2010

O paradoxo da imaginação: fonte do pensamento, enclausuramento da crença

por Eugène Enriquez

Resumo

Desde Aristóteles sabe-se que não é possível pensar sem fantasma (isto é: fantasia, imaginação). O pensamento não se reduz ao exercício de uma razão desembaraçada de todo desejo, menos ainda à argumentação estritamente lógica. Ele precisa, para ser ele próprio e desenvolver-se sem entraves, de uma familiaridade com as “coisas vagas” (segundo Valéry), de emprestar as vias de travessia, de estar pronto para reconhecer o imprevisto (assim como Kékulé concebeu a teoria da estrutura atômica), de deixar-se ir ao demônio da analogia (pessoal, direta, simbólica, fantástica), de usar as associações de palavras ou de ideias (como no trabalho psicanalítico ou poético), de estabelecer relação entre as coisas que se assemelham, a priori sem relação. Sonha-se, então, com a seguinte fórmula de Lautréamont: “O encontro fortuito, sobre uma mesa de dissecação, de um guarda-chuva e uma máquina de costura”. Assim, surgem os conceitos transdisciplinares, através dos caminhos das “ciências diagonais” (segundo Callois).

Existe na raiz de todo pensamento teórico ou prático um “imaginário radical” (segundo Castoriadis ou ainda Bachelard), que participa do sistema inconsciente e começa a trabalhar a categoria do diferido. Ele que funciona como introdutor da diferença ao contrário da repetição ou como transferência para mais tarde, de modo a gerar o intervalo mental diferencial que apela para a ação a fim de preenchê-lo ou instaura uma diferença entre isto que se dá na realidade e as imagens que os homens dão-se da realidade.

Daí a imaginação que, ao mover-se por meio de um imaginário motor, cria amáveis rupturas nas palavras, ações e temporalidades. Ela que fecunda o pensamento, mas deverá sempre encontrar confirmação, mais dia menos dia, na prática. Eis a experiência e a confrontação com o Real (isto é: o que resiste, desconcerta) que põe em movimento a imaginação, provocando o aparecimento de novas ideias e suscitando ações imprevistas.

Portanto, ao lado de um imaginário motor existe constantemente um imaginário iludente (sobre o qual Lacan referiu-se, de maneira particular, em termos de “o estágio do espelho como criação do eu”) que possui a função de resseguro e fixação de um limite final. Põe em movimento uma imaginação que busca cristalizar-se nas crenças que não se negociam, sejam ilusões ou certezas, como tantas vezes se verifica nos dogmas que servem à tessitura de ídolos (religiosos ou ideológicos).

Os ídolos vão encontrar sua configuração na feitura, no campo pictórico, dos ícones, a que se segue a instituição da pintura religiosa — com a criação de conjuntos tantas vezes notáveis — e da invenção da música sacra, ambas destinadas a reforçar a fé cristã. A imaginação motriz vai poder, nessa moldura ilusória, desdobrar-se sobre o plano da arte. Contrariamente, ela irá ser bloqueada na realidade social pela imaginação enganosa que só admite as crenças firmes e que afasta os pensamentos inovadores. O plano da arte vai, assim, dissociar-se do plano da realidade. Quanto mais a arte se liberar, mais a realidade irá se fechar. Um exemplo bastante surpreendente é dado pela liberdade da arte barroca, expressão da contrarreforma.

Enfim, quanto mais o pensamento motriz, imaginante, condicionador dos desejos (já que, para Aristóteles, “não há desejante sem imaginação”) desdobre-se em poesia, música, artes plásticas, mais, ao contrário, no âmbito do pensamento operante na sociedade, serão as religiões, as ideologias, as crenças sectárias que se desenvolverão. Donde a conquista dos lugares santos, as guerras de religião etc. ou a instalação do totalitarismo e do fanatismo, mesmo que depois do Renascimento o pensamento imaginativo ensaie com constância a quebra dos dogmas.

Esse pensamento imaginativo não pode se desdobrar se os processos de sublimação triunfarem sobre aqueles da idealização. Por isso, é importante definir as condições da sublimação, que implica a partilha da descoberta com os outros, assim como a colocação em cena de uma ética da discussão (Habermas) e de uma ética da finitude (Enriquez). Ela é ainda mais necessária hoje, quando os novos problemas multiplicam-se e quando a imaginação iludente possui, mais e mais, um caráter invasivo.


Para tratar desta questão, vou convidá-los primeiro a um grande desvio e enunciar uma afirmação que provavelmente vai surpreendê-los, mas que tentarei demonstrar: o homem é louco, as sociedades são loucas.

Por que posso afirmar que o homem é louco? Muito simplesmente porque, diferentemente dos animais, ele não é programado. Ele não tem instintos que lhe permitam saber, desde o início (ou quase), o que ele tem que fazer, quais os animais dos quais ele pode ser a presa, quais ele pode caçar e comer ou, se ele não for carnívoro, quais as ervas ou plantas de que ele pode se nutrir. Desde o início, o animal se comporta como um animal solitário, se assim ele tiver sido programado, como um animal grupal com um macho dominante ou como um animal de rebanho, tal qual um carneiro. Ele não constrói seu futuro (exceto raros casos), ele obedece a um destino fixado de antemão. Por isso, salvo os animais domésticos literalmente contaminados pelo homem, ele não tem doenças psíquicas. Assim, um cachorro pode ter neurose, mas nunca foram observadas neuroses em leões, exceto quando se tornam animais enjaulados.

O homem é totalmente diferente, embora faça parte do reino animal. O homem não possui instintos, ele tem pulsões, que devem ser canalizadas, às vezes recalcadas, mas que precisam sempre ser socializadas por meio do processo de educação e formação conduzido pelos pais, o qual continuará pelo resto da vida, graças à existência de instituições sociais, como a escola, a Igreja, o exército, a empresa, a comunidade, as associações e o Estado. Ao nascer, o homem é incapaz de viver se não tiver pais ou outros educadores para cuidar dele. Ele não sabe que existe e vive numa simbiose com o mundo externo, do qual não é separado. Uma mônada psíquica se constitui progressivamente e vai expressar uma fantasia e um desejo de onipotência, ligados a uma impotência real. Depois, ele vai diferenciar elementos, como o “bom seio” e o “seio ruim”, descritos pelos psicanalistas. Durante muito tempo ainda – até o “estádio do espelho” evocado por Jacques Lacan e sobre o qual voltarei a falar -, ele não terá a noção de “corpo limpo” e, de qualquer maneira, não consegue andar ou comer sozinho. É um ser totalmente dependente, de seus pais e do ambiente em que vive. Ele precisa aprender tudo e possui apenas alguns “esquemas motores” (como o sorriso) que são inatos. É por esta razão (esta dependência total) e pela existência, desde o início, das pulsões, que ele pode ficar doente psiquicamente. É neste sentido que podemos dizer que o homem é estruturalmente louco, isto é: que ele precisa aprender a se tornar um indivíduo normal capaz de viver na sociedade. E, mesmo assim, não é garantido! Freud, por exemplo, nunca fala em indivíduos normais, mas designa o normal como um “neurótico” normal, pela existência em todo ser humano de conflitos entre as diferentes pulsões (pulsões de autoconservação dirigidas para o ego, pulsões sexuais direcionadas para outrem, ou, ainda, pulsão de vida e pulsão de morte), e depois, quando o aparelho psíquico for constituído, entre as diferentes instâncias da personalidade (o id, o ego, o superego, o ideal do ego).

