suas correspondências.[14] A identidade em suas variações faz que o poeta reconheça no homem duas postulações contraditórias, “uma em direção ao Deus, outra a Satã”,[15] o horror à vida e o êxtase de existir. Baudelaire conjuga o moderno e o antigo, em uma estética da indiferenciação ou da confusão das coisas, dando a palavra ao Demônio, como no poema em prosa “As tentações”. O demônio propõe ao homem adormecido: “se quiseres, farei de ti o senhor das almas […], e conhecerás o prazer — que renascerá indefinidamente — de saíres de ti mesmo e te esqueceres em um outro — e de atrair as outras almas até se confundirem com a tua”.[16] Fusão ou confusão de todas as almas, pois, que é experiência própria da metrópole moderna, onde se vive a perda da identidade, na imersão na massa citadina. Se o Eu se constitui antes de tudo, pela memória, o prazer diabólico consiste na faculdade da exceção por excelência: o esquecimento. Mas a isso o demônio responde: “Embora eu sinta alguma vergonha em me lembrar, eu não quero esquecer nada!”.[17] Eis por que Benjamin anota: “o moderno aparece, em Baudelaire, como uma energia graças à qual [Baudelaire] se apropria imediatamente da antiguidade”.[18] Esse anacronismo essencial marca a contemporaneidade que silencia a proveniência, a tradição. Lesbos é a ilha de nascimento de Safo; a geografia, uma viagem no espaço e no tempo. Como se lê em uma nota do Passagen-Werk [Passagens parisienses], Benjamin não foi insensível ao que Baudelaire queria significar, por isso anotou “eu viajo para conhecer minha geografia”.[19] Baudelaire desvia-se, pois, de Paris por Lesbos, a fim de conhecer seus contemporâneos. Lesbos, a ilha das escolas de poesia e música, onde o culto neopagão não é tão-somente pureza e ternura, mas também “revolta sexual”, a tentativa baudelairiana de preencher o vazio e o aviltamento dos corações na modernidade na busca do Absoluto: “Lesbos, ilha onde os beijos são como as cascatas,/ Que desabam sem medo em pélagos profundos,/ […]/ Secretos e febris, copiosos e infecundos,/ […]/ Lesbos onde as Frineias uma à outra esperam,/ Onde jamais ficou sem eco um só queixume,/ Tal como a Pafos as estrelas te veneram,/ E Safo a Vênus, com razão, inspira ciúme!”.[20] Pafos: pequena cidade antiga, a alguns quilômetros de Chipre, onde se erguia o templo de Afrodite; com essa referência o poeta-filósofo enobrece o safismo e estabelece Safo como rival de Vênus. Os cultos, em Pafos, até o tempo dos Ptolomeus, eram exercidos por sacerdotes cujos poderes eram temporais e religiosos — com o que Baudelaire combina os extremos, o secular e o religioso, o topos da mulher fatal e o das femmes damnées, Helena de Tróia e Safo: o amor é, nos dois casos, doença divina, punição, já que proibidos: Helena, adúltera, e a “Safo viril”. Safo, “sob seus melodiosos dedos/ ressoou talvez outrora, nos ventos/ lésbios, uma lira sobre o pátrio/ Egeu, onde os roseirais de Mitilene/ aromatizavam a aragem, caras às secretas amigas/ de Safo de cabelos violetas”.[21] Também as alusões às Frineias e a Platão engrandecem Lesbos: “Lesbos, onde as Frineias uma à outra esperam”. Safo enfrentando Vênus, as Frineias, o Olimpo inteiro: “Que Deus, ó Lesbos, teu juiz ousara ser?”.[22] Guerra metafísica, Baudelaire a trava contra todos os princípios instituídos. A mulher é objeto de um culto impossível, ela é, sim, um “objeto”, mas Absoluto, é vazio, é maldição. Baudelaire celebra, exalta, blasfema a mulher, pois ela é o Outro — mistério tão insondável quanto Deus. A mulher é, a um só tempo, paradisíaca e mortal. E assim como a mulher moderna é cheia de maneirismos, de elegância e maquiagem, a Frineia antiga é musical em sua flauta, e, como suas irmãs de Lesbos, é de beleza radiosa, cortesã sem rival.[23] Acusada de impiedade, durante seu julgamento de hetaira, ao defender Frineia, seu juiz retira o véu de Afrodite que lhe cobria o rosto: sua radiosa beleza e a perfeição de seus encantos foram causa de comoção “religiosa” para seus acusadores.

Essa beleza clássica, amoral, é moderna: “De que valem as leis do que é justo ou injusto?/ Virgens de alma sutil, do Egeu orgulho eterno,/ O vosso credo, assim como os demais, é augusto,/ E o amor rirá tanto do Céu quanto do Inferno!/ De que valem as leis do que é justo ou injusto?”.[24] E se essa beleza se eclipsou desde a Antiguidade, cabe ao poeta — vigiar — “do alto da Lêucade” — a idade de ouro da poesia, da música, da beleza sensual e religiosa. Baudelaire defende a “Safo viril” da austeridade sexual dos últimos escritos de Platão: “Deixa o velho Platão franzir seu olho sério”.[25] A condição moderna é a da “queda” desse “paraíso para sempre perdido”: “Uma Ideia, uma Forma, um Ser/ Vindo do azul e arremessado/ No Estige plúmbeo e enlodaçado/ Que o olho do Céu não pode ver […]”.[26] Estige, o rio que conduz os barqueiros e as almas para o Hades, os ínferos, o esquecimento, a morte. O que reúne o homem antigo e o moderno é o exílio eterno da humanidade contemporânea. Aqui a influência de Plotino,[27] claramente expressada no poema “O irremediável”: a queda do Uno no Múltiplo, a fragmentação da Ideia que, por meio da Criação, degrada-se até cair na matéria,[28] na figura da finitude, do limite, do mal, da imperfeição metafísica.[29] Mulheres tão diversas quanto Safo e Helena, Medeia e Frineia, Penélope e Fedra comparecem nos poemas: superpostas à modernidade, todas vivendo à “margem da sociedade” ou claramente dela excluídas, compartilhando, no masculino, a mesma sorte do poeta, também ele socialmente reprovado, condenado ao isolamento, ao dandismo, à ociosidade, em um sistema — o capitalismo taylorista — que “declara guerra à flânerie”.[30] Pois se gramaticalmente a poesia é do sexo feminine, poética e filosoficamente é do sexo masculino. O acordo entre coisas discordantes é o que “mantém o Ser no ser, uma conexão de tensões opostas, como no caso do arco e da lira”.[31] Não se trata aqui de uma “dialética” de tipo hegeliana ou do positivismo e suas leis do progresso,[32] de sínteses tranquilizadoras ou superação do “atraso”, pois, em Baudelaire, as antíteses são preservadas sem resolução: “Diotima diz que Eros floresce na riqueza e morre na pobreza; unindo as duas ideias, Safo diz que o Amor é […] tecelão de mitos”.[33] Mas deve-se, aqui, pensar também no Mal, de que fazem economia as “dialéticas” e todas as filosofias do progresso, pois há sempre nelas se não “astúcia” ao menos um sentido secreto atuante que, através ou por detrás dos homens, dota a “contingência desoladora do mundo” — tudo o que parece absurdo ou aberrante nas ações dos homens — de uma significação racional, impedindo assim aos feitos de serem um “tecido descozido de loucura”, “vaidade pueril” ou “sede de destruição”. Diferindo de toda dialética — pensemos na de Kant, na de Hegel ou na de Marx[34] —, o poeta foi escolhido como o contraditor.[35] Baudelaire escreve:

Pois Lesbos me escolheu entre todos no mundo

Para cantar de tais donzelas os encantos,

E cedo eu me iniciei no mistério profundo

Dos risos dissolutos e dos turvos prantos;

Pois Lesbos me escolheu entre todos no mundo.

 

E desde então do alto da Lêucade eu vigio,

Qual sentinela de olho atento e indagador,

Que espreita sem cessar barco, escuna ou navio,

Cujas formas ao longe o azul faz supor;

E desde então do alto da Lêucade eu vigio

 

Para saber se a onda do mar é meiga e boa,

E entre os soluços, retinindo no rochedo,

Enfim trará de volta a Lesbos, que perdoa,

O cadáver de Safo, a que partiu tão cedo,

Para saber se a onda do mar é meiga e boa!

 

Desta Safo viril, que foi amante e poeta,

Mais bela do que Vênus pelas tristes cores!

– O olho do azul sucumbe ao olho que marcheta

O círculo de treva estriado pelas dores

Desta Safo viril, que foi amante e poeta![36]

Não dialético, pensando por antinomias e paradoxos, o poeta se diz “entre todos o escolhido”, aquele que, como Safo, “opera mágoas”.[37] Doce e amargo misturados no Amor, mas nenhum “superado” ou transformado. Além dos paradoxos, inversão que fusiona homem e mulher, santidade e mundaneidade, pois o poeta diz: “Pois Lesbos me escolheu entre todos no mundo/ Para cantar de tais donzelas os encantos”, quando se sabe que, entre todas no mundo católico, a “escolhida” foi Maria, a “mãe de Deus”, a Virgem absoluta de quem nasceu o “Deus que se fez homem”.

Baudelaire, como Hércules apaixonado por Ophale, depõe não só as armas de guerreiro como sua própria virilidade, trocando-as pelo bordado da deusa, transitando do masculino ao feminino. Além do mais, no poema “Safo”,[38] o amoroso não é como o guerreiro (da Ilíada) — que enfrenta a morte e que por sua coragem a transforma em memória imorredoura —: o herói moderno sente medo, é um “covarde”. Não domina o dossel como gostaria o mito platônico do cocheiro do Fedro. O guerreiro covarde, a mulher que enfrenta o perigo interessam Baudelaire. Pois Safo “morreu ao blasfemar um dia/ quando trocando o rito e o culto por luxúria/ Seu belo corpo ofereceu como iguaria/ A um bruto cujo orgulho atormentou a injúria/ Daquela que morreu ao blasfemar um dia”: tocada por alguma maldição, a poeta grega teria um dia vivido um amor de perdição por um lindo jovem, o barqueiro Fáon de Mitilene — o que a levou a renunciar ao amor pelas mulheres, ao repúdio das amigas e ao desespero: desprezada pelo “belo tenebroso”, põe fim à própria vida, atirando-se do alto das brancas falésias da ilha de Lêucade, nas águas do espumante oceano.[39] Note-se o moderno em tensão com o antigo: o poema baudelairiano fala em “noites voluptuosas” e em “luxúria”, atribuindo ao mundo grego os traços libertinos de Sade, não sem lhe imprimir um tom grave, o da fatalidade da experiência irreversível do tempo, lá mesmo onde procura as raízes anteriores do ser, sua unidade e eternidade: “Lesbos das quentes noites voluptuosas,/ Onde, diante do espelho, ó volúpia maldia!/ Donzelas de ermo olhar, dos corpos amorosas […]”.[40] Safo, a “patrona das histéricas”, escreve Baudelaire,[41] é o poeta no feminino. Histeria: revogabilidade

de desempenhos e papéis, cujo teor não é psicológico, mas metafísico: “sempre cultivei com terror e prazer imenso minha histeria”.[42] Esta não significa apenas a despossessão de si, mas a projeção de si em um outro e de modo teatral. Trata-se da intrusão do Outro no Si e na duplicação de si em proveito do Outro e, ao fim e ao cabo, só existe o Outro no qual nos projetamos. Baudelaire o celebrou em Safo, como Flaubert em Madame Bovary. No romance de Flaubert, Baudelaire reconhece a histeria em ação, quando o romancista renuncia ao sexo masculino pelo feminino. Conjugando histeria e androginia, o romancista perde sua identidade masculina; além disso, Madame Bovary é uma mulher que tem aspirações de homem, e cujo comportamento compromete a diferença dos sexos: “a diferença dos sexos e não a diferença sexual, a nuance entre as duas expressões devendo ser mantida — a diferença sexual é de natureza fisiológica, enquanto a diferença entre os sexos, mesmo se se estabelece sobre essa base, possui uma diferença imaginária”.[43] As categorias do masculino e do feminino não demarcam apenas nem preferencialmente a sexualidade ou a diferença sexual, mas dizem respeito a uma divisão metafísica, a partir da qual se distribuiriam todas as demais categorias. Safo, Madame Bovary, George Sand cometem um atentado à economia moral do mundo. Também as lesbianas das Flores do mal são as damnées que romperam o pacto social, ou ainda, o “pacto natural”, entregando-se a práticas amorosas transgressivas, ou pior, a um modo de vida que ignora a partição do masculino e do feminino, recusando o tipo de amor que mutilaria a sexualidade.[44] Safo, a mulher-dândi, é a perfeição da antiphysis e da contrarreligião — ela dramatiza também o desterro do poeta no momento do capitalismo, que lhe retirará qualquer missão. Pois o amoroso é sócio do ócio, não participa das guerras ou da luta entre as classes, não cumpre deveres de bom cidadão, não intervém na vida pública; mais que inútil, é perigoso para a sociedade que “declara”, como escreveu Benjamin, “guerra à flânerie” e ao amor desinteressado dos quadros da família e da procriação: “Vós que minha alma perseguiu em vosso inferno,/ Pobres irmãs, eu vos renego e vos aceito,/ Por vossa triste dor, vosso desejo eterno,/ Pelas urnas de amor que inundam vosso peito!”.[45] Signo e prática da sexualidade estéril — como a do nascimento de Vênus da cabeça de Zeus —, a lesbiana é a negação da fatalidade do corpo; ela é, simultaneamente, o puro artifício e o puro místico, como a “prostituição sagrada”, a mesma que no mundo contemporâneo vem a público sob a máscara de novas Vênus. O sagrado: a mulher que “é um ser terrível e incomunicável, como Deus”, como o infinito que não pode ser conhecido porque ofuscaria o homem em sua finitude. A mulher é sem explicação, talvez porque “nada tenha a explicar”.[46]

Baudelaire, o duplo de Safo, o escolhido para vigiar, do alto do rochedo, o mar, para ver se este, indulgente, devolveria o corpo da poeta, a “Safo viril, que foi amante e poeta,/ Mais bela do que Vênus pelas tristes cores!/ […]/ O círculo de treva estriado pelas dores/ Desta Safo viril, que foi amante e poeta!”.[47] Baudelaire compõe, assim, como sentinela de olhar seguro e certo, sua própria imagem lesbiana, assumindo a função essencialmente feminina da expectativa e da espera.[48] Ele, o poeta, aguarda, como uma companheira — como uma mulher — o regresso “do cadáver”. O poema celebra os “mistérios sáficos” em cadências rituais e litúrgicas: “Ó monstros, ó vestais, ó mártires sombrias,/ Espíritos nos quais o real sucumbe aos mitos,/ Vós que buscais o além, na prece e nas orgias,/ Ora cheias de pranto, ora cheias de gritos […]”.[49] Virginais e demoníacas, monstros e mártires, mescla de profano e religioso, do místico e do erótico, o mundo feminino é, para Baudelaire, o ponto de encontro entre o sensual e o místico, o masculino e o feminino, o arcaico e o moderno, o latim e o francês. “Franciscae mea laudes”, poema escrito em latim e publicado nas Flores do mal, o atesta. Redigido em prosa eclesiástica, como um Dies Irae, é um poema de amor sem traço de blasfêmia: a referência mística santifica a inspiração erótica, e esta erotiza a experiência mística: “Velut stella salutaris/ In naufragiis amaris…/ Suspendam cor tuis aris!”.[50] No poema, Maris stella tornase stella salutaris, nomeando não Maria Virgem mas Francisca, a “modista erudita e devota”, isto é, a costureirinha para quem o poeta compôs os versos; quanto à eternidade cristã, a jovem modista a transforma em fonte da juventude — eterna e pagã, porque se trata da moda em Paris.[51] Quanto à língua da Igreja, ela é mobilizada para outros fins, mais licenciosos, como a língua latina o permite, como se sabe pelos poetas romanos:

[…] não pareceria ao leitor, como a mim, que a língua da última decadência latina — suspiro supremo de uma pessoa de forte compleição, já transformada e preparada para a vida espiritual — é a mais apropriada para exprimir a paixão como a compreendeu e sentiu o mundo poético moderno? A misticidade é o outro polo deste ímã de que Catulo e seus sequazes, poetas brutais e puramente epidérmicos, só conheceram o polo da sensualidade. Nessa língua de maravilhamento, o solecismo e o barbarismo parecem forçar as negligências de uma paixão que esquece e desdenha as regras.[52]

A língua, como o homem moderno, que é homo duplex, é também como as mulheres. Duplos porém invertidos. Não somente, na modernidade, Satã converteu-se no bom Deus, mas sobretudo e de maneira radical o Mal se transformou — mas continua a existir, embora a modernidade não mais se aperceba dele. Não por acaso, Baudelaire evoca o abismo pascaliano. Se para os gregos este era o infinito, o caos do filósofo jansenista extravia ainda mais: “é uma esfera cujo centro se encontra em toda parte e a circunferência em nenhuma”,[53] que o poeta se apressa em denominar spleen. Da melancolia a seu deslocamento para uma palavra inglesa, o que se indica não é o abandono de Deus com respeito ao mundo e a experiência do precipício (gouffre), mas o sofrimento, a insignificância e a vertigem do