Aliás, sabemos agora que é impossível estabelecer uma separação estrita (essencial) entre o normal e o patológico. Freud em muito contribuiu para o desaparecimento dessa separação. Porém, não foi o único a fazê-lo. Mesmo em biologia, um historiador das ciências como Georges Canguilhem chegou a escrever que “a ameaça da doença é parte constitutiva da saúde” e que “o anormal vem essencialmente em primeiro”.

O homem precisa lutar sua vida toda contra a possível psicose, as tentações paranoicas (ser o único poderoso), perversas (usar outrem como um instrumento), histéricas (erotizar todas as relações sociais), os diferentes tipos de neuroses e as diferentes possibilidades de depressão (em crescimento constante na nossa sociedade contemporânea do individualismo, em que cada sujeito é fadado a se tornar o único responsável por tudo o que lhe acontece). E às vezes ele não o consegue, ou apenas parcialmente, ou apenas por certo tempo. Pessoalmente, vi na minha vida um número suficiente de dirigentes de empresas, de grandes tecnocratas seguros de si, de repente cair em colapso, delirar ou se suicidar, para poder afirmar esta ideia. E tenho certeza de que vocês também puderam constatar este fenômeno.

Portanto, o homem é estruturalmente louco (no sentido que acabei de dar a este termo), mas a história não termina aqui. Ele também vive num mundo igualmente acometido de loucura. De fato, está em aberto desde o início da humanidade a questão bem colocada por Aristóteles: “Como viver juntos” ou como “constituir uma sociedade”. Todos os observadores da vida social, todos os politólogos, todos os dirigentes políticos, todos os filósofos tentaram responder a esta pergunta. E, apesar de suas pesquisas, de sua inteligência sutil, de suas investigações, eles fracassaram. É verdade que conseguiram definir regimes políticos e classificá-los. Distinguiram com sucesso a tirania, o despotismo, a ditadura, o totalitarismo, a realeza, os regimes aristocrático, oligárquico e democrático, mas não conseguiram chegar a um acordo sobre as razões que levam os povos a viver juntos num determinado regime, nem sobre o valor relativo desses diferentes regimes.

Temos que reconhecer que a democracia hoje em dia parece o regime preferido para muitas nações, apesar de suas numerosas imperfeições. Como dizia Churchill, “excluindo todos os outros, é o pior dos regimes”. No entanto, ao olhar de perto os funcionamentos democráticos, só podemos ficar espantados com sua diversidade. A democracia nos Estados Unidos é bem diferente da democracia francesa, a democracia no Brasil não se parece em nada com a democracia inglesa. Um único ponto em comum, talvez: a corrupção. Pois como a democracia é baseada na virtude, ela gera obrigatoriamente indivíduos que, atrás da máscara da virtude, praticam seu contrário: a corrupção, a mais vergonhosa. E não são apenas as democracias emergentes que são roídas pela corrupção; as mais antigas democracias europeias, a inglesa e a francesa, também são atingidas. Infelizmente, é normal. Cada regime tem sua doença preferida. Não podemos nos esquecer de que Platão era contra a democracia prezada pelos sofistas, pois eram os que faziam os discursos corruptores mais bonitos que tinham mais chances de ser ouvidos pelo povo e não aqueles que estavam em busca da verdade! Afinal de contas, como pensava o próprio Rousseau, a verdadeira democracia nunca existiu e provavelmente nunca existirá.

A democracia também tem outro inimigo que aguarda à espreita: o totalitarismo. Com efeito, quando as democracias estão fracas, quando elas não têm mais – como dizia Bergson – “a vontade de viver”, quando a corrupção se espalha, quando os conflitos (elementos estruturantes da democracia baseada no pluralismo dos partidos e das opiniões) se exacerbam, então muitas pessoas estão dispostas a recorrer a um homem providencial, a um grupo, a uma casta, para restabelecer a ordem e criar um novo Estado, desta vez, virtuoso para valer. Apesar de suas diferenças, os regimes fascistas existiram na Alemanha, na Itália, na Espanha. Os regimes totalitários da União Soviética, da China, as diversas ditaduras que os países da América do Sul conheceram (Brasil, Argentina, Chile, Uruguai etc.), quiseram todas – pelo menos no seu discurso – restabelecer a ordem e edificar um novo Estado virtuoso, no qual todo mundo estaria se conduzindo de maneira normal, ou seja, da maneira imposta pelo Estado.

Assim, não apenas o homem que é louco, mas as sociedades também o são, o que significa que elas devem combater todos os dias as doenças que as roem (a corrupção, o roubo, o assassinato, o crime organizado, o tráfico de drogas etc.)

Os seres humanos como as sociedades são submetidos à neotenia, ou seja, ao processo de “fetalização” descrito por L. Bolck, ao arrefecimento no processo de crescimento, ao prolongamento excepcional do período juvenil, que faz com que o homem continue sendo, mesmo na idade madura, uma eterna criança e que as sociedades passem o tempo repetindo os comportamentos mais catastróficos.

Felizmente, a loucura e a neotenia são estruturalmente ligadas a capacidades de adaptação e, sobretudo, de criação reforçadas. Capacidade de criação ligada a um elemento fundamental, característico da espécie humana: a imaginação.

Disseram muitas vezes que o que caracteriza a espécie humana é a linguagem ou então o trabalho produtivo (Marx). Acho que aquele que foi mais longe nessa direção foi Aristóteles, que nos diz: “A alma nunca pensa sem fantasia” (no sentido de imaginação) e ainda: “Não existe desejo sem imaginação” (da alma). Fora isso, o que caracteriza a espécie humana, ou seja, o pensamento criativo (ao passo que os animais são levados por seus instintos e não constroem nada) e o desejo baseado na falta e que é insaciável (ao passo que os animais não têm desejos, apenas necessidades) podem existir apenas graças ao que Aristóteles chama de imaginação primordial, a que o filósofo francês de origem grega, Cornelius Castoriadis, que aprofundou e renovou o pensamento aristotélico, chamou de imaginação radical no seu grande livro A instituição imaginária da sociedade (1975).