“espírito tomado de angústia”, o sentimento pascaliano do mal ontológico do homem. Pois a “paixão pelo presente” é um calvário sem remissão:

assim vai ele [o poeta], correndo, procurando. O que procura? Certamente, tal como eu o caracterizei, este solitário dotado de uma imaginação ativa, sempre viajando através do grande deserto dos homens, tem uma finalidade mais alta do que a de um flâneur, um alvo mais geral, outro com respeito ao prazer fugitivo das circunstâncias. Ele procura algo que chamaremos aqui modernidade […] Trata-se, para ele, de evidenciar na moda o que ela pode conter de poético no interior do histórico, de retirar o eterno do transitório.[54]

Se a modernidade possui o Belo, este não mais corresponde a essências estáveis, sendo ela o subjetivo e o histórico no sentido da “tirania do provisório”. Clássico na forma, anticlássico nos duplos reversíveis, trânsitos e paradoxos, Baudelaire mostra a modernidade prisioneira de sua própria duração, no desequilíbrio entre os prazeres e os dias. Têm fim as aphrodisia, os cuidados do corpo e de si à maneira clássica, pois deles desaparece um de seus elementos mais marcantes, a “ introspecção”.[55] Assim, as rédeas do dócil corcel do Fedro de Platão se perderam; na modernidade, o controle das paixões, agora desmedidas e desordenadas, encontram o homem fora de si, do tempo, da lógica e da moral.[56]

Por isso, Safo é blasfema e crística; Mme. de Merteuil, uma Eva, mas “satânica”;[57] a Vênus grega, hoje moderna, é Vênus negra, não por ser venal, mas simulada. Baudelaire combina ainda o jansenismo de Pascal e o imoralismo do marquês de Sade, a vertigem de um mundo abandonado de Deus e os libertinos,[58] como Laclos, Sade, De Maistre. A inserção de Sade em Laclos, da Filosofia na alcova nas Ligações perigosas, permite a Baudelaire atribuir satanismo aos “libertinos”. Ao pensar as questões de moral e moralidade para os séculos XVII e XVIII, Baudelaire o faz em confronto com o Mal, pensando suas configurações históricas na modernidade — a “imoralidade” dos séculos XVII e XVIII — e a do XIX, passam por um descentramento — do ético ao religioso, ou mais precisamente, ao teológico, a partir da “consciência do pecado”. A modernidade consiste nisto: “a energia do Mal caiu na cotação”; ela perdeu o sentido do religioso, confundindo o sagrado e o profano, tudo tornando-se passível de adoração. Se os tempos libertinos com sua irreligiosidade, sofriam condenação, isso se dava em consciência de causa, pois os libertinos sabiam-se em luta contra o pecado em suas práticas amorosas — com o que faziam, simultaneamente, a experiência e a prova da existência de Deus, da existência do Mal.

Contra a falsa moralidade do século XIX, a pertinência, para Baudelaire, de Sade, que jamais negou a perversidade da natureza do homem e com quem desaparece a dicotomia do bem e do mal, fundamentos da moral cristã; quando Sade recusa a naturalidade do Bem, rechaça igualmente qualquer “moral natural”. Tanto Sade quanto seu “continuador”, Baudelaire, arruinam a moral filosófica dos séculos XVIII e XIX, em particular o rousseaunismo e sua concepção de um estado de primitivo no qual o “homem é bom”, a natureza um espaço da benevolência universal (visão que permitia ao autor do Discurso da desigualdade assimilar bondade e natureza). Contrariando essa concepção, Baudelaire escreve: “foi esta natureza infalível que criou parricídio e antropofagia e mil outras abominações que o pudor e a delicadeza impedem nomear”.[59] Pode-se afirmar, como diversos autores o fazem,[60] que a concepção moral de Baudelaire encontra suas raízes em particular em Sade, um Sade aclimatado ao pensamento artificialista próprio à modernidade (toda “virtude” é artificial, não-natural); diversamente, porém, do Mal sadiano — que o leva à recusa de toda moral — Baudelaire preocupa-se com moral e religião:[61]

há no homem uma misteriosa força da qual a filosofia moderna se isentou; no entanto, sem essa força inominada, sem essa inclinação primordial, uma multidão de ações humanas permanecerão inexplicadas e inexplicáveis. Tais ações só atraem porque são más, perigosas; elas possuem a atração do abismo […] É agradável que determinadas explosões de antigas verdades saltem aos olhos de todos os complacentes [complimenteurs] da humanidade, de todos os sonolentos e adormecidos que repetem com todas as variações o tema “eu nasci bom, vocês também, todos nós nascemos bons!”, esquecendo — não! fingindo esquecer — a todos os igualitaristas contrariados […] que todos nascemos marquis pour le mal.[62]

O libertino Sade, deslocado da erotomania e da erotologia para o plano filosófico e religioso do Mal, produz, com suas influências sobre Baudelaire, um “ultracismo” ético, de tal forma que o pensamento dos extremos constitui a modernidade — e no caso a do Segundo Império, método tanto mais eficaz quanto os devaneios humanitários do século XIX não apenas revelam seus limites mas surgem como puro e simples absurdo: Satã torna-se Lúcifer, com o que Baudelaire fortalece e dá um sentido original à crítica ao progresso indefinido do homem. Pois, escreve Baudelaire, “a verdadeira civilização não se reconhece no gás, nem nas máquinas a vapor, nem nas mesas-brancas,[63] mas na diminuição dos rastros do pecado original”[64] — oxímoro ao qual se segue outro na afirmação segundo a qual “os verdadeiros cristãos não acreditam no inferno”.[65]

Para apagar as reminiscências da natureza e tematizar o mal, Baudelaire volta-se para as mulheres — as da antiguidade e as da modernidade. De onde sua idolatria por elas, as “rivais de Deus” e da “obra da criação”, ambas apontando para um mistério comum: a mulher é tão insondável quanto Deus, Baudelaire tanto ama quanto odeia esses ídolos. A luta esgrimista baudelairiana é uma guerra metafísica pois diz respeito aos “primeiros princípios”. A mulher, como Deus, é o absolutamente Outro, o incognoscível, objeto de um culto impossível — de maldição, portanto. As lesbianas da antiguidade e as damnées modernas levam-no a Deus, “o mais prostituído dos seres”, o Ser por excelência, ele, o amigo supremo de todo indivíduo, reservatório inesgotável do amor”.[66] O amor erótico não é apenas uma contra-religião mas também uma contranatureza, pois não mais existe transcendência ou imanência: Baudelaire desfaz a metafísica, ou melhor, o mito do Uno, pois este “sai de si” e se prostitui na natura naturata. Transvalorando o preceito segundo o qual “Deus faz bem tudo o que faz”, esta ordem bem-feita é criada pelo demônio, Senhor do universo material ao mesmo tempo que seu grande prisioneiro, e sua perfeição coincide com seu encarceramento na matéria.[67] Contrariando ainda a afirmação que diz que “quem contemplou seus pecados é maior que aquele que viu anjos”, Baudelaire considera que os seres, no fundo de si mesmos, só contemplam a Satã. Deus diabólico, diabo divino, a Safo viril, a mulher dândi moderna, o dândi Lúcifer, correspondem, todos, à perfeição da anti-physis, signos do despaisamento do homem na modernidade capitalista: o deslocamento de populações inteiras, as fortunas rápidas asseguradas pelo comércio e pelos bancos, o caráter cabal dos contrastes e antagonismos sociais e políticos, a desvalorização simbólica das origens familiares e de nascimento em proveito da sociedade industrial amnésica, a emergência das classes trabalhadoras e proletárias que acampam às portas da civilização urbana.[68] A violência desses novos tempos foi frequentemente tratada, na época, sob a designação de “satânica”. Trata-se de saber o que significa bios — o viver — na época do advento das massas, da multidão, do trabalho industrial e de seu antagonista, a flânerie. E, mais ainda, da multiplicação ao infinito não apenas das mercadorias, mas dos homens na multidão anônima onde desaparecem rostos, indivíduos e consciência — o que confere à multidão sua fisionomia unheimilich, de perturbante estranhamento, o insondável número de sósias no coletivo, que nos roubam a alma e o destino, fazendo de todos nós estrangeiros absolutos. Paris permite ao poeta reconhecer o movimento da razão histórica efetuando-se sobre si mesma no cotidiano, razão histórica que é perda de si e exílio; a grande metrópole não é a capital cosmopolita de todos os povos, mas a “capital dos estrangeiros” em sentido próprio. Em Paris não há estrangeiros porque todos o são — eis o que reúne o habitante nativo e o estrangeiro “exótico”. A Paris de Baudelaire é a “pátria comum de todos os estrangeiros”. A “Paris do Segundo Império em Baudelaire”[69] é uma cidade mítica sem limites temporais; nela tudo se confunde, criando-se a atmosfera de exílio universal. Nela se presentifica o dândi, aquele que se isola no coração da sociedade populosa: vestido todo de preto, botas envernizadas, altivamente desdenhoso em suas manières refinadas; suas pretensas insensibilidade e indiferença o distinguem e diferenciam como ser urbano na sociedade de massa. O dandismo[70] é, nesse horizonte, expressão e efetuação da liberdade, da independência, da individualidade. O dândi vive à margem da sociedade: “a beleza do dândi”, anota Baudelaire, “consiste sobretudo em sua expressão fria, que procede da resolução inabalável de não se sentir comovido por nada: dir-se-ia um fogo latente que se deixa adivinhar, que poderia mas não quer resplandecer”.[71] O dândi, em meio à produção em massa das mercadorias e da multidão, tenta criar as condições da “raridade”, da individualidade . Por isso veste-se com uma gravata vermelho-berrante e com luvas cor-de-rosa: “estamos em 1840 […]. Numa certa época, tivemos até luvas verdes. A cor só desaparecia como parte dos hábitos a contragosto. Baudelaire não era o único a usar luvas cor-de-rosa. Sua marca encontra-se na combinação desses dois efeitos com o negro de seu terno”.[72] O dândi é um “bode expiatório”, como os “seres sagrados”. Nele, como em Don Juan, a dor do remorso vinga Deus, mas orgulhar-se do remorso vinga o homem — como no poema “O irreparável”, onde os mártires de um caminho em extravio se orgulham do martírio: “o remorso, peculiar ingrediente do prazer”, anota Baudelaire em seus Paraísos artificiais,

logo afunda na deliciosa contemplação do remorso, em uma espécie de análise voluptuosa; e esta é tão rápida que o homem, demônio natural, para falar como os Swedenborguianos, não se apercebe do quanto ela é involuntária e como, a cada segundo, aproxima-se mais e mais da perfeição diabólica. Ele admira seu remorso e se glorifica, ao mesmo tempo em que perde sua liberdade. Eis aí meu homem hipotético, o espírito de minha escolha, tendo alcançado este grau de alegria e liberdade que o constrange a se admirar a si mesmo.[73]

A “consciência no Mal” é o antídoto ao torpor do progresso, cegamento definitivo, imersão na inconsciência do bom-senso: “por progresso entendo a atrofia progressiva da alma”, escreve Baudelaire, “e a dominação progressiva da matéria”.[74] Adversário da crença acrítica no progresso indefinido, mecânico e externo ao homem, o progresso é “queda” progressiva do homem no Mal e perda dessa consciência. A humanidade “capitalista” da metrópole, com seu “estilo” e “elegância”, afetações todas elas irrisórias, é “caricatural” e, como a caricatura, que começa a surgir nos jornais diários, é resumo de uma comunicação política da cidade — a moda é o efêmero, a comunicação e a vida momentâneas, a fisionomia moral e política da cidade e de seus moradores: “deixo de lado”, observa Baudelaire,

a questão de saber se, ao tornar a humanidade mais delicada (polida e urbana) na proporção dos novos prazeres que traz o progresso indefinido, não seria sua tortura mais engenhosa e mais cruel; pois se procedendo por uma obstinada negação de si mesmo, não seria uma forma de suicídio incessantemente renovado e se, aprisionado no círculo de fogo da lógica divina, ele não se assemelharia ao escorpião que se traspassa a si mesmo com sua terrível cauda, este eterno desideratum que produz seu eterno desespero.[75]

Fatalidade e liberdade são a marca do progresso que revela a “natureza metafísica” do homo duplex pascaliano, pois o homem, desde a queda do paraíso,[76] se encontra dilacerado entre miséria e grandeza, inferioridade e superioridade. É o homem sob o signo de Satã, o anjo caído, ao mesmo tempo Senhor do Mal e o Grande Vencido. Assim também o herói moderno, o dândi, que vive uma solidão excêntrica, pascaliana, dos dois infinitos, a miséria e a grandeza do homem diante do infinito. O dândi em sua duplicidade contraditória pode apresentar alguns traços da bohème que, como o dândi, mas também diferente em diversos aspectos — sobretudo políticos e morais —, a ele se assemelha por seu estilo de vida e uma “atitude estética”. A bohème se caracteriza pela falta ou recusa voluntária a um trabalho fixo e regular; frequenta bistrôs e cabarés populares, prefere a vida noturna, desfruta de uma liberdade sexual ostensiva, tem inclinação para a embriaguez e a utilização de drogas, por vezes se vale de códigos secretos próprios a uma confraria de iniciados. Cabelos compridos, vestuário amaneirado ou excêntrico, negligência quanto ao aspecto físico, acompanhado de um ideal artístico, por assim dizer, buscado como uma “vocação marginal” e cultivado à revelia de normas, é um outsider com respeito às instituições legitimadoras como as Academias etc. Com tendências transgressivas, não se subordina a conformismos, desenvolve sua liberdade contra interditos e contra o poder, repudia o mundo da moral repressiva.[77] Na França, a partir da Monarquia de Julho e de Louis-Philippe, a burguesia, pela primeira vez na Europa, é a verdadeira classe dominante.

Desse ponto de vista, a bohème pode ser compreendida como a atitude mais aberta contra a persistência do Ancien Régime.[78] Quanto ao dândi, ao menos como Benjamin[79] compreende Baudelaire, ele testemunha uma revolta que ainda não encontrou seu caminho e pode tomar qualquer direção, a das barricadas ou a do desprezo da massa. Benjamin o celebra como representante de uma casta altiva, uma “nova aristocracia” cultuadora do Eu, assustada com os estigmas da sociedade burguesa mas incapaz de a eles se opor. Trata-se de um “heroísmo aristocrático”, sem entusiasmo e “tomado pela melancolia” que se insurge contra a maré em alta da “democracia” e do “nivelamento rebaixado” espiritual e do “gosto”. Revolta sobretudo estética, como o atesta a predileção de Blanqui, o conspirador e seu pathos das barricadas — pelas luvas pretas. O dândi não se guia pela ética do trabalho, não é moderado em sua conduta, não procura estabilidade e prosperidade econômica. Não faltaram críticas ao caráter politicamente instável daqueles que Marx diluiu na bohème em seu Dezoito Brumário, denomiando-os lumpenproletariat, e seu apoio ora aos poderosos, ora ao subproletariado urbano. Os insurretos de 1848 que apóiam o golpe de Estado de Napoleão III não passam de “aventureiros em cima das barricadas”: “são conspiradores que aderem a todo tipo de gente duvidosa […]. Ao lado dos desclassificados enfurecidos, cujos meios de subsistência são duvidosos, ao lado de dejetos, depravados e rebaixadamente aventureiros da burguesia, há vagabundos, soldados liberados, ex-condenados a trabalhos forçados que deixaram as prisões, escroques, charlatães, ladrões à mão armada, jogadores, leões-de-chácara de bordéis, trapeiros, mendigos” etc. Para Marx do Dezoito Brumário, a bohème não é o povo mas a plebe ou ralé.[80]

Mas os dândis, diversamente da bohème, se definem pelo satanismo, que revela uma “estranha espiritualidade”; Baudelaire assim os caracteriza:

são, ao mesmo tempo, os sacerdotes e a vítima, todas as condições materiais complexas a que se submetem, desde a toalete impecável a qualquer hora do dia e da noite até as peripécias mais perigosas do esporte, são sempre uma ginástica apropriada para fortalecer a vontade e disciplinar a alma. Na verdade, eu não estava totalmente errado em considerar o dandismo como uma espécie de religião.[81]

O dândi é como Satã, cujos terríficos sofrimentos provêm da desproporção entre suas magníficas faculdades (adquiridas instantaneamente em um ato diabólico) e o meio (enquanto criatura de Deus) em que foi condenado a viver. Ato satânico por excelência é a consciência levada ao seu estado máximo, dos poderes e da potência mesma de Deus — definição que por isso mesmo é também a de Satã. Eis por que Satã, como o dândi, foi “traído pela sorte”, é o irmão gêmeo de Caim, portador de um segredo negado aos homens de seu tempo, escondido nas profundezas da matéria: só o conhecem aqueles que o invocam e compartilham seu exílio, os “párias malditos” aos quais Satã ensina “o gosto do paraíso”, diante da forma absoluta de seu crime, “o sentimento quase inefável, tanto ele é terrível, da alegria na maldição”.[82] Satã é, em seu travestimento, o maldito em sua semelhança perfeita com Deus — ou então a imagem de Deus no espírito absolutamente privado de Deus. Essa incurável nostalgia do paraíso que é a dor do exílio é a do poeta; de Satã; de Hermes, o Alquimista:

Hermes que oculto me conquistas

E para sempre me intimidas,

Tu me fazes igual a Midas,

O mais triste dos alquimistas;

 

Por ti do ouro o ferro improviso

E torno inferno o paraíso […][83]

A consciência do exílio é a consciência da modernidade, a imersão cada vez mais profunda na matéria e a atrofia do espírito, a perda coletiva da “rainha das faculdades”: a Imaginação.[84] De alguma forma é a Imaginação a “faculdade do artifício”, uma vez que a modernidade é perda irreversível do “natural”.