A imaginação humana é totalmente desenfreada, ela se libertou do jugo do funcionamento biológico e de suas finalidades. Ela cria praticamente ex nihilo imagens, formas, conteúdos, significados e instituições que não correspondem a nenhuma necessidade. Ela é a dimensão determinante de sua alma (para falar como Aristóteles) ou de sua psiquê (para falar como os psicanalistas).

Embora ela crie praticamente do nada, ela precisa levar em consideração quatro fantasias originais.

Essas fantasias são iguais para todos os indivíduos, sendo que cada um as processa de um modo peculiar, cada vez único, dentro e por meio de sua cultura própria. Seu caráter universal é comprovado pelo fato de que são reencontradas ao mesmo tempo nos mitos das diversas culturas e nos sonhos dos indivíduos, sob diversas formas, mas fáceis de reagrupar.

A fantasia da sedução pelo adulto se liga na diferença das gerações. Ela conjuga ternura, erotização, agressividade, numa idade em que a nuance ainda é vaga e quando se fala da mãe “primeira sedutora”, na medida em que os cuidados que ela propicia à criança são “excitantes”.

A fantasia da cena primitiva responde à questão da diferença dos sexos e de sua obrigatória reunião para conceber a geração seguinte. A criança imagina um coito parental do qual ela é de uma só vez o diretor, o espectador, todos os parceiros ao mesmo tempo, por identificação e condensação, como num sonho. E do qual ela também é o produto, isto é: esta fantasia remete à questão das origens, questão necessariamente dolorosa e sem resposta certa: será que meus pais fizeram amor para me conceber ou somente por prazer?

A fantasia da castração coloca ordem na cena caótica anterior. Ela monta um roteiro com pessoas distintas, sentimentos e o desenrolar de uma ação. Há um sujeito, um desejo, o objeto deste desejo, uma pessoa que encarna a proibição. Há uma ameaça externa, seguida de contato visual com o órgão excitável e culpado em todos os sentidos da palavra; órgão que estabelece a diferença entre os sexos, no lugar onde ocorre a distinção entre gerações, naquela zona que é para todos inegavelmente a zona erógena (a área do prazer) por excelência.

A quarta fantasia designa a aspiração à volta para o ventre materno. Assim é a eterna volta, a idade de ouro, o paraíso perdido, a fusão beata com o todo (o que o autor Romain Rolland chamou de “sentimento oceânico”).

A imaginação radical (que Descartes chamava de “louca da casa” e que ele queria repudiar por completo) cria os axiomas, os postulados, os esquemas fundamentais; ela fornece as hipóteses, os modelos, as ideias, as imagens. Ela está na fundação de todos os mitos e, para os que não acreditam em Deus, na de todas as religiões. De fato, ela vai servir para que o indivíduo crie um mundo em que ele se sentirá menos desprovido, onde ele conseguirá exorcizar seu medo fundamental. Pois o homem tem medo. Como diz o filósofo francês Emile Chartier, mais conhecido sob o pseudônimo de Alain, “a sociedade não é essencialmente filha da fome (que implica que pessoas com competências diferentes se unam para colaborar e encontrar ou elaborar a comida necessária à sua sobrevivência), mas sim do medo. Medo do cosmo incompreensível, medo dos outros que podem rejeitá-lo ou até matá-lo”.

Para lutar contra estes dois medos conexos, a imaginação vai construir mitologias (não existe sociedade sem mitos e sem ritos que permitam a proteção por totens ou divindades criadas) e religiões que vão religar (é o primeiro sentido do termo) os indivíduos uns com os outros, criando assim laços de simpatia e de aliança para afastar os temores. Ela também vai instaurar instituições sólidas, leis a serem respeitadas e obrigações morais.

Mas o homem não pode ser definido pelo medo, que o leva a tomar em consideração o princípio de realidade. Ele é também e mais fundamentalmente um ser que quer seguir a cartilha do princípio de prazer (prazer sexual, onipotência do pensamento). Como escreve Freud: “Com a instauração do princípio de realidade, uma espécie de atividade de pensamento se desprendeu e permanece livre no seu confronto com a realidade e ficou submetida apenas ao princípio do prazer. É a fantasia – já presente no começo das brincadeiras infantis e mais tarde prolongada como devaneio diurno – que se desamarra (âncora) dos objetos reais”. O que Castoriadis comenta da seguinte maneira: “Se esta atividade ‘permaneceu livre’ em relação à realidade, isso significa que ela já o era antes. E já que este ‘desprendimento’ só aconteceu com a instauração do princípio de realidade, a consequência é obviamente que o funcionamento inicial da psiquê era mera fantasia satisfazendo o princípio do prazer, ou seja, a imaginação livre”. É o que já fora formulado corretamente pelo poeta surrealista francês André Breton quando ele escreveu: “O homem, este sonhador definitivo”.

Que o ser humano sonhe, fantasie, mostre o trabalho permanente da psiquê para construir imagens, para dar uma forma a algo que no início não tinha forma já que a psiquê é constituída por pulsões, isso tem uma consequência essencial: a primazia do prazer da representação sobre o prazer do órgão.

Vamos explicar. O desejo sexual (baseado na pulsão sexual) não deve ser confundido com a descarga sexual. O desejo sexual se expressa através de uma representação do ser amado ou simplesmente desejado; imaginamos o prazer que vamos ter com o outro, o prazer que o outro vai ter conosco; esperamos que este momento seja agradável, surpreendente, formidável ou, inversamente, temos medo de não “corresponder”, de não ficarmos satisfeitos ou de não satisfazer o outro. Pensamos no momento em que a gente vai viver aquilo com deleite ou com angústia. A satisfação sexual é apenas um momento deste processo de imaginação e também de pensamento, já que todo pensamento se amarra (e se sustenta) numa figura ou numa imagem.

Se não houver o prazer da representação, só resta o prazer do órgão, a mera descarga sexual. Não há mais amor nem erotismo (pois o erotismo vive de imagens às vezes surpreendentes; basta pensar no prazer de alguns ao ver botinhas de mulher). Só resta a pornografia.

É sintomático da nossa época, da velocidade, do efêmero, do olhar da performance, que hoje seja o momento mais pornográfico desde o início da humanidade. Todas as revistas que tratam de sexo só falam em: “Como melhorar seu desempenho sexual”, “Como descarregar melhor”, por mais tempo, mais rapidamente, com o máximo de parceiras. E, quando você terminou de descarregar, só resta o tédio ou a obrigação de recomeçar, que desemboca também na tristeza ou, talvez, também no assassinato, como o mostram as obras de Sade.

Esquecemos que sem o prazer da representação somos apenas animais ou até piores do que eles, visto que aparentemente eles têm representações ligadas à sexualidade.