Artifício por excelência é a máscara do dândi, seu hábito de mudar de rosto, mas também e sobretudo a maquiagem da mulher. Com a maquiagem, a mulher “parece mágica” e “sobrenatural”, a fim de vencer o “natural” e impactar os espíritos. O elogio da aparência levada a termo por Baudelaire desloca a tradição e aponta o moderno, uma vez que a trajetória da filosofia no Ocidente dualizou essência e aparência em nome da essência. Para Baudelaire, a “essência” se retirou do mundo e dela só resta a ausência que deve ser presentificada pelo “frívolo”, pelo travestimento, pela maquiagem. Substituta da idealidade perdida, onde a sedução vai de braços dados com o fetichismo, a mulher é sósia de Satã, príncipe do travestimento e do disfarce, cuja força provém, a um só tempo, de sua contestação e de sua marginalidade. E aqui se superpõem as lesbianas, Madame Bovary, Georges Sand, o dândi. Pois a maquiagem, como a mascara do dândi, confere à mulher moderna uma beleza antiga. Assim, o pó-de-arroz no rosto vem a ser uma “mica de mármore”, enobrecendo a mulher moderna como se fosse uma estátua grega. Na mulher, a consciência tácita do moderno, isto é, do efêmero, do contingente, do transitório, pois a maquiagem (como a moda) é sua maneira de consolidar e divinizar sua “frágil beleza”. É sobretudo a mulher quem endossa a beleza da moda, a mulher do demi-monde. Qual um ídolo, pela moda a mulher revela seu ser terrível, isto é, incomunicável.[85] É mágica pela toalete, pelo refinamento da maquiagem, por suas atitudes, mas, antes de tudo, pelo seu olhar, “vago ou fixo”, “distração indolente ou atenção fixa”. O olhar ausente encontra-se também nos inúmeros poemas de Baudelaire sobre os gatos, olhar que “qual dardo dilacera e fere fundo”.[86] Assim, Baudelaire atribui à mulher, lá mesmo onde se encontra sua misoginia, um charme mágico; essas “mulheres mundanas” e seus compagnons de route — os dândis — são, segundo Baudelaire, “os narcisos da derrisão” que contemplam a massa citadina como “um rio que lhes devolve sua própria imagem”.[87] A mulher moderna é narcísica, como os gatos.[88]

Reunindo, assimilando e assemelhando, por anacronismos, o politeísmo greco-romano, a filosofia antiga e a civilização moderna dita cristã, Baudelaire compôs: “O que me falta ao coração e o que o redime/ Sois vós, ó Lady Macbeth, alma afeita ao crime,/ Sonho de Ésquilo exposto ao aguilhão dos ventos […]”.[89] Toda a onomástica baudelairiana — Safo, Lesbos, Lady Macbeth, Letes, Estige, Afrodite, Vênus, Platão, Frineia, Flaubert, Georges Sand, escritores, filósofos, pintores, personagens lendárias e literárias clássicas e modernas, bem como referências geográficas (Lêucade, Capadócia, Hades), deuses — tem o sentido de sobrepor, mesclando-os às massas da grande metrópole moderna e sua linhagem direta, seus ancestrais antigos. Assim a justaposição de Vênus, Platão, Frineia e Safo em “Lesbos” foi só o começo de seu método. Há nas Flores do mal uma Circe homérica e um pensador austero — Antístenes, o cínico[90] —, sereias e mulheres fatais. Como em “A Beatriz”, evocadora da amada de Dante mas em tudo seu contrário: ela é uma “Vênus negra”. Essa Beatriz humilha e é impenitente, francamente “sádica”.

A modernidade é o lugar de duplos — sombras, simulacros e fantasmagorias. O que é o duplo, a fantasmagoria, o sósia, senão sombras que perderam o próprio corpo, revenants que não correspondem mais às coisas que são? A fantasmagoria não volta de lugar algum e não procede de nenhum, é simulacro tal como o de Lucrécio,[91] aquele que vem de longe e não diz respeito a um corpo, mas sim é um compósito engendrado a partir de diferentes corpos, não sendo pois reflexo de um corpo real e existente, mas uma rede de partes e detalhes provenientes de diversos outros. Por isso, o simulacro não encontra correspondência no “real”, mas se constitui de realidades e irrealidades, como as mercadorias, como a moda. “Ecletismo”, se ecletismo houver, ele é a experiência da dúvida, pois no mundo contemporâneo qualquer identidade vacila, toda beleza está contaminada com o “pecado original”.[92] O spleen baudelairiano resulta da morte de Deus, o que faz do Eterno o equivalente da Queda: “Ir ao fundo do abismo, Inferno ou Céu, que importa?”.[93] Céu e inferno, Deus e Satã, anjo e demônio, a modernidade é o lugar do paradoxo e entre eles o do esquecimento do pecado original. Em sua desmemória, o presente se oferece a todas as formas do falso. Desse modo, quando Baudelaire teoriza o moderno é para considerar tanto intransmissibilidade da tradição quanto para indicar a epifania do instantâneo e do inapreensível. Para Baudelaire há, no presente, um descompasso entre a tradição e sua transmissão — o que significa que o passado não coincide com sua desvalorização. Ao contrário, a perda da aura — das coisas no universo regido pela lei do valor e da multiplicação das mercadorias, por um lado, perda da auréola da arte e da poesia, por outro, a modernidade é o momento de fundação de um choc sobreposto ao passado. Tempos entrecruzados e simultâneos — o da antiguidade e o da modernidade — e sua correspondência não se dá na forma tradicional da adequatio. Há um silêncio na modernidade baudelairiana: a dos passantes, a da multidão, a do olhar que “olha sem ver”, justamente na época em que as revoluções se vinculam à liberdade da circulação da palavra. Os lazeres e o consumo de massa multiplicam observadores privados do olhar. Tem fim o sujeito consciente ao qual correspondia uma identidade subjetiva. Baudelaire fala de uma passividade que provém, antes, do sonho e da hipnose. Em “Alguns temas baudelairianos”, Benjamin, comentando Baudelaire, menciona olhos que perderam a capacidade de olhar.

Lesbos e Paris, Safo e Les damnées, a eternidade da beleza grega e a maquiagem moderna dão a compreender o presente — mundo a um só tempo sem Deus mas tomado pelo terror divino. Pois não é uma das maiores astúcias do demônio fazer crer “que ele não existe”?

Notas

[1] Cf., entre outras obras, República, VII, 519a; Phédon, 81c; Banquete, 210e a 211b.

[2] Crátilo, 386e.

[3] No poema “A vida anterior”, Baudelaire evoca um Éden cuja felicidade se encontra menos na simplicidade e na inocência e muito mais no “fausto” das artes: “átrios colossais”, “colunata” e “fulgores”.

[4] Baudelaire inspira-se tanto nas antigas profecias persas quanto nas representações platônicas do inferno.

[5] Lembre-se que em 1845 Baudelaire tinha o projeto de reunir seus poemas sobre os amores malditos em um volume que se denominaria As lesbianas, mas abandona-o sob censura e os inclui em suas Flores do mal: “As lésbicas: no ano de 1845 um jovem poeta francês projetava publicar com esse título um livro de versos que, entretanto, só apareceria dez anos depois, trazendo na capa outras palavras — mais simbólicas embora ainda perversas […]. Manteve as três peças malditas. O título Flores do mal foram, por sua vez, publicados com o escândalo merecido! (‘Lesbos’ e ‘Les femmes damnées I e II’ na edição de 1857)”(cf. Joaquim Brasil Fontes, Eros, tecelão de mitos, São Paulo, Iluminuras, 2003).

[6] No entrecruzamento do mundo sensível e do inteligível, o sublime kantiano é o sentimento em que o espírito humano descobre em si mesmo “tudo o que ultrapassa qualquer medida dos sentidos”, o que é “absolutamente grande”, para além de qualquer comparação. Cf. Immanuel Kant, Crítica do juízo, São Paulo, Iluminuras, 1995, parágrafo 25.

[7] “Obsessão”, em Charles Baudelaire, As flores do mal, trad., introd. e notas de Ivan Junqueira, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985, p. 299.

[8] Com efeito, a grande preocupação platônica não é o que seria valorizado por Aristóteles, a kátharsis como “cura” ou “purificação” da desmedida das paixões pela mobilização mimética dos espectadores, a compaixão com os sofrimentos dos heróis em cena, mas antes a identificação com o tirano!

[9] Cf. “Le peintre de la vie moderne” em Oeuvres complètes, Paris, Gallimard, 1976, vol. II.

[10] A perspectiva baudelairiana do moderno previne o poeta de qualquer escolha política, entre classes ou déspotas, por um lado, dominados e oprimidos, por outro, ambos participando da violência primordial e, assim, da mesma culpabilidade originária, da mesma hybris. Essa é a razão pela qual Benjamin observava que Baudelaire foi o agente duplo de sua própria classe, simultaneamente dentro e fora da burguesia, vendo, pois, a Revolução dos dois lados, o da vítima e o do carrasco, cujos papéis são intercambiáveis. A dor, na ausência do divino que a redima e justifique, faz do homem ininterruptamente e ao mesmo tempo “vítima e carrasco”. Assim, a Revolução Francesa e a “filosofia do progresso” são o “paganismo dos tolos”, estando o progresso destinado a consolar o homem de sua abdicação e decadência moral, além de ser messiânico, prometedor da plena felicidade do homem no futuro dos desenvolvimentos técnicos e científicos. Governados, pois, por uma “providência” que não controlam, os homens acreditam agir a partir de si mesmos, mas isso não passa de uma “ilusão do orgulho”, pois pensam dispor das prerrogativas do Criador como durante a Revolução Francesa, quando procuraram instaurar ex nihilo uma constituição política, desencadeando catástrofes e violência e o “inocente” solve a “dívida” do culpado. Cf. Charles Baudelaire, Choix de maximes consolantes sur l’amour, I, cit., p. 550.

[11] Cf. “Mon coeur mis à nu”, ft 33, em Oeuvres complètes, Paris, Gallimard, 1975, vol. I, p. 688.

[12] “Meu coração a nu”, em “O Spleen de Paris” em Poesia e Prosa de Charles Baudelaire, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1995, p. 534.

[13] Idem.

[14] O conceito baudelairiano de “correspondências” encontra-se em uma constelação onde se superpõem o “visionário” Swedenborg, as “mesas brancas”, o absinto, as drogas, os “paraísos artificiais”, referências alquímicas e esotéricas (como a Hermes Trismegisto), cartomantes, quiromantes, grafólogos, mas também os estados de semelhança, analogias e correspondências próprios à teoria do conhecimento da Renascença européia: “Até o século XVI”, anota Michel Foucault, “a semelhança desempenhou o papel de construtor no saber da cultura ocidental. Foi ela que conduziu em grande parte a exegese e a interpretação dos textos; foi ela que organizou o jogo dos símbolos, permitiu o conhecimento das coisas visíveis e invisíveis, guiou a arte de representá-las. O mundo se englobava a si mesmo: a terra repetia o céu, o rosto se mirava nas estrelas. […] A representação dava-se como repetição: teatro da vida ou espelho do mundo, eis o título de toda linguagem, sua maneira de anunciar e formular seu direito a dizer” (Les mots et les choses, Paris, Gallimard, 1972, p. 32).

[15] Mon coeur mis à nu, cit., p. 682.

[16] Idem, p. 68.

[17] Ibedem.

[18] Walter Benjamin, “Paris, capital do século XIX”, Passagen-Werk (j5,1). Passagens parisienses, Belo Horizonte, Ed. UFMG, no prelo.

[19] Charles Baudelaire, “Lesbos”, em As flores do mal, cit., pp. 497 e 499.

[20] Idem.

[21] Gabrielle d’Annunzio, “Poema paradisíaco”, apud Mario Praz, La chair, la mort et le diable, Paris, Denoël, 1977, pp. 223-4.

[22] “Lesbos”, cit., p. 501.

[23] Praxíteles, no séc IV a. C., tomou-a por modelo e amante, esculpindo-a em uma estátua de ouro, depois exposta no templo de Delfos. Conta-se que Apeles pintou sua Vênus saindo das águas depois de vê-la banhando-se.

[24] Charles Baudelaire, “Lesbos”, cit., p. 501.

[25] Ibidem, p. 499. Baudelaire refere-se à República e a As leis: “de qualquer modo que se olhe esta forma de prazer”, diz Platão, “seja por gracejo ou seriamente […], a união dos machos com os machos e das fêmeas com as fêmeas é contra a natureza e que uma tal viciosa desordem provém, antes de tudo, de sua impotência em se dominarem no prazer” (Platão, “Les lois”, livro I, em Oeuvres complètes, trad. franc. Emile Chambry, Paris, Garnier, 1946, vol. VI, p. 21).

[26]  Charles Baudelaire, “O irremediável” em As flores do mal, cit., p. 309.

[27] Filósofo neoplatônico de Alexandria que lá viveu por volta de 205 d. C.

[28] O conceito de “matéria” recebe, em Baudelaire, a denominação de “satanismo”, cujo sentido será desenvolvido adiante.

[29] Este é o tema pascaliano presente em Baudelaire, como veremos adiante.

[30] Lembre-se que, principalmente a partir da monarquia de julho de 1830, com a burguesia e sua operosidade comercial e bancária — encarnação de uma nova ordem social e política —, aparece, em contrapartida, a personagem do flâneur, como a dos boêmios, ou melhor, a bohème, ambos ociosos, figurações da instabilidade, do deslocamento permanente, da desordem, os “ciganos do espírito”.

[31] Heráclito, frag. 51, em Os pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1973. Cf. Joaquim Brasil Fontes, “Eros, tecelão de mitos”, cit., p. 216.

[32] Cf. A. Comte, Cours de philosophie positive e, em particular, a “lei dos três estados”, o teológico, o metafísico, o positivo ou definitivo, que corresponde ao ultimo desenvolvimento do espírito, de agora em diante “científico” e conhecedor de leis, previsíveis, repetitivas e constantes na natureza e na sociedade.

[33] Joaquim Brasil Fontes, Eros, tecelão de mitos, cit.

[34] “Mulheres malditas: Delfinna e Hipólita” em As flores do mal, cit., p. 505 ss.

[35] Evidentemente esses autores não são nomeados, mas o ideário difuso captado na poesia e na prosa de Baudelaire abrange o pensamento alemão, aliás bastante ativo na França com os exilados Heine e Marx, entre outros.

[36] A ideia de uma “astúcia da razão”, antes de adquir a força que viria a ter, em especial no pensamento de Hegel, já se esboça em Kant, em particular em A ideia de uma história universal do ponto de vista cosmopolita. Mas é todo o racionalismo — para o qual tudo é explicável — que está em questão. Não existe história e progresso, história como progresso, tudo acontecendo ad majorem Dei gloriam. O pensamento de Baudelaire vai de encontro a toda tradição teológica, filosófica e política do Ocidente, ele é o contrapelo de crenças, convicções e evidências sedimentadas no senso comum.

[37] Charles Baudelaire, “Lesbos”, cit., pp. 501 e 503.

[38] Máximo de Tiro apud Joaquim Brasil Fontes, Eros, tecelão de mitos, cit., pp. 215- 6.

[39] Cf. Joaquim Brasil Fontes, Eros, tecelão de mitos, cit., pp. 42 ss.

[40] Charles Baudelaire, “Lesbos”, cit., p. 499.

[41] L’école païenne” em L’art romantique, p. 91.

[42] Mon coeur mis à nu, cit., p. 640.