Fazer com que o prazer da representação prevaleça sobre o prazer do órgão abre para o ser humano o prazer do pensamento. Mesmo o pensamento mais abstrato vai ser filho da imaginação e não de uma razão despida de todo desejo ou, melhor ainda, de uma argumentação estritamente lógica, como o expressa magnificamente o poeta inglês William Blake: “O que é prova hoje antes disso foi pura imaginação”. Alguns exemplos para sustentar o que afirmo: dois que me foram inspirados por Kekulé, o fundador da química orgânica estrutural. O primeiro é brevíssimo: uma noite, Kekulé tem um sonho em que são representadas seis serpentes em círculo, cada uma mordendo a cauda da anterior. No dia seguinte, ele encontra o que procurava em vão havia muito tempo: a fórmula estereoquímica hexagonal da molécula do benzeno. O segundo, um pouco mais longo, eu tomo emprestado do diário de Kekulé, que conta o nascimento da estrutura atômica: “Numa bela noite de verão, o último ônibus estava atravessando ruas desertas. Na plataforma onde me encontrava, eu estava num estado de devaneio, vendo átomos flutuando. Eu nunca conseguira representar a natureza deste movimento: Naquela noite, no entanto, vi que os menores eram muitas vezes acoplados aos maiores ou pegos por eles; que uns maiores arrastavam três ou quatro pequenos e que todos giravam num turbilhão, parecendo um extraordinário balé. Vi os maiores se alinhando, um deles selecionando os menores na extremidade da cadeia; acordei do meu devaneio ao ouvir o motorista gritar: ‘Chapman Road’, mas eu passei uma parte da noite a rascunhar modelos das imagens vistas no meu sonho. Foi assim que a teoria da estrutura atômica foi concebida”.

Outro exemplo é relatado por Claude Bernard, que conta que ficara marcado – um dia em que ele olhava diferentes tanques em que tinham colocado vísceras variadas – pelo fato de moscas se aglutinarem no tanque onde havia figados. Em vez de reclamar contra a sujeira do local, ele exclamou: “Há açúcar aí dentro!”. Foi assim que ele descobriu a função glicogênica do fígado, tão importante para o tratamento do diabetes. Um comentarista escreveu a respeito: “É um processo de associação de ideias totalmente análogo ao da poesia. A impulsão motora é a mesma. A primeira fonte da ciência não é o raciocínio, mas a verificação detalhada de um casal proposto pela imaginação”. Outro comentarista: “A gente se dá conta da verdade, e ela só é enxergada quando for inventada por alguém com talento”.

Essas histórias mostram a importância do jogo e da divagação na descoberta e nos asseguram que a imaginação não está em contradição com o rigor científico, pelo contrário: ao favorecer a disponibilidade para a surpresa e o incongruente, ela fornece ao esforço racional novas hipóteses a testar, novas imagens a explorar, novas estruturas a estabelecer.

Não esqueçamos que Freud só conseguiu entender a função do sonho, “caminho real da psicanálise”, ao preferir “a sabedoria popular”, que sempre reconheceu a existência de sentido nos sonhos, e não as teorias científicas, que os limitavam a um “fenômeno orgânico revelado apenas por certos sinais psíquicos”. A imaginação criativa recorre em grande parte a um tipo de racioánio habitualmente banido pelos cientistas acadêmicos: o raciocínio por analogia, que, no entanto, serviu aJames Watson e Francis Crick na sua descoberta fundamental da estrutura em dupla hélice do DNA..Noto en passant que, no seu livro, Watson é carregado de ironia para com a ciência e os cientistas “bem estabelecidos”.
O raciocínio por analogia é considerado pelo psicólogo W J. J. Gordon, criador da “sinética”, como essencial em qualquer atividade criativa. Para Gordon, existem quatro formas de analogia:

A analogia pessoal

“Um químico poderá assim renovar seu problema se ele se identificar com as moléculas em ação. O técnico inventivo se imagina sendo uma molécula dançante, ele rompe com a atitude desprendida do perito para se jogar pessoalmente na atividade dos elementos que ele estuda.” Do meu lado, procurei tanto me identificar com tecnocratas perversos para tentar entender a perversão social que amigos me disseram depois de ter lido meus livros: “Não sabíamos que você era tão perverso”, e tive de responder: “Não, como Freud diz: sou apenas um neurótico normal”.

A analogia direta

Ela serve para estabelecer uma comparação, para colocar em paralelo fatos, conhecimentos e disciplinas diferentes. Por exemplo, podemos estudar a maneira como um molusco se abre e se fecha para construir um modelo de distribuidor que se fecha sozinho.

A analogia simbólica

Ela recorre a “imagens objetivas e impessoais” para descrever o problema. Trata-se de uma resposta poética pela qual se condensa numa “imagem satisfatória, mesmo que não pertinente tecnicamente, uma visão imediata dos fatores do problema”. Um físico como Maxwell elaborava imagens mentais para todos os seus problemas (foi assim que ele elaborou sua famosa imagem do “demônio”, capaz de separar individualmente moléculas de gás).

A analogia fantástica

A liberdade dos sonhos, até então reservada aos artistas, também existe nos cientistas. Gordon precisa: ”As manifestações culturais da invenção na área das artes e sobretudo das ciências são da mesma natureza e se caracterizam pelos mesmos processos fundamentais”.
Estas diferentes formas de analogia fundamentam dinamicamente as duas frases essenciais do processo inventivo:

Tornar o insólito familiar.

Tornar o familiar insólito.

Gordon chega dessa maneira a uma descrição da atividade criativa muito próxima daquela que fora evocada desde o início do século XX por Victor Segalen. Esse capitão de navio foi também poeta (um grande poetas francês, pouco conhecido, do século passado), romancista, especialista da escultura chinesa e etnólogo. Ele dizia que todo homem, se quiser ser criativo, tem que ser “exótico”, isto é, alguém sensível à variedade, à diversidade, a uma visão renovada, ao questionamento de todas as coisas, a uma concepção do mundo; um indivíduo ao mesmo tempo sempre presente e sempre marginal, um estrangeiro afinal de contas, capaz de olhar o mundo como se o estivesse vendo pela primeira vez.

O que acabamos de examinar nos mostra que o pensamento, para ser o que ele é e para se desenvolver sem estorvo, precisa se familiarizar com o que Valéry chamava “as coisas vagas”: na maioria das vezes, são as coisas essenciais, já que não cercadas, não formalizadas, não padronizadas e que exigem o sopro da imaginação. O pensamento precisa pegar atalhos, estar pronto para reconhecer o imprevisto; para desenvolver um gosto pelo imprevisível, pelo surpreendente; para confiar na analogia, na metáfora – pela capacidade do trabalho metafórico metamorfosear as coisas-; para recorrer a associações de palavras, de ideias (como no trabalho psicanalítico ou na poesia).

Temos que acrescentar que, como evocava o filósofo das ciências Gaston Bachelard, é preciso combinar a pesquisa mais rigorosa com a aspiração poética mais aventureira. Observemos a este respeito que, se Bachelard escreveu obras como A formação do espírito científico ou O novo espírito cientifico, ele também teria escrito livros como A poética do espaço, A água e os sonhos, ar e os sonhos.