[43] (43)     Pierre Laforgue, Oedipe à Lesbos, Paris, Eurédit, 2002, p. 130. A “misoginia” de Baudelaire com respeito a George Sand talvez revele um dos componentes do “inconsciente” poético baudelairiano. Inconsciente deve ser entendido como uma “disposição” à verdade que não é nem “manifestação” nem “ocultamento”, mas impossibilidade de identificar-se àquilo que nos escapa no cerne mesmo da percepção. Assim o travestimento que permite transitar do mundo das mulheres para o dos homens. Travestimento e não “disfarce”, o que autorizava George Sand, aliás baronesa Duvenant, a mudanças cujas consequências eram sobretudo sociais. A baronesa Duvenant metamorfoseando-se em George Sand é a mulher de respeitabilidade burguesa pondo-se a viver a existência de um escritor e conhecendo amores que desafiam a moral instituída.

[44] Baudelaire tinha o projeto, em 1845, de reunir seus poemas sobre os amores malditos em um volume que se denominaria As lesbianas, o que o poeta abandona sob censura, incluindo-os em suas Flores do mal: “As lésbicas: no ano de 1845 um jovem poeta francês projetava publicar com esse título um livro de versos que, entretanto, só apareceria dez anos depois, trazendo na capa outras palavras — mais simbólicas embora ainda perversas”. Manteve as três peças malditas. O título Flores do mal foi, por sua vez, publicado com o escândalo merecido! (“Lesbos” e “Les Femmes damnées I e II” na edição de 1857).

[45] Charles Baudelaire, “Mulheres malditas” em As flores do mal, cit., p. 399.

[46] Charles Baudelaire, Le peintre de la vie moderne, cit., p. 561.

[47] Charles Baudelaire, “Lesbos”, cit., p. 503.

[48] Cf. Joaquim Brasil Fontes, Eros, tecelão de mitos, cit.

[49] “Mulheres malditas”, em As flores do mal, cit., p. 399.

[50] Na tradução de Ivan Junqueira: “Bendita estrela dos mares,/ Nos naufrágios, nos pesares…/ A alma elevo a teus altares!” (Charles Baudelaire, “Louvores à minha Francisca” em As flores do mal, cit., p. 261).

[51] Lembre-se que, para Baudelaire, a moda é o elemento passageiro, frágil, leviano, da estética. Ela resolve, sem o resolver, o conflito histórico entre o passado e o futuro, porque ela é o traço de repetição, o que volta na forma do neo, do retrô.

[52] Charles Baudelaire, Oeuvres complètes, cit., vol. I, p. 940.

[53] Pascal, coleção Os pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1979.

[54] Charles Baudelaire, Oeuvres complètes, cit., vol. II, p. 694.

[55] Lembre-se que os “cuidados de si” na era clássica correspondiam a uma dietética, à prudência e ao equilíbrio na “erótica”, dizendo respeito a uma “sabedoria prática”. Cf , em particular, Michel Foucault, História da sexualidade 2 (10ª ed., Rio de Janeiro, Graal, 2003).

[56] Baudelaire interpela as paixões revolucionárias e a “luta entre as classes”, tomando por emblema a Revolução Francesa. Diferentemente dos heróis revolucionários, o herói moderno não luta, com o que o poeta se afasta do puritanismo ascético e do rigorismo cívico da República Francesa. Que se pense na contemporaneidade de suas críticas, uma vez que um de seus valores mais enfáticos — a laicidade — passou a operar como uma religião ortodoxa, as noções de República e de igualitarismo dissimulando desigualdades crescentes tanto na qualidade de vida material quanto espiritual, os ideais da República convertendo-se numa paródia de si mesmos. O messianismo ascético do presente — sacrifícios em nome das gerações futuras — é um dos traços teológicos da República virtuosa. A isso Baudelaire prefere os “libertinos”.

[57] O que interessa nos libertinos e, especialmente, nas Ligações perigosas, é a maneira de dominar ou não o que se poderia designar por o Outro, significando este, aqui, ao mesmo tempo uma personagem particular e o que nela ameaça escapar.

[58] Laclos e suas Ligações perigosas, o marquês de Sade e sua Filosofia na alcova, e Joseph de Maistre reconhecem, segundo Baudelaire, o “caráter satânico” da Revolução Francesa. Cf. Charles Baudelaire, Jornaux intimes, Paris, Corti, 1949.

[59] Mon coeur mis à nu, cit.

[60] Cf. número da revista Magazin Littéraire dedicado a Baudelaire.

[61] Se, para Sade, moral e religião são invenções humanas, ambas estranhas à ordem da natureza, o mesmo poderia ser dito de Baudelaire, mas a discussão tenderia ao infinito. Pois dever-se-ia enfrentar a questão da religião em Baudelaire, mas esse não é o eixo deste trabalho, cujo foco é preferencialmente a concepção baudelairiana da modernidade.

[62] Charles Baudelaire, Oeuvres complètes, cit., vol. II, p. 715. Baudelaire escreve marquis [marquês] e não marqués [marcados] para o mal, e esse marquis só pode ser, na sua formulação espirituosa, o marquês de Sade.

[63] Sabe-se que para o conceito baudelairiano das “correspondências”, encontramos a presença de Swedenborg, espíritas, cartomantes, quiromantes, grafólogos etc., como já indicado em nota anterior.

[64] Charles Baudelaire, Oeuvres complètes, cit., vol. I, p. 697. Observação saborosamente irônica, sobretudo porque seu contexto é o ensaio consagrado à primeira parte de Os miseráveis, de Victor Hugo, romance, como se sabe, progressista e humanitarista, se assim se quiser.

[65] Ibidem, p. 686.

[66] Journaux intimes, cit., pp. 79-80.

[67] A queda na “matéria” é o que Baudelaire entende por “satanismo” da modernidade. Walter Benjamin procura explicitar a multiplicidade dos sentidos aí implicados em seu Passagen-Werk e a crítica baudelairiana da “novidade”, do “progresso”, da “técnica”, do sex-appeal do inorgânico, do fetichismo, da análise dos autômatos, dos contos de Hoffmann etc. A queda progressiva na “matéria”, além do fenômeno da transferência do meu desejo de consumo ao “desejo do outro” suposto possuir e desfrutar daquilo que eu ainda “não possuo”, propõe o pré-prazer como forma de vida social das grandes massas, um “messianismo dos objetos” que prometem felicidade e bem-estar pelo consumo de bens materiais mas frustra o consumo pois a “matéria” alienada e agente, além de transformar a qualidade em quantidade, confisca o tempo da fruição: quanto mais tecnologia se produz, o homem dispõe de menos tempo; a usura do tempo é também a perda da qualidade dialética do vivido. As diversas significações do modo de produção capitalista, das exposições universais da mercadoria no século XIX, os templos do consumo, a inscrição da arte no mercado mundial etc. são todos temas abordados por Baudelaire, que procura desfetichizar o fetiche por meio do próprio fetichismo (mundo dominado pelas coisas, objetos parciais de desejos sempre diferidos e nunca realizados, desaparecimento do Sujeito consciente da filosofia clássica — “o homem não passa, na modernidade, de um caleidoscópio dotado de consciência”). Isso foi enunciado, mais recentemente, por Adorno nos seguintes termos: “até hoje ainda ninguém se dedicou a nenhuma verdadeira exploração da psicodinâmica do ‘gadget’ e já seria tempo de realizar um estudo a fim de que se evidenciem os laços emocionais existentes entre o quadro objetivo das condições atuais de existência e os indivíduos que nele vivem” (Adorno, Stars down to Earth, trad. francesa Des étoiles à la Terre: la rubrique astrologique du Los Angeles Times: étude sur une superstition secondaire, Paris, Exils, 2000, p. 84). Que se atente para a imaterialidade da matéria nas transações financeiras, o fim da centralidade do trabalho e sua atomização planetária, a automação que, diversamente de criar “tempo livre” para a “autorrealização” de nossas aptidões intelectuais, artísticas etc. produz desemprego e uma massa de “seres supérfluos” etc. Cf. revista Actuel Marx: Violence de la Marchandisation, Paris, PUF, no 34, 2003.

[68] Falar nas desordens e comoções da sociedade do século XIX, da Revolução Francesa até o Império, de Napoleão Bonaparte a Luiz Napoleão seria pouco. Escritos políticos e a imprensa da época de Baudelaire exprimem a violência das relações sociais e os termos que recobrem insurreições e motins: “barbárie”, “loucura”, “furor”, “embriaguez”, “extermínio”, “ódio”, “mártir”: violência, enfim. Cf. D. Oehler, Le spleen contre l’oubli-juin, 1848, Paris, Payot, 1996.

[69] Título do ensaio de Benjamin no Passagen-Werk (trad. franc., Le livre des passages; trad. ing., The Arcade Project; trad. ital., Il libro dei passaggi).