G. Bachelard, que foi um dos mestres de L. Althusser e de M. Foucault, sabia que era necessário combinar imaginação, sonho, devaneio, observação e experimentação para construir o que ele chamou de “conceitos transracionais” ou “transespecíficos”, os quais permitem que o pesquisador não se tranque na sua disciplina e tenha uma visão transdisciplinar, pois somente esta visão favorece verdadeiramente a descoberta. G. Bachelard, que era professor concursado de universidade e doutor em filosofia e em fisica, foi o exemplo perfeito do indivíduo modesto (ele vinha de um meio muito pobre), que tinha uma visão extraordinária das relações que existem entre as coisas mais diversas. Ele pôde assim exercer uma influência decisiva na reflexão de alto nível na França.

Outros foram no mesmo sentido. Marcel Detienne, grande especialista da Grécia antiga, nos diz nos seus últimos trabalhos que suas pesquisas – que foram profundamente inovadoras para a compreensão da sociedade grega – só obtiveram tais resultados porque ele conseguiu colocar em relação elementos que pareciam totalmente separados: modos de pensamento, regras de direito, indicações para a navegação, textos teatrais etc.

Eu gostaria de citar em último lugar um homem como Roger Caillois, que foi sociólogo, etnólogo, poeta, diretor de uma revista de ciências humanas, especialista nas pedras mais raras. Ele construiu os primeiros elementos daquilo que chamou de “ciências diagonais”. Para ele, “o progresso do conhecimento consiste por um lado em descartar as analogias superficiais e em descobrir laços de parentesco profundos, menos visíveis talvez, porém mais importantes e significativos[…] A verdadeiira tarefa consiste em deteminar correspondências subterrâneas, invisíveis, inimagináveis para o leigo. Essas relações inéditas unem os aspectos inesperados que sofrem os efeitos de uma mesma lei, as consequências de um mesmo princípio ou as respostas a um mesmo desafio: ordens de coisas pouco compatíveis entre si”.

Depois do que acabei de dizer, vocês vão entender que o verdadeiro pensamento criativo, irrigado pela imaginação, só existe para mim se houver vontade de descobrir relações não previstas, correspondências entre as coisas e os fenômenos, conivências negligenciadas, correlações sutis.

Preciso acrescentar duas características para terminar minha investigação sobre a força da imaginação primordial ou radical no processo do pensamento. Para começar, esta imaginação vai mobilizar a categoria do adiado.

  1. Adiado como introdutor da diferença (contrário da repetição). Mudança continua das modalidades de apresentação do desejo, deslocamento do desejo para objetos, invenção de imagens para moldar a realidade, devaneio transformador da matéria, instauração de uma dinamologia, ao passo que a repetição instaura estruturas estabilizadas.
  2. Adiado como postergado. A imaginação está do lado do projeto, da construção edificada lentamente. É ela que está na fonte das utopias, das fantasias que esteiam os programas, as teorias, as vontades de fazer e de agir. Dela surgem a ação e a prática social.
  3. Adiado na medida em que continuadamente (já que não se esgota nunca) criador de uma distância sempre presente e estritamente irre­ dutível, que chama a ação pensada para reduzi-la.
  4. Adiado, finalmente, na medida em que instaura uma diferença entre o que ocorre realmente e as imagens que os homens se fazem da rea­ lidade. Daí sua função de máscara, de construção de uma clivagem entre as relações reais e as relações imaginárias.

Dá para ver logo que, se a imaginação pode ser a abertura do pensamento, ela também pode ser simultaneamente um encerramento do pensamento nas utopias, nas teorias bem estabelecidas (segundo aspecto do adiado) e na sua função de máscara (quarto aspecto do adiado). Voltarei a falar do encerramento mais adiante.

Como abertura, a imaginação é o que favorece a ruptura, na linguagem, nos atos e no tempo. Ruptura na linguagem, ao permitir a relação, entre termos aparentemente contraditórios, a existência de todos os oximoros como “a água seca”, “o fogo frio”, “a clareza obscura”, “a violenta ternura”, “o peso do silêncio das palavras”. Ou de objetos impossíveis, como a famosa frase de Lautréamont: “O encontro fortuito numa mesa de dissecação de um guarda-chuva e de uma máquina de costurar”, que provoca a irrupção do inesperado, da surpresa e também fundamentalmente do que se escondia nas profundezas da realidade chata.

Ruptura nos atos, ela se apresenta como a expressão da espontaneidade da invenção técnica e social, da representação dos desejos como se eles fossem realidade, do estabelecimento de um vínculo entre o que é normalmente disjunto: o sexo e o trabalho, o prazer e o esforço, a violência e o calor solidário.

Ruptura no tempo, ela é o que permite escapar do tempo uniforme da repetição e do cotidiano, dar-lhe um sexo, fazer com que surjam momentos diferenciados e cuja beleza reside na fugacidade.

Afinal, a imaginação fecunda o pensamento, mas este precisa encontrar uma confirmação, mais cedo ou mais tarde, na prática. É de fato a experiência e o confronto com o Real – isto é: com o que resiste, o que desnorteia – que recoloca a imaginação nos trilhos, faz surgir novas ideias e suscita ações imprevistas.

Ao mesmo tempo em que a imaginação é abertura, como já mencionamos, ela no entanto pode ser encerramento. Com efeito, ao lado da imaginação radical – motriz, como eu a chamo -, existe uma imaginação que vai se cristalizar num imaginário enganador, que vai ter uma função de tranquilização, de máscara, de mistificação.

É nesse tipo de imaginário que Jacques Lacan insistiu no seu famoso texto “O estádio do espelho como formador da função do Eu”. Ele mostra que o ego se constitui em certo momento da vida, a partir da imagem especular, que vai favorecer na criança uma apreensão global de seu corpo como unidade (antes, esta não diferenciava seu corpo do mundo exterior ou tinha apenas a experiência de um corpo fracionado; ela brincava com seus dedos da mão ou do pé). Mas a imagem de unidade dada pelo espelho, e que agrada à criança que vai sorrir para sua imagem, só é possível porque os pais que a carregam lhe mostram sua imagem no espelho e dizem: olhe como você é bonito. Assim, a apreensão do corpo como unidade, que provoca a “jubilação” (a criança está feliz em se ver) só é possível porque a criança é primeiro constituída como unidade pelo olhar do outro sobre ela, pelo discurso que a designa como única. É, portanto, através de uma identificação com a imagem dos outros sobre si que conseguimos ter uma imagem de nós mesmos. Ocorre que a unidade é um engodo. Primeiro, porque um corpo unificado pode voltar a ficar fracionado (e sabemos que a fantasia do fracionamento – de um corpo batido, rejeitado, quebrado – vai se desenvolver com e contra o sentimento de unidade); depois, porque é possível se apaixonar pela própria imagem e se perder nela (como Narciso, que se afogou ao querer beijar sua imagem na água). Narcisismo em demasia leva à loucura e à morte. O que alguns ditadores ainda não entenderam. E quando o narcisismo não leva à morte de si, ele leva à morte dos outros (basta pensar em Hitler, Stálin ou Marx). Enfim, porque significa que estamos o tempo inteiro dependentes do olhar dos outros, que somos incapazes de construir nossa própria imagem de nós e que sempre precisamos que seres transcendentais exerçam sobre nós uma autoridade tutelar benevolente para termos absoluta certeza de que existimos e de que estamos no bom caminho: é o que vai desenvolver em cada um a ilusão, a crença de ser protegido por um pai (ex: o Pai dos povos) ou por um santo ou ainda por um Deus que nos quer bem.

Para não corrermos o risco de ficar fracionados, para não termos medo de nos afogar como Narciso, o único jeito, pelo visto, é edificarmos crenças não negociáveis, ilusões, certezas, ídolos (religiosos ou ideológicos) que vão nos sustentar, garantir nossa unidade e ficar de olho em nós para ver se nos comportamos de acordo com as normas que eles determinam.
Antes de prosseguirmos, precisamos definir a noção de ilusão.

O que caracteriza a ilusão é que ela é derivada dos desejos humanos. A posição racionalista (a de Descartes) é clara a este respeito: temos de um lado a ilusão (emanação de um gênio maligno) e do outro o pensamento verdadeiro, a existência (penso, logo existo), cuja fonte é Deus.

O pensamento de Freud, que compartilho neste ponto, é mais complexo. Ele sabe que o trabalho da análise é um trabalho sobre “ilusões” (sobre fantasias, sonhos, cenas de sedução imaginárias, relações transferenciais), que estas ilusões são da ordem do “verdadeiro”, que elas dão testemunho da atividade psíquica e que, sem elas, não haveria para o sujeito humano nenhuma possibilidade de vivência do inconsciente, que fala dentro dele sem que ele queira ou suspeite, sem que possa medir os efeitos disso. Freud especifica esta ideia quando escreve: “uma ilusão não é a mesma coisa que um erro. Ela não é obrigatoriamente um erro”. Ela é indiferente à realidade e também à efetividade. Podemos defini-la assim: “A ilusão é uma crença quando a realização do desejo é prevalente na sua motivação e quando não levamos em conta relações desta crença com a realidade; a ilusão também abre mão de uma confirmação pela realidade”. A ilusão é crença ao passo que o pensamento é interrogação. Ela é obturação, situação na chegada, resposta dogmática. Ela é portadora do incrível. Para melhor precisar o estatuto da ilusão (crença), eu gostaria de citar o texto de um psicanalista francês, Jean-Bertrand Pontalis: “O que nos autoriza a falar de ilusão religiosa evidentemente não é a deformação do desejo e de seus deslocamentos nem o desconhecimento da realidade que podemos observar em todas as formações do inconsciente. Mas em todas essas formações a realização do desejo é inseparável dos trajetos que ele percorre, dos objetos parciais nos quais ele se fixa, das representações que ele se dá: há um trabalho do sonho, um agenciamento da fantasia, uma construção delirante, um processo de transferência. Estas ilusões são a realidade da análise. A famosa fórmula: “A aceitação da neurose geral dispensa o crente da tarefa de formar uma neurose pessoal” poderia então ser entendida assim: a ilusão é patente onde existe uma Weltanschauung (concepção do mundo), promessa de uma colocação que impede de uma vez por todas por meio de uma pretensa “solução” o acesso à encenação, à concretização ou à vivência no sonho dos conflitos do desejo. O que deprecia a ilusão religiosa (para Freud) é que ela aliena numa simbólica preestabelecida e comum o jogo livre e criativo da ilusão. Existem, portanto, duas formas de ilusão: a que permite um trabalho criativo e a que submete o indivíduo a crenças não questionáveis.

O que constatamos ao estudar a maneira como se desenvolveram no Ocidente cristão por um lado a arte (especialmente a pintura, a escultura, a música) e por outro lado o funcionamento social? Constatamos que o funcionamento social se colocou sob a égide da ilusão, e principalmente do imaginário enganador, mesmo que o pensamento imaginativo criativo tente o tempo inteiro fissurar os dogmas. Observamos em todo lugar o crescimento das religiões nos seus aspectos mais dogmáticos. Quando as religiões começam a esvaecer, elas são substituídas por ideologias formadas (tais como o marxismo dogmático ou o ultraliberalismo). Quando retomam impulso, elas dão vazão a fanatismos (como o fanatismo islamista) ou às mais variadas seitas. Este imaginário enganador se concretizou: vejam (para dar apenas alguns exemplos) a conquista dos lugares santos, as guerras de religiões, o massacre dos índios, o tráfico de negros (para civilizá-los), duas guerras mundiais, as concretizou as ditaduras em nome de um Estado forte (novo Deus a ser respeitado), o totalitarismo soviético ou chinês (em nome da ciência marxista, considerada como a expressão da verdade eterna e substituta de Deus sem nenhum problema) etc.

É verdade que a tendência atual é de querer instaurar a democracia em todos os lugares, como comentamos anteriormente. Mas a que preço! E que democracia? Na realidade, ditaduras, fanatismos, genocídios e guerras continuam existindo. Freud tinha razão quando dizia que o que os homens agora temem antes de tudo é a deterioração das relações entre os homens.

Na esfera artística, contudo, podemos relevar um fenômeno interessantíssimo. A imaginação criativa (a capacidade de construir imagens, hinos, missas etc.) se colocou a serviço da imaginação enganadora, da ilusão, da fé.

Vemos o plano da arte se dissociar do da realidade: quanto mais a arte se desenvolver, mais o plano da realidade vai se encerrar. Vou fornecer nesta minha exposição demasiadamente longa um só exemplo: a liberdade da arte barroca, expressão da Contrarreforma, e vou tentar extrair seu significado.

O barroco se mostra, nos países em que mais se desenvolveu (os do crescente barroco, que vai de Nápoles a Praga, passando por Saint-Gall e Munique), como a expressão artística e humana (o barroco também é uma maneira de ser) da Contrarreforma, oriunda do Concílio de Trento (1546-1563), que procurou conter a onda luterana e a onda calvinista (esta tomando forma durante o próprio Concílio) e, sobretudo, trazer uma solução para a crise moral, cósmica, existencial: numa palavra só, para a crise da cultura que sacudiu aquela época.