[70] Talvez seja possível afirmar que Baudelaire tem um precursor em Byron, e na personagem de Dom Juan, o protótipo do dândi. Com efeito, em O pintor da vida moderna, Baudelaire observa que os dândis ingleses descendem, todos, de Byron. Quanto a Don Juan, sob o olhar baudelairiano, ele é o Impenitente radical: “[…] o tranquilo herói, por sobre a espada penso/ Olhava a água passar e em torno nada via” (“Dom Juan nos infernos” em As flores do mal, cit., p. 143). A referência aqui é, principalmente, O naufrágio de Don Juan, de Delacroix, onde o herói não é assediado pelo remorso em meio ao crepúsculo, na fúnebre nau que se dirige ao Hades. O dândi Dom Juan não sente senão desprezo e indiferença por seu destino.

[71] Charles Baudelaire, “Le dandi” em Le peintre de la vie moderne, cit., p. 712. Lembre-se a maneira pela qual Walter Benjamin refere-se a Baudelaire e seu dandismo da indiferença: “Baudelaire brilhou no céu do Segundo Império como um astro sem atmosfera” — o que, segundo o método dos “extremos” — que aproximam o poeta-filósofo (Baudelaire) e o filósofo-poeta (Benjamin) —, é uma estrela mas impedido de emitir sua luz.

[72] Walter Benjamin, Passagen-Werk, j11a,2. Há, também, outra marca do dândi: seu desejo de detectar, na realidade, outra realidade, analogamente a que Salvador Dali dizia da paranoia quando a ela se referia como outra interpretação possível do real e, assim, atividade lógica criadora. Algo se passa com o desejo amoroso na modernidade, tal como apreendido por Baudelaire, uma espécie de “projeção em cadeia de objetos parciais”. Nesse sentido, embora em outro contexto, podemos aproximar o dândi baudelairiano e o dândi Baudelaire de seu “herdeiro” Lacan, quando este trata do amor romântico, se levarmos em consideração as relações de Baudelaire com o Romantismo (em particular com a pintura de Delacroix): “a matriz do amor romântico e do amor foi surrealista”, escreve Leda Tenório da Motta, “é a poesia trovadoresca do século XII francês […]. Analisando o rodeio dos cavaleiros em torno das impossíveis damas casadas e encasteladas que levam a peito conquistar, Lacan nos pede […] para ponderar que todos os obstáculos interpostos à felicidade desses cantores apaixonados não só caucionam a inacessabilidade de seu objeto, mas lá se encontram para garantir o que está verdadeiramente em questão, por baixo das aparências: uma ‘demanda de não-real’. E nos adverte que a paradoxal função que o poeta do amor cortês se põe a exercer, erguendo barreiras contra seu próprio desejo, nessa busca impossível ambientada numa Idade Média em que o casamento se torna sacramento, denota uma perfeita administração da solidão narcísica, e uma organização do vazio” (Literatura e contracomunicação, São Paulo, Unimarco, 2004, pp. 88-9). Também Michael Löwy, em seu livro Walter Benjamin: aviso de incêndio (São Paulo, Boitempo, 2005), refere-se ao “marxismo gótico” do filósofo e à importância do amor cortês para o filósofo que tanto se dedicou a Baudelaire.

[73] Charles Baudelaire, op. cit., p. 58.

[74] Charles Baudelaire, Curiosités esthétiques, p. 267.

[75] Ibedem, p. 228

[76] Baudelaire retoma, conferindo-lhe novos e ampliados sentidos, o Paraíso perdido de Milton em seus Paraísos artificiais.

[77] Théophile Gautier caracterizou a bohème como “o amor da arte e o horror por tudo que é burguês”. Cf. Enzo Traverso, La pensée dispersée, Paris, Lignes, 2004.

[78] Recorde-se que, em meados do século XIX, tanto na Inglaterra quanto na Alemanha, a burguesia industrial domina a economia mas seu estilo de vida e mentalidade permanecem modelados pela landed gentry e o Junkertum. Em outros termos, a burguesia instalou sua Zivilisation mas não desalojou sua antiga Kultur, a modernidade industrial permanecendo envolta nas formas culturais da tradição, ligadas a práticas obsoletas nas relações sociais. Para os conservadores, a bohème misturada à multidão citadina não passa de subversivos da ordem social e moral, aventureiros perigosos, atraídos por bebidas, drogas e violência. De qualquer modo, a bohème é francamente antiburguesa e procura reviver, em meio ao moderno, uma comunidade que permanece “invulnerável” aos constrangimentos do dinheiro, do utilitarismo calculista e das leis da produção mercantil. Se a liberdade da bohème é um protesto contra a exclusão social, por outro lado não se preocupa, por sua disposição “individualista”, em inscrever-se em formas oficiais de cidadania como o recurso a instituições jurídicas, por exemplo. São, então, “classes perigosas”.

[79] Cf. “Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo”, São Paulo, Brasiliense, 1991; Walter Benjamin, Passagen-Werk.

[80] Sobre as diferentes considerações de Marx acerca da bohème, cf. J. Seigel, Paris bohème: culture et politique aux marges de la vie bourgeoise 1830-1930, Paris, Gallimard, 1991; H. Kreuzer, Die Bohéme: Beiträge zur ihrer Beschreibung, Stuttgart, J. B. Metzler, 1968.

[81] Charles Baudelaire, L’art romantique, cit., p. 90.

[82] Ibidem, p. 226.

[83] “Alquimia da dor” em As flores do mal, cit., p. 303.

[84] Cf. “Le Salon de 1859” em Oeuvres complètes, cit., vol. II, p. 619.

[85] Cf. Le peintre de la vie moderne, cit., p. 713.

[86] Cf. “O gato” (XXXIV) em As flores do mal, cit., p. 185. Ver também “O gato” (LI) na mesma obra.

[87] Cf. Le peintre de la vie moderne, cit., p. 719.

[88] (88)     Assim também o texto clássico de Freud: a mulher narcísica — cujo traço mais característico é bastar-se a si mesma — não responde ao desejo que desperta, trata todos os homens segundo uma mesma medida: “suas necessidades (Not) não as fazem tender a amar mas a serem amadas e lhes agrada o homem que preenche tal condição. […] Essas mulheres exercem a maior atração sobre os homens, não apenas por razões estéticas, pois normalmente são as mais bonitas, mas por razões psicológicas interessantes” (“Pour introduire le narcisisme”, em La vie sexuelle, Paris, PUF, 1969, p. 94).

[89] Charles Baudelaire, “O ideal” em As flores do mal, cit., p. 147.

[90] Considerando-se discípulos de Sócrates, os cínicos, em suas práticas e ditos, contrariavam e questionavam convenções sociais e eram conhecidos por sua altivez moral. Recorde-se, aqui, o encontro de Diógenes de Sínope e Alexandre da Macedônia. Como o filósofo tinha por morada um “tonel” e andava com uma lanterna “à procura de um homem que não se deixasse influenciar pelas convenções sociais”, o Imperador, amante da filosofia grega, pergunta-lhe se este precisa de alguma coisa; a isso Diógenes responde que Alexandre estava encobrindo o Sol e que se desviasse, portanto, dele. Cf. Diógenes de Laércio, Vida e doutrina dos filósofos ilustres, autor latino do século II.

[91] Cf, Lucrécio, De rerum natura, livro IV.

[92] (92)     Em contraste com Platão da República, a modernidade baudelairiana não é uma caverna platônica. Com efeito, Platão “recalca” o conflito enunciado pela própria alegoria quando descreve corpos e sombras. Pois, se a propagação da luz revela instantaneamente sombras projetadas nas paredes da gruta, com o eco das palavras trocadas entre os homens no exterior da morada subterrânea não ocorre o mesmo, o som e o eco não são simultâneos – assim seu sentido e posterior a sua emissão, há sempre um corpo refletido e seu reflexo. Há no som dois sons, e Platão descuida em dizê-lo para garantir a identidade do real e a adequação das coisas a sua essência. A Baudelaire interessa o “intervalo”, o momento do choc, as anamorfoses, tudo que suspende o “lugar-comum”: “o lugar-comum não consiste em um grupo isolável de ideias, não procede da lógica do verdadeiro e do falso mas o que cimenta aos poucos ideias em circulação […] privando-as de sua vitalidade em um movimento de clausura do pensamento”(Pierre Boyard, Peut-on appliquer la literature à la psychanalyse?, Paris, Editions de Minuit, 2004, p. 106)

[93] Charles Baudelaire, “A viagem”em Flores do mal, cit., p. 453.

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