A ressurgência da antiguidade e a descoberta das imensas terras do Novo Mundo; a chegada maciça do ouro e das pedras preciosas; o surgimento do Estado moderno (instância transcendente da obrigação legítima, que tende a absorver a sociedade civil) com o desenvolvimento das cidades italianas dirigidas por príncipes embriagados pela onipotência, e aos quais Maquiavel fornecerá a ideologia de que precisavam; a revolução científica (a de Copérnico, Kepler e Galileu), que faz com que os seres humanos migrem do “mundo fechado para o universo infinito”; sem falar dos ataques dos reformadores religiosos nem dos massacres que se seguiram: todos esses eventos fazem dessa época um período de instabilidade e de colapso das certezas do homem, que vê vacilar e até desaparecer seus pontos de referência e polos de identificação nesse excesso de universo, de terras desconhecidas, de religiões, de Estado e de ouro. Esse homem, destituído do seu lugar de centro do mundo, perdido e vulnerável, pego no turbilhão do seu tempo, vê por causa disso emergir nele desejos novos. Ele é possuído ou por um frenesi, por uma paixão descontrolada (e se torna o homem desse mundo tumultuoso), ou por um desejo de paz e de comunhão com a natureza e o divino (o sucesso das experiências místicas daquela época sendo um testemunho disso).

Contra o acetismo luterano e calvinista, contra a crise cultural, a Contrarreforma julga necessário restabelecer a crença e por isso se endereçar às imaginações e sensibilidades, tentando comover e não satisfazer a razão e a lógica, a fim de poder responder ao novo estado em que se encontra o indivíduo, que só poderá se satisfazer nesse período turvo com símbolos expressivos nos quais puder encontrar, ordenada e controlada, sua própria reviravolta interna. A arte (e em primeiro lugar a arte religiosa) deverá encantar (no sentido forte do termo) os fiéis: comovê-los, fasciná-los, pô-los em movimento, provocar elevação e veneração. Acabou, portanto, a arte altiva da Alta Idade Média, ou aquela clássica do plano e da linha, da unidade. A arte precisa agora ser colorida, uma forma aberta, conjuntos plurais. O público tem que ser colocado em estado de regressão, tem que ser enganado. Não é à toa que o trompe l’oeil vai triunfar na arquitetura religiosa.

O mundo proposto ao olhar é aquele da aparência, da inconstância, do capricho, da metamorfose, do artificial, do maravilhoso, do pitoresco e do fantástico. Um mundo no qual a paixão pelas aventuras mais inverossímeis, pelos golpes do destino, pelo travestimento e pelo bizarro reinam absolutos. E para que esse mundo possa inflamar, “entusiasmar” os indivíduos, ele deve ser sustentado por uma vontade de grandeza, vontade expressa nesta frase-lema de Bernini: “Não me falem de nada que seja pequeno”.

Tudo no barroco não é apenas grande, quando não colossal, querendo se espalhar com profusão e tumulto, querendo marcar pela majestade ou pelo horror. É preciso ainda que a ilusão seja confundida com a verdade, visto que as figuras, os ornamentos e os atos que são mostrados (a visualização é levada ao paroxismo) são os sinais da presença ativa do grande ordenador: Deus ou o mágico.

E já que evoquei o caráter teatral do barroco, vamos parar um instante nas duas peças barrocas por excelência: A tempestade, de Shakespeare, e A ilusão, de Corneille.

Em A ilusão, “estranho monstro” pelas palavras do próprio autor, teatro dentro do teatro, um pai se sente culpado pela conduta que teve anteriormente em relação ao seu filho e gostaria de saber o que ele se tornou. Esse filho, mágico de profissão, leva o pai a crer que está assistindo ao vivo ao assassinato dele, que se trata de um evento real que está se desenrolando diante de seus olhos, não de uma ficção. A peça inteira é construída a partir da sedução que o mágico exerce sobre o pai ao mostrar-lhe as aventuras no início felizes de seu filho e ao deixá-lo esperar por um fim favorável. Quando o pai se torna incapaz de pôr em dúvida os poderes do mágico e está mergulhado num estado de alucinação tão profundo que não consegue mais se segurar na realidade, então o mágico pode acabar com ele e transformar a comédia em tragédia, sem que o pai possa entender que foi enganado, que se deixou levar pelo encanto. O fim da peça revela, todavia, o mecanismo da ilusão. Tudo não passava de um simulacro, o filho se limitando a atuar numa peça trágica. Porém, com este simulacro,”o teatro está num ponto tão alto que todo mundo o idolatra”. Assim, o teatro é o lugar da idolatria, o que significa que, para provocar a idolatria, tudo tem que virar teatro.

Pois quando o mágico não tem mais poderes, quando ele quebra sua varinha, quando não consegue mais governar os homens, “raptá-los” de si mesmo, “encantá-los”, pegá-los na armadilha de seus próprios desejos (desejo do pai na ilusão de ser desculpado ao ver que o filho que rejeitou alcançou a fortuna), dobrá-los para submetê-los à sua vontade, então a aflição humana renasce e a tragédia da história retoma seus direitos. É o que evoca Próspero no epílogo de A tempestade (última peça de Shakespeare). Ele abjura sua magia brutal, quebra sua varinha e declara: ”Agora, todos os meus sortilégios estão destruídos e só me resta minha própria força, tão fraca! Doravante, não tenho mais mentes para dominar, artes para encantar e meu fim é o desespero”.

Se não há mais mestre das ilusões, ordenador das cerimônias, os homens podem realmente morrer. Próspero pode recuperar seu ducado de Milão, do qual foi banido, e consequentemente reencontrar as intrigas que podem dessa vez acabar com ele. Em A ilusão, na verdade, não há nenhuma história, já que se trata de cabo a rabo de uma mistificação. A tempestade é apenas a repetição de uma história já vivida e, quando o drama termina, os pêndulos ajustam sua hora e a história recomeça como se não tivesse acontecido nada. Nessas duas obras, o sonho domina e a realidade histórica fica de fora. A mensagem é clara: o mágico é aquele que consegue nos levar à embriaguez, nos tirar da realidade histórica, sempre dolorosa. É aquele que faz com que entremos vivos na eternidade. Por isso é preciso preservar os mágicos, pois são os únicos que nos consolam, são os únicos que nos fazem acreditar que o mundo das aparências é o único mundo amável em que seja possível viver.

E se voltarmos à arte, o que vemos? O triunfo da aparência enganosa. Borromini alongará a sequência de colunas do palácio Spada ao roubar nas proporções de suas colunas; os decoradores engavetam motivos pintados com motivos esculpidos ou modelados, o que impede qualquer distinção; os afrescos dos tetos (pensem em Tiepolo) parecem abrir para o céu, com falsos espectadores debruçados nos balcões, olhando para nós.

Trata-se sempre de desviar, elevar, encantar, mas também de manter a suspensão do desejo. Tudo pode acontecer; a surpresa e o inédito são permanentemente convidados. Quanto às grandes esculturas, sabemos muito bem que elas expressam a paixão, o êxtase, a volúpia até, sobretudo, talvez, se elas estiverem misturadas com sofrimento (a Santa Teresa de Bernini sendo aí o símbolo mais conhecido). Todos os gestos são complicados, os seres contorsionados, os rostos possuem uma expressividade alucinada. Todos os sujeitos estão brincando, pegos num turbilhão: estão no meio do delírio (e do prazer) desejado por Deus. Não há nada tangível, portanto, a não ser o sopro de Deus ou aquele do seu avatar leigo,o mágico. Os crentes só podem ficar subjugados por essa proliferação de cenários, de estátuas, de recantos, por essa diversidade que faz estourar a igreja em múltiplos lugares – cada um com sua perfeição -, pela variedade de poses, pela incerteza da percepção. E para que toda essa criação que continua fazendo do barroco uma festa perpétua? Para que os poderosos sejam amados, que sua glória nunca seja questionada, que os submetidos fiquem submissos, dóceis e resignados, e para que a razão não consiga se encontrar nessa efervescência. Os sentidos são solicitados: é amor que é pedido e é amor que vai voltar.

Temos de acrescentar que na mesma época nasce a ópera, a forma que vai suscitar a paixão, o entusiasmo e a identificação, mais ainda que o teatro, visto que é a única que consegue integrar letra, música, dança, às vezes até pinturas e mecanismos cenográficos, os mais surpreendentes e os mais delirantes. Nesse sentido, a ópera é a forma barroca por excelência. Todo amador bem sabe que a ópera tem este poder de galvanizar as multidões: as consequências das representações de Nabucco e dos Lombardos de Verdi ou da Muda de Portici de Auber ainda estão em todas as memórias. A ópera na idade barroca se contenta em estarrecer, em suscitar o amor ou em entoar um cântico à glória dos poderosos. Assim, ela vai contribuir com as outras manifestações da arte barroca para manter os povos numa obediência extasiada ao captar sua capacidade de devoção. Também é óbvio, contudo, que o barroco permitiu que a fantasia criativa mais desenfreada se manifestasse, que o grotesco tivesse o seu lugar, que acreditassem nas mais descabeladas aventuras. O eco do dinamismo desse movimento artístico ainda nos alcança. O barroco, como acabamos de ver, funciona na base da idealização. Idealização das formas, idealização da fé. Para nós, hoje – e ainda não falei do barroco latino-americano -, ele continua tendo impacto por seu esplendor, por seu aspecto desmedido e contorsionado, mesmo que não solicite mais a nossa fé.

É importante notar que toda arte desmedida sempre quer conquistar nossa crença. Basta se lembrar da arte nazista grandiloquente e da arte monumental soviética, que estranhamente se pareciam e quiseram enganar as populações, muitas vezes com sucesso.

Se quisermos que a imaginação radical, criativa e motriz continue ocupando o lugar que merece e influencie a arte como realidade social, é essencial que o processo de sublimação substitua o processo de idealização.

Algumas palavras, para concluir, sobre a sublimação, frequentemente evocada por Freud, apesar de pouco explorada por ele. Para ficar claro e simples, podemos analisá-la sob quatro aspectos:

  1. A sublimação é uma das origens essenciais do laço social. Se os indivíduos tivessem ficado no estádio do prazer do órgão, eles nunca teriam conseguido construir uma sociedade. Como diz Castoriadis: “Falar já é sublimar”. Com efeito, a linguagem é uma construção “abstrata” que implica a possibilidade de nomear e de classificar as coisas. É uma construção “afetiva” que implica o reconhecimento da existência dos outros e da troca com outrem, e é uma construção “prática”, já que ela favorece a colaboração e a invenção das técnicas. Sublimar é, portanto, um processo normal da vida social que faz com que prevaleça o prazer da representação em detrimento do prazer do órgão.
  2. A sublimação autoriza a psiquê a se desprender dos seus próprios objetos de prazer para preferir objetos sociais valorizados pela cultura. Um exemplo vai permitir uma maior precisão neste aspecto (que é essencial para Freud): se um indivíduo for movido por uma pulsão de destruição, é melhor ele colocar seu sadismo a serviço da coletividade, tornando-se um ótimo açougueiro ou cirurgião, do que ele virar Jack, o Estripador. Este aspecto da sublimação constitui um problema social central. Se na nossa sociedade não valorizarem um número suficiente de profissões não perigosas para os outros, muitos indivíduos serão levados a não sublimar e a se lançar em ocupações ilegais e perigosas, valorizadas apenas por seus pares (como os traficantes de drogas).
  3. A sublimação se apresenta também (e talvez essencialmente) como uma experiência intrapsíquica na qual a subjetividade do sujeito é totalmente envolvida. A sublimação se mostra como um desejo de pensamento (e também como um prazer doloroso, pois ela almeja preencher uma falta), como uma busca apaixonada pela verdade, como uma construção de um objeto científico, artístico ou relacional. Podemos considerar como emblemática da sublimação a obra (e também a pessoa) de Leonardo da Vinci.
  4. A generalização do desejo de investigação estudado anteriormente foi compartilhada pelo maior número de pessoas possível. Esta generalização teria como objetivo o conjunto do corpo social investido positivamente como o lugar de construção de um laço (de um amor, de uma amizade) não fusional, porém lúcido, entre homens autônomos, sem deixar de lado os fracos, o conflito ou a agressividade, sempre presentes nas relações mais tenras. A generalização só é possível se os homens sublimadores respeitarem a ética do debate, tal como evocada por Habermas, isto é: a possibilidade para seres sinceros de falar o mais autenticamente possível num debate aberto e público, onde cada um, como numa ágora grega, tomaria a palavra e ouviria atentamente os argumentos dos outros, onde todo mundo disporia das mesmas informações, teria vontade de tratá-las de maneira pertinente e de encontrar as soluções mais vantajosas para cada um dos protagonistas.

Acrescento, para terminar, que os homens sublimadores deveriam respeitar o que chamei em 1997 de ética da finitude, que implica a aceitação de seus limites; a capacidade de se questionar; a aptidão de ser ao mesmo tempo um ser racional, imaginativo e passional; a vontade de que prevaleça em si a pulsão de vida sobre a pulsão de morte; a coragem de enfrentar as feridas narcísicas, de se redefinir, deixando de lado qualquer megalomania, de passar pela resolução do luto de todas as ilusões paralisantes e de ser antes um homem da interrogação que da certeza; e, enfim, a vontade de simpatizar com outrem e de considerá-lo na sua alteridade plena e inteira, mesmo que a sombra dele nos encubra um pouco.

De fato são raros os homens que praticam diariamente a ética da conversa e da finitude.

Talvez não existam e nunca existirão, como dizia Rousseau, falando da democracia. Todavia, não é porque um caminho é dificil que é proibido e ruim andar nele. Como dizia Nietzsche, é preciso ir em frente com suas convicções, apesar de tudo. O mundo só pode mudar se houver homens em pé, prontos para enfrentar o abismo. Vamos tentar ser um deles. Se fracassarmos, teremos pelo menos vivido uma bela aventura.

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